Utilização de serviços de saúde por imigrantes haitianos na grande Cuiabá, Mato Grosso, Brasil

Jenniffer Francielli de Sousa Alves Maria Angela Conceição Martins Fabiano Tonaco Borges Cássio Silveira Ana Paula Muraro Sobre os autores

Resumo

O objetivo deste artigo é analisar a utilização de serviços de saúde por imigrantes haitianos residentes na grande Cuiabá, Mato Grosso. Trata-se de um estudo transversal, com uma amostra probabilística de 452 imigrantes haitianos residentes em Cuiabá e Várzea Grande, entrevistados entre dezembro de 2014 e fevereiro de 2015. Foram avaliadas as características sociodemográficas e de saúde, hábitos de vida e a utilização dos serviços de saúde. Na análise dos dados foram calculados o teste de Qui-quadrado e a Regressão de Poisson para investigar os fatores associados à utilização dos serviços de saúde. Verificou-se que 45,6% dos entrevistados utilizaram algum serviço de saúde no Brasil, sendo maior a prevalência entre as mulheres, aqueles com maior renda, maior tempo de residência no Brasil, melhor entendimento da língua portuguesa e que autoavaliaram sua saúde como ruim. Os principais serviços utilizados foram Unidade Básica de Saúde (UBS) e atendimento de urgência e emergência públicos. Conclui-se que os imigrantes foram assistidos pelo SUS em acordo com o princípio constitucional do direito à saúde no Brasil.

Palavras-chave
Migração internacional; Haitianos; Haitianas; Uso de serviços de saúde; Saúde pública

Introdução

O Haiti tem o título de país mais pobre das américas, agravado pelo terremoto ocorrido na região da capital Porto Príncipe, em 2010, causando a destruição de aproximadamente metade das construções, gerando 1,5 milhão de habitantes desabrigados e a morte de mais de 200 mil mortos11 Santiago A, organizador. Haiti por si: a reconquista da independência roubada. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora; 2013.. Neste quadro, a busca de saídas inclui a emigração para outros países22 Patarra NL. Brasil: país de imigração? In: Fernandes D, Peixoto J (editores). Rev Internacional em Língua Portuguesa. 2011. III Série, Nº 24, pág. 65., sendo o Brasil um dos países escolhidos como destino a partir de 201033 Cotinguiba GC, Pimentel M. l. Wout, raketè, fwontyè, anpil mizè1: reflexões sobre os limites da alteridade em relação à imigração haitiana para o Brasil. Univ Rel Inter 2014; 12(1):73-86.. No Brasil, a maioria tem como destino os estados da região sul e sudeste, seguindo o padrão de migração internacional do país. Porém, muitos se estabeleceram na capital do estado de Mato Grosso que, por sua vez, foi selecionada como uma das subsedes da Copa do Mundo, em 2014, o que gerou alta demanda por trabalhadores44 Raye RL, Souza MJB, Viegas LP, Boaria F. A Copa do Mundo 2014: oportunidades e prospecção geradas para a cadeia produtiva do turismo de Cuiabá - MT. Revista de Turismo Contemporâneo 2013; 1(1):59-77..

As causas dessa imigração, aparentemente relacionadas ao momento que o Brasil viveu de crescimento econômico até 2014, convergem para um caso típico de migração laboral55 Fernandes D, Ribeiro JC. Migração laboral no Brasil: problemáticas e perspectivas. Cadernos Obmigra 2015; 1(1):15-37.. Ainda não parece claro se os fatores culturais (principalmente música e o futebol) estiveram a favor da emigração haitiana ao Brasil. A presença do Brasil nas Forças das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (MINUSTAH) frequentemente foram associadas a esse processo migratório. Essas informações são relevantes para o planejamento de políticas de saúde que visem garantir o direito à saúde no Brasil.

A Constituição Federal Brasileira (CF 88) definiu em seu artigo 196 que “a saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantida mediante políticas sociais e econômicas que visam à redução do risco de doença e de outros agravos e possibilitando o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação”66 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União 1988; 5 out.. Embora o direito a saúde esteja assegurado pela Constituição brasileira, o fenômeno da imigração evidenciou a fragilidade da estrutura e o despreparo do país na atenção à saúde do migrante e também a carência de políticas públicas de saúde voltadas a esta população77 Filippim ES, Zeni K. Migração haitiana para o Brasil: acolhimento e políticas públicas. Pretexto 2014; 15(12):11-27..

