Resumo
Este artigo estimou o gasto tributário em saúde tendo como base os dados oficiais da Receita Federal do Brasil entre 2003 e 2015. O Ministério da Saúde poderá assim avaliar o papel de tais subsídios no contexto do subfinanciamento do Sistema Único de Saúde. Para a análise dos dados, articularam-se dois eixos teóricos: os estudos relacionados à economia política da saúde e às finanças públicas. Vale dizer, ao lado da dimensão empírica do trabalho, se privilegiou a avaliação das políticas de saúde no campo do financiamento setorial. Os resultados apontam que o subsídio associado aos planos de saúde atingiu o montante de R$ 12,5 bilhões em 2015, o que poderia ampliar a alocação de recursos financeiros na atenção primária e nos bens e serviços de média complexidade tecnológica.
Sistema de saúde; Saúde pública; Orçamentos; Financiamento governamental; Equidade
Introdução
A Constituição Federal de 1988 (CF/1988) definiu a saúde como “dever do Estado” e “direito do cidadão”. Pela letra da lei, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), todo cidadão possui este direito de acordo com suas necessidades sociais, independentemente da sua capacidade de pagamento, da sua inserção no mercado de trabalho ou da sua condição de saúde.
Parece evidente que o Estado deveria ter concentrado seus esforços para construir e fortalecer o sistema público nos últimos 30 anos. Notou-se, entretanto, que os planos de saúde contaram com pesados incentivos governamentais, cujos subsídios favoreceram e favorecem o consumo de bens e serviços privados. Assim, de modo diverso do esquema beveredgiano e similar ao modelo privado estadunidense, o sistema de saúde brasileiro passou a funcionar como sistema duplicado e paralelo – na esteira da privatização, do antigo seguro social (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social – Inamps) 11. Andrade EIG, Dias Filho, PPS. Padrões de financiamento da saúde do trabalhador: do seguro social ao seguro saúde. In: Lobato LV, Fleury, organizadores. Seguridade Social, Cidadania e Saúde , Rio de Janeiro: Cebes, 2009. p. 160-172. .
Para os defensores do SUS não é fácil lidar com essa contradição. O mercado pode agravar as distorções deste tipo de sistema, dado que o aumento do gasto privado e do poder econômico acabam corroendo a sustentabilidade do financiamento estatal, conduzindo a um círculo vicioso, caracterizado pela queda relativa do custeio e do investimento na saúde pública 22. Tuohy CH, Flood CM, Stabile M. How does private finance affect public health care systems? Marshaling the evidence from OECD nations. Journal of health politics, policy and law 2004; 29(3):359-396. . E, de igual modo importante, a regulação de sistema duplicado é muito mais complexa para o Estado 33. Wasem J, Greb S. Regulating private health insurance markets. In: Marmor TR, Freeman R, Okma K, editors. Comparative Studies and the Politics of Modern Medical Care . New Haven: Yale University Press; 2009. p. 288-304. , uma vez que o mercado cobre também serviços ofertados pelo setor público 44. .Organization for Economic Co-operation and Development (OECD). Proposal for a taxonomy of health insurance . Paris: OECD; 2004. .
Não é à toa que há certo consenso entre os analistas de políticas de saúde de que os maiores desafios (do SUS) são políticos, pois supõem a garantia do financiamento do subsistema público, a redefinição da articulação público-privada e a redução das desigualdades de renda, poder e saúde 55. Paim JS. A Constituição cidadã e os 25 anos do Sistema Único de saúde (SUS). Cad Saude Publica 2013; 29(10):1927-1934. . Esse quadro sintetiza a americanização perversa 66. Werneck Vianna MLT. A Americanização (Perversa) da Seguridade Social no Brasil: estratégias de bem-estar e políticas públicas . Rio de Janeiro: Revan; 1998. do sistema de saúde brasileiro, de modo que seria oportuno repensar por que razões não foi possível romper as amarras estruturais desta herança histórica 77. Cohn A, Viana AL, Ocké-Reis CO. Configurações do sistema de saúde brasileiro: 20 anos do SUS. Revista de política, planejamento e gestão em saúde 2010; 1(1):57-70. , em direção à ampliação do financiamento do SUS e do fortalecimento dos mecanismos regulatórios da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Em particular, por ser peça-chave na reprodução econômica deste sistema duplicado e paralelo, tal renúncia merece mais atenção das autoridades governamentais, caso se queira, a um só tempo, consolidar o SUS e reduzir o gasto das famílias e dos empregadores com bens e serviços privados.
