Farfán-Santos E. Black bodies, black rights: the politics of quilombolismo in contemporary Brazil. Austin: University of Texas Press; 2016.

Aline Ferreira Sobre o autor
2016

A determinação oficial da condição “quilombola” no Brasil advém do autorreconhecimento e foi estabelecida na legislação federal em 2003, pelo Decreto n° 4.887. Quilombolas são considerados grupos étnico-raciais com relações territoriais particulares e trajetória histórica própria, resultante de séculos de desigualdades sociais, exclusões e discriminações11. Brasil. Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), Secretaria de Políticas para Comunidades Tradicionais. Guia de Políticas Públicas para comunidades quilombolas. Brasília: SEPPIR; 2013.. Não raro, estes povos são encontrados em precárias situações de saúde quando comparados a outros segmentos da população brasileira, com marcadas iniquidades socioeconômicas, pouco acesso ao saneamento básico e a serviços de saúde, além de conflitos territoriais22. Pinto AR, Borges JC, Novo MP, Pires OS, organizadores. Quilombos do Brasil: segurança alimentar e nutricional em territórios titulados. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2014..

O acesso à terra é uma das questões mais importantes para a qualidade de vida dos quilombolas e constitui o primeiro eixo do Programa Brasil Quilombola, principal marco de consolidação para uma política pública para as comunidades quilombolas no país11. Brasil. Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), Secretaria de Políticas para Comunidades Tradicionais. Guia de Políticas Públicas para comunidades quilombolas. Brasília: SEPPIR; 2013.. A posse da terra faz parte do conceito ampliado de saúde e a relação com a mesma é essencial em comunidades tradicionais, apresentando uma estreita relação com o perfil de saúde e doença.

Com uma escrita provocadora e inédita, Elizabeth Farfán-Santos, no livro ‘Black bodies, black rights: the politics of quilombolismo in contemporary Brazil’, traz uma discussão centrada acerca dos direitos territoriais e problemas no acesso à terra dos quilombolas no Brasil. Com isso, aborda um dos aspectos mais importantes para a entrada de serviços públicos de saúde: a regularização das terras. Apresenta uma motivação pessoal evidenciada nas primeiras páginas do livro conduzindo o leitor ao contexto do trabalho de campo etnográfico realizado anterior à publicação do livro. A autora resgata importantes aspectos dos quilombolas desde o período colonial, criando subsídios ao leitor para discutir mais adiante questões relativas ao processo de titulação de comunidades quilombolas, conflitos territoriais e fortalecer a discussão sobre promoção de equidade racial, permitindo uma visibilidade a esse assunto fora do Brasil.

Lançado no segundo semestre de 2016, o livro foi publicado por uma importante editora norte-americana. O cenário da autora é a comunidade quilombola Grande Paraguaçu (Recôncavo Baiano) durante os anos de 2009 e 2010. A origem desta data o século XVII, quando se formaram os primeiros quilombos na região, considerado um local estratégico para fuga de escravos. Após uma introdução do contexto histórico-social da comunidade, burocracias e problemáticas territoriais vivenciadas, Fárfan-Santos apresenta no primeiro capítulo uma perspectiva histórico-racial sobre descendentes dos quilombolas da região e diferentes situações envolvidas em torno da ‘justiça racial’. Também define o conceito de quilombolas para os leitores, revisitando o passado recente, pois acredita que não se pode discutir sobre as desigualdades existentes atualmente e a identidade negra no país sem compreender a história do racismo no Brasil.

No capítulo dois, “Conceiving blackness and quilombolismo”, Farfán-Santos faz um link para conceituar, a relação da identidade negra e quilombolas. O capítulo destaca as dificuldades para legitimar os direitos à terra concedidos aos quilombolas. Ela resume cuidadosamente o processo de reconhecimento cultural dos quilombolas a partir da definição constitucional e as políticas socioculturais e de saúde envolvidas. Com isso, discute a importância do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), como responsável pela validação da autenticidade das comunidades quilombolas e certificação dos direitos à terra. Também ressalta outras instituições envolvidas direta e indiretamente, deixando claro que a identificação de ser quilombola não é atrelada à raça/cor negra e sim uma identidade histórico-cultural. O debate sobre raça e racismo ressalta as dificuldades que os negros têm de reivindicar seu legado histórico de segregação racial.

Com um paralelo às diferentes realidades na comunidade Grande Paraguaçu e mostrando relatos colhidos em seu trabalho de campo, o capítulo é encerrado com uma importante reflexão de um dos moradores, Jackson, sobre a realidade incognoscível e incompreensível das formas de racismo vivenciadas nas experiências cotidianas de um negro no Brasil. E, principalmente, como essas experiências impactam na vida de cada um deles.

