Resumo
O objetivo deste artigo é analisar narrativas sobre as experiências de abortar disponíveis em uma comunidade online, buscando discutir os métodos e estratégias aos quais as mulheres recorrem frente à impossibilidade legal de interrupção voluntária de gravidez e os efeitos da criminalização do aborto induzido. Como método, utilizou-se a etnografia virtual, com observação da plataforma Women on Web, coleta e análise de 18 narrativas, disponíveis publicamente e sem restrições, selecionadas entre novembro de 2016 e janeiro de 2017. As narrativas informam métodos mesclados para a realização de aborto, com prevalência de utilização do medicamento Cytotec. Em alguns casos, hospitais e consultórios médicos são incluídos nos itinerários, seja para realização de exames ou para atendimento de intercorrências. A internet se revela uma ferramenta de informação, negociação e mesmo aquisição de medicamento abortivo bastante comum, além de uma plataforma de troca de experiências. Conclui-se que as narrativas sinalizam as inseguranças, riscos e violências às quais estão submetidas as mulheres no contexto da clandestinidade, indicam a importância do debate sobre a descriminalização do aborto no Brasil, e também reforçam a existência de uma cultura compartilhada do aborto, já apontada em estudos anteriores.
Aborto Induzido; Saúde; Internet
Introdução
A interrupção voluntária da gravidez, ou aborto induzido, é crime no Brasil, à exceção de três situações: em caso de gestação resultante de estupro ou quando há risco de vida para a gestante, conforme o artigo 128 do Código Penal, ou, ainda, em casos de aborto de fetos anencéfalos, a partir de decisão, em 2012, do Supremo Tribunal Federal. À proibição legal, somam-se questões morais, religiosas, subjetivas, de saúde e de gênero/classe/raça, além do significado simbólico da interrupção de uma gravidez indesejada, que perturba o ideal de maternidade constituído historicamente como “natural” à identidade sociocultural da feminilidade brasileira11. Scavone L. Políticas feministas do aborto. Rev Estud Fem 2008; 16(2):675-680..
Apesar deste cenário, os estudos nacionais têm demonstrado que o aborto é comum entre mulheres de todas as classes sociais, “cuja prevalência aumenta com a idade da mulher, com o fato de ser da zona urbana, ter mais de um filho e não ser da raça branca”22. Diniz D, Madeiro A. Cytotec e aborto: a polícia, os vendedores e as mulheres. Cien Saude Colet 2012; 17(7):1795-1804.. A Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), realizada em 2010 e novamente em 2016, constitui um dos mais amplos levantamentos já realizados sobre o tema no Brasil e, frente à sua importância, conforma uma referência frequente na presente discussão. Na edição de 2010, o estudo indicou que, aos 40 anos, mais de uma em cada cinco mulheres já terão feito um aborto induzido no Brasil urbano33. Diniz D, Medeiros M. Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna. Cien Saude Colet 2010; 15(Sup.1):959-966.,44. Diniz D, Medeiros M. Itinerários e métodos do aborto ilegal em cinco capitais brasileiras. Cien Saude Colet 2012; 17(7):1671-1681.. A PNA 2016 incluiu pergunta sobre a realização de aborto no ano anterior e, assim, concluiu que, em 2015, 416 mil mulheres residentes de áreas urbanas provocaram um aborto55. Diniz D, Medeiros M, Madeiro A. Pesquisa Nacional de Aborto 2016. Cien Saude Colet 2017; 22(2):653-660.. Ou seja, um efeito que a criminalização do aborto não possui é o de evitar que abortos induzidos sejam realizados.
O debate sobre o tema tem sido acolhido pelos campos da saúde pública e dos direitos humanos, sobretudo a partir do entendimento em relação aos riscos que a realização de abortos inseguros representa para a vida e a saúde das mulheres. Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS)66. Organização Mundial de Saúde (OMS). Abortamento Seguro: Orientação Técnica e de Políticas para Sistemas de Saúde. 2ª ed. Genebra: OMS; 2013. estimam a realização de 22 milhões de abortos inseguros no mundo anualmente, sendo 98% em países em desenvolvimento, com 47 mil mortes provocadas por complicações derivadas de procedimentos clandestinos66. Organização Mundial de Saúde (OMS). Abortamento Seguro: Orientação Técnica e de Políticas para Sistemas de Saúde. 2ª ed. Genebra: OMS; 2013..
No Brasil, a maior parte das pesquisas que buscam analisar as percepções das mulheres que abortam tem sido realizada em hospitais77. Diniz D, Corrêa M, Squinca F, Braga KS. Aborto: 20 anos de pesquisas no Brasil. Cad Saude Publica 2009; 25(4):939-942.. Assim, pesquisadores/as do tema têm apontado a necessidade de ampliação dos estudos passando por novos itinerários, que saiam dos hospitais e se aproximem, por exemplo, “do espaço doméstico, dos saberes femininos e tradicionais, da participação dos homens na decisão pelo aborto”77. Diniz D, Corrêa M, Squinca F, Braga KS. Aborto: 20 anos de pesquisas no Brasil. Cad Saude Publica 2009; 25(4):939-942..
O presente artigo busca contribuir com este esforço e, para isto, localiza na internet uma possibilidade de coleta de narrativas que mantém a proteção das identidades das mulheres, configurando-se como uma estratégia de pesquisa frente às dificuldades impostas pelo caráter clandestino da experiência de abortar.
Diversas pesquisas88. Zilli BD. A Perversão domesticada: estudo do discurso de legitimação do BDSM na internet e seu diálogo com a psiquiatria [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2007.
9. Meyer D, Félix J. “Entre o ser e o querer ser...”: jovens soropositivos(as), projetos de vida e educação. Educ. Rev. 2014; 30(2):181-206.
