RESENHAS

Adriana Mendoza-Ruiz Elaine Silva Miranda Thiago Botelho Azeredo Sobre os autores
2016

Assegurar o acesso a medicamentos faz parte da realização do direito à saúde e é um componente fundamental dos sistemas de saúde. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, recentemente aprovados nas Nações Unidas tendo como horizonte o ano 2030, reafirmam a importância de “(...) garantir o acesso universal a medicamentos e vacinas essenciais (...)” com vistas a “(a)ssegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades”11. United Nations General Assembly. Resolution adopted by the General Assembly of the United Nations on 25 September 2015, Transforming our world: the 2030 Agenda for Sustainable Development, A/RES/70/1. United Nations; 21 October 2015..

Contar com uma Política Nacional de Medicamentos (PNM), ou Política Farmacêutica Nacional (PFN), constituiria um eixo central para garantir acesso e o uso racional de medicamentos, como foi reconhecido desde 1975 quando a Assembleia Mundial da Saúde solicitou à Organização Mundial Saúde (OMS) apoio aos Estados-Membros nessa matéria22. World Health Organization (WHO). How to develop and implement a national drug policy. 2nd ed. Geneva: WHO; 2001.. A estratégia de contar com uma PNM tem sido reforçada em diferentes momentos e permanece vigente ainda hoje, considerando que a formulação e a implementação de uma PNM é uma tarefa complexa pelas tensões e por múltiplos e, por vezes, conflitantes interesses relacionados com os aspectos sanitários, comerciais, industriais, bem como de ciência e tecnologia envolvidos. Para lidar com tal multiplicidade de interesses, a formulação de um documento único serviria para buscar convergências e oferecer um marco abrangente e integrador que orientaria as diferentes ações e iniciativas em políticas farmacêuticas, de forma responsiva às necessidades sanitárias de um país.

Como forma de cumprir o seu mandato e apoiar os Estados-Membros, a OMS publicou, em 1988, o guia Guidelines for developing national drug policies, atualizado em 2001, sua segunda edição sob novo título: How to develop and implement a national drug policy22. World Health Organization (WHO). How to develop and implement a national drug policy. 2nd ed. Geneva: WHO; 2001.. A segunda edição apresentou a proposta de três objetivos gerais (acesso, qualidade e uso racional) e de nove componentes de uma PNM que visam, num sentido maior, promover a equidade e a sustentabilidade do setor farmacêutico. De forma esquemática e em linguagem simples, quase linear, tenta-se aproximar aos profissionais das áreas técnicas de medicamentos ao complexo tema das políticas públicas. Assim, por exemplo, o encadeamento de ações no processo de formulação, pressupõe a tácita existência de vontade política como ponto de partida da formulação da PNM o que na realidade nem sempre ocorre.

É notável a influência dessas publicações e a da cooperação técnica no tema, ao observar que em 1989 apenas 14 dos Estados-Membros da OMS tinham uma PNM e que esse número vem aumentando ao longo do tempo: 66 países em 1999, 132 em 200722. World Health Organization (WHO). How to develop and implement a national drug policy. 2nd ed. Geneva: WHO; 2001.,33. World Health Organization (WHO). Country pharmaceutical situations. Fact Book on WHO Level 1 indicators 2007. Geneva: WHO; 2009. WHO/EMP/MPC/2010.1.. Na região das Américas, tendências de expansão na adoção de PNM são relatadas44. Organización Panamericana de la Salud (OPS). La situación farmacéutica en las Américas. Compendio de datos estadísticos sobre los indicadores de primer nivel – 2007. Washington: OPS, OMS; 2010. Serie técnica: Medicamentos esenciales, política farmacéutica.,55. Pan American Health Organization (PAHO). The Pharmaceutical Situation in the Caribbean. Monitoring Indicators 2010-2012. Washington: PAHO/WHO; 2012. e alguns blocos sub-regionais multilaterais adotaram também a estratégia, a saber: Política de Medicamentos do Mercosul (2000); Política Andina de Medicamentos (1993 e 2009) e Caribbean Pharmaceutical Policy (2013)66. Azeredo TB. Mapeamento da Capacidade Produtiva de Medicamentos; Políticas de Medicamentos dos Blocos Regionais [relatório de pesquisa]. Rio de Janeiro: ISAGS; 2015.. Em que pese esta ampliação da adoção, menor proporção de países reporta a existência de planos de implementação de suas PNM22. World Health Organization (WHO). How to develop and implement a national drug policy. 2nd ed. Geneva: WHO; 2001.

