Doenças diarreicas e hospitalizações em menores de cinco anos no estado de Pernambuco, Brasil, nos anos de 1997 e 2006

Maria Josemere Oliveira Borba Vasconcelos Anete Rissin José Natal Figueiroa Pedro Israel Cabral de Lira Malaquias Batista FilhoSobre os autores

Resumo

O objetivo deste estudo foi avaliar as tendências temporais e geográficas das diarreias e suas implicações nas demandas de hospitalizações de crianças menores de cinco anos no Estado de Pernambuco, nos anos 1997 e 2006. Foram usados os bancos de dados de dois inquéritos de base populacional, com amostras probabilísticas de 2078 crianças, em 1997, e 1650 crianças, em 2006, avaliadas em 18 municípios de Pernambuco, incluindo a Região Metropolitana do Recife, Interior Urbano e Interior Rural. Considerou-se como prevalência a ocorrência de casos no dia ou nas duas semanas anteriores à entrevista e como internações o atendimento de casos com internação mínima de 24 horas, cobrindo o retrospecto de 12 meses. A prevalência das diarreias em Pernambuco teve um declínio estatisticamente não significante (19,8% para 18,1%; p = 0,192); contudo, na Região Metropolitana do Recife, foi observada uma redução estatisticamente significante (16,9% para 10,5%; p = 0,003). As internações aumentaram em mais de duas vezes (2,7% para 5,5%, no estado, e de 1,6% para 3,8%, na RMR), contrapondo-se, assim, às tendências nacionais. Portanto, as diarreias no Estado passaram a figurar como o principal componente das demandas de hospitalizações pediátricas no período analisado.

Diarreia; Prevalência; Hospitalização; Saúde da criança

Introdução

A história nosográfica da humanidade apresentou nos últimos 100 anos e, de forma mais peculiar, nas cinco ou seis décadas mais recentes, mudanças surpreendentes em relação aos modelos até então conhecidos de morbimortalidade11. Barreto ML, Teixeira MG, Bastos FI, Ximenes RAA, Barata RB, Rodrigues LC. Sucessos e fracassos no controle de doenças infecciosas no Brasil: o contexto social e ambiental, políticas, intervenções e necessidades de pesquisa. Lancet. London. p. 47-60, maio. 2011. [acessado 2014 Mar 3]. Disponível em: http://download.thelancet.com/flatcontentassets/pdfs/brazilpor2.pdf.
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. Numa configuração simplificada, delineou-se um rápido processo de transição epidemiológica caracterizado pela substituição de um modelo de dominação das doenças infecciosas pelo marcante predomínio das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), que foram responsáveis por 68% das causas de morte no mundo, no ano de 2012, e por 72,4%, em 2009, no Brasil22. World Health Organization (WHO). Global status report on noncommunicable diseases 2014. Geneva: WHO; 2014.,33. Schmidt ML, Duncan BB, Azevedo e Silva G, Menezes AM, Monteiro CA, Barreto SM et al. Chronic non-communicable disease in Brazil: burden and current challenges. Lancet 2011; 377(9781):1949-1961.. O declínio das doenças infecciosas e a emergência epidêmica das DCNT têm como substrato estrutural o crescimento da economia, as conquistas políticas e sociais do século XX, as mudanças demográficas (principalmente a migração rural/urbana e a rápida redução das taxas de fecundidade), os modernos e eficientes meios de comunicação, os novos valores e estilos de vida e o progresso científico e tecnológico, incluindo os instrumentos de prevenção e cura das doenças infecciosas e o controle parcial das doenças crônicas44. Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Situação mundial da Infância. Crianças em um mundo urbano. Nova Iorque: UNICEF; 2012.,55. Victora CG, Estela MLA, Leal M C, Monteiro C A, Barros F C, Szwarcwald CL. Saúde de mães e crianças no Brasil: progressos e desafios. Lancet. London. p. 32-46, maio. 2011. [acessado 2013 Mar 12]. Disponível em: http://download.thelancet.com/flatcontentassets/pdfs/brazilpor2.pdf
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. Na caracterização deste contexto genérico de grandes mudanças, algumas doenças infecciosas foram praticamente erradicadas, outras acham-se sob controle e algumas mais raras representam curso mais diferenciado, como as doenças emergentes e reemergentes11. Barreto ML, Teixeira MG, Bastos FI, Ximenes RAA, Barata RB, Rodrigues LC. Sucessos e fracassos no controle de doenças infecciosas no Brasil: o contexto social e ambiental, políticas, intervenções e necessidades de pesquisa. Lancet. London. p. 47-60, maio. 2011. [acessado 2014 Mar 3]. Disponível em: http://download.thelancet.com/flatcontentassets/pdfs/brazilpor2.pdf.
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. Já outras demarcam trajetórias de sistematização mais complicada, como no caso das diarreias, principalmente em crianças66. The United Nations Children’s Fund (UNICEF).Why children are still dying and what can be done. Geneva: UNICEF/WHO; 2009..