10. Pereira Neto A, Barbosa L, Silva A, Dantas MLG. O paciente informado e os saberes médicos: um estudo de etnografia virtual em comunidades de doentes no Facebook. Hist. cienc. Saude-Manguinhos 2015; 22(Supl.):1653-1671.-1111. Silva VLM. Sob a égide do chicote: uma leitura acerca do amor na contemporaneidade [tese]. Rio de Janeiro: PUC-Rio; 2015. que lidam com temas atravessados por estigmas, como as pessoas vivendo com HIV/Aids e sexualidades consideradas desviantes, por exemplo, têm considerado a internet como um campo que possibilita o encontro de narrativas e interações que dificilmente seriam possíveis de observar em um ambiente offline. Contudo, em relação às pesquisas sobre aborto induzido no Brasil, este movimento ainda é tímido e os poucos artigos e trabalhos acadêmicos que vão nesta direção se voltam ao potencial da internet como arena para o debate de argumentos sobre o tema do aborto: ora são as coberturas jornalísticas que interessam1212. Ramos JS. Toma que o aborto é teu: a politização do aborto em jornais e na web durante a campanha presidencial de 2010. Rev Bras de Ciênc Polít 2012; 7:55-82., ora o posicionamento de usuários de mídias sociais1313. Alves NTT. A conversação cívica sobre a questão do aborto em redes sociais na internet [dissertação]. São Paulo: Faculdade Cásper Líbero; 2011., ora os discursos dos movimentos sociais1414. Coelho AP, Azambuja P. Controvérsias em rede de ciberativismo: experimento prático com uso da Teoria Ator Rede. In: Anais do XVIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste; 2015; Natal (RN).. A internet como fonte de narrativas sobre a experiência de abortar aparece recentemente no ensaio de Oliveira1515. Oliveira AMS. O aborto nas redes sociais: cicatrizes físicas e emocionais compartilhadas no ambiente web. Cadernos Sisterhood 2016; 1:37-45, que discute a exposição do tema no ambiente web, onde “escondidas por nomes fictícios e imagens que não permitem identificação pessoal, cresce o número de vídeos e blogs com relatos de quem viveu a experiência do aborto e encontrou nas redes sociais uma estratégia para quebrar o silêncio”1515. Oliveira AMS. O aborto nas redes sociais: cicatrizes físicas e emocionais compartilhadas no ambiente web. Cadernos Sisterhood 2016; 1:37-45.
Nesse contexto, o objetivo deste artigo é analisar narrativas sobre as experiências de abortar disponíveis em uma plataforma de interação online, sobretudo em relação ao que as histórias compartilhadas informam sobre os itinerários abortivos, compreendidos como o elenco de métodos utilizados, sua sequência temporal e seus efeitos, conforme propõem Heilborn et al.1616. Heilborn ML, Cabral CS, Brandão ER, Faro L, Cordeiro F, Azize RL. Itinerários abortivos em contextos de clandestinidade na cidade do Rio de Janeiro – Brasil. Cien Saude Colet 2012; 17(7):1699-1708.. As perguntas que nortearam nosso contato com a pesquisa de campo foram: como a ilegalidade afeta a experiência das mulheres com o aborto? Com a ausência de assistência formal e legal do Estado, quais dispositivos ocupam este lugar; que recursos, métodos e pessoas são mobilizados no percurso? Tal questão dialoga com o debate contemporâneo sobre governança em saúde, sobretudo com a concepção de governança que considera os múltiplos atores e dinâmicas sociais envolvidos na ação coletiva e nos arranjos políticos e institucionais de tomada de decisões que não se restringem à estrutura do Estado1717. Buss PM, Machado JMH, Gallo E, Magalhães DP, Setti AFF, Netto FAF, Buss DF. Governança em saúde e ambiente para o desenvolvimento sustentável. Cien Saude Colet 2012, 17(6):1479-1491.
18. Flores W. Los principios éticos y los enfoques asociados a la investigación de la gobernanza en los sistemas de salud: implicaciones conceptuales y metodológicas. Rev Salud Pública 2010; 12(Supl. 1):28-38.-1919. Hufty M, Báscolo E, Bazzani R. Gobernanza en salud: un aporte conceptual y analítico para la investigación. Cad Saude Publica 2006; 22(Sup):S35-S45.. Esta articulação abre espaço, ainda, para a reflexão sobre a atuação, o alcance e os limites das redes sociais, que possibilitam a compreensão da sociedade “a partir dos vínculos relacionais entre os indivíduos, os quais reforçariam suas capacidades de atuação, compartilhamento, aprendizagem, captação de recursos e mobilização”2020. Marteleto RM. Redes Sociais, mediação e apropriação de informações: situando campos, objetos e conceitos na pesquisa em Ciência da Informação. Tendências da Pesquisa Brasileira em Ciência da Informação 2010; 3(1):27-46.. Redes de socialização, disputa, cooperação e junção que, conforme aponta Castells2121. Castells M. A Sociedade em Rede: do Conhecimento à Política. In: Castells M, Cardoso G, organizadores. A Sociedade em Rede - Do Conhecimento à Acção Política. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2006, p. 17-30., encontram nas novas tecnologias de comunicação e informação a possibilidade de ampliar suas capacidades, tema pertinente à presente análise, dado o nosso objeto de estudo.
Abordagens metodológicas
O caminho tomado para conduzir as observações, coleta de materiais e análise foi a etnografia virtual. Para Hine2222. Hine C. Virtual Ethnography. Londres: SAGE Publications; 2000., a etnografia pode ser mobilizada para alcançar os significados da tecnologia e das culturas que a estruturam, ao mesmo tempo em que são estruturadas por ela. O presente estudo está alinhado com os autores que pensam a rede como “um local intersticial em que as fronteiras entre online e offline são fluidas e ambos interatuam”2323. Fragoso S, Recuero R, Amaral A. Métodos de pesquisa para internet. Porto Alegre: Sulinas; 2011.. Abordagem que interessa a partir da compreensão de que as narrativas online sobre experiências singulares com o aborto fornecem representações sobre um fenômeno com materialidade offline. Reconhecemos que um elemento a ser problematizado é a característica silenciosa da observação empreendida, isto é, sem manifestação da presença do pesquisador1818. Flores W. Los principios éticos y los enfoques asociados a la investigación de la gobernanza en los sistemas de salud: implicaciones conceptuales y metodológicas. Rev Salud Pública 2010; 12(Supl. 1):28-38.. Neste caso, essa decisão é corolária à própria estruturação do site estudado, que impede a realização de comentários junto aos depoimentos.
