Impacto das crises financeiras sobre os indicadores de saúde bucal: revisão integrativa da literatura

Livia Fernandes Probst Gilberto Alfredo Pucca Junior Antonio Carlos Pereira Alessandro Diogo De Carli Sobre os autores

Resumo

O objetivo desse estudo foi analisar, por meio de uma revisão integrativa da literatura, os possíveis impactos das crises financeiras sobre os indicadores de saúde bucal em diferentes países, bem como verificar as medidas adotadas de forma a traçar um paralelo com a realidade brasileira. Uma busca de artigos que atendessem a estes critérios foi realizada nas bases PUBMED, EMBASE, Lilacs, SCOPUS e também na literatura cinzenta. Ao final, nove estudos foram incluídos. Os resultados indicam que a população em maior vulnerabilidade, menor renda e menor escolaridade são as mais afetadas, independentemente do indicador avaliado (cárie dentária não tratada, acesso aos serviços de Atenção Odontológica e hábitos de higiene). Quando medidas protetivas com alocação de recursos financeiras foram tomadas, as disparidades diminuíram. Concluiu-se que, frente às crises econômicas, a saúde bucal passa a não ser prioridade enquanto centro nucleador de políticas, o que impacta o acesso ao cuidado dos estratos sociais menos favorecidos.

Palavras-chave
Saúde Bucal; Gestão em Saúde; Indicadores Básicos de Saúde

Introdução

O Brasil vive um cenário complexo tanto do ponto de vista econômico como político, com repercussões diretas sobre o setor saúde. Os reflexos da crise econômica mundial que atingiu fortemente diversos países em 2008 foram percebidos no Brasil a partir de 2011, com aumento do desemprego e diminuição da demanda pelas indústrias. Esse quadro foi agravado pela crise política em que disputas do legislativo e executivo, de alguma forma moduladas pelo judiciário, levaram a uma desestabilização institucional e consequente impeachment de Dilma Roussef em 2016, agravando o cenário de instabilidade política no país.

Contextos como estes, que envolvem recessão econômica e crise política, causam desestabilização das instituições e diminuição de verbas para áreas fundamentais como a saúde11 Labonté R, Stuckler D. The rise of neoliberalism: how bad economics imperils health and what to do about it. J Epidemiol Community Health 2016; 70(3):312-318.,22 Castro MC, Massuda A, Almeida G, Menezes-Filho NA, Andrade MV, Souza Noronha KVM, Rocha R, Macinko J, Hone T, Tasca R, Giovanella L, Malik AM, Werneck H, Fachini LA, Atun R. Brazil's unified health system: the first 30 years and prospects for the future. Lancet 2019; 6736(19):1-12.. Esses ajustes fiscais, preferencialmente por cortes de gastos, são adotados com a justificativa de ajustar a economia e promover o crescimento do país33 Deweck E, Oliveira ALM, Rossi P. Austeridade e Retrocesso: Impactos Sociais Da Política Fiscal No Brasil [livro na Internet]. São Paulo: Brasil Debate e Fundação Friedrich Ebert; 2018. Disponível em: http://brasildebate.com.br/wp-content/uploads/DOC-AUSTERIDADE_doc3-_L9.pdf
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. O maior exemplo disso no Brasil deu-se pela aprovação da Emenda Constitucional nº 95, em dezembro de 2016, que trata do Novo Regime Fiscal (NRF)44 Brasil. Emenda Constitucional no 95 de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências [documento na Internet]. Diário Oficial da União; 2016. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm
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. A contar de 16 de dezembro de 2016, quando foi aprovado, foram inseridos no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias vários dispositivos que programaram um novo regime fiscal com um limite para os gastos do governo federal, limite este do qual nem os setores da Saúde e da Educação foram poupados, e que vigorará pelos próximos 20 (vinte) anos.

