Resumo
Trazer uma reflexão sobre a importância e o potencial impacto da migração pendular na busca por serviços de saúde e, em específico, sobre as peculiaridades dessa mobilidade na região de fronteira. O trabalho descreve o contexto em que a mobilidade pendular se insere na modificação do espaço urbano do século XX, apresenta alguns aspectos legais sobre o tema na área da saúde, ilustrando a partir da realidade da tríplice fronteira Brasil-Argentina-Paraguai, enquanto importante local de migração pendular para uso dos serviços de saúde. São apresentadas hipóteses para possíveis impactos da mobilidade pendular, desfechos em saúde, assim como medidas para aferir a mobilidade pendular, tais como o efeito da distância a ser percorrida da residência ao serviço de saúde, o local de residência (país diferente, com condições de desenvolvimento diferentes) e os aspectos organizacionais da atenção à saúde, como a incerteza relativa ao atendimento em função da mobilidade internacional. Conclui-se que essa forma de mobilidade é muito comum na busca por atenção à saúde, e não apenas, como versa a abordagem tradicional, para trabalho e estudo, e que faz-se de grande importância o estudo de seu impacto na saúde das pessoas e a sua inclusão nos debates sobre a atenção à saúde através da fronteira.
Palavras-chave
Migração pendular; Prognóstico; Saúde na fronteira
Introdução
A migração temporária das pessoas para buscar atendimento à saúde é tema pouco explorado quando se considera o planejamento de serviços e ações em saúde, visto que tem influência na adesão aos tratamentos e no prognóstico dos pacientes.
A mobilidade pendular, também chamada de migração pendular (MP), pode ser definida como movimentos cotidianos das pessoas entre o local de residência e locais de trabalho ou estudo11. Portugal. Instituto Nacional de Estatística (INE), Ministério das Obras Públicas, Transportes e Habitação, Auditoria Ambiental. Movimentos Pendulares e Organização do Território Metropolitano: Área Metropolitana de Lisboa e Área Metropolitana do Porto 1991/2001. Lisboa: INE; 2003.. O termo vem sendo usado especialmente quando essa mobilidade implica em residir em certo município e trabalhar ou estudar em outro. Isso é fato importante, pois é o que diferencia a MP da imigração, visto que, nesse segundo caso, existe uma troca definitiva de local de residência.
O estudo dessa forma de mobilidade humana vem tomando grande relevo desde a segunda metade do século XX. Com o crescimento das cidades, foram surgindo núcleos urbanos nos quais a maior concentração de atividades industriais, comerciais e prestação de serviços em relação a outras áreas contribuíram para que esses núcleos se tornassem uma referência para regiões próximas a eles, estabelecendo uma relação hierárquica com as regiões-satélite a eles, quanto ao mercado de trabalho. Essas áreas de maior importância são denominadas de regiões funcionais22. Organization for Economic Co-Operation and Development (OECD). Territorial Development Service, Territorial Development Policy Committee. Redefining Territories: Functional Regions. Paris: OECD; 2002.. Essas regiões possuem grande importância no contexto da MP, pois são justamente para as regiões de maior e mais diversificado mercado de trabalho e oferta de instituições de ensino que ocorre a maior mobilidade pendular33. Jardim ML, Barcellos TM. Mobilidade Populacional na Região Metropolitana de Porto Alegre nos Anos 90. São Paulo em Perspectiva 2005; 19(4):78-95.. Assim, a MP é a unidade de medida de uma região funcional.
Apesar da contribuição que esse conceito e suas pesquisas vêm trazendo para o estudo da mobilidade humana e de seus fatores associados, quando o avaliamos sob o prisma do setor saúde, ele apresenta uma importante limitação: considera como mote principal dos movimentos migratórios pendulares o trabalho e o estudo, desconsiderando a pendularidade na busca por serviços de saúde33. Jardim ML, Barcellos TM. Mobilidade Populacional na Região Metropolitana de Porto Alegre nos Anos 90. São Paulo em Perspectiva 2005; 19(4):78-95.