Compreendendo uma etiologia e uma ecologia variada e complexa, sua ocorrência mais comum se processa em contextos de reconhecida pobreza, baixa escolaridade, sob condições de higiene domiciliar e peridomiciliar precárias, acesso limitado aos serviços de saúde, situação alimentar e nutricional deficitária e outros fatores correlatos e sinérgicos77. Fewtrell L, Koufmann RB, Kay D, Haller L, Colford JR. Water, sanitation, and hygiene interventions to reduce diarrhea in less developed countries: a systematic review and meta-analysis. Lancet Infect Dis 2005; 5(1):42-52.

8. Mehal JM, Esposito DH, Holman RC, Tate JE, Callinan LS, Parashar UD. Risk factors for diarrhea – associated infant mortality the United States, 2005-2007. Pediatr Infect Dis J 2012; 31(7):717-721.

9. Bryce J, Boschi-Pinto C, Shibuya K, Black RE; WHO Child Health Epidemiology Reference Group. WHO estimates of the causes of death in children. Lancet 2005; 365(9465):1147-1154.

10. Paz MGA, Almeida MF, Gunther WMR. Prevalência de diarreia em crianças e condições de saneamento e moradia em áreas periurbanas de Guarulhos, SP. Rev Bras Epidemiol. 2012; 15(1):188-197.