Observa-se, na conjuntura internacional, que a adoção de políticas de austeridade fiscal que atingem o setor saúde não é novidade no mundo capitalista atual. Como resposta à crise financeira de 2008, por exemplo, países com Sistemas Universais de Saúde como a Inglaterra, Alemanha e Espanha adotaram políticas de austeridade com contenção de gastos públicos em saúde objetivando o controle do déficit público11 Labonté R, Stuckler D. The rise of neoliberalism: how bad economics imperils health and what to do about it. J Epidemiol Community Health 2016; 70(3):312-318.,55 Giovanella L, Stegmuller K. Crise financeira europeia e sistemas de saúde: universalidade ameaçada? Tendências das reformas de saúde na Alemanha, Reino Unido e Espanha. Cad Saude Publica 2014; 30(11):1-19.

6 Borges FT, Fernández LAL, Campos GWS. Políticas de austeridade fiscal: tentativa de desmantelamento do Sistema Nacional de Salud da Espanha e resistência cidadã. Saude e Soc 2018; 27(3):715-728.
-77 Santos IS, Vieira FS. Direito à saúde e austeridade fiscal: o caso brasileiro em perspectiva internacional. Ciên Saude Colet 2018; 23(7):2303-2314.. Entretanto, no caso da política de austeridade brasileira, os gastos ficarão estagnados em termos reais e por um período pré-fixado de duas décadas, sendo mais radical do que medidas adotadas pelos outros países.

Se crises econômicas já são suficientes para piorar a saúde das pessoas, por aumentarem a pobreza e alterarem outros determinantes sociais da saúde, as políticas de austeridade reforçam esse processo, ao reduzirem a proteção social e diminuírem o aporte de recursos ao sistema de saúde33 Deweck E, Oliveira ALM, Rossi P. Austeridade e Retrocesso: Impactos Sociais Da Política Fiscal No Brasil [livro na Internet]. São Paulo: Brasil Debate e Fundação Friedrich Ebert; 2018. Disponível em: http://brasildebate.com.br/wp-content/uploads/DOC-AUSTERIDADE_doc3-_L9.pdf
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. Nesse contexto, pesquisas recentes já apontam piora de indicadores básicos de saúde brasileiros após o vigor do novo regime fiscal, sugerindo que a redução de investimentos em saúde já se faz sentir nas políticas de promoção, prevenção e atenção22 Castro MC, Massuda A, Almeida G, Menezes-Filho NA, Andrade MV, Souza Noronha KVM, Rocha R, Macinko J, Hone T, Tasca R, Giovanella L, Malik AM, Werneck H, Fachini LA, Atun R. Brazil's unified health system: the first 30 years and prospects for the future. Lancet 2019; 6736(19):1-12.,88 Paes-Sousa R, Rasella D, Carepa-Sousa J. Política econômica e saúde pública: equilíbrio fiscal e bem-estar da população. Saude e Debate 2018; 42(3):172-182.. No caso específico da saúde bucal, pode-se antever um cenário ainda mais danoso, tendo em vista que limitações da oferta e do acesso a serviços em saúde bucal fazem com que a cárie dentária não tratada seja, ainda nos dias atuais, a morbidade mais comum entre todas as doenças no mundo, fato que a torna um fardo econômico considerável para o indivíduo e para a sociedade99 Righolt AJ, Jevdjevic M, Marcenes W, Listl S. Global-, Regional-, and Country-Level Economic Impacts of Dental Diseases in 2015. J Dent Res 2018; 97(5):501-507.1212 Watt RG, Daly B, Allison P, Macpherson LMD, Venturelli R, Listl S, Weyant RJ, Mathur MR, Guarnizo-Herreño CC, Celeste RK, Peres MA, Kearns C, Benzian H. Ending the neglect of global oral health: time for radical action. Lancet 2019; 394(10194):261-272.. Entretanto, mesmo diante desse quadro mundial, o Brasil é, atualmente, o único país do mundo a inserir em seu sistema público de saúde (Sistema Único de Saúde - SUS)1313 Paim JS, Temporão JG, Penna GO, Santos NR, Pinto LF. Sistema Único de Saúde: 30 anos de luta! Ciên Saude Colet 2018; 23(6):1704. atenção e assistência à saúde bucal para mais de 200 milhões de habitantes, de forma pública, universal e em diferentes níveis de atenção.