No contexto do subfinanciamento público 88. Piola SF, Paiva AB, Sá EB, Servo LMS. Financiamento público da saúde: uma história à procura de rumo. Rio de Janeiro: Ipea; 2013. (Texto para Discussão, n. 1.846.) , a contradição central da renúncia fiscal associada aos gastos com planos de saúde reside em diminuir os gastos dos estratos superiores de renda, ao mesmo tempo em que patrocina atividade econômica altamente lucrativa, em detrimento de recursos financeiros que poderiam ser alocados para ampliar programas de caráter preventivo e melhorar a qualidade dos serviços especializados, fundamentais para a consolidação do SUS 99. Ocké-Reis CO. Qual é a magnitude do gasto tributário em saúde? Boletim de Análise Político-Institucional (IPEA) 2014; 5:71-76. .
Para avaliar os subsídios em saúde, este artigo apresentará inicialmente um debate inconcluso a respeito do tema, seguido da discussão a respeito da magnitude dos gastos tributários em saúde no Brasil e sua evolução entre 2003 e 2015, em especial da renúncia associada aos gastos com planos de saúde das famílias e dos empregadores. A seguir discutimos a necessidade de o governo federal regular a aplicação deste subsídio. Por fim, propõe-se a continuidade desta agenda de pesquisa, pois – além dos problemas do SUS relativos ao financiamento, à gestão e à participação social, à primeira vista – a renúncia não promove a consolidação do SUS e a equidade do sistema de saúde brasileiro.
Debate inconcluso
Alguns países – como Austrália, Canadá e Estados Unidos – oferecem, ao seu modo, incentivos governamentais aos contribuintes, mediante a redução de impostos, para o consumo de planos privados de saúde 1010. Mossialos E, Thomson S. Voluntary health insurance in the European Union: a critical assessment. International journal of health services 2002; 32(1):19-88. . Tal incentivo representa gasto tributário – se percebido como imposto não recolhido ou gasto público não aplicado diretamente nas políticas de saúde 1111. Villela LA. Gastos tributários e justiça social: o caso do IRPF no Brasil [dissertação]. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica; 1981. . Expressando visões antagônicas, este poderia tanto reforçar a política de contenção de custos no setor público, quanto promover a rentabilidade do setor privado, ou, ainda, compensar os efeitos negativos da carga tributária e do abuso do usuário 1212. Pauly M. Taxation, health insurance, and market failure in the medical economy. Journal of economic literature 1986; 24(2):629-75. .
Sem entrar no mérito dos subsídios destinados à oferta (indústria farmacêutica e hospitais filantrópicos), o Brasil segue esta tendência mundial, uma vez que não apenas os gastos com planos de saúde, mas também com profissionais de saúde, clínicas e hospitais, podem ser abatidos da base de cálculo do imposto a pagar – para a pessoa física e a pessoa jurídica –, o que reduz a arrecadação do governo federal. Uma vez que os mecanismos privados de financiamento tendem a afetar o orçamento público aplicado na saúde 1313. Flood CM, Stabile M, Tuohy CH. The borders of solidarity: how countries determine the public/private mix in spending and the impact on health care. Health Matrix Clevel 2002; 12(2):297-356. , pode-se questionar, de um lado, se a renúncia subtrai recursos do SUS que poderiam incrementar sua qualidade; e, de outro, se ela restringe o acesso a esse sistema, à medida que sua aplicação piora a distribuição do gasto público per capita para certos grupos da população 1414. Medici AC. Incentivos governamentais ao setor privado no Brasil . Rio de Janeiro: ENCE-IBGE; 1990. (Relatórios Técnicos, n. 1.). .
No contexto do sistema público e privado brasileiro – duplicado e paralelo –, considerando-se os impactos deste subsídio sobre o financiamento do SUS e a equidade do sistema, parece aceitável que o Estado atenue o conflito distributivo 1515. Nogueira RP. Critérios de justiça distributiva em saúde . Brasília: Ipea; 2011. (Texto para Discussão, n. 1.591). , decorrente da aplicação de subsídios aos estratos superiores de renda, que acabam favorecendo o faturamento do mercado de planos de saúde. Contudo, o ponto a ser destacado, na atual conjuntura histórica, repousa na seguinte constatação, para além da política de austeridade fiscal: este conflito não parece encorajar a adoção de medidas governamentais no curto prazo.
