Resumo
Este trabalho objetiva analisar os impactos do abuso sexual na adolescência sobre variáveis relacionadas à saúde mental e identificar as características das vítimas. Para tanto, utiliza-se a metodologia do Propensity Score Matching a partir dos microdados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar 2015. Os resultados mostram que o jovem violentado tem um perfil comportamental, familiar e socioeconômico singular, a destacar pelo fato de que tem mais chances de já ter utilizado álcool e drogas, de ser alvo de bullying, estar em distorção idade-série, encontrar-se empregado e não ter pretensão de continuar estudando. Do ponto de vista familiar, tem pouco acompanhamento dos pais e menos chance de morar com a mãe. As estimativas revelam que o abuso sexual na adolescência pode aumentar em 13,3% a chance do jovem reportar sentimento frequente de solidão, em 7,5% a chance de ter poucos ou nenhum amigo e em 9,5% a chance de relatar insônia frequente por motivo de preocupação. Foram constatadas ainda diferenças significativas dos efeitos em mulheres e homens, sendo os impactos sobre solidão e insônia maiores para o primeiro grupo e sobre número de amigos maiores para o segundo.
Abuso sexual; Saúde mental. Propensity Score Matching; Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar
Introdução
A violência sexual infanto-juvenil é um problema que atinge diversos países. De acordo com Stoltenborgh et al.11. Stoltenborgh M, Van Ijzendoorn MH, Euser EM, Bakermans-Kranenburg MJ.A global perspective on child sexual abuse: meta-analysis of prevalence around the world. Child Maltreat 2011; 16(2):79-101. o abuso é relatado por um a cada oito jovens em todo o mundo. No Brasil, a violência sexual ocupa o segundo maior tipo de violência entre indivíduos na faixa etária dos 10 aos 14 anos, ficando atrás apenas da violência física22. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Viva: sistema de vigilância de violências e acidentes: 2009, 2010 e 2011. Brasília: MS; 2013.. Essa é uma forma de violência que não é plenamente reconhecida como um problema de saúde pública e que necessita de estratégias por parte dos governos. Os adolescentes abusados têm elevado risco de desenvolver uma série de transtornos biopsicossociais, com repercussões sobre as esferas física, comportamental e cognitiva.
É preciso considerar que os efeitos são sentidos não apenas pela vítima, mas também pela sociedade. Destacam-se os custos com assistência médica, com o sistema penal e judiciário e com a queda da produtividade e do salário futuro do jovem33. Mendonça RNS, Alves JGB, Filho JEC. Gastos hospitalares com crianças e adolescentes vítimas de violência, no Estado de Pernambuco. Cad Saude Publica 2002; 18(6):1577-1581.
4. Barrett A, Kamiya Y, O’Sullivan V.Childhood sexual abuse and later-life economic consequences. Journal of Behavioral and Experimental Economics 2014; 53:10-16.-55. Fang X, Brown DS, Curtis FS, Mercy J.The economic burden of child maltreatment in the United States and implications for prevention.Child Abuse Neglec 2012; 36(2):156-165.. De acordo com Saied-Tessier66. Saied-Tessier A. Estimating the costs of child sexual abuse in the UK. London: NSPCC; 2014., o custo anual do abuso sexual em adolescentes no Reino Unido chega a 3,2 bilhões de euros, sendo a maior parte decorrente da perda da produtividade para toda a sociedade.
A despeito da relevância deste tema, a maioria das pesquisas encontradas na literatura nacional e internacional utiliza dados de pequenas amostras, oriundas de estudos de caso, o que compromete a generalidade dos seus resultados. Esse é um fato extremamente importante que pode estar relacionado com o incipiente reconhecimento deste problema como uma questão de ordem pública. Como assinala um relatório da ONU77. United Nations Organization. World report on violence against children. Geneva: United Nations Publishing Services; 2006., a violência contra a criança e o adolescente é frequentemente silenciada, havendo em decorrência disso uma escassez de dados estatísticos sobre o assunto. Nesse sentido, o conhecimento acerca dos impactos do abuso e das características das vitimas é essencial para que medidas sejam tomadas com o intuito de reduzir os casos.