As recentes mudanças nas diretrizes das principais políticas públicas, incluindo a política de saúde bucal, podem comprometer gravemente os avanços alcançados. A continuidade da Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB) ou Programa Brasil Sorridente depende de vontade política e movimentação popular, pois tradicionalmente no Brasil, programas de governo não são sinônimos de programas de Estado1414 Pereira AC, Mialhe FL, Pereira SM, Meneghim MDC. O mercado de trabalho odontológico em saúde coletiva: possibilidades e discussões. Arq em Odontol 2010; 46(4):232-239.,1515 Cascaes AM, Dotto L, Bomfim RA. Tendências da força de trabalho de cirurgiões-dentistas no Brasil, no período de 2007 a 2014: estudo de séries temporais com dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde. Epidemiol Serv Saude 2018; 27(1):1-10.. Considerando que o aporte de recursos para a saúde bucal foi historicamente negligenciado antes da existência do Brasil Sorridente, pode-se supor por um cenário de desafios.

Outros países passaram por crises econômicas importantes e os resultados experimentados pelas ações frente ao setor saúde, tenham sido bem ou mal sucedidos, podem servir de base para o planejamento de medidas nacionais, se nos atentarmos para as devidas especificidades. Diante do exposto, o objetivo deste estudo foi verificar, a partir de uma revisão integrativa da literatura, qual o impacto das crises financeiras sobre os indicadores de saúde bucal. Em face dos achados observou-se como os países propuseram enfrentamentos a este cenário e pretendeu-se uma discussão crítico-reflexiva perante o atual cenário brasileiro.

Metodologia

Delineamento e pergunta da Pesquisa

A revisão integrativa da literatura foi conduzida e relatada em concordância com o Pre-ferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA) Statement1616 Hutton B, Salanti G, Caldwell DM, Chaimani A, Jansen JP, Mulrow C. The PRISMA Extension Statement for Reporting of Systematic Reviews Incorporating Network Meta-analyses of Health Care Interventions: Checklist and Explanations. Ann Intern Med 2015; 162(11):777-784. e a pergunta da pesquisa foi: Qual o impacto das crises financeiras e políticas de austeridade sobre os indicadores de saúde bucal?

Termos e Estratégia de buscas

A partir da pergunta foram pesquisados por termos específicos extraídos dos Mesh e Emtree para possibilitar a estratégia adequada. Uma busca sistemática foi conduzida em julho de 2019 nas plataformas de dados eletrônicas, incluindo PubMed, EMBASE, Scopus e Lilacs para identificar estudos que analisaram a associação entre as crises financeiras e as políticas de austeridade com os indicadores de saúde bucal. Não houve restrição de idioma ou data e a combinação dos termos com seus sinônimos, bem como os resultados encontrados para cada plataforma de base eletrônica no dia da busca está apresentado detalhadamente no Quadro 1.

Quadro 1
Estratégias de buscas e resultados nas bases de dados indexadas.

Também foi feito busca na literatura cinzenta e contato com pesquisadores da área para recuperação de estudos não publicados (Quadro 2).

Quadro 2
Estratégias de buscas e resultados nas bases não oficiais e literatura cinzentas.

Por fim, as referências dos artigos relevantes incluídos para leitura do texto completo também foram checadas para avaliar a inclusão de estudos adicionais.

Critérios de elegibilidade

Somente foram incluídos estudos primários que associassem especificamente os impactos de uma crise econômica e/ou política de austeridade sobre indicadores de saúde bucal.

Foram excluídos estudos de revisão, cartas, editoriais e artigos de opinião.