O conceito de utilização de serviços de saúde compreende todo contato direto, através de consultas médicas e hospitalizações, ou indireto através da realização de exames preventivos e diagnósticos88 Martins M, Travassos C. Uma revisão sobre os conceitos de acesso utilização de serviços de saúde. Cad Saude Publica 2004; 20(Supl. 2):5190-5198.. Na perspectiva do usuário, os motivos que determinam o uso de serviços de saúde podem ser classificados como fatores de predisposição, correspondentes às características individuais do paciente, como idade, gênero, nível socioeconômico; os fatores de capacidade, que representam as características do sistema de saúde, incluindo-se a acessibilidade; por fim, os fatores de necessidades, que definidos pelo estado de saúde em que os indivíduos se encontram, por seus estados de morbidade, pelos fatores de risco e pela incapacidade99 Pineault R. Compreendendo o sistema de saúde para uma melhor gestão. Brasília: Conass; 2016.. Alguns estudos realizados apontam que a utilização de serviços de saúde pela população em geral apresenta-se em crescimento, porém, permanece com desigualdades geográficas e sociais, sendo observado menor utilização em grupos com baixa renda e menores níveis de escolaridade1010 Gomes KO, Reis EA, Guimarães MDC, Cherchiglia ML. Utilização de serviços de saúde por população quilombola do Sudoeste da Bahia, Brasil. Cad Saude Publica 2013; 29(9):1829-1842.

11 Andersen R, Newman JF. Societal and Individual Determinants of Medical Care Utilization in the United States. Milbank Q 2005; 83:4.
-1212 Giovanella L, Escorel S, Lobato, LVC, Noronha JC, Carvalho AI. Políticas e sistemas de saúde no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/Centro Brasileiro de Estudos de Saúde; 2012..

Sendo assim, o conhecimento do padrão de utilização desses serviços se torna essencial, pois permite a alocação e geração de recursos de forma equânime e efetiva1313 Sawyer DO, Leite IC, Alexandrino R. Perfis de utilização de serviços de saúde no Brasil. Cien Saude Colet 2002; 7(4):757-776.. Entretanto, após busca na literatura, verificou-se a necessidade de estudos sobre utilização dos serviços de saúde entre imigrantes internacionais no Brasil, principalmente na região central do país e sobre os imigrantes haitianos, por ser esta uma realidade recente. Neste sentido, o objetivo deste estudo foi analisar a utilização de serviços de saúde por imigrantes haitianos residentes na grande Cuiabá, Mato Grosso, e os fatores sociodemográficos associados à esta utilização.

Materiais e métodos

Trata-se de um estudo transversal com uma amostra probabilística de imigrantes haitianos residentes em Cuiabá e Várzea Grande, considerado neste estudo como grande Cuiabá. Adotou-se para o cálculo da amostra os procedimentos de Lwanga e Lemeshow1414 Lwanga SK, Lemeshow S. Sample Size Determination in Health Studies: A Practical Manual. Geneva: World Health Organization (WHO); 1991., sendo considerado para o cálculo o número de imigrantes haitianos acolhidos pelo Centro de Pastoral para Migrantes de Cuiabá, no período de 2012 a 2014 (N = 1059, sendo 16% do sexo feminino), prevalência de 50%, nível de significância de 95% e um erro tolerável de 4%, chegando ao número 383 indivíduos. Considerando as possíveis perdas, acrescentou-se ao cálculo 15% (57 indivíduos) do tamanho amostral, obtendo-se o total de 440 indivíduos necessários para compor a população do estudo (sendo 370 homens e 70 mulheres). Para a coleta de dados, foram excluídos do estudo indivíduos que por ventura apresentaram algum défice de cognição ou deficiência física que os impossibilitasse ou dificultasse a entrevista.

A coleta dos dados ocorreu entre 28 de dezembro de 2014 e 02 de fevereiro de 2015, sendo as entrevistas realizadas por entrevistadores bilíngues (Crioulo/Português), devidamente capacitados e sob a supervisão dos pesquisadores responsáveis. Os sujeitos de pesquisa foram contatados por telefone ou pessoalmente e convidados a participarem da pesquisa, sendo os contatos telefônicos e endereços obtidos no Centro de Pastoral de Migrantes, localizado no município de Cuiabá. Os entrevistados responderam um questionário contendo 10 grupos de informações.