4. Stamm C, Staduto JAR. Movimentos Pendulares das Cidades Interioranas de Porto Médio de Cascavel e Toledo, no Paraná. R. Bras. Est. Pop. 2008; 25(1):131-149.-55. Moura R, Branco MLGC, Firkowski OLCF. Movimento Pendular e Perspectivas de Pesquisa em Aglomerados urbanos. São Paulo em Perspectiva 2005; 19(4):121-133.. A maior parte da produção científica que procura relacionar a mobilidade humana a desfechos em saúde estuda o processo da imigração, muitas vezes evidenciando um efeito negativo da imigração na saúde, como diagnósticos tardios e redução de acesso aos serviços66. Saracino A, Tartaglia A, Trillo G, Muschitiello C, Bellacosa C, Brindicci G, Monno L, Angarano G, Late Presentation and Loss to Follow-Up of Immigrants Newly Diagnosed with HIV in the HAART Era. J Immigrant Minority Health 2014; 16(4):751-755.. Assim, a MP termina por ser um ponto quase cego na produção de conhecimento sobre sua relação com a saúde das pessoas. Ainda que exista o termo pendulum migration na literatura científica de língua inglesa, as pesquisas costumam usar o termo commuting para se referir à mobilidade diária em direção ao trabalho ou estudo. No âmbito da saúde, estudo demonstra que, quanto maior o tempo do commuting, pior a percepção da própria saúde77. Künn-Nelen A. Does Commuting Affect Health? Bonn: Institute for the Study of Labor (IZA); 2015. IZA discussion Paper No. 9031.. E até mesmo em estudo que randomizou estudantes universitários, para realizar a mobilidade para outro campus ou não fazer nenhuma mobilidade, mostra uma tendência ao aumento da pressão arterial nos estudantes submetidos à mobilidade88. White SM, Rotton J. Type of Commute, Behavioral Aftereffects and Cardiovascular Activity: a Field Experiment. Environment and Behavior 1998; 30(6):763-772.. Contudo, apesar de procurarem estabelecer relação entre pendularidade e saúde, são consideradas apenas a mobilidade para trabalho ou estudo, e não para a busca por serviços de saúde. É provável que a MP, com a finalidade de buscar atendimento à saúde, corresponda a um fenômeno diferente com suas próprias particularidades.
A MP para uso de serviços de saúde é um processo muito comum em todo mundo99. Glinos IA, Baeten R, Helble M, Maarse H. A Typology of Cross-Broder Patient Mobility. Health & Place 2010; 16(6):1145-1155.. Na iniciativa privada, muitas pessoas viajam para centros que sejam referência em certo serviço especializado particular sem que, com isso, troquem definitivamente de município de residência. Na saúde pública brasileira, a MP é um movimento populacional previsto legalmente. A lei 8080/1990 enfatiza, nos artigos 8 e 10, que o Sistema Único de Saúde (SUS) é organizado de maneira hierarquizada e regionalizada, prevendo que os municípios possam criar consórcios intermunicipais para realizar ações e oferecer serviços conjuntamente1010. Brasil. Lei 8080, de 19 de Setembro de 1990. Dispõe sobre as condições de promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 19 set.. Assim, municípios pequenos podem estabelecer parcerias com municípios maiores, detentores de maior carga de tecnologia dura, para que seus cidadãos se desloquem para essas “regiões funcionais em saúde” quando necessário e retornem para seu município de origem.
Outro aspecto importante é que a MP ocorre tanto em cidades de médio porte quanto em regiões funcionais metropolitanas, havendo, como exemplo, uma média diária de 1399 pessoas no eixo Cascavel-Toledo, cidades vizinhas e de médio-porte no interior do Paraná44. Stamm C, Staduto JAR. Movimentos Pendulares das Cidades Interioranas de Porto Médio de Cascavel e Toledo, no Paraná. R. Bras. Est. Pop. 2008; 25(1):131-149., e de 120.425 e 1.015.222 na região metropolitana de Porto Alegre e São Paulo, respectivamente33. Jardim ML, Barcellos TM. Mobilidade Populacional na Região Metropolitana de Porto Alegre nos Anos 90. São Paulo em Perspectiva 2005; 19(4):78-95.,1111. Aranha V. Mobilidade Pendular na Metrópole Paulista. São Paulo em Perspectiva 2005; 19(4):96-109.. Essas regiões metropolitanas possuem um saldo de MP positivo, ou seja, em horário comercial, recebem mais pessoas do que enviam através dessa forma de mobilidade. Com um volume tão grande de pessoas diariamente muitas delas acabarão por usar serviços públicos de saúde de maneira esporádica e, caso considerem serem de melhor qualidade que os de sua cidade de origem, procurarão maneiras de fazer uso regular deles. Quando existem consórcios firmados para serviços específicos que regulamentam esse fluxo de pacientes, há repasse de verbas entre municípios quando do uso desses serviços. Contudo, o uso costuma ocorrer para diversas outras modalidades de atenção à saúde para além dos acordos firmados. O chamado plus populacional decorrente da MP raramente é considerado para fins de repasse de verbas e formulação de políticas públicas, gerando excesso de população se comparado com a oferta de serviços de saúde.