Seleção dos estudos

A busca nas bases de dados resultou em 180 artigos. Foram feitas buscas adicionais no Google Scholar, incluindo a análise das 10 primeiras páginas (100 artigos). As 262 referências foram então exportadas para o Rayyan QCRI1717 Ouzzani M, Hammady H, Fedorowicz Z, Elmagarmid A. Rayyan-a web and mobile app for systematic reviews. Syst Rev 2016; 5(1):210., ferramenta utilizada para remoção das duplicatas e para o processo de triagem dos títulos e resumos de acordo com os critérios de elegibilidade. Ao final de todo o processo de seleção 9 estudos foram incluídos, conforme esquematização apresentada na Figura 1.

Figura 1
Fluxograma da seleção dos estudos incluídos.

Extração de dados

Uma planilha em Excel, previamente elaborada, foi utilizada para extrair os seguintes dados: (autor/ano, crise econômica avaliada, impacto em saúde bucal avaliado, conclusões dos autores).

Resultados

O Quadro 3 apresenta a caracterização dos nove estudos incluídos, contendo informações sobre o desenho e objetivo do estudo, crise econômica, país e indicador de saúde bucal avaliado. A recente crise econômica que afetou os Estados Unidos foi a mais avaliada (04 estudos). Outros países avaliados foram: Islândia (01 estudo), Finlândia (01 estudo), Grécia (01 estudo) e Espanha (01 artigo). Um estudo se propôs a avaliar o efeito da crise econômica sobre 23 países europeus. Não foi encontrado nenhum estudo avaliando o contexto brasileiro.

Os principais indicadores avaliados foram o acesso aos serviços de saúde bucal e a cárie não tratada. Somente um estudo avaliou como indicador a incidência de fraturas maxilofaciais.

Quadro 3
Caracterização dos estudos incluídos conforme critérios de elegibilidade.

O Quadro 4 apresenta os resultados e conclusões encontrados pelos autores dos 9 estudos incluídos.

Quadro 4
Resultados e conclusões dos estudos realizados quanto ao impacto das crises econômicas sobre os indicadores de saúde bucal, ordenados por ano de publicação.

No contexto geral dos diversos países pode-se afirmar que os efeitos das crises atingem, de forma mais pronunciada, a população mais vulnerável, de menor renda e menor escolaridade. Pode-se observar também que quando medidas protetivas são tomadas, incluindo aumento do financiamento, as iniquidades em saúde bucal diminuem.

Discussão

A relação entre condições econômicas e desfechos de saúde é complexa e pode envolver caminhos múltiplos e inter-relacionados. Ainda há poucos estudos que avaliam o impacto de crises econômicas sobre os indicadores de saúde bucal da população. Porém, de modo geral, podemos fazer algumas prospecções para o Brasil se os resultados forem avaliados considerando-se as particularidades de nosso país e de nossa política.

O estudo mais antigo que encontramos fez uma avaliação do impacto da recessão econômica da década de 90 sobre o uso dos serviços de saúde bucal na Finlândia1818 Suominen-Taipale L, Widström E. Does dental service utilization drop during economic recession? The example of Finland, 1991-94. Community Dent Oral Epidemiol 1998; 26(2):107-114.. A hipótese foi de que a crise teria reduzido a procura por serviços de saúde bucal, mas tal resultado não foi confirmado no contexto geral, pois apenas o grupo de pacientes subsidiado pelo governo teve uma redução significativa na procura por serviços durante os anos de estudo. O aumento do número de cirurgiões-dentistas no país ampliou a competição, reduzindo o custo do tratamento e compensando parcialmente os efeitos da crise econômica. Entretanto, destaca-se que essa competição favoreceu particularmente os estratos sociais de alta renda e alta escolaridade.