Diante deste cenário, este trabalho procurar identificar o perfil do jovem abusado e os impactos do abuso sobre a saúde mental do adolescente. Para tanto, utilizam-se os microdados de uma pesquisa nacional de saúde de escolares, a partir da qual o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)88. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar 2015. Rio de Janeiro: IBGE; 2016. define o conceito de saúde mental com base em três variáveis, relacionadas ao sentimento de solidão, insônia e número de amigos. Alguns autores sugerem que a saúde mental parece ser a principal variável afetada pela violência sexual para esse segmento da população, deixando marcas no desenvolvimento de crianças e adolescentes, com danos que podem persistir por toda a vida99. Kilpatrick DG, Ruggiero KJ, Acierno R, Saunders BE, Resnick HS, Best, CL.Violence and risk of PTSD, major depression, substance abuse/dependence, and comorbidity: Results from the National Survey of Adolescents. J Consult Clin Psychol 2003; 71(4):692-700.
10. Bridge JA, Goldstein TR, Brent, DA.Adolescent suicide and suicidal behavior. J Child Psychol Psychiatry 2006; 47(3-4):372-394.
11. Shin SH, Edwards EM, Heeren T.Child abuse and neglect: Relations to adolescent binge drinking in the national longitudinal study of Adolescent Health (AddHealth) Study. Addict Behav 2009; 34(3):277-280.
12. Fergusson DM, Mcleod GFH, Horwood LJ.Childhood sexual abuse and adult developmental outcomes: Findings from a 30-year longitudinal study in New Zealand. Child Abuse Neglec2013; 37(9):664-674.-1313. Davidson SK, Dowrick CF, Gunn JM.Impact of functional and structural social relationships on two year depression outcomes: A multivariate analysis. J Affect Disord 2016; 193:274-281., por isto quanto mais cedo houver o descobrimento de algum tipo de abuso, maior é a probabilidade de se aplicar um tratamento adequado e resolver ou amenizar os danos causados1414. Escudero AC, Cardoso APA, Tesser APF, Domingos LR, De Freitas MI. Abuso sexual na Infância. Psicologado Artigos [periódico na internet]. 2013 [acessado 25 fev 2017]. Disponível em: https://psicologado.com/psicologia-geral/desenvolvimento-humano/abuso-sexual-na-infancia.
https://psicologado.com/psicologia-geral... .
De acordo com o nosso conhecimento, este é o primeiro trabalho a utilizar uma metodologia quase-experimental, que permite isolar os efeitos do abuso dos demais confundidores, o que torna essa a primeira contribuição. A segunda é a utilização de uma base de dados de caráter nacional e com representatividade equivalente a mais de 2,5 milhões de escolares, diferindo, portanto, dos estudos de caso por assegurar validade externa aos resultados.
Dados e metodologia
Este trabalho utiliza os microdados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) de 2015. Realizada pela primeira vez em 2009, a pesquisa tem por objetivo conhecer e dimensionar os diversos fatores de risco e de proteção à saúde da população adolescente brasileira. Trata-se de uma pesquisa trienal, composta por escolares do 9º ano do ensino fundamental matriculados e frequentando regularmente escolas públicas e privadas situadas nas zonas urbanas e rurais de todo o Brasil.
A escolha do ano de 2015 foi justificada pela inclusão de uma variável que permite identificar se o escolar reportou ter sido vitima de violência sexual. Formalmente, a pergunta é “Alguma vez na vida você foi forçado(a) a ter relação sexual?”. A PeNSE 2015 contemplou questões sobre aspectos socioeconômicos; contexto familiar; hábitos alimentares; prática de atividade física; experimentação e consumo de álcool e outras drogas; saúde sexual; violência, entre outros aspectos. As variáveis de resultado foram construídas como dummies, assumindo, no caso da variável ‘Solidão’, valor igual a 1 se o escolar se sente sempre ou quase sempre sozinho e 0 se nunca, raramente ou às vezes. Para a variável ‘Amigos’ a dummy assume valor igual a 1 se o escolar tem nenhum ou até dois amigos e 0 caso contrario e, por fim, a variável ‘Insônia’ é igual a 1 se o escolar tem sempre ou quase sempre problemas para dormir porque algo o preocupa e 0 caso nunca, raramente ou às vezes.
Dado que o objetivo deste trabalho é estimar o impacto causal do abuso sexual sobre a saúde mental dos escolares, torna-se necessário encontrar o contrafactual do grupo de jovens abusados. Para atingir este objetivo, foi utilizado o método do Propensity Score Matching (PSM), que estima o efeito médio do tratamento nos tratados (Average Treatment Effect on Treated - ATT), buscando no grupo de controle (jovens não abusados) os indivíduos mais semelhantes ao grupo de tratados (abusados) em características observáveis. Isso é feito por meio de dois estágios, em que o primeiro consiste na estimação da probabilidade dos indivíduos receberem o tratamento, neste caso ter sofrido o abuso. Para tanto, utiliza-se o modelo logit. O segundo estágio é o pareamento, que associa cada indivíduo no grupo de tratamento a um indivíduo no grupo de controle com base na probabilidade de ser vítima de violência sexual.