As etapas da pesquisa incluíram: (a) busca por comunidades públicas de compartilhamento de relatos de aborto e definição da plataforma a ser analisada; (b) observação e coleta de histórias e (c) análise a partir das perguntas norteadoras.
A procura por espaços de compartilhamento de histórias sobre aborto indicou como resultados mais recorrentes sites que veiculam informações sobre aborto medicinal e mantêm em seus portais um espaço destinado aos relatos através de ferramentas de chat, comentários e plataformas de upload de conteúdo. Ao contrário de sites como o Abortivo ou o Aborto na Nuvem, em que os relatos se enfileiram em caixas de comentário de forma confusa, a plataforma “Fiz um aborto” do grupo Women on Web disponibiliza os depoimentos de duas formas: através de um mapa ou de um grande mural, em que as histórias estão dispostas junto a avatares e onde é possível selecionar filtros como país de origem e métodos utilizados. Escolhemos esta plataforma também em função da grande quantidade de histórias de brasileiras disponíveis; da facilidade de navegação e possibilidade de classificação dos relatos por método utilizado; e o fato de informar publicamente as organizações que mantêm o projeto, o que facilita a verificação de informações a respeito deste.
O espaço é do grupo Women On Web, que se define como uma comunidade/rede digital de mulheres que fizeram aborto e de indivíduos e organizações que apoiam o direito ao aborto. O site disponibiliza um formulário online, a partir do qual recebe, mapeia e disponibiliza publicamente depoimentos de 151 países, sendo o Brasil aquele com o maior número de relatos publicados, com 1.027 histórias (em 18 de março de 2017). Esta plataforma de compartilhamento é entendida, aqui, como uma comunidade virtual, construída sobre afinidades de interesses, de conhecimentos e projetos, em um processo mútuo de cooperação e troca, no sentido elaborado por Lévy2424. Lévy P. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34; 1999.. Um espaço de interação que integra redes sociais mais amplas, com atores e dispositivos que interagem tanto online como offline, conforme será explicitado na discussão.
Durante a observação, utilizamos a categorização disponível na plataforma em relação aos métodos adotados para a realização da interrupção voluntária da gravidez como critérios para a coleta de narrativas. “Ervas, massagens e outros métodos”, “medicamentos”, “clínicas e hospitais através de cirurgia” e “por meus próprios meios” são as possibilidades oferecidas às mulheres para classificar os métodos utilizados ao abortar. Entre novembro de 2016 e janeiro de 2017, coletamos cinco relatos associados a cada uma destas categorias, considerando aqueles que foram os primeiros a aparecer ao selecioná-las. Desta forma, buscamos preservar certa aleatoriedade na coleta e garantir ao mesmo tempo alguma diversidade em relação às histórias, permitindo conhecer mais detalhes sobre os itinerários associados a cada uma das possibilidades previstas.
Inicialmente, foram selecionadas vinte narrativas, mas uma nova avaliação revelou que dois textos estavam classificados em mais de uma categoria, o que nos levou a um grupo final de dezoito histórias. O material coletado é de acesso público e irrestrito, em conformidade com o que dispõe a Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais2525. Guerriero ICZ. Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016 que trata das especificidades éticas das pesquisas nas ciências humanas e sociais e de outras que utilizam metodologias próprias dessas áreas. Cien Saude Colet 2016; 21(8):2619-2629.. Ainda que a plataforma permita que a autora da narrativa utilize apelidos ou nomes falsos, preferimos substituir os nomes associados aos relatos pela alcunha “Mulher XX”, a fim de reforçar os mecanismos de proteção à identidade destas usuárias. Na discussão sobre as narrativas, os trechos que aparecem citados diretamente estão preservados na sua escrita original, incluindo vícios de linguagem, erros de digitação e outras características de estilo empregadas. Fragmentos que pudessem fornecer qualquer informação sobre localização ou identidade foram excluídos.
Resultados e discussão
Apontamentos sobre o perfil
Das 18 mulheres, cinco explicitaram o fato de estarem empregadas ou serem empreendedoras, enquanto sete envolviam histórias de desemprego e outras quatro eram estudantes. Em seis relatos não foi possível determinar qual era a condição ocupacional da autora. A situação econômica é destacada em oito histórias: cinco apontam problemas financeiros como uma questão que afeta diretamente suas decisões reprodutivas, enquanto três mencionam a uma situação econômica mais favorável.
Em relação à idade, as informações disponíveis caracterizam um perfil jovem. Todas as mulheres que informam este dado (13 de 18) se encontravam entre 16 e 29 anos no momento da realização do aborto. Esta informação corrobora com a PNA , que mostrou que os abortos se concentram em geral nas idades que “compõem o centro do período reprodutivo das mulheres, isto é, entre 18 e 29 anos”33. Diniz D, Medeiros M. Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna. Cien Saude Colet 2010; 15(Sup.1):959-966.. Além disto, pode estar influenciada pelo viés de seleção do recorte, uma vez que a população jovem é a maior usuária de internet no Brasil2626. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD)- Acesso à Internet e à Televisão e Posse de Telefone Móvel Celular para Uso Pessoal. Rio de Janeiro: IBGE; 2014..
A maioria das mulheres (15) estava solteira no período da descoberta da gestação e realização do aborto, sendo que nove delas tinham parceiro fixo. Em relação à filiação religiosa, 12 são cristãs, três não têm religião, uma é de matriz africana, uma marcou que possuía “outra religião” e uma não informou. De certa forma, este item repete resultados de pesquisas como a PNA, que mostram que experiências com aborto estão presentes em todas as religiões33. Diniz D, Medeiros M. Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna. Cien Saude Colet 2010; 15(Sup.1):959-966.. Assim, as cristãs são maioria entre as mulheres que abortam porque são maioria entre as mulheres brasileiras.