Nesse ponto, fazemos um paralelo com a realidade brasileira. O número de cirurgiões-dentistas no país já era considerado alto em 2004, ano do lançamento do Brasil Sorridente. Todavia, isso não resultava em condições de acesso à atenção à saúde bucal para população, fato que fica evidente quando observamos que à época, 28 milhões de brasileiros nunca haviam ido ao dentista2727 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Projeto SB Brasil 2003: Condições de Saúde Bucal Da População Brasileira 2002-2003: Resultados Principais [relatório na Internet]. Brasília: MS; 2004. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/condicoes_saude_bucal.pdf
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. Até então, a assistência pública odontológica brasileira era focada no modelo materno-infantil, de caráter curativo, com graves problemas de distribuição de recursos humanos em um país de dimensões continentais, e com ausência de planejamento, tornando-se mutilador e elitista2828 Gabriel M, Cayetano MH, Galante ML, Carrer FC. A Global Overview of the Geographical Distribution of Dentists?: A Scoping Review. JDR Clin Transl Res 2018; 3(3):229-237..

Com a implementação do Brasil Sorridente, a população brasileira teve essa demanda atendida por meio da oferta e expansão dos serviços públicos de saúde bucal. Muito embora a questão da distribuição de profissionais ainda não tenha atingido níveis ideais, as políticas públicas de saúde bucal passaram a incentivar o deslocamento de profissionais para o interior e para regiões com maior vulnerabilidade, visando uma oferta mais equitativa dos serviços odontológicos1515 Cascaes AM, Dotto L, Bomfim RA. Tendências da força de trabalho de cirurgiões-dentistas no Brasil, no período de 2007 a 2014: estudo de séries temporais com dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde. Epidemiol Serv Saude 2018; 27(1):1-10.,2929 Peres KG, Peres MA, Boing AF, Bertoldi AD, Bastos JL, Barros AJD. Redução das desigualdades sociais na utilização de serviços odontológicos no Brasil entre 1998 e 2008. Rev Saude Publica 2012; 46(2):250-258.. O impacto positivo de tais medidas pode ser evidenciado inclusive pela melhora alcançada no quadro epidemiológico brasileiro conforme resultados do SB Brasil 20103030 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Resultados Principais SB Brasil 2010 [relatório na Internet]. Brasília: MS; 2011. Disponível em: http://189.28.128.100/dab/docs/geral/projeto_sb2010_relatorio_final.pdf
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e SB São Paulo 20153131 Pereira AC, Frias AC, Vieira V. SB São Paulo: Pesquisa Estadual de Saúde Bucal 2015: Relatório Final [relatório na Internet]. Águas de São Pedro: Livronovo; 2016. Disponível em: http://www.saude.sp.gov.br/resources/ses/perfil/profissional-da-saude/areas-tecnicas-da-ses/e_book_relatorio_sb_sp_2015.pdf
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, em níveis nacional e local, respectivamente.

Além disso, devemos ressaltar que, no Brasil, estima-se que ao menos 80% da população seja dependente de cuidados odontológicos exclusivamente públicos1515 Cascaes AM, Dotto L, Bomfim RA. Tendências da força de trabalho de cirurgiões-dentistas no Brasil, no período de 2007 a 2014: estudo de séries temporais com dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde. Epidemiol Serv Saude 2018; 27(1):1-10.,3232 Cascaes AM, Camargo MBJ, Castilhos ED, Silva AER, Barros AJD. Private dental insurance expenditure in Brazil. Rev Saude Publica 2018; 52:24., população esta que, comparativamente à população finlandesa subsidiada, seria a mais fortemente prejudicada, aumentando as disparidades em saúde bucal. Considerando que o governo finlandês adiou os planos de estender o seguro de saúde para cobrir os serviços odontológicos para toda a população adulta devido a restrições econômicas1818 Suominen-Taipale L, Widström E. Does dental service utilization drop during economic recession? The example of Finland, 1991-94. Community Dent Oral Epidemiol 1998; 26(2):107-114., podemos admitir que a saúde bucal costuma figurar fora do rol de prioridades de governos quando se trata de garantir acesso à saúde de suas populações.

