Resumo
O Sistema de Vigilância de Acidentes de Trabalho (SIVAT), implantado pelo Centro de Referência em Saúde do Trabalhador de Piracicaba (CEREST-Piracicaba), em 2003, constitui-se em experiência consolidada de acordo com as diretrizes da Rede Nacional de Atenção Integral em Saúde do Trabalhador (RENAST). Este artigo visa analisar a história e o desenvolvimento do SIVAT, baseando-se na teoria da atividade histórico-cultural. Trata-se de pesquisa qualitativa, nas modalidades estudo de caso e pesquisa documental. Foram identificados dois ciclos de desenvolvimento e expansão do objeto ‘vigilância’: no primeiro, a ação do serviço visava adequar as empresas à legislação vigente; no segundo, objetivava a reorientação no que tange aos determinantes organizacionais, identificados pela equipe como associados à acidentalidade, mas não acatados pelas organizações. Para alcançar o objeto da prevenção, vislumbra-se uma nova modalidade de intervenção formativa – o Laboratório de Mudança (LM) – baseada na articulação entre a elaboração do diagnóstico, a remodelagem, a implantação de soluções e o desenvolvimento do protagonismo interno nas organizações.
Vigilância em saúde do trabalhador; Serviços de saúde do trabalhador; Condições de trabalho; Teoria da aprendizagem expansiva
Introdução
A Vigilância em Saúde do Trabalhador (VISAT) é um dos eixos estratégicos da Política Nacional de Saúde do Trabalhador11. Brasil. Portaria Nº 1.823, de 23 de agosto de 2012. Institui a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora. Diário Oficial da União 2012; 24 ago., sendo compreendida como processo de busca permanente de ampliação de seu espectro de influência nos determinantes e condicionantes da saúde relacionados aos processos de trabalho22. Vasconcellos LCF, Minayo Gomez C, Machado JMH. Entre o definido e o por fazer na Vigilância em Saúde do Trabalhador. Cien Saude Colet 2014; 19(12):4617-4626..
A VISAT constitui-se em estratégia de atuação contínua e sistemática, ao longo do tempo, no sentido de detectar, conhecer, pesquisar e analisar os fatores determinantes e condicionantes dos agravos à saúde relacionados aos processos e ambientes de trabalho, em seus aspectos tecnológico, social, organizacional e epidemiológico, com a finalidade de planejar, executar e avaliar intervenções sobre esses aspectos, de forma a eliminá-los ou controlá-los33. Brasil. Portaria nº 3.120, de 1 de julho de 1998. Diário Oficial da União 1998; 2 jul.. As suas diretrizes no SUS compreendem: a universalidade; a integralidade; a plurinstitucionalidade; o controle social; a hierarquização e descentralização; a interdisciplinaridade; a pesquisa – intervenção; e o caráter transformador das intervenções33. Brasil. Portaria nº 3.120, de 1 de julho de 1998. Diário Oficial da União 1998; 2 jul..
No entanto, mesmo possuindo respaldo legal e operacional, vários estudos apontam que avanços da VISAT ocorrem mais do ponto de vista conceitual do que em ações programáticas concretas nos territórios22. Vasconcellos LCF, Minayo Gomez C, Machado JMH. Entre o definido e o por fazer na Vigilância em Saúde do Trabalhador. Cien Saude Colet 2014; 19(12):4617-4626.,44. Costa DF, Lacaz FAC, Jackson Filho M, Vilela RAG. Saúde do Trabalhador no SUS: desafios para uma política pública. Rev Bras Saúde Ocup 2013; 38(127):11-30.. Machado55. Machado JMH. A propósito da Vigilância em Saúde do Trabalhador. Cien Saude Colet 2005; 10(4):987-992. pondera que a VISAT pode ser caracterizada como uma prática fugaz e regionalizada. Fugaz, em virtude da instabilidade e limitação das experiências em vista das constantes mudanças de orientação e das próprias equipes no âmbito municipal. Regionalizada, pois a despeito de numerosas iniciativas, são minoritários os casos em que se pode falar de implementação de ações sistemáticas de VISAT, isto sem contar que em muitos locais do país são incipientes, ou sequer existem22. Vasconcellos LCF, Minayo Gomez C, Machado JMH. Entre o definido e o por fazer na Vigilância em Saúde do Trabalhador. Cien Saude Colet 2014; 19(12):4617-4626..
O pressuposto da ação de vigilância é prevenir agravos à saúde dos trabalhadores, manifestos por sofrimento, alteração biológica, dano, desgaste, doença, lesão ou acidente. Com a atuação da VISAT, voltada para a intervenção nos ambientes, processos e formas de organização do trabalho geradoras de agravos à saúde, passa-se a incorporar a dimensão preventiva da saúde do trabalhador. Ou seja, somente com ações interventoras de vigilância é possível interromper o ciclo de doença e morte no trabalho. Esta dimensão prevencionista cabe, principalmente, à Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (RENAST), por meio dos CEREST, entendidos como centros de articulação e coordenação de ações efetivas, seja nos territórios de sua área de abrangência, seja como centros de conexão da própria rede.
A avaliação do percurso das ações de vigilância dentro da RENAST, desde sua criação em 2002, suscita dúvidas em estudiosos22. Vasconcellos LCF, Minayo Gomez C, Machado JMH. Entre o definido e o por fazer na Vigilância em Saúde do Trabalhador. Cien Saude Colet 2014; 19(12):4617-4626.,44. Costa DF, Lacaz FAC, Jackson Filho M, Vilela RAG. Saúde do Trabalhador no SUS: desafios para uma política pública. Rev Bras Saúde Ocup 2013; 38(127):11-30.,55. Machado JMH. A propósito da Vigilância em Saúde do Trabalhador. Cien Saude Colet 2005; 10(4):987-992. quanto à existência de uma cultura consolidada de vigilância em saúde do trabalhador. Sabe-se, por meio do segundo Inventário da RENAST66. Brasil. Ministério da Saúde (MS). 2º Inventário da RENAST de Saúde do Trabalhador: Acompanhamento da Rede Nacional de Atenção Integral em Saúde do Trabalhador, 2010-2011. Brasília: MS; 2012. [acessado 2016 Fev 10]. Disponível em: http://renastonline.ensp.fiocruz.br/sites/default/files/arquivos/recursos/Inventario%20RENAST%202010-2011.pdf
http://renastonline.ensp.fiocruz.br/site... , que ações de VISAT estariam ocorrendo na maioria dos CEREST (58,4%), embora seja necessária avaliação mais detalhada em âmbito nacional.
