Resumo
A Constituição de 1988 representou importantes conquistas de direitos em torno de um projeto de país com um modelo de desenvolvimento socioeconômico orientado para a redução de risco de doenças e agravos e um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Estas conquistas se manifestaram nas políticas, na institucionalização e na criação de espaços institucionais de participação da sociedade. O objetivo deste artigo é situar as conquistas e também os limites e obstáculos na agenda de saúde e ambiente expressos nestes 30 anos do Sistema Único de Saúde. As conquistas são situadas a partir da ampliação dos espaços institucionais de participação da sociedade e institucionalização no Sistema Único de Saúde dos temas relacionados aos riscos ambientais. Os limites são situados a partir da relação entre desenvolvimento e padrões de riscos ambientais presentes nos níveis global, regional, local e comunitário. Por fim são apontados os obstáculos que, a partir do golpe parlamentar de 2016, não só acentuaram os limites já existentes, como vem produzindo retrocessos em diversas áreas relacionadas à saúde ambiental.
Saúde Ambiental; Redução de riscos ambientais; Redução de riscos à saúde; Desenvolvimento sustentável; Sistema Único de Saúde
Introdução
A promulgação da Constituição de 1988 representou um importante pacto em torno de um projeto de nação de longo prazo, compromissos pautados na cidadania e na dignidade humana como fundamentos do Estado Democrático de Direito (Art. 1º) e entre seus objetivos fundamentais uma sociedade justa e solidaria, em que a garantia do desenvolvimento nacional estava lado a lado da erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais e regionais, visando a promoção do bem de todos (Art.3º)11. Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal; 1988..
Nessa perspectiva, como fundamentos de nossa democracia e acoplado a estes compromissos, destacamos o direito à saúde (Art. 196) e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e considerado essencial à sadia qualidade de vida (Art. 225). O primeiro integra um conjunto de direitos sociais, que envolve o direito à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao transporte e à assistência aos desamparados, e está na base da estruturação do Sistema Único de Saúde (SUS), não só por garantir o acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde para a promoção, proteção e recuperação da saúde, mas também por estabelecer que as políticas sociais e econômicas tivessem como objetivo reduzir o risco de doenças e outros agravos. O segundo é apresentado e tratado como um bem de uso comum que deveria ser preservado para as gerações presentes e futuras11. Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal; 1988.. Ambos se relacionam diretamente às dimensões da proteção social e da sustentabilidade ambiental, que estão na base dos processos de determinação socioambiental da saúde.
As conquistas desses direitos representaram importantes avanços que combinados deveriam fundamentar o pacto constitucional de um modelo de desenvolvimento socioeconômico orientado para: a redução de risco de doenças e agravos e um meio ambiente ecologicamente equilibrado, não só como suporte à vida, mas à qualidade de vida para as gerações presentes e futuras.
No entanto, se nossa Constituição é um espelho de uma história de esperanças e de lutas sociais, devemos considerar também que as ... constituições escritas nos momentos de viradas históricas (e quase sempre o são) encarnam e expressam sentimentos morais, projetos políticos e ambições de justiça, mas expressam também relações de poder. Muitos constituintes do período nos lembram a magnitude dos projetos e das ambições políticas democráticas que não conseguiram vencer naquele momento as forças arcaicas e autoritárias que se faziam presentes no seio da Assembleia Constituinte22. Rego WL, Pinzani A. Vozes do bolsa família: autonomia, dinheiro e cidadania. São Paulo: UNESP; 2013.. Embora as forças políticas mais conservadoras e representantes do poder econômico tivessem maioria na Assembleia Constituinte e os partidos de esquerda menos de 9% das cadeiras, coalizações envolvendo ONGs, movimentos sociais e parlamentares conseguiram mobilizar diferentes atores de modo a produzir apoio às frentes parlamentares como as da saúde e à verde, de modo a inscrever os direitos à saúde e ao meio ambiente na Constituição33. Abers R, Oliveira MS. Nomeações políticas no Ministério do Meio Ambiente (2003-2013):interconexões entre ONGs, partidos e governos. Opin. Pública 2015; 21(2):336-364.,44. Arretche M. O bom debate pede mais luz e menos calor. Valor Econômico 2017 Out 06; p.10..
