Löwy I. Imperfect pregnancies: a history of birth defects and prenatal diagnosis. Baltimore: Johns Hopkins University Press; 2017.

Gênesis Vivianne Soares Ferreira Cruz Reni Barsaglini Karla Beatriz Barros de Almeida Maycon Luiz Basilio Ítala Paris de Souza Késia Marisla Rodrigues da Paz Sobre os autores
2017

Na presente obra Ilana Löwy discute a fusão entre ciência pura/aplicada, conectada aos desdobramentos sociotécnicos que detalham o histórico da fabricação e difusão do diagnóstico pré-natal como dispositivo, nela inclusa suas transformações, motivações e consequências materiais, políticas, morais e socioculturais.

Pela acepção foucaultiana, o diagnóstico pré-natal é tomado como dispositivo, por se tratar de “um conjunto heterogêneo de discursos, instituições, formas arquitetônicas, decisões regulatórias, leis, medidas administrativas, declarações científicas, proposições filosóficas, morais e filantrópicas” (tradução livre), que permite a vigilância e o controle da gravidez.

E, se considerarmos que o “(...) prenatal diagnosis is a diagnosis”, vemos que as reflexões da Sociologia do Diagnóstico fornecem elementos importantes à produção dos saberes sobre práticas em saúde, enfermidade e sociedade ao analisar o diagnóstico como categoria, processo e consequência11 Jutel A. Sociology of diagnosis: a preliminary review. In: McGann PJ, Hutson DJ, editors. Socioloy of Diagnosis. Bingley: Emerald; 2011. p. 3-32.. Como categoria remete ao ordenamento de sinais percebidos pelos profissionais de saúde e sintomas referidos pelas gestantes, traduzidos à classificação formal que gera a entidade nosológica; como processo, refere-se ao método de avaliação cotejando testes, observação de outros profissionais clínicos e a experiência do indivíduo com intermediação tecnológica; como consequência, se volta às repercussões para os envolvidos - pacientes, cuidadores, familiares, pesquisadores e outros profissionais, mas também às associações, organizações e instituições.

Estes elementos não são descurados pela autora, a qual realça o processo envolvido pela perspectiva histórica do desenvolvimento do diagnóstico pré-natal que engendra categorias (anomalias), ao passo que problematiza suas consequências perpassadas por elementos morais e burocrático-legais, os quais variam no tempo e espaço. Há de se considerar as diferentes consequências do diagnóstico pré-natal e como e por quem são assumidas quando se trata de países desenvolvidos, como de onde fala a autora, ou daqueles marcados pelas desigualdades sociais que se refletem na saúde, como é o caso do Brasil.

Em contexto em que se empreendem esforços para garantir o acesso ao pré-natal, quais as consequências e quem se beneficiaria do diagnóstico pré-natal? O conhecimento antecipado de anomalia fetal ao lado da restrição de alternativas e respaldos institucionais do que fazer, pode expor ainda mais os segmentos sociais menos favorecidos tanto na decisão de interromper a gestação por conta própria (recorrendo às práticas inseguras) como continuá-la em atitude resignada e sob os auspícios morais, caritativos, filantrópicos e assistencialistas. Neste sentido, é exemplar no Brasil, as controvérsias que perduram sobre o aborto assistido no caso da anencefalia, embora descriminalizado, desde 2012. Recentemente, o debate foi reavivado diante dos casos de microcefalia associados ao Zika Vírus que atingiram, significativamente, regiões e populações empobrecidas no Brasil, assim como seus defensores foram rechaçados.

A obra é organizada em Introdução, que anuncia o esquadrinhamento fetal viável pela mudança da observação de fetos mortos para vivos em tempo real, e revela o deslocamento do foco da saúde da mulher para o feto, sob a dualidade do sujeito do cuidado, tendo lugar discursos feministas quanto aos direitos de um ou outro, ao lado das críticas eugênicas. Seguem-se seis capítulos com certa autonomia e finaliza com tópico de Conclusões.

O capítulo inicial Nascidos imperfeitos: defeitos congênitos antes do diagnóstico pré-natal, percorre a construção científica do diagnóstico pré-natal do século XIX. Neste, tem lugar a detecção do fator RH e incompatibilidade gestante/feto e as deficiências inatas possivelmente associadas às anomalias focando, de início, nas deficiências visíveis, como a Síndrome de Down. No conjunto de medidas para eliminar deformidades e reduzir a mortalidade neonatal, emergiram políticas pró-natalistas (puericultura, licença maternidade) e profissionalização dos cuidados e rastreamento pré-natais somado ao impulso na embriologia e da teratologia.

O capítulo dois Cariótipos ocupa-se das novas tecnologias de diagnóstico, com o estudo dos cromossomos humanos, a identificação do fator RH e das grandes malformações fetais visíveis inicialmente pelo raio X seguida da análise de células fetais no líquido amniótico, com a descoberta do “corpo de Barr” como marcador universal sexual; bem como o salto pela análise cromossômica, a identificação de anomalias e descrição de síndromes correspondentes.

O capitulo três Malformações humanas, debate a legalização do aborto diante dos defeitos congênitos graves e nos faz refletir sobre a vida enquanto direito, ponderando serem importantes as interações entre hereditariedade e ambiente como um todo. Tais constructos sofreram grande expansão desde o século XIX e se delineavam entre fragilidades e sucessos nas comprovações científicas de anomalias, rastreamento e estabelecimento de triagem de base populacional, evidenciando a racionalização sobre o normal e o patológico.