3. World Health Organization (WHO). Country pharmaceutical situations. Fact Book on WHO Level 1 indicators 2007. Geneva: WHO; 2009. WHO/EMP/MPC/2010.1.

4. Organización Panamericana de la Salud (OPS). La situación farmacéutica en las Américas. Compendio de datos estadísticos sobre los indicadores de primer nivel – 2007. Washington: OPS, OMS; 2010. Serie técnica: Medicamentos esenciales, política farmacéutica.
-55. Pan American Health Organization (PAHO). The Pharmaceutical Situation in the Caribbean. Monitoring Indicators 2010-2012. Washington: PAHO/WHO; 2012..

Passados 16 anos da publicação da OMS, a Organização Pan-americana da Saúde (OPAS) apresenta o livro Conceptos, estrategias y herramientas para una política farmacéutica nacional en las Américas. Esta iniciativa se insere numa agenda de trabalho que visa a dar destaque a pontos como o acesso a medicamentos como parte do direito à saúde, bem como a resgatar a experiência da região na matéria, que muitas vezes não se encontra na literatura cientifica, mas na cinza e institucional.

O livro foi elaborado por um grupo de especialistas no tema externos à OPAS, que recebeu contribuições de outros especialistas internos e externos, no marco da cooperação técnica dessa Organização77. Marín N. Guía de Política farmacéutica OMS 2000. Necesidad de una revisión [Internet]. Reunión sobre políticas farmacéuticas e indicadores OPS/OMS, 11 y 12 de diciembre; 2009; Washington D.C., EUA. [acessado 2016 set 30]. Disponível em: http://www1.paho.org/hq/dmdocuments/2009/EM-Nelly_politicas_farmaceuticas_WDC_dec09.pdf
http://www1.paho.org/hq/dmdocuments/2009...
. O documento constitui-se como um guia renovado que apresenta ao leitor o caminho para a construção de uma PNM, trazendo os elementos chaves considerando a experiência e as particularidades da região. É composto por cinco capítulos e uma seção de anexos. O percurso de leitura vai além da recomendação prescritiva para a elaboração de uma PNM. São apresentados recursos que trazem um potencial educacional para o texto, exemplo disto é o primeiro capítulo que discorre sobre o processo de formulação que parte da explanação sobre o que é tal política, passando por fases da elaboração que tenderiam a ampliar seu sucesso e trazendo definições obrigatórias para o leitor que tem interesse prático ou acadêmico no tema.

Ressalta-se ainda no primeiro capítulo a centralidade no processo político da identificação de grupos de interesse com valores pró PNM e sua capacidade de construção de vontade política para a introdução do tema na agenda decisória dos países. Tacitamente, o documento se oferece como subsídio a esses grupos, o que revela seu caráter tanto técnico quanto de defesa de projeto (advocacy).

O segundo capítulo apresenta a situação farmacêutica na Região das Américas, contextualizando questões importantes envolvidas na construção de políticas no setor farmacêutico, partindo-se da opinião dos especialistas e da revisão da literatura. A falta de equidade e de acesso a serviços de saúde e a medicamentos; a complexidade dos sistemas de saúde e de arranjos de proteção social, que por vezes (re)produzem desigualdades em lugar de reduzi-las; a insuficiência e dificuldade de absorção e fixação de recursos humanos em saúde; e, problemas de governança, como as dificuldades de articulação/coordenação entre políticas e a baixa participação social são alguns dos temas discutidos. O capítulo é leitura indispensável para os interessados em pensar criticamente os elementos que favorecem uma análise adequada das situações locais.