Tivemos avanços que significaram conquistas inscrevendo estes direitos ao lado de limites para mudanças estruturais na dimensão econômica e do poder político relacionado à mesma, com implicações diretas nos processos de determinação socioambiental da saúde. O período de democratização do país representou também o fim do padrão de desenvolvimento socioeconômico iniciado a partir da década de 30. Foi marcado por conflitos entre a reformulação do modelo desenvolvimentista ou adesão ao modelo neoliberal associado ao processo de globalização55. Cardoso Jr JC, Pinto E, Linhares PT. O estado e o desenvolvimento no Brasil. In: Cardoso Júnior JC, Bercovici G, organizadores. República, democracia e desenvolvimento: contribuições ao Estado brasileiro contemporâneo. Brasília: Ipea; 2011. p. 467-496..
No capitalismo, a lógica do mercado, da propriedade privada e da acumulação vêm tornando a dimensão econômica cada vez mais insulada das outras dimensões da sociedade. Desse modo, as indefinições, disputas e conflitos sobre o modelo de desenvolvimento socioeconômico nos 30 anos de nossa Constituição e do SUS foram marcados por este insulamento, constituindo-se o que Bercovici66. Bercovici G. O estado de exceção econômico e a periferia do capitalismo. Pensar 2006; (11):95-99. denomina de estado de exceção econômico, com obstáculos à plena realização dos direitos pactuados na Constituição de 198855. Cardoso Jr JC, Pinto E, Linhares PT. O estado e o desenvolvimento no Brasil. In: Cardoso Júnior JC, Bercovici G, organizadores. República, democracia e desenvolvimento: contribuições ao Estado brasileiro contemporâneo. Brasília: Ipea; 2011. p. 467-496.,66. Bercovici G. O estado de exceção econômico e a periferia do capitalismo. Pensar 2006; (11):95-99.. O resultado é um desenvolvimento socioeconômico desigual e heterogêneo, combinando impactos positivos e negativos sobrepostos em uma gama diversificada de novos e velhos riscos ambientais para a Saúde Coletiva (SC).
O objetivo deste artigo é situar as conquistas e também os limites e obstáculos na agenda de saúde e ambiente expressos nestes 30 anos do SUS. As conquistas são situadas a partir da ampliação dos espaços institucionais de participação da sociedade e institucionalização no SUS dos temas relacionados aos riscos ambientais. Os limites e obstáculos são situados a partir da relação entre desenvolvimento e padrões de riscos ambientais.
Conferências nacionais e institucionalização do SUS
Nos últimos 30 anos tiveram grande importância a ampliação dos espaços institucionais de participação da sociedade através das Conferências Nacionais (CN), tratando de temas relacionados aos determinantes e condicionantes da saúde, bem como de institucionalização das estruturas e ações relacionados aos riscos ambientais no âmbito do SUS.
As conferências nacionais como caixas de ressonância dos direitos sociais e ambientais
As Conferências Nacionais (CN) tiveram início em 1941 e constituíram-se como espaços institucionais participativos no intuito de promover o diálogo entre os diversos atores governamentais e não governamentais dos níveis federal, estadual e municipal, para a construção de uma agenda comum entre Estado e Sociedade, a partir da convocação do governo federal77. Souza CHL. A que vieram as conferências nacionais? uma análise dos objetivos dos processos realizados entre 2003 e 2010. Rio de Janeiro: IPEA; 2012.,88. Avritzer L. Conferências nacionais: ampliando e redefinindo os padrões de participação social no Brasil. Rio de Janeiro: IPEA; 2012.. De 1941 a 2017 foram realizadas 146 CN, com 95% (n = 139) executadas a partir do processo de democratização.
Desde 1986 observamos uma ampliação da participação social, com as CN constituindo oportunidade de inclusão de temas e demandas sociais na pauta governamental, tendo a SC exercido importante papel neste processo. No Quadro 1 observa-se que durante os governos José Sarney e Fernando Collor, todas as CN foram de saúde. No mesmo ano da 8ª CN de Saúde, outras três envolveram a SC com a mobilização de grupos sociais organizados e temas de grande importância para a conformação de um país menos desigual (trabalhadores, mulheres e indígenas). Até o segundo governo FHC, das 24 CN realizadas, 19 (79%) foram no campo da SC.