Este artigo apresenta uma análise do desenvolvimento da experiência do SIVAT (Sistema de Vigilância em Acidentes de Trabalho), ocorrida no Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST) do município de Piracicaba, São Paulo.
Inspirado no sistema americano SENSOR (Sentinel Event Notification System for Occupational Risks)77. Baker EL. Sentinel event notification system for occupational risks – SENSOR. The concept. Am J Public Health 1989; 79(Supl.):18-21., o SIVAT- Piracicaba consiste na captação de informações junto à rede de unidades de urgência e emergência, que são encaminhadas ao CEREST-Piracicaba, que por sua vez faz sua sistematização e análise, com o objetivo de desencadear atividades de intervenção a fim de prevenir novas ocorrências. Algumas das vantagens do SIVAT são: a capacidade de detectar e agir sobre prioridades e eventos semelhantes em um grupo de trabalhadores expostos; avaliação das medidas de prevenção e controle em saúde ocupacional adotadas pelas empresas sob vigilância; fácil reprodutibilidade e adoção de parâmetros mais científicos de análise88. Vilela RAG. Desafios da vigilância e prevenção de acidentes de trabalho. São Paulo: LTR Editora; 2003..
A atuação voltada à vigilância, em especial dos acidentes do trabalho, constitui a marca do CEREST- Piracicaba99. Jackson Filho JM, Barreira THC. A construção da saúde do trabalhador em Piracicaba: análise da ação pública no período de 1998 a 2009. In: Simonelli AP, Rodrigues DS, organizadores. Saúde do trabalho em debate: velhas questões, novas perspectivas. Brasília: Paralelo 15; 2013. p. 357-392. e contribuiu para sua capacidade de articulação interinstitucional, superando em parte o conflito tradicional com o setor trabalho, envolvendo atores sindicais e rede de parceiros sociais que inclui profissionais de sindicatos, de universidades, profissionais da Rede SUS e de empresas dispostas a equacionar seus problemas de saúde e segurança, com destaque na mídia impressa local1010. David HG. Saúde do trabalhador na manchete do jornal: análise descritiva do caso do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST) de Piracicaba – SP [dissertação]. São Paulo: Fundacentro; 2014..
Ao longo de quase duas décadas, o CEREST - Piracicaba realizou diversos acordos setoriais para a melhoria das condições de trabalho, intervenções e análises de ambientes e processos de trabalho, bem como de acidentes de trabalho graves e fatais, além de centenas de autos de infração, termos de notificação e mesas de negociação. Participa ativamente da organização da Semana Municipal de Prevenção de Acidentes, que completou em 2015 sua vigésima edição, com o objetivo de difundir a públicos específicos e à população em geral, temas de relevância da área de Saúde do Trabalhador. O serviço obteve reconhecimento e premiações nacionais e sua equipe, em parceria com pesquisadores de universidades paulistas (FSP-USP e FMB- UNESP Botucatu), participou no desenvolvimento e aplicação de Modelo de Análise e Prevenção de Acidentes, o MAPA1111. Almeida IM, Vilela RAG, Silva AJN, Beltran SL. Modelo de Análise e Prevenção de Acidentes - MAPA: ferramenta para a vigilância em Saúde do trabalhador. Cien Saude Colet 2014; 19(12):4679-4688., e do desenvolvimento do Fórum de Análise, Prevenção de Acidentes e Aspectos Associados1212. Vilela RAG, Almeida IM, Nunes da Silva A, Gomes MH, Prado H, Buoso E, Dias MD, Cavalcante S, Lacorte LEC. Forum: social network for the surveillance and prevention of work place accidents. Work 2012; 41(1):3123-3129., que completou, em junho de 2016, o 54o Encontro presencial.
Como o serviço articulou a informação epidemiológica às ações intersetoriais de vigilância baseadas em prioridades e à pesquisa/intervenção, com participação de diferentes atores sociais? Que estratégias foram utilizadas para dar visibilidade aos determinantes organizacionais invisíveis e que explicam em boa medida a ocorrência dos agravos? Que conhecimentos e habilidades foram desenvolvidos pela equipe?
Diante da preocupante situação do Brasil em relação à magnitude e gravidade dos agravos à saúde do trabalhador44. Costa DF, Lacaz FAC, Jackson Filho M, Vilela RAG. Saúde do Trabalhador no SUS: desafios para uma política pública. Rev Bras Saúde Ocup 2013; 38(127):11-30. justifica-se a necessidade de investigar o desenvolvimento desta iniciativa ao longo da história, e assim contribuir para a consolidação das políticas públicas de vigilância e prevenção.
Referencial teórico e metodologia
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, nas modalidades de estudo de caso1313. Yin R. Estudo de caso: planejamento e métodos. 2ª ed. Porto Alegre: Bookman; 2001.,1414. Minayo MCS. O desafio do conhecimento. Pesquisa qualitativa em saúde. 9ª ed. São Paulo: Hucitec; 2006. e pesquisa documental1515. Leontiev AN. Activity. Consciousness. Personality. Englewood Cliffs: Prentice Hall; 1978., cujas principais fontes de informação foram as publicações acadêmicas produzidas pelos profissionais do serviço e documentos, como os planos anuais e seus respectivos relatórios de prestação de contas do CEREST-Piracicaba, disponibilizados no sitio da internet. O artigo foi discutido e planejado coletivamente em oficina que contou com a participação de acadêmicos das Universidades parceiras e da equipe técnica do serviço. Regras éticas de pesquisa em seres humanos foram obedecidas.