Os itinerários: métodos e estratégias
A maior parte dos relatos analisados descreve itinerários que mesclam métodos, sendo bastante significativa a utilização do medicamento Cytotec, originalmente desenvolvido para o tratamento de úlcera gástrica e cujo princípio ativo é o misoprostol. Para uma melhor visualização, o conjunto de métodos citados nas narrativas está descrito no Quadro 1.
Em 13 histórias, o Cytotec é relatado como o agente principal do aborto, ainda que em seis casos seu uso tenha sido precedido por chás e três tenham finalizado o processo no hospital, com curetagem, após complicações. Este percurso é similar ao descrito pelas mulheres entrevistadas na etapa qualitativa da PNA, que indicou como principal método abortivo uma combinação de chás e Cytotec, com a frequente finalização em hospitais44. Diniz D, Medeiros M. Itinerários e métodos do aborto ilegal em cinco capitais brasileiras. Cien Saude Colet 2012; 17(7):1671-1681.. Aliás, a grande utilização do medicamento para fins de interrupção de gravidez tem sido estudada de forma significativa no Brasil, onde “os estudos sobre a magnitude do aborto no país mostram que a entrada do Cytotec na década de 1990 – vendido em farmácias e, posteriormente, proibido, mas comercializado ilegalmente – passou a ser um importante método utilizado pela população feminina para induzir aborto”1616. Heilborn ML, Cabral CS, Brandão ER, Faro L, Cordeiro F, Azize RL. Itinerários abortivos em contextos de clandestinidade na cidade do Rio de Janeiro – Brasil. Cien Saude Colet 2012; 17(7):1699-1708..
Além disto, há de se considerar o fato de o próprio site que hospeda os relatos estar vinculado à disseminação de informações sobre o aborto farmacológico, fator que certamente impacta sobre a recorrente descrição da utilização do remédio como método abortivo. O vasto número de histórias sobre aquisição e utilização do medicamento, indisponível legalmente no Brasil para a finalidade de abortar, revela, consequentemente, uma série de problemas relativos ao mercado clandestino, inclusive a utilização de medicamentos que, se não eram falsificados, no mínimo não funcionaram. Sem poder contar com a orientação formal de profissionais de saúde, as mulheres informam em seus relatos a utilização de variadas doses e formas de administração. Alguns itinerários envolvem repetidos usos de medicamentos adquiridos de fornecedores diversos, em percursos que conformam verdadeiras epopeias:
[...] corrida em busca de medicamentos abortivo cai num golpe [...] daí já em desespero procurei e achei um vendedor que me passou 04 comprimidos por $450,00 tomei tive cólicas e um leve sangramento mais sem resultados passam mais 03 dias e com esse mesmo vendedor peguei mais 06 [...] já de manhã não sentir nada fui ao banheiro não tinha umas gota de sangue me desesperei, comecei a procurar clínicas, pessoas que realizassem aborto mais sem sucesso após passar uma semana de procura meu namorado conseguiu mais 08 comprimidos [...] (Mulher 18).
Neste caso, relatado pela Mulher 18, após várias tentativas infrutíferas com Cytotec comprados de fornecedores que ela julga golpistas, ela procurou uma pessoa que fez a aplicação do medicamento “no colo do útero”. Novamente sem sucesso, o aborto somente foi finalizado após a 12ª semana gestacional com a realização de um procedimento invasivo com agulhas.
Esta história apresenta um itinerário particularmente angustiante, relatado em um texto que parece ter sido “despejado” sobre o teclado, dada a sua característica corrida, com pouco uso de pontuação, para descrever um percurso que a mulher chama de “longa saga”. O relato se enquadra entre aqueles que Heilborn et al.1616. Heilborn ML, Cabral CS, Brandão ER, Faro L, Cordeiro F, Azize RL. Itinerários abortivos em contextos de clandestinidade na cidade do Rio de Janeiro – Brasil. Cien Saude Colet 2012; 17(7):1699-1708. chamaram de “narrativas de contornos dramáticos”, que muitas vezes envolvem decisões de interrupção da gravidez mesmo em estágios avançados de gestação, associadas a iniquidades sociais da sociedade brasileira1616. Heilborn ML, Cabral CS, Brandão ER, Faro L, Cordeiro F, Azize RL. Itinerários abortivos em contextos de clandestinidade na cidade do Rio de Janeiro – Brasil. Cien Saude Colet 2012; 17(7):1699-1708..
O acesso aos fornecedores de Cytotec se dá de várias formas nos relatos: os contatos são feitos pela internet ou por telefone; a indicação é feita por amigas, amigos, parentes, vizinhos, farmacêuticos; e a entrega é realizada pelo correio ou em local combinado. Em um caso diverso, a Mulher 7 buscou o remédio na residência do vendedor: Fui dentro da casa do cara. Casa normal, arrumadinha, biscoitinhos de goiabada na mesa. Quase pedi um. O remédio estava na caixa de remédios da família, junto com dipirona, estomazil, etc.
Mesmo quando o remédio surtia o efeito esperado, as narrativas expressam desconfianças, como no caso da Mulher 16, que conta: Fiquei satisfeita, pois o tempo todo eu tive medo de que os comprimidos fossem falsos. Estes riscos são a outra face da consolidação do uso do Cytotec no mercado clandestino do aborto, que “reduziu as complicações por aborto inseguro, por um lado, mas, por outro, mantém as mulheres reféns entre o risco de falsificação do produto e o receio de denúncia se procurarem o auxílio médico, perpetuando histórias de medo e tortura silenciosas que parecem não ter fim”22. Diniz D, Madeiro A. Cytotec e aborto: a polícia, os vendedores e as mulheres. Cien Saude Colet 2012; 17(7):1795-1804..
