Em 1971, Van Rensselaer Potter, bioquímico e professor de oncologia da Escola Médica da Universidade de Wisconsin, publicou o livro Bioethics: Bridge to The Future, que apenas mais tarde seria reconhecido como a obra seminal da bioética, um campo de atuação científica, normativa e institucional estabelecido no final daquela década nos Estados Unidos da América do Norte (EUA).
A consolidação deste campo da ética aplicada ocorreu, sobretudo, após a publicação do Belmont Report (1978), documento que sintetizou orientações éticas para a realização de pesquisas biomédicas e comportamentais envolvendo seres humanos naquele país. A repercussão pública sobre abusos em investigações científicas envolvendo grupos vulnerabilizados (incluindo população negra empobrecida, idosos e crianças) é considerada fator determinante para o estabelecimento da bioética como um campo de discussão pública sobre conflitos éticos envolvendo as ciências biomédicas e as práticas clínicas11. Jonsen AR. The birth of bioethics. New York: Oxford University Press; 2003.. A publicação da Encyclopedia of Bioethics22. Reich WT. Encyclopedia of Bioethics. New York: The Free Press; 1978., em 1978, e do livro Principles of Biomedical Ethics, em 197933. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. New York: Oxford University Press; 1979., consolidaram no âmbito acadêmico a identidade biomédica que até hoje caracteriza a bioética naquele país.
Contudo, não foi essa abordagem estritamente biomédica que Potter havia proposto em Bioethics: bridge to the future, agora publicado em português pela Edições Loyola. Nessa obra, o autor indicou a bioética como um campo interdisciplinar do conhecimento direcionado a garantir a sobrevivência da humanidade frente aos riscos causados por ações humanas e por desordens naturais. Ou seja, tratava-se de uma abordagem global que pouco se aproximava do que mais tarde seria reconhecido como o campo hegemônico da bioética. De fato, o pioneirismo de Potter só veio a ser devidamente reconhecido nos anos 1990, sobretudo após a realização do IV Congresso Mundial de Bioética, em Tóquio, quando o autor, já muito idoso, participou por videoconferência como convidado especial do evento.
Naquele período, as propostas de Potter – que seguiu produzindo de modo solitário sua abordagem global da bioética – encontrava repercussão fora dos Estados Unidos, porém, em seu país suas contribuições não encontravam eco. Tanto assim, que em seus últimos escritos Potter manifestou o ressentimento com a comunidade conterrânea de bioeticistas, afirmando: For a long time there was no one who recognized my name and wanted to be part of a mission. In the USA there was an immediate explosion of the use of the word Bioethics by Medical People who failed to mention my name or name any of my four publications 1970-197144. Potter VR. Final Message to Global Bioethics Network. Global Bioethics 2002; 14:2-3..
Os temas e as propostas abordados no livro “Bioethics: bridge to the Future” – que até hoje não foi reimpresso ou reeditado nos EUA – podem explicar o porquê a bioética hegemônica ignorou Potter por tantas décadas. Nessa obra, Potter abordava conflitos éticos sensíveis ao discurso hegemônico das esferas científicas, políticas e religiosas de seu país. Em um contexto de guerra fria, boom populacional e identificação das primeiras consequências ambientais da revolução industrial, o autor partia do pressuposto de que a sobrevivência da humanidade estava em risco devido à incapacidade de estruturar uma área do conhecimento voltada a estabelecer parâmetros éticos para o desenvolvimento civilizacional. Assim, ao defender a necessidade de uma regulação ética do crescimento econômico e do desenvolvimento científico, Potter violava aspectos inegociáveis do discurso liberal americano. Por outro lado, ao defender a necessidade de um controle populacional voluntário e criticar os discursos religiosos que interditavam o avanço de políticas para saúde reprodutiva, regulação do aborto e planejamento familiar, Potter violava também aspectos sagrados do discurso conservador local, tornando-se, assim, inconveniente aos dois principais campos políticos da cultura norte-americana.
Como biólogo especialista em imunologia do câncer, Potter utilizou de seu conhecimento sobre os processos naturais para problematizar a capacidade de adaptação humana em um contexto de aceleradas mudanças ambientais. Para isso, no primeiro capítulo de “Bioética: uma ponte para o futuro” o autor revisou discussões filosóficas e biológicas acerca da ciência e da natureza humana, indicando a bioética como área destinada a compreender os processos de adaptação fisiológica e cultural que seriam necessários à sobrevivência no planeta. No segundo capítulo, Potter desenvolveu uma análise do pensamento de Teilhard de Chardin, estabelecendo uma ponte entre os pressupostos biológicos discutidos no capítulo anterior e as reflexões sobre valores que permeiam os capítulos seguintes. Desta forma, enquanto o terceiro capítulo foi dedicado a uma discussão sobre os significados de desenvolvimento e progresso humano, os dois capítulos seguintes apresentaram algumas proposições e limitações do papel da ciência no ordenamento social. A partir destas reflexões, no sexto capítulo, Potter indicou algumas medidas práticas para o estabelecimento da bioética como área interdisciplinar que congrega os diversos saberes em busca do bem comum, isto é, da sobrevivência adequada da humanidade. Nos quatro capítulos seguintes, o autor retomou as reflexões sobre os limites do conhecimento – inclusive do conhecimentos bio-ético – e problematizou o papel da ordem e desordem nos processos culturais e biológicos. No capítulo onze, estabeleceu uma crítica à fragmentação das ciências a partir de uma reflexão acerca de sua própria área de especialidade, isto é, da biologia. Em sequência, dedicou-se a refletir sobre ecologia, meio ambiente e estudos populacionais para, no capítulo treze, finalizar uma síntese da proposta da bioética como um campo estruturado não apenas no discurso científico tradicional, mas no desenvolvimento da `sabedoria’, compreendida pelo autor como o conhecimento de como usar o conhecimento para o bem social55. Potter VR. Bioética: ponte para o futuro. São Paulo: Edições Loyola; 2016..
É importante ressaltar que o próprio Potter, em seu livro Global Bioethics, de 198866. Potter VR. Global Bioethics: Building on the Leopold Legacy. East Lansing: Michigan State University Press; 1988., reconheceu algumas limitações da obra seminal, aportando uma análise mais ampla sobre os fatores sociais, econômicos e culturais que devem estar envolvidos na discussão ética sobre a sobrevivência adequada da humanidade. De qualquer forma, embora tenha sido escrito há mais de 40 anos, o livro continua atual e pertinente, pois, se por um lado nem todas as previsões (acerca, sobretudo, das alterações ambientais e do superpovoamento da terra) tenham resultado em um quadro agudo de risco à sobrevivência da humanidade, tais problemas não foram superados – ao contrário, permanecem projetados como sombras no muro do horizonte.
Referências
- 1Jonsen AR. The birth of bioethics New York: Oxford University Press; 2003.
- 2Reich WT. Encyclopedia of Bioethics New York: The Free Press; 1978.
- 3Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics New York: Oxford University Press; 1979.
- 4Potter VR. Final Message to Global Bioethics Network. Global Bioethics 2002; 14:2-3.
- 5Potter VR. Bioética: ponte para o futuro São Paulo: Edições Loyola; 2016.
- 6Potter VR. Global Bioethics: Building on the Leopold Legacy East Lansing: Michigan State University Press; 1988.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jul 2017