Neste estudo, foram avaliadas as práticas adotadas em caso de necessidade de cuidado em saúde, sendo questionado “Aqui no Brasil, quando você adoece, que tipo de ajuda você busca?”. Quanto à utilização de serviços de saúde no Brasil, os sujeitos de pesquisa foram questionados se já precisaram utilizar algum serviço de saúde no Brasil, qual o tipo de serviço utilizado (emergência, hospital, ambulatorial, clínica odontológica, atenção primária em saúde) e qual a gestão do serviço. Além disso, avaliou-se a proporção de imigrantes que possuíam planos privados de saúde e que já utilizaram serviços de imunização no Brasil.

A partir da adoção e adaptação do modelo de Andersen e Newman1111 Andersen R, Newman JF. Societal and Individual Determinants of Medical Care Utilization in the United States. Milbank Q 2005; 83:4., foram analisadas entre as variáveis predisponentes: sexo (feminino/masculino), idade (em faixas etárias: menos de 26 anos; entre 26 e 35; entre 36; e 45 e mais de 45 anos); estado civil (em duas categorias: casado(a)/com companheiro(a) ou solteiro(a)/separado(a)/viúvo(a)); escolaridade (em três categorias: até o ensino fundamental completo; ensino médio incompleto e ensino médio completo ou mais); se estava trabalhando no momento da pesquisa (sim/não); tempo de residência no Brasil (classificada em menos de 30 dias, entre um mês e um ano e um ano ou mais). idiomas que fala/compreende (apenas crioulo haitiano, crioulo e mais outro idioma, crioulo e outros dois ou mais idiomas); e compreensão da língua portuguesa (classificada em muito pouco, pouco, razoavelmente e bem/muito bem).

Entre as variáveis capacitantes e de necessidade foram avaliadas: renda individual (em reais, referente ao último mês, posteriormente transformada em salários mínimos); se possuía plano privado de saúde (sim/não); autorelato de doença crônica, uso de medicamento contínuo, autoavaliação de saúde e se o entrevistado considerou que sua saúde mudou após a migração para o Brasil.

Os dados coletados por meio do inquérito passaram por dupla digitação e validação por meio do Software Epi Info 7. A análise de dados quantitativa foi realizada por meio do Software SPSS (versão 23). Foi utilizado o teste do Qui-quadrado para testar as diferenças entre as proporções, adotando-se a significância ao nível de 5%. Regressão de Poisson não ajustado foi utilizada para verificar a associação de cada fator com a utilização de serviços de saúde. Por fim, aquelas variáveis que mostraram significância no modelo simples, foram levadas para o modelo múltiplo de regressão.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de ética do Hospital Universitário Júlio Muller, da Universidade Federal de Mato Grosso, e todos os indivíduos que aceitaram participar da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido antes da coleta de dados.

Resultados

Foram entrevistados 452 haitianos residentes em Cuiabá e Várzea Grande, sendo 82,5% do sexo masculino e 44,3% entre 26 e 35 anos de idade. Menos da metade dos entrevistados relatou ter utilizado algum serviço de saúde no Brasil (45,6%). Em relação ao tipo de cuidado em saúde que buscam quando preciso, 38,9% dos haitianos entrevistados referiram nunca ter sido necessário (43,2% dos homens e 19,0% das mulheres). Entre as mulheres entrevistadas, 57,0% relatam procurar o serviço público de saúde, sendo maior a proporção de mulheres que relataram fazer uso de medicação contínua (14,3% vs 3,2% entre os homens; p-valor < 0,01) e possuir alguma doença crônica (15,2% vs 2,1% entre os homens; p-valor < 0,01). Entre os haitianos que relataram consumir medicação contínua, 85,0% adquiriam com recursos próprios (Tabela 1).

Tabela 1
Número e proporção (%) de haitianos residentes em Cuiabá-MT, segundo a utilização de serviços de saúde no Brasil, por sexo. 2014-2015.

Cabe destacar que dos 18 haitianos que referiam possuir alguma doença ou condição crônica, 14 (70,0%) disseram serem hipertensos. As outras doenças referidas foram: asma (1), diabetes (1), doença no coração (1) e enxaqueca (1). Além disso, 13 dos 18 haitianos que relataram possuir alguma doença utilizaram algum serviço de saúde no Brasil, sendo que apenas quatro relataram ter sido atendido em Unidade Básica de Saúde e sete em unidades de emergência públicas (dados não apresentados em tabela ou figura).