no plano teórico, a renúncia não é vista como peça-chave para a reprodução do sistema duplicado e paralelo. Afinal de contas, não se trata de desoneração fiscal qualquer; pelo contrário, esta foi e é essencial para a estrutura e a dinâmica do mercado de planos de saúde 1616. Ocké-Reis C.O. SUS: o desafio de ser único . Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2012. ;
no plano político, contrariar determinados interesses enraizados na relação Estado/sociedade poderia gerar realinhamentos imprevisíveis no ciclo eleitoral. No primeiro momento, a legitimidade de redução, eliminação ou focalização do subsídio poderia ser contestada pela “classe média”, que tem influência na opinião pública; pelos trabalhadores do setor público, privado e das empresas de economia mista, que perderiam todo ou parte do subsídio; pelos empregadores, que sofreriam aumento do custo da mão de obra, embora com a possibilidade de proteger-se via remarcação de preços; pelas operadoras de planos de saúde, por clínicas e hospitais privados e pelos profissionais de saúde, que perderiam também parte da sua receita, uma vez que o gasto tributário funciona como patrocínio para o consumo de bens e serviços privados 1717. Andreazzi MFS, Bursztyn I, Holguin T, Sicsú B, Tura LFR. A agenda da reforma dos benefícios tributários das famílias e das empresas com saúde: entre o particular e o geral. Revista de Sociologia e Política 2010; 18(35):151-165. ;
no plano institucional, não se pode deixar de registrar que os poderes executivo, legislativo e judiciário – isto é, o núcleo do poder decisório do Estado brasileiro – é coberto por planos privados de saúde – ou por formas híbridas como os planos de autogestão – e contam com benefícios da renúncia de arrecadação fiscal. Além disso, seus membros recebem incentivos da União, sob a forma de salário indireto, para o consumo de bens e serviços privados de saúde 1818. Ocké-Reis CO, Santos FP. Mensuração dos gastos tributários em saúde: 2003-2006 . Rio de Janeiro: IPEA; 2011. (Texto para Discussão, n. 1.637.) .
Em que pese o realismo desse cenário, para reverter esse quadro, uma alternativa seria aumentar os recursos financeiros, melhorar a qualidade do SUS e ampliar a capacidade regulatória do Estado sobre o mercado de serviços de saúde. Este serviria como polo de atração para segmentos da clientela da medicina privada, tendo-se como resultado a redução dos gastos das famílias e dos empregadores. Se, de um lado, isto poderia permitir o apoio político para reduzir, eliminar ou focalizar a renúncia, de outro, exigiria que o próprio gasto tributário fosse alocado na atenção primária (prevenção) e na atenção secundária (exames, consultas especializadas e cirurgias ambulatoriais) para melhorar, substancialmente, as condições de acesso e utilização do SUS. Entretanto, se este caminho parece crível, sua extensão e sua profundidade dependem do crescimento da economia e da produtividade deste sistema, do caráter anticíclico da política fiscal e da primazia da carreira de Estado na gestão dos recursos humanos do Ministério da Saúde (MS) e das esferas subnacionais. De qualquer maneira, não é recomendável naturalizar a renúncia – aceitá-la como natural, uma vez que resultou da ação humana, condicionada por interesses econômicos e políticos, em certo período histórico –, tampouco manter desregulada sua aplicação – afastada de valores, normas e práticas que possibilitem o exercício do controle governamental sob o marco constitucional do SUS. Afinal de contas, a renúncia pode gerar situação tão regressiva da ótica das finanças públicas – ao favorecer os estratos superiores de renda e o mercado de planos de saúde –, que alguns países impuseram tetos ou desenharam políticas para reduzir ou focalizar sua incidência 1919. Organization for Economic Co-operation and Development (OECD). Private health insurance in OECD countries. Paris: OECD; 2004. . Nessa linha, parece oportuno refletir sobre a regulamentação dos gastos tributários em saúde, mas antes – na próxima seção – se examinará sua magnitude entre 2003 e 2015, com destaque para a análise da renúncia associada aos gastos com planos de saúde.
Magnitude dos gastos tributários em saúde no Brasil – 2003-2015
Esta seção apresenta a renúncia fiscal em saúde observada entre 2003 e 2015, ou seja, o montante de recursos que o Estado deixou de arrecadar, que envolve o consumo das famílias e dos empregadores, bem como a produção de bens e serviços da indústria farmacêutica e dos hospitais filantrópicos. Em particular, tendo como base os dados oficiais da Receita Federal do Brasil (RFB), estimou-se a renúncia efetiva associada aos planos de saúde, calculada ad hoc , a partir do modelo completo do Imposto de Renda – Pessoa Física (IRPF) e a partir de proxy das despesas médicas dos empregadores, por meio da Imposto de Renda – Pessoa Jurídica (IRPJ).