Para a análise, utilizou-se como refere teórico metodológico a Teoria da Atividade Histórico-Cultural1616. Engeström Y. Learning by expanding: An activity-theoretical approach to developmental research. Helsinki: Orienta-Konsultit; 1987.. Segundo seus fundamentos, os seres humanos estão envolvidos em atividades produtivas, que se distinguem uma das outras pelos objetos aos quais estão orientadas1616. Engeström Y. Learning by expanding: An activity-theoretical approach to developmental research. Helsinki: Orienta-Konsultit; 1987.. Ao contrário do objetivo que está delimitado a um determinado espaço e tempo, o objeto de uma atividade é mais aberto, complexo e sustentado no tempo, pois está relacionado a uma necessidade humana; é ele que lhe confere sentido e o justifica socialmente. Portanto, o estudo de um sistema de atividade pressupõe inicialmente a identificação do objeto, que direciona as ações dos sujeitos1717. Engeström Y. Learning by expanding. Cambridge: Cambridge University Press; 2014.. Engeström1616. Engeström Y. Learning by expanding: An activity-theoretical approach to developmental research. Helsinki: Orienta-Konsultit; 1987.,1717. Engeström Y. Learning by expanding. Cambridge: Cambridge University Press; 2014. aprimorou o modelo conceitual triangular proposto originalmente por Leontiev para analisar um Sistema de Atividade (SA) (Figura 1) que facilita compreender as múltiplas mediações que ocorrem no interior do sistema. Os elementos que o compõem são: o Sujeito (inclui o indivíduo, a equipe); o Objeto (específico a cada SA); a Comunidade (que inclui parceiros sociais, a clientela envolvida, etc.); o Instrumento (ferramentas conceituais e práticas), as Regras (normas internas ou externas, prazos, etc.); a Divisão de Trabalho (quem faz o que, a hierarquia)1717. Engeström Y. Learning by expanding. Cambridge: Cambridge University Press; 2014.,1818. Virkkunen J, Newnham DSO. Laboratório de Mudança: Uma ferramenta para o desenvolvimento colaborativo do trabalho e educação. Belo Horizonte: Fabrefactum; 2015..
O desenvolvimento da atividade humana ocorre empiricamente como processo dialético de estimulação dupla que se inicia com um problema ou dificuldade enfrentada pelos sujeitos (primeiro estímulo). Para a superação das dificuldades ou contradições os sujeitos buscam meios (segundo estímulo), para tentar equacionar a situação. Estes mediadores podem ser um instrumento ou conceito, dispositivo técnico ou social, que passam a operar amenizando ou equacionando a situação anterior, o que altera o funcionamento do sistema e propicia o início de ciclos de aprendizagem expansiva. Assim, esforços são empreendidos para criar novas ferramentas, novas regras, nova divisão de trabalho, ampliação da comunidade, para apreender o objeto e alcançar os resultados almejados1717. Engeström Y. Learning by expanding. Cambridge: Cambridge University Press; 2014.,1818. Virkkunen J, Newnham DSO. Laboratório de Mudança: Uma ferramenta para o desenvolvimento colaborativo do trabalho e educação. Belo Horizonte: Fabrefactum; 2015..
A análise histórica possibilita identificar contradições entre os mediadores do SA, que movem os atores em busca da expansão do objeto, que por sua vez criam inovações nestes mediadores, em processo dinâmico, propiciando o desenvolvimento, que ocorre quando o ator consegue superar criativamente a contradição mediante o aprofundamento e a ampliação da sua compreensão dando inicio a um novo modo de agir que altera o sistema de relações do qual o sujeito-ator faz parte1818. Virkkunen J, Newnham DSO. Laboratório de Mudança: Uma ferramenta para o desenvolvimento colaborativo do trabalho e educação. Belo Horizonte: Fabrefactum; 2015..
Compreendendo o passado é possível entender o presente, antever perspectivas e tendências futuras.
Uma ideia emergente de novo objeto da atividade conduz os atores na busca de novas formas cooperativas de relacionamento que, quando encontradas, ajudam a elaborar novas ideias e consolidar inovações práticas no futuro1919. Sewell Junior WH. Historical events as transformation of structures: inventing revolution at the Bastille. Theory and Society 1996; 25(6):841-881.. A Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) de um sistema de atividade é a distância entre as atividades cotidianas dos indivíduos e as formas historicamente novas da atividade societal que podem ser coletivamente geradas como solução dos impasses potencialmente enraizados nas atuais atividades cotidianas1717. Engeström Y. Learning by expanding. Cambridge: Cambridge University Press; 2014..
O desenvolvimento de um sistema de atividade é um processo dialético, não linear, e ocorre em ciclos de aprendizagem expansiva. Trata-se de um processo complexo que pode levar vários anos e abarca inúmeros ciclos sucessivos menores de aprendizagem expansiva, que ocorrem em paralelo, os quais promovem invenções necessárias para o desenvolvimento do ciclo mais amplo. O ciclo completo de aprendizagem expansiva se dá quando ocorre uma transformação qualitativa do sistema de atividade2020. Querol MAP, Jackson Filho JM, Cassandre MP. Change Laboratory: Uma Proposta Metodológica Para Pesquisa e Desenvolvimento da Aprendizagem Organizacional. Administração: Ensino e Pesquisa 2012; 12(4):609-640..
Para melhor compreensão da abordagem vamos tratar os determinantes dos riscos relacionados ao trabalho como contradições ou tensões estruturais existentes no interior do sistema de atividade, que propiciam a emergência de anomalias e resultados inesperados neste sistema a exemplo de acidentes, perda de qualidade, retrabalho, danos ambientais1616. Engeström Y. Learning by expanding: An activity-theoretical approach to developmental research. Helsinki: Orienta-Konsultit; 1987.,1818. Virkkunen J, Newnham DSO. Laboratório de Mudança: Uma ferramenta para o desenvolvimento colaborativo do trabalho e educação. Belo Horizonte: Fabrefactum; 2015.. Trata-se de aspectos normalmente invisíveis aos agentes de inspeção, cuja análise requer domínio de abordagem sociotécnica sistêmica, que ultrapassa a verificação de presença ou ausência de fatores de riscos, entendidos aqui como condicionantes, ou seja, aspectos normalmente visíveis a uma observação externa, sendo a maioria fatores contemplados em normas legais.
O desenvolvimento do SIVAT no CEREST-Piracicaba será aqui analisado a partir das abordagens do desenvolvimento expansivo do sistema de atividade1717. Engeström Y. Learning by expanding. Cambridge: Cambridge University Press; 2014.,1818. Virkkunen J, Newnham DSO. Laboratório de Mudança: Uma ferramenta para o desenvolvimento colaborativo do trabalho e educação. Belo Horizonte: Fabrefactum; 2015., entendido como conjunto de ações e interações do sujeito em direção ao objeto, mediadas por artefatos técnicos e sociais2020. Querol MAP, Jackson Filho JM, Cassandre MP. Change Laboratory: Uma Proposta Metodológica Para Pesquisa e Desenvolvimento da Aprendizagem Organizacional. Administração: Ensino e Pesquisa 2012; 12(4):609-640., com ênfase nos seus eventos históricos e suas mudanças significativas que ocorreram no sistema de atividade.