A estimação do ATT, δtt , pelo Propensity Score Matching é então obtida de acordo com o seguinte estimador:
onde n é o número de tratados, i é o subscrito para tratado, j é o subscrito para controle, m é o número de matches, C indica suporte comum, wi,j é o peso utilizado para parear o indivíduo j ao i e Y é a variável de resultado. Neste artigo utilizou-se como técnica de pareamento a do vizinho mais próximo em que wi,j assume valor igual a 1 para os tratados e seus controles pareados e 0 para os demais controles.
Resultados
A Tabela 1 apresenta um panorama geral da amostra em relação à violência sexual para alunos de 9ª série, estratificados por gênero. Como se nota, os adolescentes abusados representam cerca de 4% do total de participantes da PeNSE, cuja representatividade amostral equivale a 101.901 jovens violentados. Nota-se que o percentual de vítimas é maior entre as mulheres (4,32%). Os microdados também apresentam a distribuição dos jovens violentados sexualmente por tipo de perpetrador. Há de se destacar que a maior parte dos atos são cometidos por pessoas conhecidas do abusado: namorado/ex (25,6%), familiares (19,3%), amigos (19,2%) e pais (10,5%). Este é um resultado extremamente preocupante, tendo em vista que a vítima pode ter sido violentada por alguém que ela ama ou confia.
Quando se consideram as variáveis de resultados propostas, nota-se por meio da Tabela 2 a existência de um perfil singular do adolescente abusado no que se refere à solidão, número de amigos e problemas de insônia. Entre os escolares não abusados, 16% declararam se sentir sempre ou muito sozinhos, 22,7% disseram ter nenhum ou até dois amigos e 10,9% relataram problemas de insônia frequente por motivos que os preocupam. Os números diferem muito entre os abusados, com percentuais de 35,6%, 33,7% e 26,4%, respectivamente. A diferente dinâmica observada quanto à saúde mental das mulheres, como usualmente indicada na literatura, pode ser confirmada com os resultados da Tabela 2. Em todas as variáveis há maior prevalência de sintomas relacionados à saúde mental entre as mulheres, tanto entre as abusadas quanto entre as não abusadas.
A Tabela 3 mostra os resultados do primeiro estágio do Propensity Score Matching, que consiste na estimação do modelo logit para os determinantes do abuso sexual entre os escolares. Os resultados apontam para um quadro que caracteriza as vítimas do abuso sexual como um grupo bastante particular em termos comportamentais, familiares e socioeconômicos. Os jovens abusados têm mais chance de já terem utilizado drogas ilícitas (OR = 2,15), álcool (OR = 1,80) e terem amigos que já fizeram o mesmo (OR = 1,02) Além disso, apresentam, aproximadamente, duas vezes mais chances de já terem sido alvo de bullying (OR = 2,09) e mais chances de defasagem idade-série (OR = 1,20). Ainda mais grave pode ser o fato de que estes escolares reportam ter menor pretensão de estudar além do ensino fundamental e têm maior probabilidade de já estarem trabalhando, o que é indicado pelos coeficientes das categorias da variável ‘Futuro escolar’ e da variável ‘Emprego’ (OR = 1,54).
Em relação ao ambiente familiar, a Tabela 3 ainda revela que as variáveis de acompanhamento dos pais, tanto a que capta se estes sabiam o que o escolar fazia no tempo livre quanto a variável que indica a frequência com que os pais verificavam o dever de casa, são preditores bastante relevantes da violência sexual. Destaca-se a magnitude do resultado para crianças cujos pais sabem sempre ou na maioria das vezes o que elas fazem no seu tempo livre, fato esse associado com 50% menos chances, aproximadamente, de relato de abuso. De acordo com os nossos resultados, a variável para o número de pessoas no domicílio (OR = 1,01) e a dummy indicadora se a mãe fuma (OR = 1,25) são também significativas, bem como se o abusado realiza exercícios físicos fora da escola (OR = 1,07), se mora com a mãe (OR = 0,86) e se já sentiu fome em casa, sendo este último efeito crescente de acordo com a frequência do evento. Por fim, as maiores chance de abuso ocorrem em adolescentes de escolas públicas (OR = 1,24) e de capitais (OR = 1,39).