O receio de procurar auxílio médico é elaborado em algumas narrativas, como na história da Mulher 5, que, sem recursos para adquirir o medicamento abortivo, tenta provocar o aborto com um antidepressivo da sua mãe. Já a Mulher 10 descreve que, ao realizar um exame para confirmar a efetividade do aborto realizado e ser questionada pelo médico a respeito dos motivos do exame, ela “gelou” e evitou anunciar a realização de um aborto induzido: respondi que estava grávida, tive um sangramento e minha médica mandou que eu fizesse uma ultra. A Mulher 16 a acompanha: Meu maior medo foi o de precisar de atendimento médico decorrente de alguma hemorragia e não poder ser sincera com o médico… medo de ser mal atendida no hospital caso precisasse de cuidados médicos.
Estudos demonstram o componente psicológico do estigma ao aborto, em que as reações negativas identificadas, percebidas ou até presumidas a respeito do julgamento dos outros podem influenciar as decisões quanto a revelar ou ocultar a prática do aborto e até atrasar ou evitar cuidados de saúde2727. Adesse L, Jannotti CB, Silva KS, Fonseca VM. Aborto e estigma: uma análise da produção científica sobre a temática. Cien Saude Colet 2016; 21(12):3819-3832.. E pesquisas realizadas em hospitais públicos do Piauí e de Salvador identificaram práticas de maus tratos e julgamentos morais2828. Madeiro AP, Rufino AC. Maus-tratos e discriminação na assistência ao aborto provocado: a percepção das mulheres em Teresina, Piauí, Brasil. Cien Saude Colet 2017; 22(8):2771-2780., hostilidades2929. Mccallum C, Menezes G, Reis AP. O dilema de uma prática: experiências de aborto em uma maternidade pública de Salvador, Bahia. Hist Cienc Saude Manguinhos 2016; 23(1):37-56. e “não cuidado”3030. Carneiro MF, Iriart JAB, Menezes GMS. “Largada sozinha, mas tudo bem”: paradoxos da experiência de mulheres na hospitalização por abortamento provocado em Salvador, Bahia, Brasil. Interface (Botucatu) 2013; 17(45):405-418. por parte dos profissionais de saúde em relação a pacientes em situação de abortamento, indicando que o receio das mulheres pode se justificar em algumas situações.
Ainda assim, hospitais e consultórios médicos são frequentemente incluídos nos itinerários, seja pela necessidade de confirmação da gestação ou de seu fim por meio de exames, seja para conseguir atendimento em caso de complicações.
Passou-se uma semana e o sangramento não parava, sentia muitas dores, aí minha mãe me levou no medico, chegando no médico precisava de uma transvaginal, foi 3 dias nessa luta, de hospital em hospital, até que eu consegui uma vaga [...] fiz a curetagem, fiquei internada, fui para casa (Mulher 4, alterações da autora)
Não à toa, os números elevados de internação pós-aborto reforçam a tese que afirma que o aborto inseguro no Brasil é um problema de saúde pública33. Diniz D, Medeiros M. Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna. Cien Saude Colet 2010; 15(Sup.1):959-966.. Estes altos níveis estão associados à entrada do Cytotec no mercado clandestino do aborto no Brasil, que conformou uma mudança na epidemiologia do aborto nos anos 1990, resultando na redução da mortalidade materna e no referido aumento do número de internações hospitalares para a finalização do aborto44. Diniz D, Medeiros M. Itinerários e métodos do aborto ilegal em cinco capitais brasileiras. Cien Saude Colet 2012; 17(7):1671-1681..
Ainda que o medicamento seja amplamente utilizado, algumas mulheres ainda realizam o aborto em clínicas privadas clandestinas. As quatro histórias analisadas que envolvem procedimento realizado em clínica revelam que o método permanece disponível e que, nos casos relatados, exigiu um maior investimento financeiro e envolveu estratégias frente ao seu exercício clandestino, tanto por parte das mulheres como dos médicos.
[...] fiz uma busca na ficha do medico através do seu CRM e para minha alegria, não havia nenhuma denuncia ou algo que o condenasse negativamente. Ainda assim, ele tinha seus cuidados e não expunha tal atitude a qualquer pessoa, se por acaso eu aceitasse realizar o procedimento, deveria ligar para um numero de celular secreto dele, o qual ele somente atenderia do telefone que eu o passei (Mulher 11).
São raras as pesquisas que exploram as experiências em clínicas privadas de aborto no Brasil. O estudo de Silveira et al., realizado no Nordeste brasileiro, problematiza a noção de homogeneidade dessas experiências, mostrando que a realização de um aborto em uma clínica privada não é garantia de um atendimento seguro3131. Silveira P, McCallum C, Menezes G. Experiências de abortos provocados em clínicas privadas no Nordeste brasileiro. Cad Saude Publica 2016; 32(2):e00004815.. No caso das narrativas da plataforma, o medo como consequência da ilegalidade é uma característica comum aos mais diversos percursos, que une as situações mais vulneráveis (em relação ao acesso a recursos) àquelas mais economicamente confortáveis, associadas à utilização de clínicas. A Mulher 12, por exemplo, ainda que tenha realizado um procedimento sem intercorrências em uma clínica, relata: O fato de ser ilegal faz com que o processo seja desesperador, pois quem ‘negocia’ com você sabe que você não tem escolha. Tive muito medo de morrer. Tive medo de ser presa. Mas nem isso me impediu de fazer.