Na teoria da atividade um evento pode ser definido como ações ou inovações que transformam a estrutura de uma atividade, porém, os eventos considerados históricos são aquelas ocorrências que têm consequências importantes em toda a história2121. Vilela RAG, Ricardi GVF, Iguti AM. Experiência do Programa de Saúde do Trabalhador de Piracicaba: Desafios da Vigilância em Acidentes do Trabalho. Informe Epidemiológico do SUS 2001; 10(2):81-92..
O critério de seleção utilizado neste estudo para considerar um evento como histórico, e incluí-lo na narrativa do artigo, foi o consenso, segundo a vivência dos sujeitos do processo, que o mesmo tenha introduzido mudanças significativas no sistema de atividade, representando uma inovação, quando comparada com as ações até então desenvolvidas. Num primeiro momento, com base nos relatórios anuais, foram selecionadas e classificadas, em ordem cronológica e por similaridade, em ações de vigilância, capacitação e negociação. Em seguida, tais ações foram analisadas de acordo com o referencial teórico escolhido e destacadas aquelas que preenchiam as características inovadoras no período, devido ao seu significado e impacto no conjunto das atividades de vigilância. As ações em destaque receberam a identificação de eventos históricos. Para a elaboração da narrativa, o desenvolvimento do sistema de atividade foi dividido em ciclos menores, aqui chamados de subciclos, descritos por meio dos eventos históricos selecionados, os quais resultaram em dois ciclos plenos de aprendizagem expansiva nos quais foram constatadas transformações qualitativas do objeto do sistema de atividade1818. Virkkunen J, Newnham DSO. Laboratório de Mudança: Uma ferramenta para o desenvolvimento colaborativo do trabalho e educação. Belo Horizonte: Fabrefactum; 2015.,2020. Querol MAP, Jackson Filho JM, Cassandre MP. Change Laboratory: Uma Proposta Metodológica Para Pesquisa e Desenvolvimento da Aprendizagem Organizacional. Administração: Ensino e Pesquisa 2012; 12(4):609-640..
Neste estudo, a hipótese central é que a atuação sistemática em torno da prevenção dos acidentes possibilitou a expansão do objeto da vigilância, que antes se limitava aos fatores de risco visíveis (aspectos técnicos) especialmente os contemplados nas normas, passando aos poucos a incorporar os determinantes organizacionais.
A análise histórica do sistema de atividade pode ajudar a compreender os elementos constitutivos destes ciclos de desenvolvimento e de aprendizagem expansiva, apontando novas perspectivas para o futuro.
Resultados
Do ponto de vista da expansão do objeto da vigilância, os eventos históricos que impactaram significativamente na experiência do CEREST-Piracicaba, tornando-se motores do desenvolvimento do SIVAT, foram identificados em dois subciclos para cada ciclo completo, totalizando assim dois ciclos plenos de aprendizagem expansiva, os quais estão respectivamente resumidos nos quadros 1 e 2 e descritos na narrativa.
Vigilância de Acidentes de Trabalho em empresas com base no enquadramento legal das normas de segurança (1997-2016) – 1º Ciclo de aprendizagem expansiva
A vigilância em AT teve origem em 1997, quando a equipe iniciante do Programa de Saúde do Trabalhador (PST) de Piracicaba, em parceria com auditor fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e alguns representantes de sindicatos de trabalhadores, conseguiram aliar sistema de informação epidemiológica com ações de intervenção orientadas por prioridades2121. Vilela RAG, Ricardi GVF, Iguti AM. Experiência do Programa de Saúde do Trabalhador de Piracicaba: Desafios da Vigilância em Acidentes do Trabalho. Informe Epidemiológico do SUS 2001; 10(2):81-92., em consonância com as diretrizes da VISAT33. Brasil. Portaria nº 3.120, de 1 de julho de 1998. Diário Oficial da União 1998; 2 jul.. Os casos de acidentes de trabalho foram tratados como eventos sentinela77. Baker EL. Sentinel event notification system for occupational risks – SENSOR. The concept. Am J Public Health 1989; 79(Supl.):18-21. por meio de investigação em profundidade de suas origens, bem como intervenção em seus aspectos causais, analisados com base na metodologia da Árvore de Causas2222. Binder MCP, Monteau M, Almeida IM. Árvore de Causas. Método de Investigação de Acidentes do Trabalho. São Paulo: Publisher Brasil Editora; 1995..
Neste período, a despeito de se tentar agir sobre os determinantes, como preconizavam as diretrizes da VISAT, o objeto do sistema de atividade estava centrado na tentativa de adequação das condições de trabalho das empresas às normas legais, tendo como premissa que seu cumprimento garantiria a diminuição de acidentes. Para alcançar esse objeto, foram eleitas empresas e segmentos com maiores taxas de acidentes. Com efeito, foi necessário implantar sistema de informações de acidentes (Instrumento).
O primeiro instrumento utilizado foi a análise das Comunicações de Acidentes de Trabalho (CAT) (período 1997-2003). Esta análise possibilitou identificar empresas prioritárias no território em relação às taxas de acidentes. No entanto, a informação abrangia apenas o mercado formal (CLT) e exigia muito tempo para a coleta na Agencia local do INSS e posterior processamento no SISCAT (sistema informatizado para processamento dos dados), revelando-se um instrumento pouco prático, especialmente para desencadear ações de vigilância em casos graves e fatais que exigiam maior agilidade de intervenção.
Entretanto, a introdução do programa WEB CAT pela Previdência Social, no início dos anos 2000, com a notificação das CAT(s) pela internet, não favoreceu, como era esperado, a prática de vigilância de acidentes graves e fatais. Ao contrário, impediu o acesso anteriormente existente às cópias das CAT(s) em papel, as quais passaram a ser centralizadas no DATAPREV - RJ, demandando ao CEREST-Piracicaba a necessidade de um instrumento alternativo, um sistema próprio de notificação e vigilância que contribuísse para ações rápidas e abrangentes, incluindo também os acidentados em situação de informalidade no trabalho.