Dessa forma, destaca-se a importância do Programa Brasil Sorridente para a expansão dos serviços odontológicos no serviço público brasileiro. A continuidade de políticas públicas que combinem a oferta de serviços de saúde baseados em princípios de equidade e na qualidade de atenção são determinantes para o avanço, em resultados futuros, em termos de acesso e utilização, resolutividade e melhoria das condições de saúde bucal da população1515 Cascaes AM, Dotto L, Bomfim RA. Tendências da força de trabalho de cirurgiões-dentistas no Brasil, no período de 2007 a 2014: estudo de séries temporais com dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde. Epidemiol Serv Saude 2018; 27(1):1-10.. Entretanto, crises políticas e econômicas recentes, no plano mundial e nacional apontam várias mudanças nesse cenário, situação que pode afetar negativamente a saúde bucal população.

Crises econômicas trazem algumas consequências, entre elas, aumento do desemprego e reflexo na diminuição do Produto Interno Bruto (PIB), o que impacta a perda substancial de riqueza. No caso norte americano, citando o Medicaid, tal situação fez com que dentistas de alguns estados experimentassem uma redução acentuada na demanda por atendimento durante a crise 2007-2009. Com a capacidade não utilizada e um aumento no reembolso oferecido pelo Medicaid, houve um interesse crescente destes profissionais pelo programa. Esse fato permitiu que a população assistida pelo Medicaid tivesse mais acesso a serviços odontológicos, o que elevou de forma significativa as taxas de uso de serviços odontológicos. Um dos pontos ressaltados foi de que a atração de profissionais para o programa foi devida a uma atualização nos valores de reembolso oferecidos pelo governo2323 Beazoglou T, Douglass J, Myne-Joslin V, Baker P, Bailit H. Impact of fee increases on dental utilization rates for children living in Connecticut and enrolled in Medicaid. J Am Dent Assoc 2015; 146(1):52-60..

O Medicaid é um programa de recurso social voltado somente para população norte-americana de baixa renda. Com a crise e as altas taxas de desemprego, um número maior de pessoas passou a ser assistida pelo programa. E foi justamente o investimento financeiro em meio à crise (por meio dos aumentos nos reembolsos aos profissionais) que permitiu que o acesso aos serviços de Atenção Odontológica aumentasse2323 Beazoglou T, Douglass J, Myne-Joslin V, Baker P, Bailit H. Impact of fee increases on dental utilization rates for children living in Connecticut and enrolled in Medicaid. J Am Dent Assoc 2015; 146(1):52-60.. Essa situação é de alta relevância para o contexto brasileiro, mesmo existindo grande diferença entre as políticas dos países em questão.

Ainda nesse contexto, ao ser analisado o acesso aos serviços sem restringir a avaliação ao Medicaid, observou-se que, quando o resultado é avaliado de forma agregada, apesar de haver um declínio, não há diferença estatisticamente significativa na taxa de utilização de atendimento odontológico entre a população como um todo. Todavia, existe uma variação importante por idade e nível de pobreza. Diferentemente da população infantil, os adultos (mesmo de baixa renda) não são obrigatoriamente assistidos pelo Medicaid. E foi justamente nesta população que o impacto da crise foi mais significativo1919 Wall TP, Vujicic M, Nasseh K. Recent trends in the utilization of dental care in the United States. J Dent Educ 2012; 76(8):1020-1027..

Tal situação de investimento é exatamente o oposto do que tem acontecido no Brasil, pois, com a crise econômica, o número de pacientes SUS-dependente tende a aumentar. Entretanto, o investimento e a continuidade do Programa Brasil Sorridente têm sido fortemente prejudicados, principalmente devido à precarização do serviço e até certo ponto, de forma perversa, negando-o à população que mais necessita. A desativação de Centros de Especialidades Odontológicas (em todo território nacional), o descredenciamento crescente das Equipes de Saúde da Família (principalmente no RJ) e a implantação da atual Política Nacional de Atenção Básica3333 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 2436 de 21 de Setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União; 2017.,3434 Morosini MVGC, Fonseca AF, Lima LD. Política Nacional de Atenção Básica 2017: retrocessos e riscos para o Sistema Único de Saúde Atenção Básica no Brasil. Saude e Debate 2018; 42(116):11-24. suportam este movimento de retrocesso em relação às políticas sociais, o que também é observado em outros campos do SUS, e não apenas na saúde bucal. Em contrapartida, a literatura indica que, em nível macro, as políticas de saúde devem construir uma agenda para o combate às iniquidades, a fim de reduzir a exposição de vulneráveis a fatores danosos à saúde, minimizando o impacto das consequências (sociais, econômicas) das doenças bucais. Isto pode ser atingido pelo fomento à atenção à saúde bucal de forma acessível, apropriada e efetiva, direcionada aos grupos populacionais à margem da sociedade, mais susceptíveis às doenças bucais3535 Watt RG. Social determinants of oral health inequalities: implications for action. Community Dent Oral Epidemiol 2012; 40:44-48..