Na Tabela 1 , observamos que em 2003 o setor saúde respondeu por 22,2% do gasto tributário total, isto é, R$ 32,3 bilhões. Essa participação foi decrescente ao longo do período, atingindo 11,7% em 2015. Essa redução se explica em boa parte pela ampliação das desonerações fiscais e previdenciárias promovidas pelo governo federal.
Na mesma linha, verificamos na Tabela 2 que a renúncia de arrecadação fiscal correspondeu a aproximadamente 1/3 das despesas com Ações e Serviços Públicos de Saúde (ASPS) do Ministério da Saúde (MS), que se manteve estável entre 2003 e 2015, variando entre 31,8% e 32,3% no período.
Na Tabela 3 , tendo em vista as necessidades de financiamento do SUS, observamos que o montante da renúncia não foi desprezível entre 2003 e 2015: em treze anos, a preços médios de 2015, o governo deixou de arrecadar R$ 331,5 bilhões (soma dos valores apresentados na terceira coluna). Nota-se, ainda, que a trajetória do crescimento do gasto direto e indireto em saúde em termos reais se deu em ritmo superior à evolução do PIB no período, sendo que, no último ano, os subsídios cresceram relativamente mais do que o próprio gasto direto.
Em 2015, somando a renúncia associada ao IRPJ ( Tabela 4 ) mais aquela associada aos planos de saúde ( Tabela 5 ), temos que os subsídios que patrocinam o consumo no mercado de planos de saúde alcançou R$ 12,5 bilhões em 2015. Em 2003, esse montante era de R$ 6,1 bilhões, de modo que, em termos reais, os subsídios dobraram no período.
No quadro de desfinanciamento do SUS – considerando-se a magnitude expressiva do gasto tributário em saúde –, deve-se pensar sobre o caráter da regulamentação dos gastos tributários em saúde, advertindo-se que a tendência atual gera similaridade com a arquitetura do sistema privado de saúde estadunidense – reconhecido como caro e ineficiente – e que também se caracteriza pela presença de subsídios e benefícios aos empregadores 2020. Marmor TR, Boyum D. Reflections on the argument for competition in medical care. In: Marmor TR, editor. Understanding Healthcare Reform . New Haven: Yale University Press; 1994. p. 139-145. .
Qual é o papel do Ministério da Saúde?
Como se observou, ao deixar de arrecadar parte dos impostos, o Estado age como se estivesse realizando um pagamento – ou seja, um gasto tributário. Trata-se de pagamento implícito – isto é, não há desembolso –, mas constitui-se, de fato, em pagamento.
Nesse marco, as pessoas físicas podem deduzir da renda tributável os dispêndios realizados com saúde; porém, de maneira diversa da área da educação, não existe limite (teto) para tal abatimento – a não ser o próprio nível de renda do indivíduo. Esta forma de renúncia se aplica de igual modo ao empregador, quando fornece assistência à saúde a seus empregados, pois esta é considerada despesa operacional e pode ser abatida do lucro tributável 2121. Piola SF, Barros MED, Servo LMS, Nogueira RP, Sá EB, Paiva AB. Gasto tributário e conflito distributivo na saúde. In: Castro JA, Santos CH, Ribeiro JAC. Tributação e equidade no Brasil: um registro da reflexão do Ipea no biênio 2008-2009 . Brasília: Ipea; 2010. p. 351-374. . Vale dizer, no Brasil, esse tipo de incentivo governamental não é novidade nas relações econômicas estabelecidas entre o Estado e o mercado, e, portanto, seria natural esperar que o gasto tributário associado àqueles com planos de saúde fosse ao menos justificado nas diretrizes do MS.
Afinal de contas, qual é a funcionalidade da renúncia de arrecadação fiscal na área da saúde para o governo federal? Em tese, esse tipo de gasto poderia atender aos seguintes objetivos governamentais, de forma combinada ou não: patrocinar o consumo de planos de saúde; fortalecer a regulação dos preços do mercado de planos de saúde; reduzir a fila de espera e o tempo de espera nos serviços especializados do setor público; diminuir a carga tributária dos contribuintes que enfrentam gastos catastróficos em saúde; reduzir os gastos com bens e serviços privados de saúde da força de trabalho inserida no polo dinâmico da economia; e promover benefício fiscal. Nessa linha, é desejável que o Estado normatize as regras de aplicação desse subsídio, bem como avalie seu impacto e torne mais transparente para a sociedade sua finalidade no campo das políticas de saúde.