A articulação da informação com a ação
A implantação do SIVAT-Piracicaba passa a articular a informação epidemiológica colhida na rede de urgência e emergência com as ações de vigilância orientadas por prioridades33. Brasil. Portaria nº 3.120, de 1 de julho de 1998. Diário Oficial da União 1998; 2 jul.. A ampliação deste piloto1212. Vilela RAG, Almeida IM, Nunes da Silva A, Gomes MH, Prado H, Buoso E, Dias MD, Cavalcante S, Lacorte LEC. Forum: social network for the surveillance and prevention of work place accidents. Work 2012; 41(1):3123-3129. em escala municipal foi alcançada por meio da parceria com a academia em projeto de pesquisa (ampliação da Comunidade) que conseguiu transformar o SIVAT em política pública de vigilância de natureza sistemática e permanente, em funcionamento até os dias atuais.
O SIVAT entrou em pleno funcionamento em 2003, caracterizando-se como programa de fluxo contínuo e sistemático para lidar com os eventos graves, fatais e com menores de 18 anos, que passam a ser tratados como eventos sentinela, possibilitando intervenções tanto nos locais de origem, quanto nas empresas com elevadas taxas de incidência, buscando alcançar alguns dos pressupostos da VISAT88. Vilela RAG. Desafios da vigilância e prevenção de acidentes de trabalho. São Paulo: LTR Editora; 2003.,2323. Cordeiro RC, Vilela RAG, Medeiros MAT, Gonçalves CGO, Bragantini CA, Varolla AJ, Stephan C. O sistema de vigilância de acidentes do trabalho de Piracicaba, São Paulo, Brasil. Cad Saude Publica 2005; 21(5):1574-1583.,2424. Cordeiro RC, Vilela RAG, Medeiros MAT, Gonçalves CGO, Bragantini CA, Stephan C, Varolla AJ. A System for Occupational Injury Surveillance in Piracicaba, Southeastern Brazil. New Solutions 2007; 17(4):363-375..
No primeiro subciclo (Subciclo 1.1 do Quadro 1), a vigilância e a intervenção nos locais de trabalho buscava a adequação destes ao quadro normativo vigente, almejando a redução dos índices de acidentes de trabalho (Objeto). Tendo em vista que os mesmos riscos identificados se repetiam por várias empresas do ramo produtivo, por exemplo, máquinas sem proteção no setor de panificação, elevadores de carga na construção civil e máquinas rotativas no setor de papel e papelão, e, considerando as limitações do efetivo (limitação no Sujeito), visualizou-se a estratégia de intervenções coletivas desencadeadas a partir dos casos sentinela (Subciclo 1.2 do Quadro 1). Denominada operação tarrafa, a estratégia permitiu envolver as empresas e seus representantes além de sindicatos, órgãos de formação, outros agentes públicos como a vigilância sanitária, o MTE e o Ministério Público do Trabalho (MPT) em fóruns setoriais, facilitando o espaço de diálogo e a articulação para a ação (ampliação da Comunidade). No entanto, a análise dos acordos implementados no período mostra que as exigências se pautavam pelo cumprimento de aspectos normativos, referindo-se aos fatores de riscos visíveis (condicionantes) para os agentes de inspeção (Objeto). O acordo municipal de proteção de elevadores de carga da construção civil, desencadeado a partir de dois óbitos em elevadores de carga sem proteção, e o acordo no setor de fabricação de papel e papelão, desencadeado a partir de um óbito de trabalhador aprisionado entre os cilindros de máquina de secagem de papel, ocorrido em 2000, são exemplos desse período88. Vilela RAG. Desafios da vigilância e prevenção de acidentes de trabalho. São Paulo: LTR Editora; 2003..
A operação tarrafa foi adotada como estratégia válida em outras iniciativas de intervenção como no caso das panificadoras2424. Cordeiro RC, Vilela RAG, Medeiros MAT, Gonçalves CGO, Bragantini CA, Stephan C, Varolla AJ. A System for Occupational Injury Surveillance in Piracicaba, Southeastern Brazil. New Solutions 2007; 17(4):363-375.; alojamentos do setor canavieiro2525. Vilela RAG, Machado JH. Debatedores. Cien Saude Colet 2011, 16(8):3369-3372.,2626. Vilela RAG, Santos SA, Silva AJN, Almeida IM. Experiência de vigilância no setor canavieiro: desafios para interromper a “maratona” perigosa dos canaviais. Cien Saude Colet 2014; 19(12):4659-4668.; fabricação de joias e bijuterias2727. Lacorte LEC, Vilela RAG, Silva RC, Chiesa AM, Tulio ES, Franco RR, Bravo ES. Os nós da rede para erradicação do trabalho infanto-juvenil na produção de joias e bijuterias em Limeira - SP. Rev Bras Saúde Ocup 2013; 38(128):199-215., marcenarias, olarias e cerâmica vermelha, motociclistas profissionais, supermercados etc. A atuação pontual e pulverizada (Regra anterior) passa a ser potencializada por meio de articulação interinstitucional que possibilita, entre outros aspectos, ampliação e comprometimento da comunidade.
Fruto da parceria com procuradores do Ministério Público do Trabalho (MPT) da 15ª Região, foi elaborado Termo de Cooperação Técnica entre o CEREST e a Procuradoria Regional do Trabalho da 15a Região2828. Câmara Municipal de Piracicaba. Lei nº 6085, de 27 de novembro de 2007. Convênio de Cooperação entre o Município de Piracicaba e a Procuradoria Regional do Trabalho da 15a Região para atuação conjunta em Saúde do Trabalhador. Diário Oficial de Piracicaba 2007; 28 nov., instrumento que se mostra fundamental ao assegurar independência e mais autonomia aos agentes de vigilância, especialmente quando o serviço assume iniciativas de maior impacto em setores mais conservadores2626. Vilela RAG, Santos SA, Silva AJN, Almeida IM. Experiência de vigilância no setor canavieiro: desafios para interromper a “maratona” perigosa dos canaviais. Cien Saude Colet 2014; 19(12):4659-4668.. O vínculo com o MPT resultou também em maior respeitabilidade perante as empresas e a sociedade (Comunidade). O Quadro 1 reúne as principais estratégias bem como os resultados e os impactos do primeiro ciclo.