No capítulo seguinte, “Black Lives – We are quilombolas!”, temos um panorama do estilo de vida dos membros da comunidade quilombola através de relatos etnográficos profundos, levando o leitor à árdua jornada cotidiana do povo do quilombo Grande Paraguaçu que precisa, por exemplo, andar quilômetros até os manguezais para realizar suas atividades de subsistência. O modo de vida tradicional e as tradições passadas são mantidas ao longo das gerações. Ao mesmo tempo, a autora descreve com habilidade o modo que a política afeta os quilombolas da comunidade quando os manguezais são fechados por razões aleatórias, trazendo danos de diferentes tipos à saúde e à vida.

Os capítulos quatro e cinco descrevem mais detalhadamente o processo utilizado para titulação e certificação de uma comunidade quilombola, trazendo a experiência de Grande Paraguaçu. Ela mostra como esse processo de regulamentação da terra acontece e as burocracias envolvidas, lembrando que a regularização das terras quilombolas pode ser vista como um exemplo de política específica, pois apresenta normatização própria e ações diferentes das demais, em geral mais arraigada de burocracias e prazos demorados, além de brigas judicias e disputas por terras.

Com um olhar interdisciplinar, estes são os capítulos mais detalhados do livro, com importantes contribuições científicas para a discussão de desigualdades em saúde e acesso à terra. A descrição meticulosa destaca como o complexo processo de titulação e certificação de terras quilombolas têm relação com seus modos de vida, produção e reprodução social, enfatizando a luta contra latifundiários e burocracias locais. A importância destes capítulos no debate da Saúde Coletiva nos lembra que o direito à posse da terra traz uma série de possibilidades e benefícios para as comunidades. Com o processo de titulação de terras e regulamentação, os quilombolas podem “entrar no mapa” e vislumbrar melhorias nas políticas públicas de saúde, transporte, educação, saneamento básico e outros direitos. Esse é o cerne do livro e a mais importante contribuição da autora para o debate das iniquidades raciais em saúde.

Farfán-Santos ressalta também como, o que ela chama de violência legislativa, é perpetrada contra os residentes do quilombo, afetando a vida e a saúde dessas pessoas de inúmeras maneiras. A falta de trabalho e de acesso à terra os deixam em uma situação de vulnerabilidade, com ausência de renda para prover a alimentação e as outras necessidades básicas. As narrativas das entrevistas são fundamentais nesses capítulos.

O texto é concluído sinalizando a tarefa muito difícil no Brasil de se conquistar a designação de ser quilombola e os direitos sociais conquistados recentemente. A principal agência responsável no país é insuficiente e subfinanciada, com grandes estrangulamentos burocráticos, que levam a uma paralisação dos diferentes processos de reconhecimento de terra. Isso traz consequências graves ao modo de vida quilombola, pois a relação com a terra transcende uma mera questão produtiva. Assim como acontece em relação aos povos indígenas do Brasil, a terra para os quilombolas é mais do que um bem econômico: é identidade, saúde e cultura, transmitindo bens materiais e imateriais. E nesse sentido, destaco o único ponto negativo do livro: não incluir um debate comparativo do modo que os indígenas obtêm o direito à terra no país e os direitos recentes conquistados que impactaram de algum modo, positivamente, na sua saúde e estilo de vida.

Um dos mais atrativos do texto de Farfán-Santos é que ela se coloca como um ator social atuante autoquestionando, enquanto cidadã, sua posição vis-à-vis a posição de pesquisadora, levando o leitor a uma reflexão. Além disso, o livro prende o leitor com relatos pessoais desde o epílogo, quando já fica evidenciado um dos maiores problemas da comunidade Grande Paraguaçu: o reconhecimento da terra.

No atual cenário do país de dissoluções de políticas públicas, não podemos debater esse tema relativamente novo no campo da Saúde Coletiva, que é a “saúde quilombola”, sem mencionar o principal princípio para se ter saúde entre esses povos: o direito à terra. O conteúdo do livro traz assim, por vezes indireta e por vezes direta, o debate sobre a posse da terra e o conceito ampliado de saúde quilombola não apenas para os leitores da área de saúde, mas também para outros atores envolvidos nas redes, movimentos e articulações quilombolas no Brasil.

Considero o livro uma leitura complementar importante para estudantes das áreas de saúde, de ciências humanas e profissionais, e leitura obrigatória para a discussão sobre desigualdades em saúde e Promoção da Equidade Racial. Pensar na saúde como resultante de uma série de fatores, dentre eles o acesso e a posse à terra, especialmente em populações em situação de vulnerabilidade social no Brasil, como os quilombolas, é o primeiro passo para fortalecimento de políticas públicas direcionadas à discriminação e à pobreza que afetam essas populações e que são fruto de relações historicamente constituídas que impactam nas condições de vida.

Referências

  • 1
    Brasil. Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), Secretaria de Políticas para Comunidades Tradicionais. Guia de Políticas Públicas para comunidades quilombolas. Brasília: SEPPIR; 2013.
  • 2
    Pinto AR, Borges JC, Novo MP, Pires OS, organizadores. Quilombos do Brasil: segurança alimentar e nutricional em territórios titulados Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan 2019
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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