11. Sinmegn M T, Asres A G, Shimeka T A. Determinants of childhood diarrhea among underfive children in Benishangul Gumuz Regional State, North West Ethiopia. BMC Pediatr 2014; 14:102.
-1212. Oliveira AF, Leite IC, Valente JG. Global burden of diarrheal disease attributable to the water supply and sanitation system in the State of Minas Gerais, Brazil: 2005; Cien Saude Colet 2015; 20(4):1027-1036. Neste contexto, as diarreias têm uma distribuição singular e em muitos aspectos surpreendentes, persistindo ainda como uma prioridade de políticas e programas de saúde, inclusive em países desenvolvidos88. Mehal JM, Esposito DH, Holman RC, Tate JE, Callinan LS, Parashar UD. Risk factors for diarrhea – associated infant mortality the United States, 2005-2007. Pediatr Infect Dis J 2012; 31(7):717-721.,99. Bryce J, Boschi-Pinto C, Shibuya K, Black RE; WHO Child Health Epidemiology Reference Group. WHO estimates of the causes of death in children. Lancet 2005; 365(9465):1147-1154.,1313. Kosek M, Bern C, Guerrant R. The global burden of diarroeal diasease, as estimated from studies published between 1992 and 2000. Bull World Health Organ 2003; 81(3):197-203.. Estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS) relatam que as diarreias ainda representam a segunda causa de morte em menores de cinco anos em escala mundial, produzindo cerca de 760.000 mortes por ano1414. .World Health Organization (WHO). Diarrhoeal disease. Fact sheet n.330. [cited 2014 Dic 3]. Available from: http://www.who.int/ mediacentre/factsheets/fs330/en/.
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Ao lado das ações de promoção da saúde, e de proteção específica a terapia de reidratação oral (TRO) representou como medida isolada, um avanço histórico na redução dos danos (mortes principalmente) das diarreias, estimando-se que sua massificação entre 1980 e 2008 representou um declínio de 61% a 75% na taxa de hospitalização por diarreia33. Schmidt ML, Duncan BB, Azevedo e Silva G, Menezes AM, Monteiro CA, Barreto SM et al. Chronic non-communicable disease in Brazil: burden and current challenges. Lancet 2011; 377(9781):1949-1961.,66. The United Nations Children’s Fund (UNICEF).Why children are still dying and what can be done. Geneva: UNICEF/WHO; 2009.. O Brasil tem acompanhado as tendências internacionais quanto a redução da mortalidade por diarreias, mas aparentemente o mesmo não vem acontecendo em termos de prevalência e como causa de internação, provavelmente por inadequação das ações aplicadas1515. Moura BLA, Cunha RC, Aquino R, Medina MG, Mota ELA, Macinko J, Dourado I. Principais causas de internação por condições sensíveis à atenção primária no Brasil: uma análise por faixa etária e região. Rev Bras Saúde Matern Infant 2010; 10(Supl. 1):83-91.,1616. Torres RMC, Bittencourt SA, Oliveira RM, Siqueira ASP, Sabroza PC, Toledo LM. Uso de indicadores de nível local para análise espacial da morbidade por diarreia e sua relação com as condições de vida. Cien Saude Colet 2013; 18(5):1441-1450.. Utilizando dados do Sistema Único de Saúde (SUS), para avaliar a tendência temporal de mortalidade geral e morbidade hospitalar em menores de cinco anos, Mendes (2013), verificou uma linha de lenta redução entre 2000 e 2010. Informa-se que os maiores coeficientes de mortalidade e de hospitalização ocorreram nas regiões Norte e Nordeste1717. Mendes PSA, Ribeiro Júnior HC, Mendes CNC. Temporal trends of overall mortality and hospital morbidity due to diarrheal disease in Brazilian children younger than 5 years from 2000 to 2010. J Pediatr (Rio J) 2013; 89(3):315-325..

O caso de Pernambuco reflete uma condição peculiar, desde que ainda representa um dos estados com maior número de mortes por doenças diarreicas no país, segundo o Ministério da Saúde (2011)1818. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Indicadores e dados básicos (IDB) 2011. [acessado 2016 Mar 9]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcg1.exe?idb2012/c06.def
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. Assim, seja pelas diferenças inter-regionais, pela discrepância de tendências temporais, pela relativa excepcionalidade do caso de Pernambuco e pela existência de pesquisas sobre o problema mediante abordagem de base populacional1919. Pernambuco. Secretaria da Saúde do Estado (SSE). II Pesquisa Estadual de Saúde e Nutrição: saúde,nutrição, alimentação e condições socioeconômicas no estado de Pernambuco. Recife: SSE; 1998.,2020. Pernambuco. Secretaria da Saúde do Estado (SSE). III Pesquisa Estadual de Saúde e Nutrição: situação alimentar, nutricional e de saúde no Estado de Pernambuco: contexto socioeconômico e de serviços [relatório final]. Recife: SSE; 2007., e até pela próxima realização de um novo inquérito, ainda em 2015, torna-se pertinente, relevante e oportuna a focalização das doenças diarreicas em crianças deste estado.

Métodos

Trata-se de um estudo transversal, de base populacional, apoiado em dados da II e III Pesquisas Estaduais de Saúde e Nutrição (PESN), realizadas, respectivamente, em 1997 e em 2006, de forma a permitir comparações relativas às prevalências e geração de demandas hospitalares por doenças diarreicas em menores de cinco anos, no Estado de Pernambuco.