Ao analisar a Figura 1 e o Quadro 1, chama a atenção a importância que a SC teve no processo de democratização e cidadania no país, indo para além do SUS e funcionando como uma caixa de ressonância das demandas de participação da sociedade para inclusão na pauta governamental de temas associados aos direitos sociais e ambientais relacionados aos compromissos constitucionais.
Somente no governo Itamar Franco tivemos CN sobre outros temas para além da saúde, sendo realizadas em 1994 as de CT&I (com uma específica sobre saúde) e Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Importante observar que a CN-SAN foi a primeira que se relacionava aos direitos sociais sem estar diretamente vinculada à SC, mas com forte presença de atores deste campo. Além disso, teve como antecedentes dois fatos importantes: o Mapa da Fome com 32 milhões de brasileiros vivendo abaixo da linha da pobreza e a criação do movimento Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida.
No governo FHC, das oito CN realizadas, cinco foram relacionadas à Saúde e as outras três à Assistência Social (AS), sendo duas destas realizadas ainda no seu primeiro governo e sobre forte influência do Mapa da Fome e da Ação da Cidadania. Tanto que logo no início de 1995, no mesmo ano da 1aCNAS, foi criado o Programa Comunidade Solidária. Se a garantia do direito à saúde já vinha sendo amplamente discutida através de inúmeras CN, só sete anos após a Constituição o direito à uma sobrevivência digna em situações de extremas carências foi amplamente discutida com participação da sociedade.
A partir de 2003, no governo Lula, amplia-se o processo de convocação até então restrito aos decretos presidenciais, incluindo portarias ministeriais ou interministeriais e resoluções de conselhos, além de ter ampliada a sua lógica de organização e participação, incluindo conferências setoriais, livres e virtuais99. Avritzer L, Souza CHL. Conferências nacionais: atores, dinâmicas participativas e efetividade. Rio de Janeiro: IPEA; 2013. Nesse processo destacam-se três resultados importantes.
Primeiro, o aumento do número de CN. Conforme demonstrado na Figura 1, das 139 CN realizadas desde 1986, 74% (n = 103) se concentraram no período entre 2003 e 2014 (governos Lula e Dilma). Segundo, a ampliação dos participantes. Estima-se que entre 2002 e 2010, até 6,5% da população adulta do país tenha participado das CN99. Avritzer L, Souza CHL. Conferências nacionais: atores, dinâmicas participativas e efetividade. Rio de Janeiro: IPEA; 2013. Terceiro, a ampliação e diversificação de temas relacionados aos direitos sociais e das minorias, e também determinantes e condicionantes da saúde presentes na Lei 8080/90 (Quadro 1), como as CN envolvendo alimentação, moradia e saneamento, meio ambiente, educação e trabalho.
Nesse processo, se por um lado podemos constatar na Figura 1 que as CN diretamente relacionadas à SC tenham diminuído proporcionalmente em relação ao total a partir de 2003, os temas da saúde foram não só se tornando presentes nas CN relacionadas aos direitos sociais, humanos e relacionados às minorias, mas também nas que envolveram discussões e proposições relacionadas aos processos de determinação socioambiental da saúde, principalmente as sobre cidades (com foco nos riscos ambientais à saúde no nível domiciliar e relacionados à urbanização, moradias e saneamento) e meio ambiente (com foco nos riscos ambientais relacionados às atividades de produção e poluição industrial e agrícola, afetando ar, solo, águas e alimento, incluindo as mudanças climáticas em 2008).
As CN se constituíram em importantes fóruns de debates e caixas de ressonância dos anseios da sociedade em combinar um modelo de desenvolvimento orientado para a saúde, qualidade de vida e um ambiente ecologicamente equilibrado, com justiça social e redução das desigualdades.
A institucionalização no SUS dos temas relacionados aos riscos ambientais
As CN foram importantes espaços de participação e proposição de políticas públicas relacionadas aos riscos ambientais à saúde, que foram se institucionalizando através de leis, decretos, portarias, instruções normativas e normas operacionais. Se, ao longo do século 20 as respostas sociais da saúde aos riscos ambientais ficaram restritas ao saneamento e ao controle de vetores, a SC contribuiu não só para resgatar as lutas sociais da saúde inauguradas no século 19, mas também atualizar as respostas aos novos contextos sociais e ambientais que se colocavam a partir dos anos 80, combinando desde temas relacionados à poluição e degradação dos ecossistemas e seus novos riscos, aos relacionados ao mundo do trabalho envolvendo reestruturação produtiva, recessão, desemprego, informalidade e precarização, com impactos nos acidentes e doenças.