Como é possível apreender a partir do Quadro 1, o itinerário das quatro mulheres que realizaram seu aborto em clínicas foi de fato menos mesclado com outras estratégias. De forma similar, Heilborn et al.1616. Heilborn ML, Cabral CS, Brandão ER, Faro L, Cordeiro F, Azize RL. Itinerários abortivos em contextos de clandestinidade na cidade do Rio de Janeiro – Brasil. Cien Saude Colet 2012; 17(7):1699-1708. encontraram, entre jovens de camadas médias entrevistadas no Rio de Janeiro, itinerários mais lineares, ágeis e seguros do que aqueles das mulheres com menos recursos financeiros disponíveis. Estas desigualdades “se expressam em itinerários de maior ou menor sinuosidade, complexidade e duração de acordo com as condições materiais de existência e recursos sociais de que dispõem os sujeitos”1616. Heilborn ML, Cabral CS, Brandão ER, Faro L, Cordeiro F, Azize RL. Itinerários abortivos em contextos de clandestinidade na cidade do Rio de Janeiro – Brasil. Cien Saude Colet 2012; 17(7):1699-1708..
Outro ponto a se observar é a utilização de chás para efeitos abortivos, mesclados a outras estratégias. Segundo a PNA, o uso de chás, líquidos e ervas integra a cultura feminina reprodutiva e o momento em que falham em “fazer descer a menstruação” marca o início da medicalização do diagnóstico da gravidez44. Diniz D, Medeiros M. Itinerários e métodos do aborto ilegal em cinco capitais brasileiras. Cien Saude Colet 2012; 17(7):1671-1681..
A diversidade de saberes, recursos e pessoas mobilizados pelas mulheres em seus itinerários abortivos chama a atenção para a interação entre múltiplos atores frente às lacunas de políticas públicas que poderiam minimizar as iniquidades sociais expressas nos distintos percursos. O que torna a problemática do aborto um exemplo potente para refletir sobre a abordagem da governança em saúde, pensada como ação coletiva que organiza as dinâmicas de atores e normas sociais, formais e informais1919. Hufty M, Báscolo E, Bazzani R. Gobernanza en salud: un aporte conceptual y analítico para la investigación. Cad Saude Publica 2006; 22(Sup):S35-S45.. Neste caso, a ação coletiva não só transborda as estruturas públicas e estatais, como precisa prescindir delas. Ao ignorar as demandas de proteção à saúde e à vida das mulheres em situação de abortamento e em um contexto em que as iniquidades sociais produzem efeitos extremos sobre a experiência com o aborto provocado, ora o Estado promove lacunas na assistência e na promoção de saúde e autonomia destas mulheres, ora está presente como elemento crítico, quando, frente a criminalização e a estigmatização, os serviços de saúde conformam-se em espaços de risco, temidos e evitados pelas mulheres. O aborto induzido, realizado em condições seguras e controláveis em muitos países66. Organização Mundial de Saúde (OMS). Abortamento Seguro: Orientação Técnica e de Políticas para Sistemas de Saúde. 2ª ed. Genebra: OMS; 2013., é tornado um procedimento inseguro neste contexto. Podemos inferir, assim como Biroli3232. Biroli F. Aborto, justiça e autonomia. In: Biroli F, Miguel LF, organizadores. Aborto e democracia. São Paulo: Alameda; 2016. p. 17-46, que a criminalização da prática do aborto brutaliza a sua realização.
A internet nos percursos das narrativas
A análise do itinerário das narrativas para além dos métodos abortivos utilizados, considerando as estratégias adotadas de forma mais ampla, revela uma ferramenta de informação, negociação e até aquisição de medicamento abortivo bastante comum entre as diversas experiências: a própria internet. Em geral, seu uso é pouco explorado como uma das estratégias das mulheres nos estudos qualitativos que investigam os itinerários da clandestinidade do aborto no Brasil. Contudo, e de forma não diferente do que era esperado frente ao presente objeto, a internet é uma ferramenta bastante destacada em dez das 18 narrativas.
Nesse tempo li muito o Women on web e outros sites a respeito da combinação de misoprostol e mipheterona (Mulher 8).
Não sabia o que fazer, peguei o computador e comecei a procurar métodos abortivos, encontrei dois sites que me tranquilizaram e ajudaram muito, esse e um outro. E, dessa forma, descobri o cytotec, mas a questão era: onde arrumar isso? [...] Continuei minhas buscas na internet e descobri um site com várias receitas de chás abortivos, anotei tudo que podia, saí de casa correndo e fui à procura das diversas ervas que ali estavam anotadas (Mulher 10).
São relatos que indicam que um olhar para a internet pode ajudar a responder em parte a questão pontuada no artigo da etapa qualitativa da PNA: “Como as mulheres adquirem esse medicamento, como o utilizam ou mesmo quem as auxilia no aborto são perguntas ainda pouco exploradas no cenário nacional, limitadas a estudos locais ou com número restrito de participantes”44. Diniz D, Medeiros M. Itinerários e métodos do aborto ilegal em cinco capitais brasileiras. Cien Saude Colet 2012; 17(7):1671-1681.. Porto e Sousa3333. Porto RM, Sousa CHD. Percorrendo caminhos da angústia: itinerários abortivos em uma capital nordestina. Rev Estud Fem 2017; 25(2):593-616. também encontraram, nos itinerários abortivos estudados, o uso da internet seja para obtenção de condutas abortivas ou para orientações sobre o uso do misoprostol3333. Porto RM, Sousa CHD. Percorrendo caminhos da angústia: itinerários abortivos em uma capital nordestina. Rev Estud Fem 2017; 25(2):593-616..
E, assim como em todas as etapas do percurso até aqui analisadas, também a internet é um espaço que oferece apoio, por um lado, e riscos, por outro, como bem compreendeu a Mulher 11 em sua experiência: Em árduas pesquisas na internet em conjunto com meu namorado, tivemos acesso a milhões de informações, das mais agradáveis, confiáveis ou não.
Após a realização do aborto, a internet retorna ao percurso de algumas mulheres como espaço para compartilhar a sua experiência, a partir da percepção declarada de que a leitura de outros depoimentos as ajudou em algum momento de sua própria trajetória, conformando, assim, um ciclo. A maior parte dos textos apresenta uma intenção clara de estabelecer uma comunicação com outras mulheres, dirigindo-se a elas:
[...] deixo aqui meu depoimento a tantas e tantas outras marias que passaram e passarão por isso uma vez ou outra na vida (Mulher 1).