Da mesma forma, o capítulo quatro Do diagnóstico pré-natal à triagem pré-natal, salienta a detecção de anomalias fetais que causam deficiência mental, os custos monetários, a necessidade de gerenciamento contínuo, além da questão da justiça social que seria ambivalente, por borrar a fronteira entre escolhas individuais e sociais. Também, discute os riscos fetais e as questões morais/culturais que influenciam o modo de oferta da triagem obstétrica, a aceitação do rastreio pelas mulheres, a decisão de interromper a gestação, a condução do atendimento e o modo como o feto é compreendido enquanto vida em potencial.

O capítulo cinco Aneuploidias no cromossomo sexual, explora as anomalias cromossômicas de base sexual ilustradas pelas Síndromes de Turner e Klinefelter, e os dilemas dos ditadores cromossômicos da expressão da sexualidade e a influência do diagnóstico na escolha em interromper ou não a gestação. Tal noção, atrelada à anatomia, à fisiologia e ao número de cromossomos expressou, segundo a autora, a dissociação entre diagnóstico genético e seu significado concreto, ganhando terreno o debate sobre a discussão sobre a construção sociocultural de gênero.

O último capítulo Diagnóstico pré-natal e novas abordagens genômicas, versa sobre os testes sanguíneos de DNA fetal, a partir da década de 2010, renomeados como Noninvasive Prenatal Testing – NIPT. Conjugam-se a minimização de medidas diagnósticas invasivas com testes mais baratos a serem incorporados na rotina de pré-natal. São trazidos à tona a relação dos criadores desses testes com o mercado e o Estado, bem como as disputas pela propriedade intelectual e pelo controle do mercado. Somam-se as discussões das dimensões éticas do sequenciamento do genoma fetal, reconfigurando as discussões sobre eugenia, o padrão antecipado de normalidade imposto ao indivíduo/feto e a decisão das mães diante da detecção de anomalias cromossômicas.

Nas Conclusões, Löwy sintetiza as consequências da difusão do diagnóstico pré-natal; suas ambivalências e controvérsias; a ação do uso das técnicas que provoca outras tantas ações em humanos e não humanos, enredadas em fluxos dinâmicos e permanentes, confirmando-se, em reiterada interlocução com Latour22 Latour B. Morality and Technology: the end of the means. Theory, Culture and Society 2002; 19(5-6):247-260., que as tecnologias são “agentes ativos”.

Lembremos que o caráter público ou privado dos serviços de saúde, assim como as entidades profissionais podem imprimir especificidades à utilização de diagnóstico pré-natal. No Brasil, pelo Sistema Único de Saúde, há normas técnicas para início precoce do pré-natal e cuja classificação quanto ao risco norteia a obrigatoriedade e oferta de ultrassonografia obstétrica33 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Atenção ao pré-natal de baixo risco. Brasília: MS; 2012., ao passo que a Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia recomenda o exame trimestralmente44 Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO). Assistência pré-natal. Manual de Orientação. Rio de Janeiro: FEBRASGO; 2014..

Assim, se na esfera pública, depende de protocolos específicos e viabilidade de oferta do exame, na esfera privada fica a critério de cada profissional pautado tecnicamente, mas, também, pela demanda dos pais e a cobertura pelo plano de saúde ou assunção particular dos custos. Da mesma forma seguiriam os exames mais sofisticados, complexos e caros. Fato é que se desliza para o que fazer com tais práticas preditivas que podem acabar tendo um fim em si mesmas, alimentando seu consumo e gastos, públicos ou não. A ênfase na molecularização da vida, de onde deriva tais práticas, pode se desdobrar na individualização das intervenções ofuscando a dimensão coletiva, cultural e o olhar mais crítico para a concretude da existência, os investimentos na ciência, na tecnologia e nas políticas públicas (com destaque àquelas voltadas à saúde em sentido ampliado e como direito), em especial nos contextos de desigualdades históricas.

Enfim, a análise de tema movediço como o diagnóstico pré-natal é desafiador e requer atenção às polarizações éticas e morais do olhar, uma vez que os elementos material, institucional, econômico, sociocultural e político que moldam tal dispositivo não estão dissociados, além de haver diferenças nas suas aplicações historicamente situadas. Dado seu matiz desvelador, a leitura da obra é provocativa, inspiradora e recomendável para pesquisadores em geral, gestores, profissionais e estudantes da área da saúde e demais interlocutores que dialogam com a temática.

Referências

  • 1
    Jutel A. Sociology of diagnosis: a preliminary review. In: McGann PJ, Hutson DJ, editors. Socioloy of Diagnosis Bingley: Emerald; 2011. p. 3-32.
  • 2
    Latour B. Morality and Technology: the end of the means. Theory, Culture and Society 2002; 19(5-6):247-260.
  • 3
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Atenção ao pré-natal de baixo risco. Brasília: MS; 2012.
  • 4
    Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO). Assistência pré-natal. Manual de Orientação. Rio de Janeiro: FEBRASGO; 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2019
  • Data do Fascículo
    Out 2019
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