O passo seguinte do método utilizado consistiu no pareamento dos escolares abusados e não abusados com base nos atributos considerados no modelo logit. A Figura 1 mostra a distribuição de probabilidade de sofrer violência sexual para jovens do grupo de abusados e não abusados antes e depois do pareamento. Nota-se que inicialmente os grupos eram muito distintos em características observáveis, com forte concentração dos não abusados à esquerda da distribuição e dos violentados à direita. Após o pareamento, a distribuição de probabilidade estimada tornou-se muito semelhante entre os grupos, sugerindo a boa adequação do modelo.
A Tabela 4 apresenta o resultado central deste trabalho, que diz respeito à estimação dos impactos da violência sexual sobre a saúde mental dos escolares. Em primeiro lugar, percebe-se que os efeitos adversos deste evento se manifestam em todas as variáveis analisadas. O efeito médio estimado do abuso sobre o jovem violentado denota que o mesmo tem 13,3% mais chance de se sentir sempre ou quase sempre sozinho, 7,5% mais chance de ter nenhum ou até dois amigos e 9,5% mais chance de relatar problemas frequentes de insônia por motivos de preocupação.
Como já percebido na análise descritiva anterior, os resultados da Tabela 4 confirmam que há uma grande diferença entre os gêneros no quesito saúde mental. Para as mulheres, o impacto é maior sobre a solidão (16%) e insônia (10,7%), sendo sensivelmente diferente do observado para os homens – 6,4% e 5,7% respectivamente. Por sua vez, o impacto do abuso sexual sobre o número de amigos é maior para homens (8,6%) do que para mulheres (5%).
Discussão e conclusão
O presente estudo apresenta uma amostra significativa da população brasileira infanto-juvenil, onde uma parcela de 4% sofreu abuso sexual. Meta-análises1515. Barth J, Bermetz L, Heim E, Trelle S, Tonia T.The current prevalence of child sexual abuse worldwide: a systematic review and meta-analysis. Int J Public Health 2013; 58(3):469-483.,1616. Pereda N, Guilera G, Forns M, Gómez-Benito J.The international epidemiology of child sexual abuse: a continuation of Finkelhor (1994). Child Abuse Neglec 2009; 33(6):331-420. estimam que de 10-20% das meninas e 5-10% dos meninos já sofreram abuso sexual antes dos 18 anos. A prevalência varia conforme o tipo de abuso sexual considerado, sendo maior para o abuso sexual sem contato físico e menor para o com contato físico. A menor prevalência encontrada no nosso estudo pode ser explicada pela natureza da pergunta utilizada para identificar os casos de abuso sexual, que remete mais facilmente à lembrança de uma experiência de abuso sexual com contato físico, subestimando a real prevalência a partir de um conceito de abuso sexual mais amplo que inclui a identificação de abuso sem contato físico. Há de se considerar ainda que o problema para aferição da prevalência pode ser maior uma vez que, segundo London et al.1717. London K, Bruck M, Ceci SJ, Shuman DW.Disclosure of child sexual abuse: what does the research tell us about the ways that children tell? Psychology, Public Policy, and Law 2005; 11(1):194-226., cerca de dois terços dos violentados nunca revelam o fato e a maioria dos casos não é reportada às autoridades1818. Wyatt GE, Loeb TB, Solis B, Carmona JV.The prevalence and circumstances of child sexual abuse: changes across a decade. Child Abuse Neglec 1999; 23(1):45-60.. Tudo isso contribui para o desenvolvimento de problemas psicológicos e sociais, abrindo espaço para discussões sobre medidas preventivas e terapêuticas relacionadas ao abuso sexual.
Em relação às características do perfil do abusado, notamos que os jovens violentados têm mais chance de já terem utilizado drogas ilícitas, álcool e de terem amigos que já fizeram o mesmo. De acordo com a literatura1919. Nickel MK, Tritt K, Mitterlehner FO, Leiberich NC, Lahmann C, Forthuber P, Rother WK, Loew TH.Sexual abuse in childhood and youth as psychopathologically relevant life occurrence: Cross-sectional survey. Croat Med J2004; 45(4):483-489.,2020. Kendler KS, Bulik CM, Silberg J, Hettema JM, Myers J, Prescott CA. Childhood sexual abuse and adult psychiatric and substance abuse disorders in women. Arch Gen Psychiatry 2000; 57(10):953-959., a dependência de drogas e álcool precoce é frequente entre as vitimas de violência sexual, problema esse que pode perdurar por longo tempo. Além disso, observamos que existe maior chance de defasagem idade-série entre os abusados, como já documentado em diversos estudos2121. Boden J, Horwood L, Fergusson D.Exposure to childhood sexual and physical abuse and subsequent educational achievement outcomes. Child Abuse Neglec 2007; 31(10):1101-1114.