As duas pesquisas mencionadas objetivaram atualizar e ampliar o diagnóstico da situação de saúde, nutrição, alimentação, condições ambientais, socioeconômicas e prestação de assistência à saúde no Estado de Pernambuco, com ênfase no grupo materno-infantil1919. Pernambuco. Secretaria da Saúde do Estado (SSE). II Pesquisa Estadual de Saúde e Nutrição: saúde,nutrição, alimentação e condições socioeconômicas no estado de Pernambuco. Recife: SSE; 1998.,2020. Pernambuco. Secretaria da Saúde do Estado (SSE). III Pesquisa Estadual de Saúde e Nutrição: situação alimentar, nutricional e de saúde no Estado de Pernambuco: contexto socioeconômico e de serviços [relatório final]. Recife: SSE; 2007.. Considera dois grandes espaços geoeconômicos: o urbano (Região Metropolitana do Recife – RMR e Interior Urbano (IU e o Interior Rural (IR). Pernambuco tem uma área de 98.146.315 km2, distribuída em 185 municípios com uma população estimada de 8.796.032 habitantes, em 2010, com 80% predominantemente urbana2121. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo 2010. [acessado 2014 Jul 30]. Disponível em: http://censo2010.ibge.gov.br/resultados.
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As amostras estudadas em 1997 e 2006 foram probabilísticas, com distribuição espacial predeterminada pelo primeiro inquérito (1991). Na II PESN a amostra foi de 2.078 crianças, das quais 737 (35,4%) provenientes da RMR; 687 (33,1%), do IU; e 654 (31,5%), do IR. A III PESN foi representada por 1.650 menores de cinco anos, sendo 431 (26,1%), da RMR; 421(25,5%), do IU; e 798 (48,4%), do IR. As diferenças de números amostrais em alguns resultados devem-se às perdas de observações, por questionários incompletos ou exclusão por inconsistência de dados.

A seleção amostral foi desenvolvida em três estágios: a) seleção dos municípios com probabilidade proporcional à sua população segundo procedimentos adotados no 1º inquérito ((1991); b) seleção dos setores censitários em cada município; c) seleção de casas/casos (crianças) em cada setor censitário (40 a 45 crianças por setor censitário).

O trabalho de campo foi realizado por uma equipe de entrevistadores, antropometristas e auxiliares técnicos encarregados da coleta de sangue para exames laboratoriais. Para coleta de dados, foram utilizados questionários com respostas pré-codificadas.

As mães ou responsáveis pelas crianças selecionadas eram entrevistadas em seus domicílios, preenchendo o questionário “morbidade referida”: onde se incluíam os casos de diarreias nos últimos 15 dias, consultas por diarreias nos últimos três meses e internações por diarreia nos últimos 12 meses, contando também com o registro conjunto de “outras doenças”, para fins comparativos. Como caso de diarreia, considerou-se a ocorrência de três ou mais evacuações ao dia, com fezes de consistência líquida e semilíquida, acompanhadas ou não de muco ou sangue.

Como internações hospitalares, foram consideradas as ocorrências de admissões de crianças com diarreia, admitidas naqueles serviços de saúde, com permanência igual ou superior a 24 horas, referidas no período dos últimos 12 meses.

Para o processamento dos dados foi utilizado o programa Epi Info - 3.5.4 (Center for Disease Control and Prevention) e o Stata 12.1. A comparação das prevalências de hospitalização por diarreia, entre os anos 1997 e 2006, foi realizada, pelo teste qui-quadrado de Pearson. As comparações dessas prevalências entre pares de espaços geográficos foram efetuadas através de comparações múltiplas de Marascuillo2222. Marascuilo LA. Large-Sample Multiple Comparisons. Psychological Bulletin 1996; (65):280-290..

Os projetos da II e III PESN foram aprovados, respectivamente, pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde de Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em 27 de fevereiro de 1997, e pelo Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira – (IMIP), de 5 de novembro, obedecendo a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde.