Estou aqui, pois assim como ler o que escreveram ajudou no meu processo, espero que meu depoimento também ajude a outras pessoas. (Mulher 10).
A Mulher 4 destaca o fato de ter se sentido livre para falar sobre sua experiência no espaço: Muitas criticam o ato do aborto. Não sou muito de comentar sobre esse fato. Aqui me sentir livre para fazer isso. Liberdade que pode estar relacionada ao encontro de um espaço que legitima uma experiência que, fora dele, é estigmatizada. Possibilidade investigada, por exemplo, na comunicação online de grupos praticantes de BDSM (acrônimo para a expressão “Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo”)88. Zilli BD. A Perversão domesticada: estudo do discurso de legitimação do BDSM na internet e seu diálogo com a psiquiatria [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2007.,1111. Silva VLM. Sob a égide do chicote: uma leitura acerca do amor na contemporaneidade [tese]. Rio de Janeiro: PUC-Rio; 2015..
Em se tratando das representações sobre o aborto e a vivência de mulheres, Santos et al.3434. Santos VC, Anjos KF, Souzas R, Eugênio BG. Criminalização do aborto no Brasil e implicações à saúde pública. Rev. Bioét 2013; 21(3):494-508., por meio de uma revisão crítica da literatura brasileira, enfatizam o caráter religioso e a moralidade que perpassam as percepções sobre o assunto3434. Santos VC, Anjos KF, Souzas R, Eugênio BG. Criminalização do aborto no Brasil e implicações à saúde pública. Rev. Bioét 2013; 21(3):494-508.. Elementos que encontramos relativizados ou negociados na plataforma: Não tem certo ou errado. É muito importante se sentir amada e acolhida (Mulher 8); de uma coisa eu tenho certeza: Deus não nos abandona. Ele ainda nos ama, e sempre nos amará, independente de quem somos, ou do que fazemos (Mulher 10).
O acolhimento e a liberdade encontrados em redes e comunidades online pode colaborar com a desconstrução do imaginário do aborto como um procedimento complexo3535. Ferrari W. Gênero e aborto induzido: um estudo com adolescentes de uma favela do Rio de Janeiro [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2017.. É o que aponta Ferrari, ao entrevistar adolescentes de uma favela do Rio de Janeiro e perceber que “alguns sites viabilizam um contato, que mesmo distante, parece ser muito íntimo e estar muito próximo, em que as adolescentes perceberam ‘de perto’ que outras mulheres já haviam passado ou estão passando pela mesma situação”3535. Ferrari W. Gênero e aborto induzido: um estudo com adolescentes de uma favela do Rio de Janeiro [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2017..
A comunicação, na internet, entre mulheres que abortaram e as que desejam abortar reforça a percepção da existência de uma cultura do aborto compartilhada entre as mulheres no Brasil, que não pode ser descrita como secreta, pois “as semelhanças encontradas entre mulheres tão diferentes mostra que é uma cultura feminina clandestina à restrição legal, mas transmitida entre diferentes gerações”44. Diniz D, Medeiros M. Itinerários e métodos do aborto ilegal em cinco capitais brasileiras. Cien Saude Colet 2012; 17(7):1671-1681.. Cabe sugerir que a “cultura do aborto compartilhada” apontada por pesquisas anteriores, mais do que encontrar na internet uma ferramenta de disseminação, tem suas características amplificadas por sua articulação com a cibercultura que, para Lévy, é a expressão da aspiração de um laço social, centrada em torno de um interesse em comum e sobre processos abertos de colaboração2424. Lévy P. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34; 1999..
Assim, a cultura compartilhada do aborto, esta “rapidez e a facilidade com que uma mulher aciona uma ampla rede de cuidados e dispositivos para abortar”44. Diniz D, Medeiros M. Itinerários e métodos do aborto ilegal em cinco capitais brasileiras. Cien Saude Colet 2012; 17(7):1671-1681., envolve a articulação de outras mulheres, parceiros, familiares, ONGs e grupos feministas de apoio seja na internet ou fora dela, profissionais de saúde que atendem clandestinamente, fornecedores de medicamento. Ou seja, articula redes sociais primárias (relações de familiaridade, parentesco, vizinhança, amizade) e secundárias (grupos, organizações e movimentos que defendem interesses comuns e/ou partilham conhecimentos para determinados fins)2020. Marteleto RM. Redes Sociais, mediação e apropriação de informações: situando campos, objetos e conceitos na pesquisa em Ciência da Informação. Tendências da Pesquisa Brasileira em Ciência da Informação 2010; 3(1):27-46.,3636. Stotz EN. Redes Sociais e Saúde. In: Marteleto RM, Stotz EN, organizadores. Informação, saúde e redes sociais: diálogos de conhecimentos nas comunidades da Maré. Rio de Janeiro, Belo Horizonte: Editora Fiocruz, Editora UFMG; 2009. p. 27-42.. Espaços de interação online como a plataforma do grupo Women on Web, propiciados pelas novas tecnologias de informação e comunicação (TIC), integram as redes secundárias, ou ampliadas2020. Marteleto RM. Redes Sociais, mediação e apropriação de informações: situando campos, objetos e conceitos na pesquisa em Ciência da Informação. Tendências da Pesquisa Brasileira em Ciência da Informação 2010; 3(1):27-46.,3636. Stotz EN. Redes Sociais e Saúde. In: Marteleto RM, Stotz EN, organizadores. Informação, saúde e redes sociais: diálogos de conhecimentos nas comunidades da Maré. Rio de Janeiro, Belo Horizonte: Editora Fiocruz, Editora UFMG; 2009. p. 27-42.. Não inauguram, em si, o compartilhamento de informações e experiências, nem a articulação de recursos e dispositivos para a realização do aborto, mas fornecem uma ampliação da capacidade de solidarização e mobilização de recursos2121. Castells M. A Sociedade em Rede: do Conhecimento à Política. In: Castells M, Cardoso G, organizadores. A Sociedade em Rede - Do Conhecimento à Acção Política. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2006, p. 17-30., favorecendo as redes sociais ao aumentarem “o espectro da cultura e do mundo vivido territorialmente pelos sujeitos sociais”2020. Marteleto RM. Redes Sociais, mediação e apropriação de informações: situando campos, objetos e conceitos na pesquisa em Ciência da Informação. Tendências da Pesquisa Brasileira em Ciência da Informação 2010; 3(1):27-46..
