RESENHAS

Paulo M. Buss Sobre o autor
2017

Em 2010 tive a grata satisfação de resenhar o livro Textbook of International Health, de Birn, Pillay e Holtz, para a revista Journal of Public Health Policy11. Buss PM. Global health in a dynamic world: Textbook of International Health book review. Journal of Public Health Policy 2010; 31(1):96-99.. Apenas sete anos depois, num trabalho profundo, abrangente e eclético, os mesmos autores voltam a este tema fascinante e contemporâneo, mas renomeando a obra para Textbook of Global Health. O que teria ocorrido na dinâmica desta área temática nos anos que transcorreram entre a primeira e a segunda obra, o que mudou substancialmente no seu conteúdo e porque os autores decidiram mudar seu título?

Os últimos dez anos mudaram muito a face do mundo e, por consequência, a da saúde. A crise econômico-financeira global, iniciada no circuito central da economia mundial – particularmente Estados Unidos da América e Europa Ocidental – aprofundou-se e expandiu-se para todos os países do mundo, produzindo uma hecatombe política e econômica, caracterizada pelas intervenções das instituições de Bretton Woods, como o Fundo Monetário Internacional, que confirmaram a tradicional receita do encolhimento da economia, redução do Estado, ajustes fiscais, perdas de direitos e outras medidas, que foram responsáveis por retrocessos antes inimagináveis na cena mundial, como o retorno de milhares de famílias à condição de pobreza; desemprego em massa, principalmente entre os mais jovens; retrocessos políticos, na direção do neoconservadorismo; fome e crise alimentar; uma crise ambiental de proporções assustadoras; e uma crise migratória de dimensões espantosas, que praticamente transformou o Mediterrâneo em um imenso cemitério-mar de pobres da África e de outras regiões.

Como observadores sagazes e bem preparados intelectualmente, Birn, Pillay e Holtz foram gestando nesse período um alentado livro de quase 700 páginas, que reúne nos seus 14 capítulos uma análise profunda das consequências sobre a saúde do conjunto de causas políticas e econômicas que expressam as diversas dimensões da crise do capitalismo global, anunciada e analisada por, entre tantos outros, Stiglitz22. Stiglitz J. A globalização e seus malefícios: a promessa não-cumprida de benefícios globais. São Paulo: Futura; 2002.; Piketty33. Piketty T. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca; 2014.; Harvey44. Harvey D. O enigma do capital e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo Editorial; 2011.; a Comissão Oslo-Lancet55. Ottersen OP, Dasgupta J, Blouin C, Buss P, Chongsuvivatwong V, Frenk J, Fukuda-Parr S, Gawanas BP, Giacaman R, Gyapong J, Leaning J, Marmot M, McNeill D, Mongella GI, Moyo N, Møgedal S, Ntsaluba A, Ooms G, Bjertness E, Lie AL, Moon S, Roalkvam S, Sandberg KI, Scheel IB. The political origins of health inequity: Prospects for change. Lancet 2014; 383(9917):630-667.; Stuckler e Basu66. Stuckler D, Basu S. Body economic: Why austerity kills. New York: Basic Books; 2013., cada um em sua forma e referências científicas e político-ideológicas próprias.

Os autores alertam, de imediato, que saúde global não é simplesmente uma matéria de doenças emergentes ou ameaças epidêmicas (a abordagem mais comum dos livros norte-americanos ou europeus sobre saúde global). Na prática, dizem, cada crise tem suas próprias implicações sobre a saúde global, a exemplo do colapso financeiro (a que nos referimos acima), da precariedade do emprego, das guerras e deslocamentos de hordas de populações empurradas pelas mesmas, da crise ecológica e ambiental, das mudanças climáticas ou qualquer outra catástrofe, “incluindo [aquelas] devidas à instabilidade política, inseguridade social e desmantelamento da infraestrutura social, como os sistemas de saúde.” Ou seja, procura (e consegue) livrar-se da narrativa estreita que muitos livros sobre saúde global empregam porque miram o mundo do ângulo euro ou americano-cêntrico.

Mencionando Navarro77. Navarro V. What we mean by social determinants of health. Int J Health Serv 2009; 39(3):423-441., os autores chamam a atenção que utilizam-se de

[...] um referencial da ‘economia política crítica’ para descrever, explicar e analisar saúde no contexto das estruturas social, política e econômica, ou seja, quem é proprietário do quê, quem controla o quê, e como tais fatores são modelados por e refletem o tecido social e institucional: classe; estruturas e relações de classe social, raça/etnicidade e gênero, existência de um Estado de bem-estar redistributivo e outras características8.