A 1ª CN Saúde do Trabalhador ocorre no mesmo ano da 8ª CN Saúde, antecedendo a criação do SUS. Refletiu a importância dos trabalhadores organizados no processo de democratização e possibilitou inscrever na Constituição de 1988 as ações em saúde do trabalhador como uma de suas atribuições do SUS, ao lado da garantia de acesso universal a todos os trabalhadores, da economia formal e informal.
Nos anos 90, na Lei 8080/90, a saúde do trabalhador é definida como campo de atuação do SUS ao mesmo tempo que o trabalho e o meio ambiente são considerados determinantes e condicionantes da saúde. A partir de 1996 este processo ganha impulso e densidade, ampliando a estruturação e escopo das ações (Quadro 2).
A Rio 92 colocou os temas relacionados aos riscos ambientais na agenda política dos países e, como pode se ver no Quadro 2, em 1995 foi elaborado o primeiro Plano Nacional de Saúde e Ambiente no Desenvolvimento Sustentável, como parte dos desdobramentos do setor saúde na Agenda 21. Entre 1998 e 1999, no governo FHC, teve início a estruturação da saúde ambiental no país, em um contexto socioeconômico marcado pela adesão ao ajuste estrutural proposto pelo Banco Mundial e envolvendo as agências internacionais como OMS e OPAS, com foco no desenvolvimento sustentável e seletividade do papel do Estado em ações como o controle de riscos (incluindo os ambientais) e epidemias1010. Melo MABC, Costa NR. Desenvolvimento sustentável, ajuste estrutural e política social: as estratégias da OMS/OPS e do Banco Mundial para Atenção à Saúde. Brasília: IPEA; 1994.,1111. Rizzotto MLF, Campos GWS. O Banco Mundial e o Sistema Único de Saúde brasileiro no início do século XXI. Saude Soc 2016; 25(2):263-276.. O acordo com o Banco Mundial para o financiamento da estruturação da vigilância em saúde ambiental no SUS, através do Projeto Vigisus, e a portaria que regulamenta a NOB SUS 01/96, no que se relaciona ao controle de doenças e a vigilância ambiental em saúde, ocorrem em 1999, primeiro ano do segundo mandato de FHC.
Ainda no Quadro 2, constata-se que, a partir de 2003, com a criação da Secretaria de Vigilância em Saúde no primeiro governo Lula, inicia-se um processo de aproximação das ações em saúde do trabalhador e saúde ambiental. Entre 2005 e 2009, um conjunto de instruções normativas e portarias institucionalizam a integração destas ações, reforçada nos espaços participativos das CN, com a 3ª de Saúde do Trabalhador, em 2005, tendo ambientes saudáveis como um dos temas e a 1a Conferência Nacional em Saúde Ambiental, em 2009, com muitas de suas diretrizes finais articulando processos produtivos e saúde dos trabalhadores.
A institucionalização e estruturação das ações de saúde do trabalhador e ambiental, se por um lado constituíram avanços nas ações do SUS, resgatando riscos e danos negligenciados e atualizando os novos cenários que foram surgindo no final do século XX , ocorrem em um contexto inicial de ajustes e adesão ao modelo neoliberal, com diminuição do financiamento federal, restrições de investimento em infraestrutura e a gestão do trabalho que prosseguiu desde as fases iniciais do SUS1212. Paim JS. A Constituição Cidadã e os 25 anos do Sistema Único de Saúde (SUS). Cad Saude Publica 2013; 29(10):1927-1936..
Desenvolvimento e padrões de riscos ambientais
Nestes 30 anos tivemos também a consolidação de um processo de transição nos padrões de riscos ambientais e efeitos sobre a saúde associados ao modelo de desenvolvimento socioeconômico. Tendo como referência o trabalho de Smith e Ezzati1313. Smith KR, Ezzati M. How environmental health risks change with development: the epidemiologic and environmental risk transitions revisited. Annu. Rev. Environ. Resour 2005; (30):291-333., podemos considerar que esses padrões se relacionam a uma estrutura espacial e social bem delimitada (níveis espaciais e de organização social que vão do domicílio, ao comunitário/local e ao regional/global), organizada em três categoriais.