Interessante observar que mesmo com o objeto limitado a uma atuação nos condicionantes com base nas normas, ao ampliar e conseguir com a “operação tarrafa” maior envolvimento da comunidade, ocorre importante inovação e impactos positivos como a redução de acidentes em máquinas de papel, no setor de panificação, o equacionamento dos problemas em alojamentos do setor canavieiro, etc., que repercutem até hoje no reconhecimento do serviço99. Jackson Filho JM, Barreira THC. A construção da saúde do trabalhador em Piracicaba: análise da ação pública no período de 1998 a 2009. In: Simonelli AP, Rodrigues DS, organizadores. Saúde do trabalho em debate: velhas questões, novas perspectivas. Brasília: Paralelo 15; 2013. p. 357-392..
Porém, o enquadramento legal revelou-se de impacto limitado, pois observou-se que algumas empresas, mesmo fiscalizadas por mais de 10 anos com acompanhamento sindical, e que atenderam em essência as exigências legais, não reduziram seus índices de acidentes de trabalho2929. Vilela RAG, Almeida IM, Mendes RWB. Da vigilância para prevenção de acidentes de trabalho: contribuição da ergonomia da atividade. Cien Saude Colet 2012; 17(10):2817-2830.. Este achado foi revelador, constituindo-se na principal contradição da ação do SIVAT neste primeiro ciclo. A Figura 2 representa o sistema de atividade do SIVAT e as contradições mais significativas do primeiro ciclo.
As inovações (novos artefatos, novas regras) criadas pela equipe no primeiro ciclo possibilitaram o desenvolvimento do SIVAT, a exemplo da operação tarrafa que ampliou a comunidade, alcançou mais independência e autonomia para os profissionais (Sujeito), bem como resultados mais efetivos. No entanto, novo desenvolvimento mostrou-se necessário para alcançar os determinantes organizacionais, como será evidenciado a seguir.
Vigilância de AT com o olhar na organização do trabalho (2006-2016) – 2º Ciclo de aprendizagem expansiva
O segundo ciclo se desenvolve influenciado pela confluência das inquietudes nas ações de vigilância em AT e das ações de vigilância e atenção em LER/DORT (Lesões por esforços repetitivos/Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho). A epidemia de casos de LER/DORT emergiu a partir do final da década de 1990 e ocupou lugar de destaque nas demandas de atendimento e vigilância dos serviços de saúde do trabalhador3030. Medeiros MAT, Salermo VL, Silvestre MP, Magalhães LV. Política de Saúde do Trabalhador: revisitando o caso do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador de Campinas. Rev Bras Saúde Ocup 2013; 38(127):81-91.. Sem os meios conceituais (Instrumento) para enfrentar e intervir sobre os aspectos da organização do trabalho (Objeto) o serviço elaborou um projeto e obteve financiamento do Ministério da Saúde, que possibilitou a contratação de equipe multidisciplinar (ampliação do Sujeito) e recursos para oferta de curso de especialização em ergonomia da atividade (Instrumento). A apropriação, pela equipe, dos conceitos da ergonomia da atividade influenciou significativamente na compreensão do binômio trabalho-saúde. Pois, anteriormente, em sua prática, a equipe estava centrada na noção de fatores de risco (condicionantes), que ignorava as questões organizacionais. Nas abordagens clássicas, materializadas na legislação brasileira, o risco é reduzido à presença ou à ausência de fatores técnicos ou do ambiente (especialmente os visíveis), desconsiderando sua natureza relacional, não permitindo explicar os agravos à saúde do trabalhador3131. Assunção AA, Lima FPA. A Contribuição da Ergonomia para a Identificação, Redução e Eliminação da Nocividade do Trabalho. In: Mendes R, organizador. A Patologia do Trabalho. Belo Horizonte: Ed. Atheneu; 2002. p. 1767-1789..
A incorporação desta nova abordagem representou ponto de virada do sistema de atividade, com status de evento histórico crítico1919. Sewell Junior WH. Historical events as transformation of structures: inventing revolution at the Bastille. Theory and Society 1996; 25(6):841-881., uma vez que altera na prática cotidiana o objeto da atividade, que se amplia para a organização do trabalho, como aspecto determinante na geração dos agravos à saúde do trabalhador. A ampliação do objeto, entretanto, provocou tensões e desencadeou, mesmo que de forma empírica, o início de mudanças em outros elementos da atividade: novos instrumentos, novas iniciativas (nova divisão do trabalho) e novas alianças (ampliação da comunidade) se tornaram necessárias para o alcance deste novo objeto.
Com base na abordagem da ergonomia da atividade desenvolveu-se o segundo projeto de pesquisa que, entre outras iniciativas, buscou investigar porque as empresas fiscalizadas que atendiam pelo menos parcialmente às NR(s) não diminuíam seus índices de acidentes. A aliança com a academia viabilizou a investigação em seis empresas3232. Vilela RAG. Ações interinstitucionais para o diagnóstico e prevenção de acidentes do trabalho: aprimoramento de uma proposta para a Região de Piracicaba. Relatório Final de Pesquisa em Políticas Públicas. FAPESP, Prot. 06/51684-3, 2009., utilizando a Análise Ergonômica do Trabalho (AET)3333. Guérin F, Laville A, Daniellou F, Duraffourg J, Kerguelen A. Compreender o trabalho para transformá-lo: a prática da ergonomia. São Paulo: Edgard Blucher; 2001. e o Modelo de Análise e Prevenção de Acidente – MAPA1111. Almeida IM, Vilela RAG, Silva AJN, Beltran SL. Modelo de Análise e Prevenção de Acidentes - MAPA: ferramenta para a vigilância em Saúde do trabalhador. Cien Saude Colet 2014; 19(12):4679-4688.,3434. Almeida IM, Vilela RAG. Modelo de Análise e Prevenção de Acidentes (MAPA). Piracicaba: Edit. CEREST Piracicaba; 2010., desenvolvido e testado na pesquisa. Estas abordagens passaram gradativamente a fazer parte da caixa de ferramentas da vigilância, especialmente para os casos mais complexos de acidentes graves e fatais.
A abordagem do MAPA considera essencial, para compreender as origens do acidente, entender o trabalho habitual, suas variabilidades e as estratégias de regulação adotadas pelos sujeitos em atividade e, dessa forma, dar visibilidade aos aspectos organizacionais (condições latentes) que se mantinham ocultados com o uso das ferramentas convencionais, como a inspeção baseada em normas.