Cabe salientar que o documento retoma um ponto central da estratégia de PNM definida previamente pela OMS como “um compromisso com um objetivo e um guia de ação, que expressa e prioriza as metas a médio e longo prazo estabelecidas pelo governo para o setor farmacêutico e identifica estratégias para alcançá-las”22. World Health Organization (WHO). How to develop and implement a national drug policy. 2nd ed. Geneva: WHO; 2001.. Destaca-se no terceiro capítulo o avanço ao contemplar não apenas os objetivos de acesso, qualidade e uso racional de medicamentos, mas também um marco conceitual para o fortalecimento dos sistemas de saúde que promove o compromisso de alinhamento das PNM com as políticas de saúde dos países.

São trazidos oito objetivos para uma PNM: fortalecimento da liderança e governança da autoridade sanitária; garantia da eficácia, qualidade e segurança dos medicamentos; disponibilidade de medicamentos essenciais e financiamento sustentável; garantia de acesso a serviços farmacêuticos; disponibilidade de recursos humanos capacitados; garantia de uso racional; desenvolvimento e produção de medicamentos compatíveis com as necessidades; fortalecimento dos sistemas de informação, monitoramento e avaliação. São apresentadas estratégias de implementação para cada objetivo, tais como o apoio político e legislativo para os diversos componentes de uma PNM.

Enquanto o primeiro conjunto de três capítulos parte do contexto e chega ao ápice com os subsídios diretamente voltados para a elaboração do documento de PNM, os dois capítulos subsequentes focalizam nos elementos mais críticos para o seu sucesso – a implementação e a avaliação. Estes foram dispostos seguindo uma lógica de fases do ciclo das políticas e estão organizados de modo a estimular o leitor a se apropriar de definições operacionais e ferramentas (detalhadas nos anexos) sobre como agir na prática em uma arena cercada de interesses complexos. No entanto, a leitura da obra é acessível mesmo para aqueles que ainda estão iniciando no campo das políticas públicas de saúde e, em particular, nas políticas farmacêuticas.

Assim, a edição da OPAS em 2016 é muito bem-vinda, considerando a importância da construção coletiva num tema complexo e relevante para a população e os sistemas de saúde. A obra é um criterioso material, ferramenta útil para tomadores de decisão, gestores e outros atores interessados em que as políticas farmacêuticas contribuam para uma distribuição equânime dos recursos de saúde, em especial na área farmacêutica. Também, entende-se que o documento continua sendo uma construção que pode, e precisa, ser aprimorada pelos interessados e envolvidos nos processos de formulação, implementação, monitoramento e avaliação das PNM na região das Américas.

Referências

  • 1
    United Nations General Assembly. Resolution adopted by the General Assembly of the United Nations on 25 September 2015, Transforming our world: the 2030 Agenda for Sustainable Development, A/RES/70/1 United Nations; 21 October 2015.
  • 2
    World Health Organization (WHO). How to develop and implement a national drug policy 2nd ed. Geneva: WHO; 2001.
  • 3
    World Health Organization (WHO). Country pharmaceutical situations. Fact Book on WHO Level 1 indicators 2007 Geneva: WHO; 2009. WHO/EMP/MPC/2010.1.
  • 4
    Organización Panamericana de la Salud (OPS). La situación farmacéutica en las Américas. Compendio de datos estadísticos sobre los indicadores de primer nivel – 2007 Washington: OPS, OMS; 2010. Serie técnica: Medicamentos esenciales, política farmacéutica.
  • 5
    Pan American Health Organization (PAHO). The Pharmaceutical Situation in the Caribbean. Monitoring Indicators 2010-2012 Washington: PAHO/WHO; 2012.
  • 6
    Azeredo TB. Mapeamento da Capacidade Produtiva de Medicamentos; Políticas de Medicamentos dos Blocos Regionais [relatório de pesquisa]. Rio de Janeiro: ISAGS; 2015.
  • 7
    Marín N. Guía de Política farmacéutica OMS 2000. Necesidad de una revisión [Internet]. Reunión sobre políticas farmacéuticas e indicadores OPS/OMS, 11 y 12 de diciembre; 2009; Washington D.C., EUA. [acessado 2016 set 30]. Disponível em: http://www1.paho.org/hq/dmdocuments/2009/EM-Nelly_politicas_farmaceuticas_WDC_dec09.pdf
    » http://www1.paho.org/hq/dmdocuments/2009/EM-Nelly_politicas_farmaceuticas_WDC_dec09.pdf

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2017
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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