Todos os aspectos relativos à MP se tornam mais complexos quando consideramos a MP internacional para fins de uso dos serviços públicos de saúde. Quando dois países têm fronteiras entre si e possuem disparidade em termos socioeconômicos e de oferta e qualidade de serviços de saúde, é natural que ocorra a MP em busca de atenção à saúde. Ela ocorre com grande frequência em certas regiões da linha de fronteira do Brasil, como é o caso da tríplice fronteira Brasil-Argentina-Paraguai. Estimativas do do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Ministério das Relações Exteriores são muito discrepantes, sendo no primeiro em torno de 4.926 Brasileiros residentes no Paraguai1212. Brasil. Ministério das Relações Exteriores (MRE). Censo do IBGE estima Brasileiros no Exterior em 500 mil. [acessado 2016 Jan 13]. Disponível em: http://www.brasileirosnomundo.itamaraty.gov.br/noticias/censoibge-estima-brasileiros-no-exterior-em-cerca-de-500-mil
http://www.brasileirosnomundo.itamaraty.... e, no segundo, com dados de registro das embaixadas brasileiras, 349.842 brasiguaios, sendo 200.000 na região próxima à tríplice fronteira, potencialmente usuários do sistema de saúde brasileiro1313. Brasil. Ministério das Relações Exteriores (MRE). Estimativas Populacionais das Comunidades. [acessado 2016 Jan 13]. Disponível em: http://www.brasileiros-nomundo.itamaraty.gov.br/a-comunidade/estimativas-populacionais-das-comunidades/estimativas-populacionais-brasileiras-mundo-2014/Estimativas-RCN2014.pdf
http://www.brasileiros-nomundo.itamaraty... . Com esse excedente populacional e com o repasse de verbas para a saúde, com base na população residente no município, existe uma constante defasagem financeira. Caso a origem dessas pessoas seja revelada, é possível que as portas da atenção à saúde para elas sejam fechadas, o que leva muitos a encontrarem formas extraoficiais de comprovar endereço na cidade brasileira para serem atendidos. Isso gera ciclo vicioso difícil de resolver. Para formular políticas públicas que incluam os pacientes de MP internacional, é preciso mapeá-los e quantificá-los. Porém, para isso, é preciso identificá-los, o que traz o risco de interrupção da atenção à saúde. Em termos de pesquisa epidemiológica, esse é um desafio: como mensurar uma população que não quer ser mensurada?
Em 2007, Foz do Iguaçu aderiu ao programa SIS-FRONTEIRAS, e parte da verba destinada ao município foi usada para construir o Centro Materno Infantil (CMI), com a finalidade de realizar o acompanhamento pré-natal de gestantes brasileiras residentes no Paraguai. Estudo realizado com essa população mostrou que gestantes brasiguaias, que fizeram pré-natal no CMI, tiveram parto em Foz do Iguaçu e se declararam moradoras do Paraguai, tiveram mais consultas prénatal, maior probabilidade de ter tido a primeira consulta ainda no primeiro trimestre e a primeira consulta puerperal até um mês pós-parto, se comparado com gestantes de igual perfil que se declararam moradoras do Brasil durante a internação, apesar de serem de fato brasiguaias1414. Mello F, Victora CG, Gonçalves H, Saúde nas Fronteiras: Análise Quantitativa e Qualitativa da Clientela do Centro Materno Infantil de Foz do Iguaçu, Brasil. Cien Saude Colet 2015; 20(7):2135-2145.. Os autores ponderam sobre suas atitudes e de suas famílias de esconder esse dado para evitar receberem tratamento pior do que as brasileiras ou de ter negado atendimento. Por isso, elas procurariam, propositadamente, o serviço em etapa avançada da gestação na certeza de não ter negado atendimento. Esses achados ocorreram apesar de todos esses grupos terem acesso oficial ao serviço. Os resultados do estudo sugerem que quando a gestante reconhece o direito de acesso ao serviço (traduzido pela assunção de seu país de residência na hora do parto), seu acompanhamento e os desfechos em saúde pode não diferir das gestantes residentes no Brasil.