A primeira refere-se aos riscos ambientais no nível domiciliar, envolvendo temas como urbanização e assentamentos vulneráveis, déficit habitacional e precário acesso à água e saneamento. Engloba direitos sociais básicos e resulta em efeitos simples e diretos sobre a saúde (ex: infecções intestinais e respiratórias agudas). A segunda se relaciona aos riscos ambientais no nível local e inclui atividades de produção e transporte; poluição química do ar por industrias, veículos e queimadas; contaminação dos solos, águas e alimentos por atividades de produção industrial e agrícola. Resulta em efeitos mediados por intensas transformações socioambientais, combinando diretos e de curto prazo (das doenças respiratórias aos acidentes de trânsito e de trabalho resultantes dos modelos de transporte urbano), como indiretos de médio e longo prazos (câncer e doenças cardiovasculares resultantes da poluição). A terceira abrange riscos ambientais nos níveis regional e global, como mudanças climáticas, combinando efeitos (curto, médio e longo prazos) modulados por transformações socioambientais intensivas e extensivas, envolvendo maior complexidade. No nível macro e estrutural, esta categoria se relaciona aos processos de industrialização e urbanização, assim como às profundas e rápidas mudanças no uso e ocupação do solo como a expansão da fronteira agrícola, desmatamento, queimadas e desastres ambientais, resultando em multiplicidade de danos, doenças e agravos.
No nível global, assim como no Brasil, esses padrões de riscos não ocorrem de modo isolado ou descontextualizados da desigualdade estrutural, não se limita às disparidades de renda entre ricos e pobres, envolvendo também o acesso aos direitos sociais e ambientais. Os grupos sociais em que persistem os piores indicadores de cobertura e acesso aos direitos sociais (educação, alimentação, trabalho, saúde, moradia, saneamento, segurança, transporte e mobilidade urbana) costumam ser os mais expostos aos riscos ambientais onde vivem e trabalham1414. Rigotto RM, Giraldo L. Saúde e ambiente no Brasil: desenvolvimento, território e iniquidade. Cad Saude Publica 2007; 23(Supl. 4):475-485.,1515. Abramovay R. Desenvolvimento sustentável: qual a estratégia para o Brasil? Novos estud-CEBRAP 2010 (87):97-113.. Destituídos da integralidade e universalidade de seus direitos, estes grupos acabam por vivenciar de modo mais intenso a sobreposição das três categorias de riscos ambientais expressa na superposição de doenças infecciosas e crônicas, acidentes de trânsito e de trabalho, com violências.
Assim, embora políticas de redução de desigualdades sociais como o Programa Bolsa Família e Estratégia Saúde da Família tenham significado importantes conquistas dentro do leque dos direitos sociais, com impactos positivos na redução da miséria, da fome e da mortalidade na infância1616. Rasella D, Aquino R, Santos CAT, Sousa-Paes R, Barreto ML. Effect of a conditional cash transfer programme on child hood mortality: a nation wide analysis of Brazil an municipalities. Lancet 2013; 382(9886):57-64., a estrutura das desigualdades sociais não foi transformada. E mais, mantiveram-se os padrões de produção e consumo apoiados em processos extensivos e intensivos de degradação ambiental, com grandes incentivos financeiros do Estado e sem mudança nos padrões dominantes de uso do capital natural, tendo como base a ampliação da produção de commodities (carne, soja e madeira, minérios e energia) e a manutenção de um crescimento industrial intensivo no uso de energia e recursos naturais, por outro1515. Abramovay R. Desenvolvimento sustentável: qual a estratégia para o Brasil? Novos estud-CEBRAP 2010 (87):97-113.,1717. Porto MF, Milanez B. Eixos de desenvolvimento econômico e geração de conflitos socioambientais no Brasil: desafios para a sustentabilidade e a justiça ambiental. Cien Saude Colet 2009; 14(6):1983-1994..