Resultados

Em relação à participação das doenças diarreicas no conjunto geral das doenças do estado de Pernambuco, e em todos os espaços geográficos, ocorreu, em termos relativos, uma elevação muito expressiva nos percentuais de hospitalização por todas as causas entre os anos de 1997 e 2006. Com exceção do meio rural, onde as diarreias apresentaram um aumento de 4,1% para 5,9%, representando assim, uma elevação de 44%, nos outros espaços geográficos. As taxas de hospitalização por diarreia duplicaram ou quase triplicaram. Evidencia-se na ilustração gráfica, a elevação rapidamente crescente das diarreias em comparação com os registros de internações de crianças por todas as causas (Gráfico 1).

Gráfico 1
Evolução temporal de hospitalizações de menores de cinco anos no estado de Pernambuco e seus estratos geográficos, com destaque para a participação das doenças diarreicas em 1997 (II PESN) e 2006 (III PESN).

Em relação à prevalência de diarreia em menores de cinco anos no estado de Pernambuco, entre 1997 e 2006, ocorreu uma redução de 19,8% para 18,1%, porém sem significância estatística. Ao se analisar os espaços geográficos, apenas na Região Metropolitana do Recife (RMR) foi observada uma diminuição estatisticamente significante (p < 0,003) na prevalência temporal do problema para os anos avaliados, decaindo de 16,9% para 10,5%. Os diferenciais de prevalência foram estatisticamente significantes entre a RMR e o IU (p = 0,021), em 1997, enquanto em 2006, a RMR apresentou uma condição seguramente melhor em relação aos outros dois espaços geográficos (Tabela 1).

Tabela 1
Prevalência de diarreia em menores de cinco anos no Estado de Pernambuco, por estratos geográficos, nos anos de 1997 (II PESN) e 2006 (III PESN).

Analisando especificamente a evolução temporal e espacial das hospitalizações por diarreias entre 1997 e 2006, verifica-se que ocorreu para todo o estado um aumento de 2,7% para 5,5%, portanto mais do que duplicando o registro desta ocorrência. No que se refere aos estratos geográficos, com exceção do meio rural, observou-se um aumento significativo das hospitalizações, principalmente, para a Região Metropolitana do Recife (p = 0,022) e interior urbano (p = 0,001), como se observa na Tabela 2.

Tabela 2
Hospitalização por diarreia em menores de cinco anos no estado de Pernambuco, nos anos de 1997 (II PESN) e 2006 (III PESN).

Discussão

A doença diarreica em crianças menores de cinco anos ainda se encontra em patamares relevantes, compondo estatísticas elevadas de morbimortalidade, influenciando de forma importante as demandas aos serviços de saúde e classificando–se, assim, como um problema prioritário de saúde coletiva66. The United Nations Children’s Fund (UNICEF).Why children are still dying and what can be done. Geneva: UNICEF/WHO; 2009.,1515. Moura BLA, Cunha RC, Aquino R, Medina MG, Mota ELA, Macinko J, Dourado I. Principais causas de internação por condições sensíveis à atenção primária no Brasil: uma análise por faixa etária e região. Rev Bras Saúde Matern Infant 2010; 10(Supl. 1):83-91.,1616. Torres RMC, Bittencourt SA, Oliveira RM, Siqueira ASP, Sabroza PC, Toledo LM. Uso de indicadores de nível local para análise espacial da morbidade por diarreia e sua relação com as condições de vida. Cien Saude Colet 2013; 18(5):1441-1450.,2323. Black RE, Cousens S, Johnson HL, Lawn JE. Global, regional and national causes of child mortality in 2008: a systematic analysis. Lancet 2010; 375(9730)1969-1987..