O contexto da assistência a essas gestantes, através de um serviço criado para esse fim, não se aplica a maior parte dos estrangeiros e brasiguaios. Muitas dessas pessoas que buscam acesso aos serviços públicos de saúde na cidade brasileira da tríplice fronteira o fazem de maneira informal, estando, portanto, sujeitos aos riscos de uma acessibilidade duvidosa ao suprimento de suas necessidades.
Há duas principais hipóteses que relacionam a MP para a busca por serviços de saúde e os desfechos em saúde: a distância percorrida pelo paciente entre sua residência e o serviço, e os aspectos administrativos para que o uso dos serviços ocorra.
Residir em um município que não é o mesmo onde se recebe atenção à saúde ou deslocarse longas distâncias para fazer uso desses serviços pode ter um impacto na saúde dos pacientes. Há poucos estudos que correlacionam a distância percorrida pelo paciente para fazer uso dos serviços de saúde e a saúde em si e, em termos de desfechos aferidos, podem ser classificados em três modalidades: estudos descritivos do padrão de mobilidade, estudos que avaliam desfechos substitutos e estudos que avaliam desfechos primários. No primeiro caso, é possível citar como exemplo estudo com pacientes cadastrados em programas de tratamento de adicção à opioides nos Estados Unidos, que teve como objetivo conhecer o padrão de mobilidade desses pacientes até o serviço, como a distância percorrida, formas de transporte e demais características clínicas e sociodemográficas, não estabelecendo relação entre a mobilidade e desfechos em saúde1515. Rosenblum A, Cleland CM, Fong C, Kayman DJ, Tempalski B, Parrino M. Distance Traveled and Cross-State Commuting to Opioid Treatment Programs in the United States. J Environ Public Health 2011; 2011:948789.. Em relação à segunda modalidade, pesquisa mostrou que a distância que o paciente viaja para receber cuidados relativos ao HIV está relacionada com a percepção, por parte de pacientes e profissionais de saúde, de menor engajamento ao tratamento e menor adesão aos antirretrovirais, especialmente se ele se desloca distâncias maiores ou iguais a 50km1616. Taylor BS, Reyes E, Levine EA, Khan SZ, Garduño S, Donastorg Y, Hammer SM, Brudney K, Hirsch JS. Patterns of Geographic Mobility Predict Barriers to Engagement in HIV Care and Antiretroviral Treatment Adherence. AIDS Patient Care and STDs 2014; 28(6):284-295.. Outro estudo ilustrativo foi a pesquisa qualitativa brasileira conduzida com todos os secretários de saúde dos 69 municípios brasileiros fronteiriços com Argentina, Uruguai e Paraguai, e que objetivou conhecer as condições de acesso e demanda por serviços de saúde em cidades fronteiriças do Mercosul1717. Giovanella L, Guimarães L, Nogueira VMR, Lobato LVC, Damacena GN. Saúde nas Fronteiras: Acesso e Demandas de Estrangeiros e Brasileiros não Residentes ao SUS nas Cidades de Fronteira com Países do MER-COSUL na Perspectiva dos Secretários Municipais de Saúde. Cad Saude Publica 2007; 23(Supl. 2):S251-S266.. A maioria dos secretários admite essa demanda em seus municípios e a considera frequente. Porém, a condução de pesquisa qualitativa para investigar esse tema e o consequente uso de desfechos secundários vem do fato de a maioria desses municípios não registrar os atendimentos prestados aos estrangeiros e brasileiros moradores no exterior: apenas três registram regularmente os atendimentos e 21 conseguem fazer estimativas. Por fim, trabalho que avaliou a relação entre a distância percorrida entre residência e serviço de Oncologia, responsável por fazer o diagnóstico de câncer de Cólon, mostrou relação positiva entre a distância residência-serviço e a probabilidade de metástases já no diagnóstico, com maior probabilidade de diagnóstico em estágio mais avançado da doença em pacientes que residem mais longe do serviço1818. Massarweh NN, Chiang YJ, Xing Y, Chang GJ, Haynes AB, You N, Feig BW, Cormier JN, Association Between Travel Distance and Metastatic Disease at Diagnosis Among Patients With Colon Cancer. J Clin Oncol 2014; 32(9):942-948.. A longa distância percorrida até o serviço tem o efeito de redução da acessibilidade geográfica com todos os efeitos que lhes são relacionados como atraso no diagnóstico, no manejo de doenças e na busca de recursos em caso de intercorrência de doença, levando à maior probabilidade de os pacientes desenvolverem desfechos em saúde.