22. Currie J, Spatz WC.Long-term consequences of child abuse and neglect on adult economic well-being. Child Maltreat 2010; 15(2):111-120.-2323. Noll JG, Shenk CE, Yeh MT, Ji J, Putnam FW, Trickett PK.Receptive language and educational attainment for sexually abused females. Pediatrics 2010; 126(3):e615-622.. Nossos achados também mostram que os escolares violentados sexualmente aparentam ter menor pretensão de continuar os estudos em nível médio e superior e têm maior probabilidade de já estarem trabalhando. Frothingham et al.2424. Frothingham TE, Hobbs CJ, Wynne JM, Yee L, Goyal A, Wadsworth DJ.Follow up study 8 years after diagnosis of sexual abuse. Arch Dis Child2000; 83(2):132-134 constatou que indivíduos abusados apresentam mais dificuldades com o aprendizado e Fergusson et al.1212. Fergusson DM, Mcleod GFH, Horwood LJ.Childhood sexual abuse and adult developmental outcomes: Findings from a 30-year longitudinal study in New Zealand. Child Abuse Neglec2013; 37(9):664-674. apontou que os mesmos dependerão mais de programas de bem-estar social no futuro. Tudo isso evidencia uma maior dificuldade de adaptação do abusado no ambiente escolar/universitário e profissional.
Fatores socioeconômicos, como baixa renda e mãe sem qualificação educacional já foram associados na literatura com a ocorrência de abuso sexual1212. Fergusson DM, Mcleod GFH, Horwood LJ.Childhood sexual abuse and adult developmental outcomes: Findings from a 30-year longitudinal study in New Zealand. Child Abuse Neglec2013; 37(9):664-674.,2525. Hecht DB, Hansen DJ.The environment of child maltreatment: Contextual factors and the development of psychopathology. Aggression and Violent Behavior 2001; 6(5):433-457.. No presente estudo, no entanto, as variáveis que representam o nível socioeconômico, como ‘Índice de posse’ e ‘Mãe Ensino Superior’, não foram significativas, ao contrário dos coeficientes relativos à variável que capta se o escolar já ficou com fome por falta de comida em casa. Isso nos sugere que mais importante para a ocorrência do abuso pode não ser a renda familiar, mas o grau de acompanhamento dos pais e a funcionalidade do ambiente familiar2626. Fassler IR, Amodeo M, Griffin ML, Clay CM, Ellis MA.Predicting long-term outcomes for women sexually abused in childhood: Contribution of abuse severity versus family environment. Child Abuse Neglec 2005; 29(3):269-284. Outro traço do perfil do abusado que reforça essa ideia, já apontado por Bezerra e Beltrão2727. Bezerra MMS, Beltrão K. Abuso sexual infantil – criança x abuso sexual. Faculdade Metropolitana da Grande Recife, 2006. [acessado 2012 abr 5]. Disponível em: http://www.psicologia.pt.com.br
http://www.psicologia.pt.com.br... , é que a vítima de violência sexual evita ficar em casa e procura gastar o máximo de tempo fora do ambiente doméstico, por assim se sentir mais seguro. Esses dados são apontados pelas variáveis que avaliam a maior chance do indivíduo realizar exercícios físicos (sem contar educação física) e não morar com a mãe.
As variáveis de saúde mental usadas no estudo (insônia, amigos, solidão) não circulam transtornos mentais propriamente ditos, mas possuem um poder de sugerir sofrimento psíquico. Kendall-Tackett et al.2828. Kendall-Tackett KA, Williams LM, Finkelhor D.Impact of sexual abuse on children: a review and synthesis of recent empirical studies. Psychol Bull 1993; 113(1):164-180. observaram que crianças abusadas apresentavam mais sintomas psicológicos que as não abusadas, sendo que os sintomas que mais apareciam eram pesadelos, depressão, comportamento de retirada, agressão, comportamento regressivo e transtorno neurótico. Outros sintomas comuns apontados incluem medo, ansiedade e baixa autoestima2929. Andrews G, Corry J, Slade T, Issakidis C, Swanston H. Child sexual abuse. Comparative Quantification of Health Risks: Global and Regional Burden of Disease Attributable to Selected Major Risk Factors. Geneva: WHO; 2004. Vol. 2,3030. Gilbert R, Spatz-Widom C, Browne K, Fergusson D, Webb E, Janson S.Burden and consequences of child maltreatment in high-income countries. Lancet 2009; 373(9657):68-81.. Esses achados servem para dar suporte às variáveis de saúde mental utilizadas no presente estudo. Insônia pode ser explicada pela presença de pesadelos, medos e transtornos do humor, como depressão. Ausência de amigos e solidão podem estar ligados ao comportamento agressivo ou de retirada diante da formação de novos vínculos sociais, bem como ser decorrente de características de baixa auto-estima e do bullying.