Em termos de morbidade, foi estimada uma prevalência anual de 3,2 casos em menores de cinco anos, no período de 1992-2000, a partir de estudo que reuniu publicações de vários países1313. Kosek M, Bern C, Guerrant R. The global burden of diarroeal diasease, as estimated from studies published between 1992 and 2000. Bull World Health Organ 2003; 81(3):197-203.. Mais recentemente, pontificando estudos de coorte em países de média e baixa renda, entre 1990 e 2010, estimou-se a média de 2,9 episódios por ano, com frequências bem maiores na faixa etária de 6 a 11 meses2424. Fischer-Walker CL, Perin J. Diarrhea incidence in low-and-middle income countries in 1990 and 2010: a systematic review. BMC Public Health 2012; 12:220.. No Brasil, as duas pesquisas nacionais mais recentes (Pesquisas Nacionais de Demografia e Saúde -1996 e 2006)2525. Sociedade Civil Bem Estar Familiar no Brasil (BENFAM). Pesquisa Nacional sobre Demografia e Saúde. Programa de Pesquisas de Demografia e Saúde. Rio de Janeiro: BEMFAM; 1997.,2626. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Pesquisa Nacional de Demografia e saúde de Criança e da Mulher - PNDS 2006: dimensões do processo reprodutivo e da saúde da criança. [acessado 2014 Jul 30]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/pnds/anemia.php
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, demonstraram que a prevalência de diarreias em menores de cinco anos declinou de 13,1% para 9,4%. Observou-se um declínio da prevalência de diarreia em todas as macrorregiões do País, com exceção do Norte (aumento de 13%), enquanto no Nordeste houve uma diminuição de 25%. Em relação à dicotomia urbano/rural, em escala nacional a diminuição foi bem mais acentuada na área urbana (33%) que na rural (12%). No que se refere às internações, trabalhos utilizando dados nacionais permitem observar uma redução de aproximadamente 40 a 60% na taxa de internação em menores de um ano1515. Moura BLA, Cunha RC, Aquino R, Medina MG, Mota ELA, Macinko J, Dourado I. Principais causas de internação por condições sensíveis à atenção primária no Brasil: uma análise por faixa etária e região. Rev Bras Saúde Matern Infant 2010; 10(Supl. 1):83-91.,2727. Oliveira TCR, Latorre MRDO. Tendências da internação e da mortalidade infantil por diarreia: Brasil, 1995 a 2005. Rev Saude Publica 2010; 44(1):102-111. com evolução desigual entre as regiões brasileiras1515. Moura BLA, Cunha RC, Aquino R, Medina MG, Mota ELA, Macinko J, Dourado I. Principais causas de internação por condições sensíveis à atenção primária no Brasil: uma análise por faixa etária e região. Rev Bras Saúde Matern Infant 2010; 10(Supl. 1):83-91.. Outro estudo, avaliando a tendência da doença diarreica em menores de cinco anos, no período de 2000 a 2010, com dados do Sistema Único de Saúde (SUS), observou lenta redução anual da taxa de internação por diarreia em menores de um ano e discreto aumento entre um e quatro anos, mostrando que as hospitalizações se mantiveram praticamente estáveis, apesar da discreta elevação em algumas regiões do país (Norte e Nordeste)1717. Mendes PSA, Ribeiro Júnior HC, Mendes CNC. Temporal trends of overall mortality and hospital morbidity due to diarrheal disease in Brazilian children younger than 5 years from 2000 to 2010. J Pediatr (Rio J) 2013; 89(3):315-325..

Em relação à mortalidade, estatísticas mundiais revelaram que no período de 2000 a 2003, as doenças diarreicas contribuíram com 18% das 10.6 milhões de mortes em menores de cinco anos, ocorrendo em sua grande maioria, nos países e regiões mais pobres e mantendo, como característica epidemiológica muito peculiar, estreita associação com a desnutrição energético-proteica (DEP). No Brasil, no período de 1980 a 2005, correspondendo, portanto, a um período de 25 anos, houve uma diminuição de 93,9 % nas mortes infantis por diarreia (SIM/MS)2828. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Saúde Brasil, 2008. [acessado 2012 Dez 2]. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/aplicações
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. Em relatos para um período mais breve de dez anos (1995/2005) foram notificadas 39.421 mortes e 1.505.800 internações em menores de um ano, devido às diarreias e suas complicações2727. Oliveira TCR, Latorre MRDO. Tendências da internação e da mortalidade infantil por diarreia: Brasil, 1995 a 2005. Rev Saude Publica 2010; 44(1):102-111..

