Ensaios sobre Michel Foucault no Brasil. Presença, efeitos, ressonâncias

Solange L’Abbate Sobre o autor
2016

A relevância das contribuições de Michel Foucault nos campos da medicina social, da loucura, da psiquiatria e dos manicômios pode ser comprovada pela frequente referência a este autor na produção acadêmica e na de divulgação mais ampla. As discussões realizadas pelo filosofo animam o campo de Saúde Coletiva e justificam a resenha deste livro de Heliana Conde nesta revista.

Esse livro11. Rodrigues HBC. Ensaios sobre Michel Foucault no Brasil. Presença, efeitos, ressonâncias. Rio de Janeiro: Lamparina; 2016. constitui um estudo bastante completo sobre as cinco visitas de Foucault ao Brasil, ocorridas em 1965, 1973, 1975 e 1976, respectivamente em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador e Belém, durante as quais estabeleceu um vivo diálogo com intelectuais brasileiros que militavam na área da Saúde e que reverbera ainda hoje.

Nele, Heliana Conde reuniu nove artigos referentes a essas visitas, publicados por ela em diferentes revistas de 2011 a 2015, resgatando, sobretudo, os efeitos da presença viva desse autor tão importante academicamente quanto também polêmico. Os efeitos da presença e das ideias de Foucault continuam a repercutir de modo vívido em nosso meio, tal como o ocorrido no contexto das manifestações sociais de 2013, os quais são relatados pela autora no último texto. Pode-se agregar ainda a lembrança da reação produzida nos meios acadêmicos, em abril de 2015, quando importante universidade de São Paulo recusou-se a receber a Cátedra de Foucault, prenunciando os tempos retrógrados que vivemos.

No texto que abre o livro, “Michel Foucault no Brasil: esboços de história do presente”, Heliana afirma que irá abordar, sobretudo, “o que Foucault falou” nos vários momentos. Para tanto, recorre à noção de “audiografia” de Philippe Artières, ao afirmar: “Michel Foucault não parou de se interrogar sobre o poder da palavra ao longo de seus trabalhos: na história dos discursos que propõe, sublinha o quanto, nas sociedades ocidentais, o exercício da palavra é político” (p. 19). Até porque a própria Saúde Coletiva é atravessada pelos discursos que foram formatando o saber e as práticas em saúde.

Em “Um (bom?) departamento francês de ultramar: Michel Foucault na USP, 1965”, Heliana ficciona a história da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, local da primeira visita de Foucault ao Brasil. A FFCL, tida como “alma, coração e medula” da USP, foi fundada em 1934, com o objetivo de formar as novas classes dirigentes paulistanas. Da sua criação, participaram Lévi-Strauss e Roger Bastide, para “nos retirar do atraso colonial e de seu disparatado autodidatismo, no qual estaríamos estagnados”.

A visita de Foucault à FFCL ocorreu cerca de um ano após o início da repressão policial-militar e prisão de membros da UNE e dos professores Florestan Fernandes e Cruz Costa, coincidindo com a decretação, por Castelo Branco, do Ato Institucional Nº 2, que estabeleceu o fim dos partidos políticos e das eleições diretas para presidente da República. Tal contexto provocou “interrupções” e “relativos malogros” nas conferências do filósofo, mas mesmo assim, e talvez por isso mesmo, foi a base para As palavras e as coisas, publicado em 1966 na França.

O quarto texto “Cronos, kairós, aión: temporalidades de uma visita de Michel Foucault a Belo Horizonte”, em outubro de 1973, revela, em certa medida, o modo como a classe dominante da época via um intelectual estrangeiro. Ao ser tratado como “uma estrela para ser mostrada numa vitrine” num coquetel e jantar oferecidos por um casal da alta sociedade de BH, Foucault reage, e, acompanhado do seu namorado canadense, que ele recebeu afetuosamente, escancarando sua homossexualidade, deixa o local. Alguns jornais, ao comentarem o fato, o viram como uma enorme falta de educação, mas logo depois, publicaram artigos e resenhas de “acadêmicos”, elogiando a obra do filósofo. Na capital mineira, Foucault falou a psiquiatras e psicanalistas, num curso abordando “a relação de poder sobre a doença mental e a institucionalização da loucura (...) e o que ele relatava que acontecia nos hospitais na França em 1870, 1890, estava acontecendo aqui do mesmo jeito”.

A seguir, “Uma medicina sempre social? Efeitos foucaultianos no Rio de Janeiro, 1974” aborda as seis conferências realizadas por Foucault no IMS, da Universidade do Estado da Guanabara/UEG, atual UERJ, que abalaram a unanimidade da dicotomia, hegemônica no campo da esquerda brasileira, “entre uma medicina individual-reacionária-capitalista e uma medicina social-libertária-socialista” (p.77). Foucault problematiza essa dicotomia afirmando que a medicina é uma só e é, antes de mais nada, social. Duas dessas conferências “O nascimento da Medicina Social” e “O nascimento do hospital” foram posteriormente publicadas por Roberto Machado no livro Microfísica do Poder (1979).