Há de se destacar a magnitude dos impactos encontrados neste trabalho sobre estas variáveis. Inicialmente, análises descritivas dos dados revelaram que, em média, jovens abusados reportam com muito mais frequência o fato de terem poucos amigos, insônia e sentimento de solidão. Posteriormente, estimações auferidas com uma metodologia de impactos causais confirmaram o quão nefastos são os efeitos da violência sexual sobre a saúde mental das vítimas. O fato do escore utilizado nas variáveis ser dividido entre sempre/quase sempre fornece uma impressão ainda mais robusta da intensidade destes resultados, sugerindo sofrimento e presença marcante de estressores psicológicos nos jovens deste estudo e também a possibilidade de desenvolvimento e manutenção de outros transtornos mentais nessa população.
Considerando as diferenças entre os gêneros, o impacto do abuso sexual sobre solidão e insônia é maior para mulheres, e sobre o número de amigos para os homens. Tal resultado é coerente com a literatura que aponta que os homens apresentam menor regulação emocional, e por isso não conseguem lidar com a situação do abuso sem externar o trauma. Isto acarreta em uma menor empatia e envolvimento com os outros de tal forma que o resultado para a variável ‘Amigos’ se mostra maior para este grupo. Já as mulheres, por apresentarem maior regulação emocional, são capazes de lidar melhor com o problema perante as pessoas, entretanto, acabam correndo maiores riscos de internalização dos efeitos adversos do trauma, o que é retratado pelos resultados para solidão e insônia3131. Bender PK, Reinholdt-Dunne ML, Esbjørn BH, Pons F.Emotion dysregulation and anxiety in children and adolescents: gender differences. Personality and Individual Differences 2012; 53(3):284-288.
32. Kim-Spoon J, Cicchetti D, Rogosch FA.A longitudinal study of emotion regulation, emotion lability-negativity, and internalizing symptomatology in maltreated and nonmaltreated children. Child Develop 2013; 84(2):512-527.
33. Chaplin TM, Aldao A.Gender differences in emotion expression in children: A meta-analytic review. Psychol Bull 2013; 139(4):735-765.-3434. Séguin-Lemire A, Hébert M, Cossette L, Langevin R.A longitudinal study of emotion regulation among sexually abused preschoolers. Child Abuse Neglec 2017; 63:307-316..
Há de se considerar que os impactos já comentados podem ser ainda mais graves se considerarmos o fato de que os transtornos psicológicos podem perdurar ao longo de toda a vida do jovem abusado. Fergusson et al.1212. Fergusson DM, Mcleod GFH, Horwood LJ.Childhood sexual abuse and adult developmental outcomes: Findings from a 30-year longitudinal study in New Zealand. Child Abuse Neglec2013; 37(9):664-674., na sua coorte de trinta anos de seguimento, encontrou efeitos adversos na saúde mental de indivíduos entre dezoito e trinta anos, abusados sexualmente na infância/adolescência. Estes pontuaram mais para depressão, ansiedade, ideação suicida, tentativas de suicídio e abuso/dependência de substâncias. Além disso, reportaram mais problemas em relação ao bem-estar psicológico, comportamentos sexuais de risco e maior necessidade de suporte médico durante a vida. As consequências desses achados são abrangentes dentro do contexto familiar e social, com custos significativos para as instituições de saúde, assistência social, e para o sistema judiciário55. Fang X, Brown DS, Curtis FS, Mercy J.The economic burden of child maltreatment in the United States and implications for prevention.Child Abuse Neglec 2012; 36(2):156-165.. Assim, torna-se de extrema relevância o desenvolvimento de abordagens preventivas bem como terapêuticas que forneçam subsídios à reabilitação psicológica e reinserção do indivíduo na sociedade produtiva.