Contudo, se as redes sociais são, por um lado, elementos que possibilitam explorar a riqueza das experiências de ação e de solidariedade3636. Stotz EN. Redes Sociais e Saúde. In: Marteleto RM, Stotz EN, organizadores. Informação, saúde e redes sociais: diálogos de conhecimentos nas comunidades da Maré. Rio de Janeiro, Belo Horizonte: Editora Fiocruz, Editora UFMG; 2009. p. 27-42., por outro, são também o resultado de um processo social mais amplo, atravessado por relações de poder e, portanto, dizem respeito “às possibilidades de ação abertas aos indivíduos pela estrutura”3636. Stotz EN. Redes Sociais e Saúde. In: Marteleto RM, Stotz EN, organizadores. Informação, saúde e redes sociais: diálogos de conhecimentos nas comunidades da Maré. Rio de Janeiro, Belo Horizonte: Editora Fiocruz, Editora UFMG; 2009. p. 27-42.. Possibilidades que, no caso em estudo, lembrando a deficitária relação das políticas públicas junto às estratégias que as mulheres desenvolvem para realizar um aborto induzido, existem em tensão com um contexto de criminalização, estigmatização e violências.
Dialeticamente, a apropriação crítica do conceito de redes sociais, como realizada por Stotz3636. Stotz EN. Redes Sociais e Saúde. In: Marteleto RM, Stotz EN, organizadores. Informação, saúde e redes sociais: diálogos de conhecimentos nas comunidades da Maré. Rio de Janeiro, Belo Horizonte: Editora Fiocruz, Editora UFMG; 2009. p. 27-42., permite considerar o potencial das redes para mudanças sociais, desde que não se transfiram aos indivíduos a responsabilização pelos limites colocados estruturalmente e que sua atuação represente uma forma de articulação de segmentos da sociedade na garantia do direito à saúde. Quando integrado à perspectiva da governança em saúde, este desafio reivindica uma abordagem que faça dialogar princípios éticos e sociais para a implementação de políticas públicas, compreendendo “valores, motivações, incentivos e as práticas dos atores sociais que participam nos processos de tomada de decisões”1818. Flores W. Los principios éticos y los enfoques asociados a la investigación de la gobernanza en los sistemas de salud: implicaciones conceptuales y metodológicas. Rev Salud Pública 2010; 12(Supl. 1):28-38. e corroborando a importância do envolvimento de pessoas comumente excluídas dos processos decisórios em saúde1818. Flores W. Los principios éticos y los enfoques asociados a la investigación de la gobernanza en los sistemas de salud: implicaciones conceptuales y metodológicas. Rev Salud Pública 2010; 12(Supl. 1):28-38..
Considerações Finais
O perfil das autoras das narrativas analisadas é marcadamente jovem e, entre aquelas em que foi possível depreender questões financeiras e ocupacionais como um fator importante na narrativa, a maioria se apresenta em situação de vulnerabilidade, o que tem impacto sobre os métodos que utilizam no seu itinerário. Uma limitação importante da discussão realizada é a ausência da categoria “raça/etnia”, cuja informação não é solicitada no formulário da comunidade estudada e que as narrativas não desenvolvem espontaneamente. Consideramos esta uma limitação porque o debate sobre aborto no Brasil encontra na raça uma questão central.
Entre os itinerários informados pelas narrativas, em consonância ao que indicam os principais estudos da área, encontramos uma utilização mesclada de métodos, com prevalência do uso de Cytotec. Outro elemento é a constituição do hospital ao mesmo tempo como um espaço percebido como de risco pelas mulheres e um serviço que é acionado por uma demanda para o qual não está planejado.
A heterogeneidade dos recursos que as mulheres acessam para a realização do aborto – das clínicas clandestinas com profissionais de saúde que cobram preços elevados ao desespero de introduzir objetos em seu próprio corpo – reforçam as iniquidades sociais como determinantes para as condições nas quais o aborto é realizado, ainda que a sensação de medo corolária à ilegalidade seja uma característica comum aos mais diversos percursos.
Discutimos elementos que vêm sendo apontados por estudos qualitativos acerca do aborto no Brasil, porém em um campo novo. Isto possibilitou adicionar aspectos como a utilização da internet como meio de informação e negociação no decorrer do itinerário do aborto, bem como um espaço de apoio mútuo, desabafo e até legitimação de uma experiência socialmente estigmatizada. A possibilidade de interação oferecida pela plataforma amplifica a cultura compartilhada do aborto, um fenômeno que articula redes sociais primárias e secundárias das mulheres e é favorecido pelas tecnologias de informação e comunicação.
Por fim, as narrativas constituídas na interlocução das mulheres na comunidade online do grupo Women on Web evidenciam a mobilização de variados recursos e a interação entre múltiplos atores frente às lacunas de políticas públicas que poderiam minimizar as iniquidades sociais expressas nos distintos percursos, representando um desafio para a perspectiva da governança em saúde.
A discussão apresentada aqui reforça a urgência da apropriação, pelo campo da Saúde Pública, do debate sobre direito ao aborto e, especialmente, do desenvolvimento de uma outra interlocução do aparelho estatal com movimentos sociais para a promoção do efetivo direito das mulheres a sua própria história, garantido o acesso à saúde humanizado e livre de estigmas.
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Out 2018
Histórico
- Recebido
30 Jan 2018 - Revisado
06 Mar 2018 - Aceito
24 Maio 2018