Em reforço ao instrumental metodológico desenvolveu-se, a partir do ano de 2008, o Fórum de Acidentes de Trabalho como espaço de difusão da abordagem organizacional e desconstrução de práticas de atribuição de culpa aos acidentados. O Fórum aglutina ainda iniciativas de educação continuada, cursos, espaço virtual de debates, disponibilização de vídeos, notícias, canal no Facebook, dentre outras, visando constituir uma rede social de prevenção1212. Vilela RAG, Almeida IM, Nunes da Silva A, Gomes MH, Prado H, Buoso E, Dias MD, Cavalcante S, Lacorte LEC. Forum: social network for the surveillance and prevention of work place accidents. Work 2012; 41(1):3123-3129..
No entanto, na prática cotidiana, estas inovações mostraram seus limites nas situações em que foram aplicadas. Se, por um lado, tanto o MAPA1111. Almeida IM, Vilela RAG, Silva AJN, Beltran SL. Modelo de Análise e Prevenção de Acidentes - MAPA: ferramenta para a vigilância em Saúde do trabalhador. Cien Saude Colet 2014; 19(12):4679-4688.,3434. Almeida IM, Vilela RAG. Modelo de Análise e Prevenção de Acidentes (MAPA). Piracicaba: Edit. CEREST Piracicaba; 2010. quanto a AET3333. Guérin F, Laville A, Daniellou F, Duraffourg J, Kerguelen A. Compreender o trabalho para transformá-lo: a prática da ergonomia. São Paulo: Edgard Blucher; 2001. mostram-se potentes para compreender, na organização do trabalho, os determinantes dos riscos, estabelecendo diagnósticos consistentes, por outro lado, é preciso aplicá-los para estimular o protagonismo interno dos profissionais e gestores das organizações, por meio de uma construção social mais abrangente e utilizando metodologias próprias ao re-projeto e transformação das situações de trabalho.
Para ultrapassar o diagnóstico e alcançar a prevenção, com alteração dos aspectos organizacionais, a equipe se engajou no Projeto temático denominado “Acidente de Trabalho da Análise Sociotécnica à construção social de mudanças”, cujo objetivo expresso em seu Tema 1 é construir diagnósticos associados à intervenção formativa com o uso da metodologia do Laboratório de Mudanças1717. Engeström Y. Learning by expanding. Cambridge: Cambridge University Press; 2014.,1818. Virkkunen J, Newnham DSO. Laboratório de Mudança: Uma ferramenta para o desenvolvimento colaborativo do trabalho e educação. Belo Horizonte: Fabrefactum; 2015.,2020. Querol MAP, Jackson Filho JM, Cassandre MP. Change Laboratory: Uma Proposta Metodológica Para Pesquisa e Desenvolvimento da Aprendizagem Organizacional. Administração: Ensino e Pesquisa 2012; 12(4):609-640.. Como piloto, o LM foi aplicado no próprio serviço, buscando viabilizar a apropriação da metodologia e potencializar as ações de vigilância3535. Mendes RWB, Takahashi MABC, Cerveny GCO, Querol MAP, Vilela RAG. Change Laboratory: Formative Intervention and remodelling of the system of activity of a Centre of Reference for Worker Health in Brazil. Proceedings book of 8th International Working on Safety Conference (WOS). Portugal. Lisbon; University of Minho; 2015; 1: 240-248.. Uma das possibilidades é que o LM possa ser utilizado como novo instrumento de intervenção formativa visando construir o protagonismo de atores internos às organizações, no sentido de criar mudanças em seus sistemas de atividade, tornando-os mais sustentáveis e saudáveis.
Discussão: da vigilância à prevenção, novos desafios e perspectivas futuras
A incorporação prática do objeto da VISAT (agir sobre os determinantes, exposições e consequências) estimulou a equipe a construir ferramentas e métodos para fazer frente às demandas da prática. A análise histórica, usando elementos da teoria da atividade mostrou-se consistente para a compreensão da evolução do objeto da vigilância e seus artefatos culturais, que conformam a unidade deste sistema de atividade.
Para superar a insuficiência da prática dominante de fiscalização, baseada em aspectos visíveis e normatizados, a equipe procurou traduzir, incorporar e consolidar novas metodologias de modo a compreender e transformar os determinantes do trabalho que afetam a saúde e a integridade dos trabalhadores. Acrescentadas aos construtos da epidemiologia e participação social, pilares da VISAT, novas bases conceituais da Ergonomia da Atividade e da Análise Organizacional dos AT3636. Llory M, Montmayeul R. O acidente e a organização. Belo Horizonte: Fabrefactum; 2014. são incorporadas aos instrumentos do serviço. Neste percurso ampliou-se a articulação do serviço com a academia, com outros segmentos públicos e privados, buscaram-se elos e parcerias na mídia.
Nesta busca a equipe experimenta, em cooperação com a academia (sub ciclo 2.2 – Quadro 2), nova modalidade de intervenção, a qual poderá adequar-se à nova expansão do objeto.
A metodologia do Laboratório de Mudança (LM) foi a escolhida, pois propicia um ambiente colaborativo de aprendizado entre pesquisadores e profissionais práticos, que associa e engaja de modo sincronizado os atores internos da organização na compreensão das contradições relacionadas aos problemas atuais e históricos, passando à fase da criação, teste e desenvolvimento de soluções1717. Engeström Y. Learning by expanding. Cambridge: Cambridge University Press; 2014.,2020. Querol MAP, Jackson Filho JM, Cassandre MP. Change Laboratory: Uma Proposta Metodológica Para Pesquisa e Desenvolvimento da Aprendizagem Organizacional. Administração: Ensino e Pesquisa 2012; 12(4):609-640..
O diagrama (Figura 3) mostra a Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) como uma hipótese explicativa da tendência de desenvolvimento do objeto do SIVAT, de modo a aprofundar e inovar suas estratégias em busca da prevenção.
Na dimensão horizontal (protagonismo) identifica-se expansão do protagonismo do tipo individual externo (do auditor, fiscal, especialista externo) para um protagonismo pluralista e coletivo incluindo o interno. Na dimensão vertical (natureza do objeto) identifica-se a evolução de um objeto de natureza técnica, visível e normatizada para um objeto de natureza sociotécnica sistêmica. Na seta diagonal (soluções) evolui-se de soluções externas e prontas para inovações internas criadas pelos atores da atividade produtiva.
