O manuscrito “Saúde Coletiva e Educação Física: distanciamentos e interfaces”11. Nogueira JAD, Bosi MLM. Saúde Coletiva e Educação Física: distanciamentos e interfaces. Cien Saude Colet 2017; 22(6):1913-1922. adota linguagem prudente, ancorada em afirmações que esclarecem a provisoriedade do texto e o risco de simplificações, dando o tom de diálogo e convidando à reflexão. Motivado por esse “convite” almejo nessa comunicação traçar apontamentos complementares que julgo relevantes.
Em relação à história da Educação Física (EF), embora as autoras afirmem que esse campo foi constituído na primeira metade do século XX, faz-se pertinente ressaltar que sua origem ocorreu no final do século XIX quando a ginástica foi introduzida nas escolas com o argumento “Mens sana in corpore sano”22. Castelani Filho L. Educação Física no Brasil: a história que não se conta. Campinas: Papirus; 1988.. Mencionar esse fato reforça o argumento trazido pelas autoras de que a EF, desde sua origem, afiliou-se ao discurso higienista e eugenista na educação dos corpos, bem como a compreensão do porquê a atividade física ainda ser pensada numa relação causal com a saúde.
Sobre esse ponto, o texto explora de forma assertiva de como a contemporaneidade tem se apropriado desse discurso em seus pronunciamentos. Entretanto, destaco um desdobramento não abordado pelas autoras: a criação de “identidades marginais”, usando um termo de Fraga33. Fraga AB. Promoção da vida ativa: nova ordem físico-sanitária na educação dos corpos contemporâneos. In: Bagrichevsky M, Palma A, Estevão A, Da Ros M. A saúde em debate na educação física. Blumenau: Nova Letra; 2006. vol. 2. p. 105-118.. Assim, ser obeso e/ou sedentário significa, respectivamente, assumir as máximas: “[...] ‘não faz exercício porque é preguiçoso’; ‘é gordo porque é relaxado’ [...]”33. Fraga AB. Promoção da vida ativa: nova ordem físico-sanitária na educação dos corpos contemporâneos. In: Bagrichevsky M, Palma A, Estevão A, Da Ros M. A saúde em debate na educação física. Blumenau: Nova Letra; 2006. vol. 2. p. 105-118.. Ou seja, a causalidade atinge o plano da culpabilização individual, sem considerar outros condicionantes de saúde. Tal norteamento é fruto da aposta contemporânea no governo dos corpos: a informação33. Fraga AB. Promoção da vida ativa: nova ordem físico-sanitária na educação dos corpos contemporâneos. In: Bagrichevsky M, Palma A, Estevão A, Da Ros M. A saúde em debate na educação física. Blumenau: Nova Letra; 2006. vol. 2. p. 105-118.. Nesse horizonte, o investimento se dá no plano das recomendações ao invés de se investir, por exemplo, numa cultura da oferta das práticas corporais.
Tal crítica tem origem na incorporação dos referenciais teórico-metodológicos das ciências humanas no campo da EF a partir da década de 1980, bem descritas no manuscrito. Embasadas em autores clássicos da área, as autoras argumentam que a produção acadêmica à luz desse referencial permitiu o questionamento do predomínio biomédico. Porém, em nenhum momento abordam o papel da incorporação do conceito de cultura nesse campo, debatido, por exemplo, em Daolio44. Daolio J. Educação Física e o conceito de cultura. Campinas: Autores Associados; 2005., merecedor ao menos de uma menção. Isso, porque é a cultura que une os conceitos de cultura corporal de movimento e práticas corporais abordado no texto.
No que se refere à formação profissional, o manuscrito não teve oportunidade de discorrer, pois foi submetido em novembro de 2015, sobre a proposta de extinção da modalidade de Bacharelado prevista por uma Minuta debatida em Audiência Pública no Conselho Nacional de Educação em dezembro de 2015. A proposta consistiu em unificar as formações de licenciatura e bacharelado em EF sob a égide de uma licenciatura ampliada. Até o momento, a discussão está suspensa e não houve nenhuma movimentação no sentido de encaminhá-la. Entretanto, registra-se que, embora a interface entre a EF e a Saúde Coletiva (SC) seja revelador de alguns distanciamentos, bem apontado pelas autoras, é na formação do bacharel que essa discussão tem se adensado. Extinguir o bacharelado seria um duro golpe nas pretensões da interface EF e SC na formação profissional.
Em síntese, trata-se de um manuscrito pertinente às duas áreas (EF e SC), mas que pela amplitude do debate pretendido permitiu a existência de lacunas, algumas das quais busquei comentar.
Referências
- 1Nogueira JAD, Bosi MLM. Saúde Coletiva e Educação Física: distanciamentos e interfaces. Cien Saude Colet 2017; 22(6):1913-1922.
- 2Castelani Filho L. Educação Física no Brasil: a história que não se conta Campinas: Papirus; 1988.
- 3Fraga AB. Promoção da vida ativa: nova ordem físico-sanitária na educação dos corpos contemporâneos. In: Bagrichevsky M, Palma A, Estevão A, Da Ros M. A saúde em debate na educação física Blumenau: Nova Letra; 2006. vol. 2. p. 105-118.
- 4Daolio J. Educação Física e o conceito de cultura Campinas: Autores Associados; 2005.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Out 2018