A pecuária extensiva foi a principal responsável pelos desmatamentos na Amazônia, contribuindo com mais de 60% dos 754 mil km22. Rego WL, Pinzani A. Vozes do bolsa família: autonomia, dinheiro e cidadania. São Paulo: UNESP; 2013. desmatados até hoje na Amazônia1818. Vieira L. Impacto das mudanças climáticas no Brasil. Le Monde Diplomatique Brasil 2014; Edição 82.. Comparativamente, a produção de grãos foi responsável por apenas 5% da área desmatada. Porém, contribuiu para o intenso uso de agrotóxicos e sementes transgênicas, tornando o Brasil o maior consumidor mundial deste produto e o segundo em termos de área plantada com sementes transgênicas, perdendo apenas para os EUA1919. Bombardi LM. Geografia do uso de agrotóxicos no Brasil e conexões com a União Europeia. São Paulo: FFLCH – USP; 2017.,2020. International Service for the Acquisition of Agri-biotech Applications (ISAAA). Global Status of Commercialized Biotech/GM Crops: 2016. ISAAA Brief No. 52. Ithaca: ISAAA; 2016..
A produção de carne e grãos exerce fortes pressões no desmatamento, perda da biodiversidade, mudanças climáticas, diminuição da produtividade do solo e desertificação, alterações na qualidade e disponibilidade de água, segurança alimentar, eventos climáticos extremos e ciclos de vetores, contribuindo para o aumento das doenças de veiculação hídrica e por vetores (malária, dengue, zika, chicungunhya, febre amarela), cardiorrespiratórias, mentais e psicossociais; além disto, contaminação do solo, águas subterrâneas e cadeia alimentar por agrotóxicos, resultando em intoxicações agudas e contaminações crônicas, afetando principalmente trabalhadores rurais e populações próximas às áreas de plantio, com acumulação de poluentes persistentes nos tecidos humanos com potencial consequências genéticas e reprodutivas.
A produção de minérios é outro exemplo. Além dos grandes impactos ambientais que esta atividade produz rotineiramente, há também os desastres associados à mesma, como o que ocorreu em 2015, com o rompimento da barragem da mineradora Samarco, em MG. Esta resultou no maior desastre mundial em termos de quantidade de materiais (cerca de 34 milhões de m33. Abers R, Oliveira MS. Nomeações políticas no Ministério do Meio Ambiente (2003-2013):interconexões entre ONGs, partidos e governos. Opin. Pública 2015; 21(2):336-364.) e extensão territorial (34 municípios e aproximadamente 650 km), resultando em mais de 10 mil diretamente afetados nos municípios próximos e 19 óbitos (2/3 trabalhadores terceirizados)2121. Freitas CM, Silva MA, Menezes FC. O desastre na barragem de mineração da Samarco: fratura exposta dos limites do Brasil na redução de risco de desastres. Cienc. Cult 2016; 68(3):25-30.. Em Barra Longa, município vizinho, uma investigação do Ministério da Saúde comparando o ano de 2014 com o primeiro semestre de 2016 (6 meses depois), revelou grande elevação de infecções de vias aéreas superiores, casos suspeitos de dengue, parasitoses e hipertensão arterial sistêmica2626. Rede Brasil Atual. Metade dos casos de febre amarela está na região afetada pela lama da Samarco, 3 março de 2017.. O monitoramento ambiental do Rio Doce em 2016 detectou níveis significativos de contaminação por metais pesados como alumínio, arsênio, cádmio, cobre, cromo, manganês e níquel, sendo que chumbo e mercúrio com níveis superiores ao limite da legislação de 165 e 1465 vezes, respectivamente2121. Freitas CM, Silva MA, Menezes FC. O desastre na barragem de mineração da Samarco: fratura exposta dos limites do Brasil na redução de risco de desastres. Cienc. Cult 2016; 68(3):25-30.. No início de 2017, Minas Gerais foi o estado com maior registro de casos de febre amarela silvestre, com os municípios localizados na bacia do Rio Doce concentrando metade dos casos confirmados e um terço dos óbitos, surgindo a hipótese de o desequilíbrio ecológico provocado pela magnitude do desastre estar na raiz da mesma2626. Rede Brasil Atual. Metade dos casos de febre amarela está na região afetada pela lama da Samarco, 3 março de 2017..