No quadrante 1 identifica-se a atuação da fiscalização tradicional de comando controle estatal, focada em uma unidade de produção (empresa por empresa), enquanto no quadrante 3, a abordagem normativa expande-se para uma atuação coletiva setorial “operação tarrafa”, de primeira geração (ex. panificadoras2727. Lacorte LEC, Vilela RAG, Silva RC, Chiesa AM, Tulio ES, Franco RR, Bravo ES. Os nós da rede para erradicação do trabalho infanto-juvenil na produção de joias e bijuterias em Limeira - SP. Rev Bras Saúde Ocup 2013; 38(128):199-215., alojamentos no setor canavieiro3737. Amengual M. Pathways to enforcement: labor inspectors leveraging linkages with society in Argentina. Industrial and Labor Relations Review 2014; 67(1):3-33. e outros).
A expansão do objeto para os aspectos da organização do trabalho é mostrada no quadrante 2, que associa tentativa de diagnóstico apoiado em conceitos, com a colaboração de especialistas e saberes de trabalhadores ouvidos em campo, com momento de negociação em que o protagonismo é ainda centrado na equipe do CEREST e apoiadores externos. A expansão mais ampla é mostrada no quadrante 4, que combina a análise em profundidade com a intervenção formativa que poderá assegurar o protagonismo dos atores internos e a construção de soluções inovadoras, tendo o LM como ferramenta de intervenção de nova modalidade: uma zona proximal, uma perspectiva de futuro, que sugere a emergência de novo evento histórico no desenvolvimento do SIVAT.
A complexidade do objeto convoca novas mudanças no SIVAT
Como observado na narrativa dos períodos, os ciclos e seus subciclos não são estanques, eles convivem na mesma dimensão espacial e temporal. A objetivação do objeto da prevenção continua tencionando o SIVAT. O objeto da prevenção convoca o uso e a apropriação pelos atores de ferramentas mais adequadas ao engajamento dos sujeitos, no entanto, as ferramentas tradicionais da autoridade sanitária, especialmente quando não exploradas criativamente, no tocante às brechas da lei, induzem os atores e gestores a uma ação restrita ao normatizado.
Este esforço esbarra, no entanto, nas limitações do poder dos agentes públicos para fazer os atores das empresas transformarem suas condições de trabalho, cada vez mais influenciadas por modos de organização e gestão deletérios à saúde. Se o poder se restringe ao observável e prescrito na forma da lei, e se os determinantes organizacionais patogênicos não estão reconhecidos na legislação, haveria meios para sensibilizar ou obrigar os atores da empresa à mudança? Que outras alternativas são possíveis? Como superar esta contradição? A solução seria possível apenas no âmbito do sistema de atividade do CEREST?
A narrativa do desenvolvimento histórico do SIVAT revelou a superação de diversas contradições. Historicamente com a incorporação da ergonomia e do MAPA houve mudança na forma de entender os acidentes. Esta expansão envolveu uma mudança filosófica, mudança de paradigma de entender o objeto não como parte isolada e independente de um sistema, mas o objeto como sistêmico ou dialético, cujos elementos somente podem ser entendidos em sua totalidade, o que exigiu da equipe um domínio conceitual muito além daqueles ofertados pelas disciplinas clássicas tradicionais. A expansão temporal, físico-espacial no objeto está demandando novos mediadores para lidar com seus desafios. O MAPA lida com esse aspecto da expansão dos elementos que devem ser investigados, porém, nesta expansão da abordagem, boa parte dos elementos “patológicos” do sistema de atividade da empresa não são objetos tradicionais do CEREST e nem os sujeitos são interventores capazes, e com poder suficiente para, por si, dar conta de mudanças organizacionais nas empresas (objeto novo para o CEREST e para a comunidade parceira). Percebeu-se então, que para lidar com esse novo objeto seria necessário expandir novamente a comunidade.
Todas estas mudanças são exigências do novo objeto, de um ciclo que parece estar em fase germinal. Para isso, faz-se necessário fortalecer e ampliar a equipe, reforçando e fortalecendo os quesitos de autonomia dos agentes, o que inclui o estabelecimento de carreira essencial do Estado e ampliação da rede com a comunidade, fundamentais para assegurar eficiência nas ações de auditoria em Saúde e Segurança no trabalho3737. Amengual M. Pathways to enforcement: labor inspectors leveraging linkages with society in Argentina. Industrial and Labor Relations Review 2014; 67(1):3-33.; ampliar e reforçar, por meio de mecanismos de educação continuada e permanente a capacidade analítica e o domínio de ferramentas e metodologias que integrem o diagnóstico com a intervenção de modo a inverter o papel dos atores internos das empresas, de modo a alterar seus papeis, de informantes a protagonistas (agenciadores de mudanças); consolidar uma divisão de trabalho mais democrática e cooperativa no seio da equipe, com ênfase em saberes partilhados e não compartimentados em especialidades.
Entende-se que a trajetória discutida neste artigo contribui para reflexões sobre desafios que não se restringem à prática local. Ao contrário, ela traz elementos para o debate sobre a necessidade de inovações nas ações públicas de vigilância que extrapolam o setor saúde.
Uma nova expansão do objeto, viabilizada por intervenções formativas, pressupõe o fortalecimento dos elos da RENAST e das outras instituições que atuam no campo, uma vez que agir e intervir nos determinantes organizacionais pressupõe também um novo desenho de rede, uma rede que efetivamente enrede3535. Mendes RWB, Takahashi MABC, Cerveny GCO, Querol MAP, Vilela RAG. Change Laboratory: Formative Intervention and remodelling of the system of activity of a Centre of Reference for Worker Health in Brazil. Proceedings book of 8th International Working on Safety Conference (WOS). Portugal. Lisbon; University of Minho; 2015; 1: 240-248..
Agradecimentos
À FAPESP, pelo financiamento do Projeto Temático “Acidente de trabalho: Da análise sócio técnica à construção social de mudanças”, bem como a toda sua equipe de pesquisa. Em especial a Mariana Guimarães e à equipe do Cerest Piracicaba na figura da Coordenadora Clarice Aparecida Bragantini, Alessandro José Nunes da Silva e Eclea Spiridião Bravo.
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Set 2018
Histórico
- Recebido
26 Abr 2016 - Revisado
06 Out 2016 - Aceito
08 Out 2016