Seus temas centrais e gerais são a distribuição das enfermidades e das inequidades em saúde; a saúde na nova ordem mundial; os atores, as agendas, a diplomacia da saúde e a governança global e da saúde global; a saúde global convencional versus o ativismo e a resistência na saúde.

Os autores abordam neste seu novo livro objetos tão diversos como: as origens históricas da saúde internacional (global) contemporânea e porque transitaram de um título a outro; a economia política da saúde e do desenvolvimento e as relações entre estas duas dimensões; os principais atores da saúde global e as atividades que desenvolvem; dados – na sua mais ampla dimensão – e saúde global; os perfis epidemiológicos presentes na cena global, enfocando os principais processos epidêmicos que assolaram a humanidade na última década; a equidade em saúde e os determinantes sociais da saúde; saúde e ambiente; a fome e a questão alimentar; guerra, militarismo e saúde; migrações e saúde; globalização, trabalho, comércio e saúde; sistemas de saúde: organização, reformas e financiamento; sociedades saudáveis; e a justiça social na abordagem da saúde global.

O livro explora diversas dimensões dos diferentes conceitos que traz ao leitor, cada capítulo oferecendo questões-chaves que depois poderão ser debatidas entre grupos de leitores – como estudantes – e concluindo com pontos de aprendizagem, que sumarizam as mensagens-chave que pretendera transmitir. Utiliza extensa e atualizada bibliografia global, mas, diferente de outros ‘livros anglo-saxões’, utiliza bibliografia latino-americana e trata de temas da saúde global no contexto continental. Neste sentido, o Brasil é enfocado em diversos momentos de vários dos capítulos, contando com uma generosa interpretação dos autores de questões como os programas sociais (Bolsa Família, orçamento participativo e outros) ou de programas relevantes do SUS, como o da atenção primária (estratégia da saúde da família), enfrentamento da epidemia de HIV/AIDS ou o programa de vacinação. Não se furta a enfrentar também a questão do Mais Médicos ou do acesso a medicamentos e outros insumos à saúde, bem como dos processos de cooperação internacional em saúde do país.

Curioso mencionar, por fim, que a capa do livro traz a foto de um pequeno bote de pesca brasileiro chamado ‘Saúde Global’. Dizem os autores que para os pessimistas ele balança em águas turvas, enquanto para os otimistas é uma figura com cores brilhantes, envolvendo uma embarcação aberta a um mundo de possibilidades.

Para finalizar, admito que se trata de um livro bastante completo, seja para estudantes, seja para profissionais da saúde e da diplomacia, que queiram confrontar-se com os dilemas atuais da saúde global, como campo de conhecimento e de prática. Não devo cansar o leitor desta resenha com mais observações elogiosas sobre o livro; ao contrário, não quero furta-lo do prazer de que o leitor o traga de imediato à sua estante para consulta-lo com frequência, como tenho feito desde que que me caiu às mãos algumas semanas atrás.

Referências

  • 1
    Buss PM. Global health in a dynamic world: Textbook of International Health book review. Journal of Public Health Policy 2010; 31(1):96-99.
  • 2
    Stiglitz J. A globalização e seus malefícios: a promessa não-cumprida de benefícios globais São Paulo: Futura; 2002.
  • 3
    Piketty T. O capital no século XXI Rio de Janeiro: Intrínseca; 2014.
  • 4
    Harvey D. O enigma do capital e as crises do capitalismo São Paulo: Boitempo Editorial; 2011.
  • 5
    Ottersen OP, Dasgupta J, Blouin C, Buss P, Chongsuvivatwong V, Frenk J, Fukuda-Parr S, Gawanas BP, Giacaman R, Gyapong J, Leaning J, Marmot M, McNeill D, Mongella GI, Moyo N, Møgedal S, Ntsaluba A, Ooms G, Bjertness E, Lie AL, Moon S, Roalkvam S, Sandberg KI, Scheel IB. The political origins of health inequity: Prospects for change. Lancet 2014; 383(9917):630-667.
  • 6
    Stuckler D, Basu S. Body economic: Why austerity kills New York: Basic Books; 2013.
  • 7
    Navarro V. What we mean by social determinants of health. Int J Health Serv 2009; 39(3):423-441.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul 2017
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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