Estudos internacionais mostram que as terapias cognitivo-comportamentais apresentam as melhores evidências sobre os impactos negativos na função psicossocial dos indivíduos abusados. Macdonald et al.3535. Macdonald G, Higgins JP, Ramchandani P, Valentine JC, Bronger LP, Klein P, O’Daniel R, Pickering M, Rademaker B, Richardson G, Taylor M. Cognitive-behavioural interventions for children who have been sexually abused. Cochrane Database Syst Rev 2012; (5):CD001930. e Arellano et al.3636. Arellano MAR, Lyman DR, Jobe-Shields L, George P, Dougherty RH, Daniels AS, Delphin-Rittmon ME.Trauma-focused cognitive-behavioral therapy for children and adolescents: Assessing the evidence. Psychiatr Serv 2014; 65(5):591-602., em meta-análises realizadas, mostram que as principais variáveis impactadas por esta forma de tratamento parecem ser o transtorno do estresse pós-traumático e a sensação de ansiedade. Além disso, há evidências de que o tratamento também pode amenizar os sintomas de depressão, problemas comportamentais, sexuais e sentimento de vergonha3737. Cohen JA, Deblinger E, Mannarino AP, Steer RA.A multisite, randomized controlled trial for children with sexual abuse-related PTSD symptoms. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry2004; 43(4):393-402.,3838. Cohen JA, Mannarino, AP, Knudsen K. Treating sexually abused children: 1 year follow-up of a randomized controlled trial. Child Abuse Negl 2005; 29(2):135-145.. Alguns trabalhos, contudo, lançam dúvidas quanto à validade dos efeitos da terapia cognitivo-comportamental sobre esse amplo conjunto de indicadores da saúde mental, especialmente em relação aos últimos quatro. Por outro lado, nos estudos analisados não foi constatado nenhum relato de efeito adverso do tratamento sobre as vítimas3535. Macdonald G, Higgins JP, Ramchandani P, Valentine JC, Bronger LP, Klein P, O’Daniel R, Pickering M, Rademaker B, Richardson G, Taylor M. Cognitive-behavioural interventions for children who have been sexually abused. Cochrane Database Syst Rev 2012; (5):CD001930..
Programas de prevenção são outro meio de intervenção contra o abuso sexual. A literatura aponta que o método mais empregado para a prevenção da violência sexual consiste em programas escolares que abarcam alunos do primário e secundário. Tais programas ganham relevância se considerarmos os achados encontrados neste artigo, de que o jovem abusado tem um déficit marcante quanto ao acompanhamento familiar. Nesse sentido, a escola pode acabar sendo a única fonte de cuidado e proteção de jovens em situação de risco. Internacionalmente, há uma ampla variedade de modelos de programa, que vão desde estilos mais passivos (filmes, apresentações, leituras) até ativos (participação ativa, ensaios de comportamentos protetores, etc.)3939. Zwi KJ, Woolfenden SR, Wheeler DM, O’brien TA, Tait P, Williams KW. School-based education programmes for the prevention of child sexual abuse. Cochrane Database Syst Rev.2007; (3):CD004380.. Estudos mostram que estes programas proporcionam aquisição de conceitos de prevenção do abuso sexual e habilidades protetoras em situações de risco4040. Taal M, Edelaar M.Positive and negative effects of a child sexual abuse prevention program. Child Abuse Negl 1997; 21(4):399-410.