Frente à crise econômica, o indicador “cárie dentária não tratada” foi avaliado nos Estados Unidos2020 Abasaeed R, Kranz AM, Rozier G. The impact of the Great Recession on untreated dental caries among kindergarten students in North Carolina. J Am Dent Assoc 2013; 144(9):1038-1046. e na Espanha2424 Calzón Fernández S, Fernández Ajuria A, Martín JJ, Murphy MJ. The impact of the economic crisis on unmet dental care needs in Spain. J Epidemiol Community Health 2015; 69(9):880-885., respectivamente. Ambos estudos evidenciaram um aumento na necessidade de tratamento odontológico na população examinada. Neste contexto, na Espanha, o atendimento odontológico financiado com recursos públicos para adultos foi limitado ao atendimento dos casos agudos (atendimento de urgência) e de patologias agudas. Essa população foi a que teve o quadro de saúde bucal mais afetado, indicando a necessidade de se repensar a oferta de serviços odontológicos públicos no local2424 Calzón Fernández S, Fernández Ajuria A, Martín JJ, Murphy MJ. The impact of the economic crisis on unmet dental care needs in Spain. J Epidemiol Community Health 2015; 69(9):880-885.. Este tipo de consequência à crise financeira coloca a saúde bucal num patamar não prioritário nos sistemas de saúde, de modo que as ações de atenção ficam restritas à limitação do dano, quadro típico do paradigma odontológico cirúrgico-restaurador, o qual foi tão combatido nas últimas décadas, e que, possivelmente, ganhará sustento novamente, inclusive no Brasil, com o suporte das políticas de austeridade e contenção de gastos sinalizadas pelo governo federal.

Em relação aos hábitos de saúde bucal após a crise que atingiu a Islândia, verificou-se que não houve grandes diferenças na população, embora grupos específicos mereçam atenção especial em tempos de crise como, por exemplo, os grupos economicamente vulneráveis2121 McClure CB, Saemundsson SR. Effects of a national economic crisis on dental habits and checkup behaviors - a prospective cohort study. Community Dent Oral Epidemiol 2014; 42(2):106-112.. Nesta perspectiva, há que se considerar que as doenças bucais afetam desproporcionalmente os segmentos sociais desfavorecidos, evidenciando-se, do ponto de vista epidemiológico, a influência dos gradientes sociais sobre a saúde bucal3636 Sheiham A, Watt RG. The common risk factor approach: a rational basis for promoting oral health. Community Dent Oral Epidemiol 2000; 28(6):399-406.. Tal fato sinaliza para importância de ações voltadas para promoção e proteção da saúde bucal, com estímulo ao desenvolvimento de hábitos saudáveis e fortemente ligadas ao aumento de resolutividade do cuidado em saúde bucal na Atenção Primária em Saúde3737 Aquilante AG, Aciole GG. O cuidado em saúde bucal após a Política Nacional de Saúde Bucal - "Brasil Sorridente": um estudo de caso. Ciên Saude Colet 2015; 20(1):239-248..