No entanto, desde já, é possível sugerir algumas hipóteses sobre a lógica concreta do seu modus operandi:
o gasto público em saúde é baixo, e boa parte dos problemas de gestão decorre exatamente de problemas de financiamento do SUS 2222. Ocké-Reis CO. Os problemas de gestão do SUS decorrem também da crise crônica de financiamento? Trabalho educação e saúde 2008-2009; 6(3):613-622. , de modo que a renúncia subtrai recursos significativos para este sistema, que poderiam melhorar seu acesso e sua qualidade;
a renúncia reforça a iniquidade do sistema de saúde, o que piora a distribuição do gasto público per capita – direto e indireto – para os estratos inferiores e intermediários de renda;
os lobbies tendem a conservar e a agravar tal iniquidade, dado que o poder econômico pode corroer as sustentabilidades econômica e política do SUS no Congresso Nacional;
os subsídios não desafogam os serviços médico-hospitalares do SUS, dado que os usuários de planos de saúde utilizam seus serviços (vacinação, urgência e emergência, banco de sangue, transplante, hemodiálise, serviços de alto custo e de complexidade tecnológica). Dessa maneira, paradoxalmente, o sistema acaba socializando parte dos custos das operadoras – a exemplo do contencioso em torno do ressarcimento;
No movimento contraditório do mix público/privado, os subsídios voltados para o setor privado podem aumentar – de maneira descontrolada – a procura global por serviços de saúde, duplicando muitas vezes sua oferta. Pior: os usuários de planos de saúde, uma vez favorecidos pela renúncia, podem fazer, por exemplo, exames diagnósticos com mais rapidez, permitindo-os “furar” a fila do SUS, em geral, nos serviços de alta complexidade.
Essas hipóteses merecem ser verificadas empiricamente, mas são tão marcantes que uma justificativa aceitável para o MS preencher esta lacuna normativa deveria partir da suspeita que a renúncia de arrecadação fiscal pode afetar o financiamento do SUS e a equidade do sistema de saúde. Em especial, caso seja considerado o caráter progressivo do SUS e seus efeitos positivos sobre a desconcentração de renda: o fato de que os 40% mais pobres se apropriam de cerca da metade dos gastos com internações hospitalares e de 45% das despesas com procedimentos ambulatoriais frente a uma participação da ordem de 10% para os 20% mais ricos. Na composição do total das despesas, cabe a metade mais pobre pouco mais de 55% frente a uma participação de 1/5 para os 30% mais ricos 2323. Silveira FG. Equidade fiscal: impactos distributivos da tributação e do gasto social. In: Prêmio Tesouro Nacional, 17. Brasília, Distrito Federal. Anais. Brasília: Tesouro Nacional, 2013. .
Caso o governo queira radicalizar a carta constitucional em defesa da universalidade e da integralidade do SUS, outras pressuposições deveriam ser consideradas pelo MS, tendo-se em mente as contradições encerradas na articulação entre o padrão de financiamento público e o mercado de planos de saúde:
o gasto tributário foi e é peça-chave para a reprodução do sistema duplicado e paralelo;
o subsídio associado ao mercado de planos de saúde não influencia a calibragem da política de reajustes de preços dos planos individuais praticada pela ANS – por exemplo, a Anvisa monitora a redução do preço dos medicamentos, a partir da desoneração fiscal patrocinada pelo governo voltada à indústria farmacêutica.
o montante da renúncia associado ao IRPF e ao IRPJ não é controlado pelo MS, tampouco pelo Ministério da Fazenda – condicionada pela renda, este depende, exclusivamente, do nível de gastos com saúde dos contribuintes e dos empregadores.
Na atual correlação de forças, não existe solução única, muito menos de corte tecnocrático, para definir o papel do MS nessa questão. Por isto, evitando-se a judicialização deste processo, a aproximação do governo junto à sociedade civil é essencial neste debate. A rigor, o governo não controla o destino, tampouco o teto dos gastos tributários, que são definidos pelos planos e seguros de saúde, pelos prestadores de serviços de saúde das redes contratadas e pelos consumidores – ou seja, não necessariamente a partir das prioridades do governo federal.