Sob o aspecto descritivo, evidenciou-se que no estado de Pernambuco, a prevalência de doenças diarreicas em menores de cinco anos praticamente se manteve em níveis estacionários entre 1997 e 2006, considerando-se que a diminuição de apenas 1,7% em nove anos fica muito abaixo, por exemplo, dos compromissos acordados na Reunião de Cúpula em Nova York (1990)2929. Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Estratégias para melhorar a nutrição de crianças e mulheres nos países em desenvolvimento: um exame de políticas. New York: UNICEF; 1990.. De fato, no caso de Pernambuco, o que se pontifica é a grande diminuição na ocorrência do problema na RMR (62%), concomitante com uma redução muito menor no interior urbano e um discreto aumento na zona rural. Foram, portanto, três movimentos distintos no espaço geográfico do Estado, representando uma curiosa cinética epidemiológica. E aqui já caberia uma questão ampliada: trata-se de um processo peculiar do caso de Pernambuco ou um evento que estaria se reproduzindo em outros estados ou regiões do país, envolvendo o triângulo regiões metropolitanas, espaços urbanos não metropolitanos e populações rurais? É uma questão que deve ser devidamente considerada.

Outro contraste interessante consiste em verificar que, no espaço amostral onde mais decaiu a prevalência das doenças diarreicas, ou seja, na RMR, foi onde mais se concentraram, em termos relativos, as hospitalizações atribuídas ao problema. Em segundo plano aparecem as estatísticas das crianças residentes no meio urbano do interior do Estado. Já no meio rural, onde as prevalências não foram estatisticamente distintas entre 1997 e 2006, o registro de informações sobre ocorrência de hospitalização ficou bem abaixo dos resultados esperados, caso fossem mantidas as tendências temporais verificadas nos espaços amostrais urbanos, principalmente na RMR.

Desde que a coleta de dados dos inquéritos foi realizada usando os mesmos questionários, os mesmos entrevistadores, os mesmos guias instrutivos e os mesmos critérios de consistência e validação dos dados coletados, parece bem seguro que as diferenças encontradas são de fato válidas para inferências comparativas. A dissociação estatística, tipo correlação inversa, evidencia a marcante redução de prevalência das diarreias (cerca de 62%) entre os anos de 1997 e 2006 na RMR, contrapondo-se ao aumento da taxa de hospitalização de 1,6% para 3,8%, o que implica numa razão de prevalência de 2,37 vezes, ou seja, um aumento percentual de 137% nas taxas de internações. Este resultado pode ser atribuído à maior facilidade de acesso aos hospitais e maior disposição dos pais em recorrer a esta instância de assistência. Uma terceira hipótese seria menos aceitável, ou seja, que como tendência, os casos de diarreia seriam menos frequentes, mas bem mais graves. No entanto, não existe nenhuma evidência empírica a este respeito em estudos científicos, em relatórios técnicos ou na imprensa leiga. Por outro lado, a explicação da maior demanda e acesso aos hospitais ganha consistência quando se considera que, em todos os espaços de amostragem do Estado aumentaram consideravelmente as taxas gerais de hospitalização de crianças por todas as causas, traduzindo uma tendência bem definida em relação às doenças pediátricas, sendo bem mais acentuada para os casos de diarreias.