No texto “Michel Foucault na imprensa brasileira: “cães de guarda”, “nanicos” e jornalismo radical”, a partir da análise de Foucault das “práticas divisórias”, a autora aponta as contradições da imprensa brasileira em 1975/76 entre os jornais “cães de guarda” da ditadura civil-militar e a imprensa “alternativa” ou “nanica” dos que se opunham ao regime. Heliana demonstra as discrepâncias entre os dois tipos de jornais ao tratarem as visitas do filósofo.

Em 25 de outubro de 1975, Vladimir Herzog é assassinado e em 31 do mesmo mês, a cerimônia ecumênica, realizada pelo então arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns, leva uma multidão, sob forte vigilância policial, à Igreja e à Praça da Sé em São Paulo. Alguns anos depois, Foucault, que estivera presente à cerimônia, descreveu o acontecimento e a partir do que chamou de “contraconduta”, propôs em 1978, o curso Segurança, território e população.

Saindo do Brasil, em novembro de 1975, Foucault foi para Nova York, onde ao participar da mesa “Medicina, violência e psiquiatria”, afirmou que “uma nova técnica de tortura foi introduzida com a entrada de um personagem - o médico, praticamente presente em todas as torturas importantes” controlando o estado de resistência física de quem estava sendo torturado. A denúncia do papel do médico na repressão social feita pelo filósofo produzirá reflexo, anos mais tarde, na abordagem da Comissão da Verdade que procurou responsabilizar esse profissional, embora sem sucesso.

“Um Foucault desconhecido? Viagem ao Norte-Nordeste em tempos (ainda) sombrios” em 1976, referida apenas pela imprensa alternativa, aborda as conferências de Foucault em Salvador, Recife e Belém. Após o assassinato de Herzog, Foucault passou a ser vigiado, o que revelam dois documentos de outubro e novembro de 1975, do SNI e do DEOPS de São Paulo, afirmando que o filósofo Michel Foucault tinha tendência “liberal” na França, não era comunista e estava “sendo usado por estudantes e professores [brasileiros] interessados em criar um impasse internacional” (p.119-20). Uma semana após a saída de Foucault de Belém, o SNI solicitou ao Prof. Benedito Nunes, da Universidade Federal do Pará/UFP, que havia organizado as conferências, a lista dos presentes o que foi negado pelo referido professor, com o apoio do reitor da UFP.

Uma importante ressonância da forte presença de Foucault no Brasil se manifestará anos depois, conforme Heliana Conde aborda em “Anarqueologizando Foucault”, no qual explora as relações de Foucault com o anarquismo a partir de uma investigação em torno de Verve, revista semestral do Nu-Sol da PUC/SP, lançada em 2002.

Foucault está presente em Verve com tal frequência, que seria impossível detalhar como isto ocorre, afirma Heliana. A autora divide as obras de Foucault abordadas em Verve em três grupos: do primeiro, constam Vigiar e punir e textos correlatos; do segundo, Em defesa da sociedade e produções semelhantes; e do terceiro, textos sobre o “governo de si” como História da sexualidade I e II. Nos vários textos é constante a distinção feita por Foucault entre utopia e heterotopia: “as utopias (não lugares) consolam... as heterotopias (lugares reais) inquietam”. A Saúde Coletiva é muito afetada por essa conceituação que ilumina a tensão entre os lugares reais e os lugares sonhados.

No ultimo texto, Heliana Conde revela sinais posteriores da influência de Foucault ao referir o episódio ocorrido no 8º Colóquio Internacional Michel Foucault e os Saberes do Homem (Rio de Janeiro, outubro, 2013). Durante o colóquio, Edson Passetti (do Nu-Sol) leu um manifesto sobre a violência do Estado contra estudantes que participaram de um ato em defesa da educação pública. Os participantes do colóquio, inicialmente relutantes, acabaram por assinar o manifesto de apoio. Neste momento alguns black blocs entraram no recinto. Para Heliana “foi um momento tenso, belo e analisador: tensão ligada à heterotopização do espaço-colóquio, geralmente asséptico: beleza da presença do rumor da batalha em um espaço-tempo dedicado a Michel Foucault; análise em ato propiciada pela atitude dos chamados black blocs, que ouviram calmamente não só a leitura do manifesto como as análises que versaram sobre o momento político então vivido”. Certamente Foucault tomaria tal presença anódina como um significativo sucesso de sua contribuição militante.

Estamos assim, diante de uma narrativa fascinante sobre um personagem fascinante. Obra de notável qualidade acadêmica, escrita com arte, humor e fina ironia. Ao final, nós, leitores, somos imensamente gratos à Heliana Conde por ter escrito este livro, indispensável a todos que se interessam pela obra de Michel Foucault.

Referências

  • 1
    Rodrigues HBC. Ensaios sobre Michel Foucault no Brasil Presença, efeitos, ressonâncias Rio de Janeiro: Lamparina; 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov 2018
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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