Frente à crise na Grécia, o indicador “incidência de fraturas maxilofaciais” foi analisado, observando-se um aumento nas fraturas causadas por violência interpessoal2222 Rallis G, Igoumenakis D, Krasadakis C, Stathopoulos P. Impact of the economic recession on the etiology of maxillofacial fractures in Greece. Oral Surg Oral Med Oral Pathol Oral Radiol 2015; 119(1):32-34.. Há que se analisar esse achado sobre dois aspectos. Primeiramente, considerando a questão da violência, e tendo em vista que o Brasil é conhecido por ser um país marcado pela violência (no trânsito, interpessoal) e, finalmente, por esta situação impactar sobre os serviços de saúde. O resultado encontrado por Rallis et al.2222 Rallis G, Igoumenakis D, Krasadakis C, Stathopoulos P. Impact of the economic recession on the etiology of maxillofacial fractures in Greece. Oral Surg Oral Med Oral Pathol Oral Radiol 2015; 119(1):32-34. também é esperado para o Brasil. Mas, além disso, é necessário ressaltar que as fraturas maxilofaciais, em geral, demandam por atendimento de maior complexidade, muitas vezes necessitando de cirurgias extensas em ambientes hospitalares. Dessa forma, o aumento em sua incidência tem um impacto maior nos custos para o Sistema, pois demandam a continuidade de investimentos para além das ações de saúde bucal na atenção primária, implicando ações de saúde bucal nos níveis secundários e terciários, as quais necessariamente são onerosas aos cofres públicos.

Ademais, a maior cobertura de atendimento odontológico está significativamente associada a uma menor desigualdade de renda nesse acesso2525 Elstad JI. Dental care coverage and income-related inequalities in foregone dental care in Europe during the great recession. Community Dent Oral Epidemiol 2017; 45(4):296-302., fato que reforça a importância de políticas públicas voltadas para a garantia de acesso à Atenção Odontológica de qualidade, a exemplo do Brasil Sorridente, sendo necessário seu fortalecimento do ponto de vista de gestão e a defesa de investimentos financeiros na garantia do combate às iniquidades em saúde bucal no Brasil. Assim, consideramos que a diminuição do aporte ou a inexistência de investimentos que garantam a oferta de serviços de saúde bucal pode comprometer o acesso dos pacientes mais vulneráveis e com isso, agravar as discrepâncias em saúde bucal. Tal constatação toma dimensão crítica quando contextualizada em um país de dimensões continentais como o Brasil, marcado por gritantes diferenças regionais que afetam todos os setores da sociedade (educação e saúde principalmente), e que, se não forem manejadas de forma inclusiva, tendem a ser agravadas.

Dessa forma, parece importante destacar que a crise econômica e política que assola o Brasil desde 2014, com queda do PIB, aumento das taxas de desemprego e diminuição da renda per capita, aliada a um cenário de austeridade com limitações orçamentárias com a publicação da EC 95, aumento da DRU de 20 para 30% e desonerações fiscais têm trazido consequências nos indicadores de saúde no Brasil, no tocante a esse estudo, àqueles relativos à saúde bucal. Isso é particularmente importante se pensarmos que limitação orçamentária traz consigo dificuldades de custeio e manutenção de recursos humanos suficientes para atender à demanda local, implicando em desassistência. Dessa forma, levando-se em consideração princípios básicos de economia, a austeridade econômica em si é um processo retroalimentador de demandas, com profundos impactos nos indicadores de saúde.

Concluiu-se que, frente às crises econômicas, a saúde bucal passa a não ser prioridade enquanto centro nucleador de políticas, o que impacta o acesso ao cuidado dos estratos sociais menos favorecidos. Neste alinhamento, condições de saúde bucal que, ainda nos dias atuais são considerados problemas de saúde pública, portanto, frequentes, preveníveis e de controle conhecido, podem reemergir dentre os mais vulneráveis, ao passo que situações de maior complexidade podem demandar maiores investimentos, considerando-se as especificidades da realidade local.

Referências

  • 1
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Dez 2019

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2019
  • Aceito
    12 Jul 2019
  • Publicado
    08 Ago 2019
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br