Assinala-se como um fato de considerável importância geopolítica, demográfica e epidemiológica, o rápido crescimento das populações urbanas sem similar em toda a história da humanidade, principalmente nos países menos desenvolvidos ou emergentes. Este processo pode representar um pesado ônus, na medida em que muitas vezes o crescimento das cidades não se faz concomitante com a oferta de saneamento ambiental adequado, condições de salubridade dos domicílios e disponibilidade de rede de serviços sociais, notadamente na área de saúde, educação e previdência. É o que ressalta um documento especial das Nações Unidas44. Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Situação mundial da Infância. Crianças em um mundo urbano. Nova Iorque: UNICEF; 2012.. As condições urbanas de saneamento, particularmente em relação à oferta e acesso à água potável e a rede de esgotos sanitários, exercem um papel fundamental em relação aos riscos de diarreias1212. Oliveira AF, Leite IC, Valente JG. Global burden of diarrheal disease attributable to the water supply and sanitation system in the State of Minas Gerais, Brazil: 2005; Cien Saude Colet 2015; 20(4):1027-1036,3030. Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), World Health Organization (WHO). Progress of drinking water and sanitation: 2012 update. Geneva: Unicef, WHO; 2012.. Apesar de alguns avanços em relação a proporção da população com acesso a melhorias no saneamento básico, que aumentou de 68% para 79% entre 1990 e 2010 e utilização de água potável de 89% para 98% no Brasil, segundo o relatório do UNICEF e WHO, ainda persistem as desigualdades marcantes entre grupos sociais no país, o que possibilita entender a magnitude das doenças diarreicas e suas consequências3030. Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), World Health Organization (WHO). Progress of drinking water and sanitation: 2012 update. Geneva: Unicef, WHO; 2012.. A propósito, cabe referir um estudo de projeção internacional, realizado na cidade de Salvador (Bahia), demonstrando a importância da oferta de água de boa qualidade como requisito estratégico para a promoção de saúde das crianças3131. Barreto ML, Gensers B, Strina A, Teixeira MG, Assis AM, Rego RF, Teles CA, Prado MS, Matos SM, Santos DN, Santos LA, Cairncross S. Effect of city-wide sanitation programme on reduction in rate of childhood diarrhoea in northeast Brazil: assessment by two cohort studies. Lancet 2007; 370(9599):1622-1628..

Torna-se pertinente analisar os resultados obtidos em Pernambuco em função do referencial proposto pelas Nações Unidas para a década de 90, quando as diarreias figuraram como uma das 15 prioridades de saúde das crianças2929. Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Estratégias para melhorar a nutrição de crianças e mulheres nos países em desenvolvimento: um exame de políticas. New York: UNICEF; 1990.. Acordou-se, então, a meta internacional de reduzir em 25% a prevalência e em 50% seu impacto sobre a mortalidade específica, recorrendo-se principalmente à terapia de reidratação oral (TRO). No estudo aqui relatado, verifica-se que a prevalência do problema no Estado de Pernambuco diminuiu em menos de 2%. Ao se analisar dados do Ministério da Saúde/Datasus sobre a mortalidade por diarreia3232. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Executiva. Datasus. Informações de Saúde. Morbidade e informações epidemiológicas. [acessado 2014 Dez 19]. Disponível em: http://www.datasus.gov.br.
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, observou-se uma diminuição de 2,6 para 0,6 por 1.000 crianças nascidas vivas no estado de Pernambuco, no período de 2000 a 2010, representando uma redução de quase 77%, extrapolando em muito a meta das Nações Unidas. É admissível que, em grande parte, esta diferença expressiva possa ser atribuída a maior cobertura e eficácia dos atendimentos hospitalares3333. .World Health Organization (WHO). The world health report 2013: research for universal health coverage. Geneva. WHO; 2013., em razão do aumento de 156% no período estudado. Tendo em conta que 97% dos casos de diarreias são autolimitados, ou seja, que apenas 3% necessitariam de intervenções terapêuticas envolvendo cuidados médicos e atendimentos hospitalares, o percentual de 3,8% de internações na ocorrência de diarreias na RMR cobriria plenamente esta demanda potencial (3,8% versus 3%)3434. Victora CG, Huttly SR, Fuchs SC, Nobre LC, Barros FC. Deaths due to dysentery, acute and persistent diarrhoea among brazilian infants. Acta Pediatrica 1992; 381(Supl.):12-14.. É claro que o presente estudo, trabalhando com valores estatísticos agregados e não com dados individualizados, não pode apresentar estes resultados como comprovação de hipótese. Não é este, afinal, o objetivo do trabalho aqui relatado.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    06 Out 2015
  • Revisado
    16 Jun 2016
  • Aceito
    18 Jun 2016
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