Nas cidades, o déficit habitacional em 2015 era de 6.186.503 de domicílios2727. Fundação João Pinheiro (FJP). Déficit habitacional no Brasil 2015: resultados preliminares. Belo Horizonte: FJP; 2017.. Este déficit, se superpõe ao crescimento das populações vivendo em favelas ou palafitas (eram mais de 11 em 2010, segundo dados do IBGE), que teve nos últimos 30 anos um crescimento maior do que da população total ou a que vive em áreas urbanas2828. Maricato E. The Future of Global Peripheral Cities. Latin American Perspectives 2017; 44(2):18-37.. Condições precárias de moradias para milhões de pessoas são combinadas com persistentes déficits no saneamento que limitam os avanços conquistados nas últimas décadas. Mais de 80% da população tem acesso à água, mas ainda é intermitente e por vezes fora dos padrões nas áreas e regiões mais pobres2929. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Indicadores de desenvolvimento sustentável: Brasil: 2015. Rio de Janeiro: IBGE, 2015. p. 352.; a coleta de esgoto atinge mais da metade da população, mas 45% do mesmo é lançado em corpo de água sem nenhum tratamento3030. Brasil. Ministério das Cidades (MCIDADES). Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento. Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos, 2015. Brasília: SNSA/MCIDADES; 2017.; a coleta de lixo está próxima de 100%, mas 48% dos municípios brasileiros ainda despejam em lixões3131. Folha de São Paulo. Descarte de lixo ainda é inadequado em mais da metade das cidades do país. 20 janeiro 2018..
O déficit habitacional e as precárias condições de moradia e saneamento retroalimentam a desigualdade social e potencializam a combinação dos riscos de nível domiciliar com os riscos de nível regional e global associados aos processos de mudanças climáticas e urbanização precária, dentre outros processos socioambientais. É dentro deste quadro que devemos compreender riscos e doenças que têm impactado as regiões com maiores percentuais de populações vivendo em condições de pobreza, como o Nordeste, assim como o que ocorre nos municípios do estado mais rico do país: São Paulo.
Em 2013, durante uma das mais graves secas das últimas décadas, o Nordeste vivenciou surtos de diarreia relacionados ao precário acesso à água, com grande número de internações e óbitos em Pernambuco e Alagoas, em 2013, principalmente nos municípios mais pobres3232. Rufino R, Gracie R, Sena A, Freitas CM, Barcellos C. Surtos de diarreia na região Nordeste do Brasil em 2013, segundo a mídia e sistemas de informação de saúde – Vigilância de situações climáticas de risco e emergências em saúde. Cien Saude Colet 2016; 21(3):777-788.. Em 2015, com a introdução do vírus zika, o Nordeste teve um grande aumento do número de casos de microcefalia, principalmente em Pernambuco, com prevalência de cerca de duas vezes e meia mais para mães de pele preta ou parda comparadas com branca, com até 3 anos de estudos e que não realizaram o pré-natal em relação àquelas com seis ou mais consultas3333. Marinho F, Araújo VEM, Porto DL, Ferreira HL, Coelho MRS, Lecca RCR, Oliveira H, Poncioni IPA, Maranhão MHN, Mendes YMMB, Fernandes RM, Lima RB, Rabello Neto DL. Microcefalia no Brasil: prevalência e caracterização dos casos a partir do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc), 2000-2015. Epidemiol. Serv. Saúde 2016; 25(4):701-712..
Em 2014 a cidade de Campinas, que possui um dos melhores IDHM do país, teve a maior epidemia de dengue já registrada em sua história, com as maiores taxas concentradas nas áreas onde vivem as populações com piores condições socioeconômicas e de acesso a recursos e serviços urbanos3434. Johansen IC, Carmo RL, Alves LC. Desigualdade social intraurbana: implicações sobre a epidemia de dengue em Campinas, SP, em 2014. Cad. Metrop. 2016; 18(36):421-440. Na cidade de São Paulo, a crise hídrica de 2014/2015, que combinou mudanças climáticas, desmatamento na Região do Sistema Cantareira e problemas na gestão das águas, contribuiu para um aumento de 697% no número de casos notificados da doença, comparando o primeiro bimestre de 2014 com o mesmo período do ano de 20153535. Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), Ministério da Saúde (MS). Atuação do setor saúde frente a situações de seca. Brasília: OPAS, MS; 2015. (Série Desenvolvimento Sustentável e Saúde, 3)., com impactos maiores principalmente para populações e áreas mais pobres.