A distância percorrida explica apenas parte dos fatores relacionados ao acesso aos serviços de saúde. Aspectos administrativos, chamados de acessibilidade organizacional1919. Starfield B. Atenção Primária: Equilíbrio entre Necessidades de Saúde, Serviços e Tecnologias. Brasília, DF: UNICEF, Ministério da Saúde; 2002., também se relacionam ao acesso e uso dos serviços de saúde no contexto da MP. Muitos pacientes que realizam a pendularidade intermunicipal para uso desses serviços dependem de transporte público ou do transporte oferecido pelas prefeituras, o que, de maneira recorrente, apresentam vicissitudes como atrasos e indisponibilidade. Frequentemente os pacientes são oriundos da zona rural, o que faz com que precisem se deslocar longas distâncias até o transporte municipal. Ao chegar ao serviço, frequentemente ocorre longa espera para o atendimento ou cancelamento sem aviso prévio. Com tantas dificuldades no funcionamento dos serviços, é natural que as pessoas questionemse quanto aos benefícios de tal deslocamento, podendo evadir-se do acompanhamento. Além disso, no âmbito da saúde pública, podem ser requeridos documentos como cartão SUS, cartão da família, comprovante de residência e documento de identidade nacional. Para a busca de serviços de saúde, no contexto da MP internacional, na região de fronteira supracitada, a ausência dessas documentações em parte ou na totalidade traz em si a incerteza em receber o atendimento à sua saúde, tanto por parte de brasileiros que residem no exterior, quanto pelos estrangeiros que buscam atendimento no Brasil. Há serviços também nos países vizinhos, porém muitas vezes há a preferência por cruzar a fronteira para manter sigilosa a sua procura por atendimento (como é o caso do atendimento a pessoas com HIV) ou por entender que o serviço brasileiro possui melhor qualidade. A acessibilidade aos serviços públicos de saúde da cidade brasileira é variável a essa população, existindo plenamente nos serviços de emergência, mas parcialmente em serviços de menor complexidade. Outro aspecto que envolve questões organizacionais dos serviços é a necessidade de busca ativa a pacientes que evadiram do serviço. Quando residentes no município sede dos serviços, o próprio serviço faz a busca ativa. Quando os pacientes residem em outros municípios da regional de saúde, o serviço começa a depender de profissionais da outra cidade para acessar o paciente e seus contatos, complexificando esse acesso. Quando os pacientes residem em outro país, aumenta sobremaneira a dificuldade no contato quando há necessidade de busca ativa. Contato telefônico nem sempre é disponível por dificuldades do serviço (possibilidade de fazer ligações internacionais) ou pelo fato do paciente residir em cidade de pequeno porte ou de zona rural. O envio de e-mail normalmente ocorre, ainda que seja uma forma de comunicação menos efetiva com este público neste momento. A integração entre os serviços das cidades dos dois lados da fronteira costuma ser baixa para que esses possam contar um com o outro em termos de busca ativa de pacientes.
Dessa maneira, não apenas a acessibilidade geográfica com a distância percorrida, mas também todas as incertezas envolvendo o acesso organizacional ao atendimento e as dificuldades de contato direto com o paciente nas buscas ativas também podem fazer parte da cadeia de causalidade que relaciona a MP para atendimento à saúde e os desfechos em saúde.
O estudo da saúde das pessoas que fazem a MP para buscar a atenção à saúde é importante objeto de pesquisa. Viajar longas distâncias, ou ser submetido à incerteza de ordem organizacional a respeito do acesso ao atendimento à saúde, quando uma pessoa encontra-se com a saúde fragilizada, não é a mesma situação que viajar longas distâncias ou ser submetido à incertezas referentes ao estudo e ao trabalho, quando a saúde encontra-se íntegra e em condições de exercer as atividades laborais.
A formalização do Cross Border Health Care88. White SM, Rotton J. Type of Commute, Behavioral Aftereffects and Cardiovascular Activity: a Field Experiment. Environment and Behavior 1998; 30(6):763-772. (cuidado à saúde além da fronteira) entre esses países tem o potencial de ser um marco no desenvolvimento humano na faixa de fronteira brasileira, propiciando manter a MP internacional, mas sem os seus efeitos deletérios. A linha de fronteira internacional é um espaço privilegiado para compreender a MP e seus efeitos na saúde humana, bem como evidenciar uma particularidade dessa região que deve ser considerada no momento de formular políticas públicas voltadas para essa faixa territorial.
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Dez 2017
Histórico
- Recebido
12 Fev 2016 - Revisado
16 Jun 2016 - Aceito
18 Jun 2016