Saúde e luta de classes: em busca do que e como fazer

André Vianna Dantas Sobre o autor

Antonio Gramsci11. Coutinho CN. O leitor de Gramsci. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2011 provocou: “quem quer o fim deve também querer os meios”. Embora pareça uma sentença óbvia, a longa história de apostas políticas seguidas de derrotas da classe trabalhadora parece suficiente para conferir validade ao alerta.

Ora, se Saúde é Democracia, falar de SUS é falar de política, é pensar e agir sobre o momento presente, mas compreender também como viemos parar no atoleiro atual. Um “‘conhece-te a ti mesmo’ como produto do processo histórico até hoje desenvolvido”22. Gramsci A. Cadernos do cárcere. vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2004. deve ser tarefa conjugada à luta política cotidiana. E as bandeiras históricas do Movimento Sanitário não podem prescindir deste inventário33. Dantas AV. Do socialismo à democracia – tática e estratégia na Reforma Sanitária Brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2017.. Pretendemos aqui abrir o leque do que e do como fazer, compreendendo o SUS e a luta necessária em sua defesa como parte de um todo que não pode ser fatiado. Para nós, portanto, a adoção (ou recusa) do ponto de vista da totalidade44. Lukács G. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes; 2003. é decisiva na luta política, inclusive pelo SUS.

Tal perspectiva nos impõe algumas questões incômodas e urgentes: ainda acreditamos que é possível preservar ou mesmo fortalecer o SUS (público e universal) através de uma luta que se esgota nele mesmo? Queremos a mesma democracia que reivindicamos na luta contra a ditadura, porque com ela teríamos garantidas as regras do jogo que franqueariam a possibilidade, institucional, de domar o capital e controlar o Estado? É consequente continuar a luta pelo SUS sem reavaliarmos as perdas derivadas da aposta do Movimento Sanitário na convivência entre público e privado em nome de um projeto nacional?55. Arouca S. Democracia é Saúde. In: Anais da 8ª Conferência Nacional de Saúde; 1987; Brasília. p. 35-44. A aposta na “aproximação do Movimento da Reforma Sanitária da maioria da sociedade brasileira” pode prescindir da compreensão gramsciana/marxista da sociedade civil como espaço de conflito e não de consenso entre as classes?

Acreditamos que é preciso reconhecer os limites dessa forma de fazer política. O primeiro, diríamos, é de método: é um erro apostar todas as fichas na política institucional, nos arranjos pelo alto, que dispensam ou relegam a segundo plano a luta pela base e revela, em verdade, certo fetiche do Estado como lugar de poder, incolor, insípido e inodoro, e supostamente à disposição, para livre utilização, dos vencedores dos pleitos eleitorais. Esta crítica já foi iniciada pelo Movimento Sanitário, mas a despeito da pedagógica realidade que experimentamos, o modus operandi, ao que tudo indica, ainda pretende vida longa.

Um segundo limite é de programa. É preciso que se diga: não há espaço para apostas políticas consequentes na construção de um Estado de bem-estar no Brasil, nem tampouco haverá conquistas (mesmo parciais e no interior dessa ordem) se não produzirmos o enfrentamento do capitalismo a partir das classes subalternas. A crise estrutural do sistema do capital não comporta mais tais concessões de anéis para manutenção dos dedos, tanto nos países do capitalismo central quanto em formações sociais de caráter dependente como a nossa.

Um terceiro limite que ressaltamos é prático e guarda coerência com os dois anteriores: a pesada ofensiva burguesa, global, sobre o Fundo Público. De novo, é preciso que se diga: o tão debatido subfinanciamento do SUS não é apenas nem principalmente a causa do enfraquecimento das bandeiras do Movimento Sanitário, mas sim resultado concreto da nossa derrota na luta de classes no campo da Saúde. Não é possível combater a falta de recursos tão somente com a formação de frentes parlamentares, edição de leis e normas nem com a ocupação de postos-chave na máquina estatal. Mais do que um gargalo, o subfinanciamento do sistema grita o que não se quer ouvir: o SUS (mesmo não pleno nem totalmente público) não cabe na atual dinâmica do capitalismo internacional, que se expressa de forma particular no Brasil. Daí extraímos duas assertivas: 1. Entender rigorosamente e enfrentar radicalmente essa derrota é nosso papel enquanto trabalhadores e militantes da saúde; 2. Ignorar essa concretude, insistindo em apostas e métodos que não ameaçam o status quo, é sair derrotado já de partida.

É verdade que a casa do arquiteto será diferente das dez que conheceu antes de construir a sua. Mas há que se revelar a motivação que o guiou na sua empreitada: as casas anteriores não serviram ou deixaram de servir para as necessidades do presente. Serão decisivas para a nova casa a identificação das falhas de execução, mas também das possíveis falhas de projeto. O que e como fazer? Reformá-la ou assentá-la em novas bases?

Referências

  • 1
    Coutinho CN. O leitor de Gramsci Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2011
  • 2
    Gramsci A. Cadernos do cárcere vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2004.
  • 3
    Dantas AV. Do socialismo à democracia – tática e estratégia na Reforma Sanitária Brasileira Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2017.
  • 4
    Lukács G. História e consciência de classe São Paulo: Martins Fontes; 2003.
  • 5
    Arouca S. Democracia é Saúde. In: Anais da 8ª Conferência Nacional de Saúde; 1987; Brasília. p. 35-44.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2018
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