Uma alternativa, semelhante à área de educação, seria, tecnicamente, estabelecer um teto ou planejar a eliminação/redução do gasto tributário em saúde. Com base nas experiências internacionais, a focalização poderia, de igual modo, ser medida introdutória de fácil aplicação: seja em relação à faixa etária, ao nível de renda, aos itens de gastos (médicos, hospitais ou planos de saúde), ou, ainda, às próprias condições de saúde.
Em suma, o MS não pode desistir do seu papel de regular o gasto tributário em saúde, cujo desenho dependerá do projeto institucional do governo para o setor, bem como do seu poder de barganha para superar os conflitos distributivos na arena setorial e para resistir à sua captura pelo mercado de planos de saúde.
Considerações finais
O bloco histórico sanitarista deve lutar para ampliar o financiamento, melhorar a gestão e fortalecer a participação social do SUS, mas, ao mesmo tempo, na crítica à privatização, deve propor a criação de estruturas institucionais e mecanismos regulatórios que permitam atrair segmentos da clientela da medicina privada para o SUS, bem como reduzir o gasto dos trabalhadores, das famílias e dos idosos com planos de saúde, serviços médico-hospitalares e remédios.
Na tentativa de fortalecer o SUS e reorientar o modelo de atenção, o gasto tributário associado aos planos de saúde – que alcançou R$ 12,5 bilhões em 2015 – poderia ajudar no crescimento das transferências para a atenção básica e a média complexidade do MS.
Seria necessário, assim, convencer o governo e a sociedade acerca das “externalidades positivas” da eliminação, da redução ou da focalização dos subsídios, desde que tais recursos sejam aplicados na atenção primária (Programa Saúde da Família – PSF, promoção e prevenção à saúde etc.) e na média complexidade (unidades de pronto atendimento, prática clínica com profissionais especializados e recursos tecnológicos de apoios diagnóstico e terapêutico etc.) do SUS.
Afinal de contas, a conversão de gasto público indireto em direto na área da saúde teria mais sentido clínico e epidemiológico se contribuísse para negar e superar o atual modelo de atenção assistencial; em outras palavras, se fustigasse o sistema duplicado e paralelo, que estimula a superprodução e o consumo desenfreado de bens e serviços de saúde 2424. Coelho IB. Os Hospitais na Reforma Sanitária Brasileira [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2013. e que responde às condições crônicas na lógica da atenção às condições agudas e, ao final de um período mais longo, pode determinar resultados sanitários e econômicos desastrosos 2525. Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS). A crise contemporânea dos modelos de atenção à saúde. In: Seminário CONASS Debate, 3. Brasília, Distrito Federal. Anais. Brasília: CONASS; 13 maio 2014. . Entretanto, na atual conjuntura, considerando-se as vicissitudes do ciclo eleitoral, existe grau de indeterminação quanto à disposição da atual coalizão governamental em alocar os subsídios fiscais para o SUS, visando-se à melhoria do seu acesso e da sua qualidade. Parece aceitável, ao menos, que o MS se disponha a regular e a avaliar o gasto tributário em saúde.
O que precisa ser verificado é um conjunto de evidências que, neste momento, estão indicando a seguinte conclusão: a renúncia da arrecadação fiscal induz o crescimento do mercado de planos de saúde – em detrimento do fortalecimento do SUS – e, também, gera situação de injustiça distributiva, ao favorecer os estratos superiores de renda e determinadas atividades econômicas lucrativas.
Referências
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- 21Piola SF, Barros MED, Servo LMS, Nogueira RP, Sá EB, Paiva AB. Gasto tributário e conflito distributivo na saúde. In: Castro JA, Santos CH, Ribeiro JAC. Tributação e equidade no Brasil: um registro da reflexão do Ipea no biênio 2008-2009 . Brasília: Ipea; 2010. p. 351-374.
- 22Ocké-Reis CO. Os problemas de gestão do SUS decorrem também da crise crônica de financiamento? Trabalho educação e saúde 2008-2009; 6(3):613-622.
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- 24Coelho IB. Os Hospitais na Reforma Sanitária Brasileira [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2013.
- 25Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS). A crise contemporânea dos modelos de atenção à saúde. In: Seminário CONASS Debate, 3. Brasília, Distrito Federal. Anais. Brasília: CONASS; 13 maio 2014.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jun 2018
Histórico
- Recebido
05 Jan 2018 - Revisado
30 Jan 2018 - Aceito
05 Mar 2018