Essas situações envolvendo a sobreposição de diferentes riscos ambientais nos níveis comunitário/local/regional/global, com a justaposição de seus danos, doenças e agravos de curto à longo prazos, conhecidos e desconhecidos, visíveis e invisíveis, constituem expressões de um modelo de desenvolvimento socioeconômico em que o mesmo Estado que promove as atividades econômicas que favorecem o capital, principalmente o financeiro, negligencia as conquistas de cidadania e direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e à redução de risco de doenças e agravos. Os incentivos fiscais vão para a indústria automobilística e não para a mobilidade urbana, para a queima de carvão e combustíveis fósseis e não para energias renováveis, para os transgênicos e agrotóxicos no agronegócio e não para a agricultura familiar e agroecologia, para grandes construtoras e o mercado imobiliário financeirizado e não para uma política habitacional e de saneamento orientadas para a inclusão social. As desigualdades sociais, estruturais e a degradação ambiental constituem a base dos processos de determinação social e ambiental dos padrões de riscos ambientais com efeitos diretos, mediados e modulados expressos em danos, doenças e agravos no Brasil, representando ainda grandes obstáculos às conquistas da cidadania e do direito à saúde ambiental.
Considerações finais
Nos últimos 30 anos no Brasil, principalmente através de dispositivos presentes na Constituição de 1988, tivemos a implementação de instituições e políticas públicas voltadas à realização de direitos sociais e ambientais resultando na melhoria de indicadores tradicionais da saúde, como aumento da expectativa de vida e redução da mortalidade infantil. Tivemos também a ampliação dos espaços institucionais de participação da sociedade, verdadeiras caixas de ressonância das demandas e anseios de um país mais justo, com melhor qualidade de vida e um meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Estas conquistas ocorreram em um contexto em que os ajustes e adesão ao modelo neoliberal limitou a consolidação das instituições e a ampliação das políticas voltadas à realização dos direitos sociais e ambientais. Por um lado, através da diminuição do financiamento federal e restrições de investimento em infraestrutura, que não se limitou somente ao setor saúde, mas também e mais acentuadamente ao setor ambiental. Por outro a orientação das agências internacionais, adotada pelo Brasil, que combinava desenvolvimento sustentável com seletividade nas ações do Estado para o controle de riscos e epidemias, sem proposições e ações efetivas para mudanças nos padrões de uso do capital natural e na estrutura das desigualdades que se encontram na raiz dos processos de determinação dos riscos ambientais.
Além disto, se podemos considerar que tivemos conquistas na redução da desigualdade econômica sob o regime democrático (de 1985 a 2015), com o direito à saúde contribuindo neste processo3636. Arretche M. Democracia e redução da desigualdade econômica no brasil: a inclusão dos outsiders. Rev. bras. Ci. Soc. 2018; 33(96):2-19., temos de ter em conta suas limitações se não consideramos os custos ambientais da saúde. Sem considerar as externalidades ambientais, pode-se considerar positivo o boom das commodities na redução da desigualdade econômica, pois, como argumenta Arretche3636. Arretche M. Democracia e redução da desigualdade econômica no brasil: a inclusão dos outsiders. Rev. bras. Ci. Soc. 2018; 33(96):2-19., gerou demanda por empregos, aumentou o poder de barganha dos trabalhadores, favoreceu ganhos de renda e expandiu as receitas governamentais sem a necessidade de aumento de impostos. Concepções de saúde que a restringem ao acesso à serviços de saúde ou aos indicadores tradicionais de saúde serão incapazes de considerar os custos que a perda de biodiversidade, a contaminação química, a degradação ambiental e a alteração dos ciclos das águas, clima e vetores produzem para a vida e saúde no país e no planeta.
Por fim, os obstáculos tornaram-se mais evidentes após o golpe parlamentar de 2016, assumindo um governo orientado para atender integralmente as pautas do mercado e da acumulação de capital, derrubando e/ou negligenciando os direitos conquistados ao longo destes 30 anos. Além da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) dos gastos públicos e do Projeto de Lei da reforma trabalhista, com impactos diretos sobre a saúde e as condições de trabalho, há diversos outros atos que apontam para inúmeros retrocessos: lei da grilagem de terras, portaria do trabalho escravo, marco temporal e restrições ao direito de demarcação de terras para povos indígenas e comunidades quilombolas, enfraquecimento do licenciamento ambiental, liberação de áreas protegidas para exploração mineral a grandes empresas do setor, mudanças na forma de avaliação de agrotóxicos, favorecendo sua comercialização.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jun 2018
Histórico
- Recebido
05 Jan 2018 - Revisado
30 Jan 2018 - Aceito
27 Fev 2018