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Programas de prevenção voltados para adultos são outra fonte de combate contra o abuso sexual. Grande parte destes programas é direcionada aos cuidadores, que podem adquirir conhecimento e capacidades para lidar com possíveis situações de abuso sexual com seus filhos e proporcionar, dessa forma, maior diálogo sobre o tema entre as partes4545. Hébert M, Lavoie F, Parent N.An assessment of outcomes following parents’ participation in a child abuse prevention program. Violence Vict 2002; 17(3):355-372.,4646. Kenny MC.Child sexual abuse prevention: psychoeducational groups for preschoolers and their parents. J Spec Group Work 2009; 34(1):24-42.. Pelo fato dos responsáveis pela criança estarem muitas vezes envolvidos no abuso sexual, outros programas de educação para adultos não cuidadores, entre eles professores4747. Walsch K, Rassafiani M, Mathews B, Farell A, Butler W. Assessment and prevention: exploratory factor analysis and psychometric evaluation of the teacher reporting attitude scale of child sexual abuse. J Child Sex Abus 2012; 21(5):489-506., profissionais de crianças4848. Rheingold AA, Zajac K, Chapman JE, Patton M, Arellana, M, Saunders B.Child sexual abuse prevention training for childcare professionals: an independent multi-site randomized controlled trail of Stewards of Children. Prev. Sci2015; 16(3):374-385., adultos públicos em geral4949. Self-Brown S, Rheingold AA, Campbell C, Arellano MA.A media campaign prevention program for child sexual abuse: community members’ perspectives. J Interpers Violence2008; 23(6):728-743., foram desenvolvidos. Apesar dos estudos carecerem de comprovação quanto à diminuição da prevalência de abusos sexuais4242. MacMillan H, Wathen, CN, Barlow J, Fergusson DM, Lenethal JM, Taussig HN. Interventions to prevent child maltreatment and associated impairment. Lancet 2009; 373(9659):250-266.,4343. Walsh K, Zwi K, Woolfenden S, Shlonsky A. School-based education programmes for the prevention of child sexual abuse. Cochrane Database Syst Rev. 2015; (4):CD004380., o aumento do conhecimento sobre o tema e o aprimoramento da capacidade de lidar com essa situação pode ser um primeiro passo para a redução futura de casos de abuso.
No Brasil, há um número muito pequeno de estudos que avaliam práticas e formas de tratamentos específicos à situação do abuso. Destaca-se na literatura o trabalho de Habigzang et al.5050. Habigzang LF, Stroeher FH, Hatzenberger R, Cunha RCD, Ramos MDS, Koller SH.Grupoterapia cognitivo-comportamental para crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual. Rev Saude Publica2009; 43(1):70-78., que acompanharam, ao longo de dezesseis sessões de grupo terapia, uma coorte de quarenta crianças e adolescentes abusados. Os resultados apontam para uma significativa queda nos sintomas de depressão, ansiedade, estresse infantil e transtorno do estresse pós-traumático. Nesse contexto, a preocupação do Ministério da Saúde com o tema se traduziu em duas cartilhas relacionadas ao abuso sexual na infância e adolescência, que trazem recomendações aos profissionais de saúde quanto à necessidade de apoio e cuidado com a saúde mental da vítima5151. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Linha de cuidado para a atenção integral à saúde de crianças, adolescentes e suas famílias em situação de violências: orientação para gestores e profissionais de saúde. Brasília: MS; 2010.,5252. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: norma técnica. Brasília: MS; 2012.. Entretanto, como mostram Von Hohendorff et al.5353. Von Hohendorff J, Koller SH, Habigzang LF.Psicoterapia para crianças e adolescentes vítimas de violência sexual no sistema público: panorama e alternativas de atendimento. Psicologia: Ciência e Profissão 2015; 35(1):182-198., os casos de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual que apresentam sintomas psicopatológicos mas que não são considerados severos ou persistentes não possuem nenhum serviço de referência de saúde mental para seu atendimento psicoterápico. Dessa forma, parece existir um descompasso entre o conhecimento científico existente sobre as consequências da violência sexual e as políticas públicas nacionais, que não determinam claramente o acesso dessa população à psicoterapia5353. Von Hohendorff J, Koller SH, Habigzang LF.Psicoterapia para crianças e adolescentes vítimas de violência sexual no sistema público: panorama e alternativas de atendimento. Psicologia: Ciência e Profissão 2015; 35(1):182-198.. No que se refere a políticas de prevenção, o Brasil é ainda mais incipiente. Nota-se que existem iniciativas de diferentes órgãos do governo, mas falta sinergia e coordenação das ações, de onde resulta que atualmente não há uma diretriz concreta para a prevenção deste problema.
Os resultados encontrados neste trabalho apontam que o abuso sexual infanto-juvenil no Brasil, além de estar relacionado a diversos fatores preocupantes do ponto de vista socioeconômico (envolvimento com drogas, trabalho precoce, etc.), acarreta em impactos de magnitude elevada sobre indicadores de saúde mental das vítimas. Dessa forma, recomenda-se que práticas avaliadas em estudos internacionais sejam reconhecidas internamente de modo a nortear o desenho de futuras políticas públicas relacionadas. Por fim, novas pesquisas também precisam ser feitas para avaliar medidas já implementadas internamente visando expandir os horizontes para novos modelos de terapias, acompanhamento e prevenção.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Set 2017
Histórico
- Recebido
23 Jan 2017 - Revisado
18 Abr 2017 - Aceito
08 Maio 2017