Em relação a utilização de serviços de saúde (Tabela 2), foi maior a prevalência de utilização de serviços de saúde entre as mulheres (RP: 1,59; IC 95%: 1,64 – 2,18) e entre aqueles com maior renda (RP: 1,96; IC 95%: 1,02 – 3,75). Com relação ao entendimento do português, foi observado que a utilização de serviços de saúde foi duas vezes mais prevalente entre aqueles que referiram falar e compreender razoavelmente, bem ou muito bem o português, quando comparados aos que compreendem muito pouco (RP: 2,30; IC 95%: 1,38 – 2,96). Além disso, como o esperado, também foi maior a proporção de utilização de serviços de saúde entre os que residiam no Brasil por mais tempo, sendo 10 vezes mais prevalente entre aqueles que estavam no Brasil por um ano ou mais (RP: 10,72; IC 95%: 3,41 – 33,62).

Tabela 2
Prevalência de utilização de serviço de saúde no Brasil entre haitianos, segundo variáveis predisponentesa para a utilização de serviços de saúde. Cuiabá-MT. 2015.

Quanto aos tipos de serviços e a sua natureza, 21,5% utilizaram serviços de Unidade Básica de Saúde (UBS) pública; 18,6% utilizaram serviço de atendimento de emergência público; apenas 1,2% disseram ter utilizado atendimento de emergência privado; 1,6% utilizaram clínica médica especializada; 0,44% utilizaram clínica odontológica pública; 1,87% utilizaram clínica odontológica privada (dados não apresentados em tabela ou figura).

Sobre a utilização segundo os hábitos de vida e autoavaliação de saúde (Tabela 3), 87% dos imigrantes que referiram fazer uso de medicamento continuo (empregados no tratamento de doenças crônicas) utilizaram os serviços de saúde, 19,2% da população geral possuía plano de saúde privado e destes, 49,4% utilizaram serviços de saúde no Brasil, sendo maior a prevalência de utilização entre aqueles que classificaram a saúde como ruim (RP: 1,56; IC 95%: 1,05 – 2,32) e que consideraram que a saúde mudou após migrar para o Brasil (RP: 1,57; IC 95%: 1,19 – 2,07).

Tabela 3
Utilização de serviço de saúde no Brasil entre haitianos, segundo variáveis capacitantes e de necessidadea para utilização de serviços de saúde. Cuiabá-MT. 2015.

No modelo mutuamente ajustado mantiveram-se associados à utilização de serviço de saúde o sexo feminino, melhor compreensão da língua portuguesa e maior tempo de residência no Brasil (Tabela 4).

Tabela 4
Razão de Prevalência (RP) e intervalo de confiança de 95% (IC 95%) do Modelo de Regressão de Poisson mutuamente ajustado quanto a utilização de serviços de saúde por imigrantes haitianos. Cuiabá-MT. 2015.

Discussão

A utilização dos serviços de saúde entre os haitianos que residem em Cuiabá foi mais prevalente entre as mulheres, aqueles com maior renda, maior tempo de residência no Brasil, que auto avaliaram sua saúde como ruim e que tiveram percepção de mudança no estado de saúde após imigrar para o Brasil. A maioria relatou buscar serviços públicos de saúde quando necessário e o principal serviço utilizado foi da Unidade Básica de Saúde (UBS) pública.

Embora o direito a saúde seja garantido pela Constituição Federal, destaca-se a importância de analisar a utilização dos serviços de saúde nesta população visto que imigrantes são considerados como um grupo social normalmente expostos às mais variadas situações de vulnerabilidade1515 Lussi C, Marinuci R. Vulnerabilidade social em contexto migratório. Brasília: Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios (CSEM). [acessado 2016 Fev 8]. Disponível em: http://www.csem.org.br/pdfs/vulnerabilidades_dos_migrantes.pdf
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. Especificamente entre os haitianos pesquisados, a elevada proporção dos imigrantes com baixa escolaridade e que estava desempregada no momento da pesquisa, somado a outras possíveis situações como a falta de vínculos afetivos no destino, dificuldades de comunicação, condições precárias de moradia, trabalho, alimentação e distância geográfica dos familiares e amigos, podem resultar em adoecimento físico e mental1515 Lussi C, Marinuci R. Vulnerabilidade social em contexto migratório. Brasília: Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios (CSEM). [acessado 2016 Fev 8]. Disponível em: http://www.csem.org.br/pdfs/vulnerabilidades_dos_migrantes.pdf
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,1616 Santos FV. A inclusão dos migrantes internacionais nas políticas do sistema de saúde brasileiro: o caso dos haitianos no Amazonas. Hist Cienc Saude-Manguinhos 2016; 23(2):477-494.. Além disso, considerando a proporção de indivíduos empregados, estudo realizado com essa mesma população, com objetivo de avaliar suas condições de trabalho, verificou que os dois principais setores em que estavam inseridos os haitianos foram construção civil e serviços, que estão entre os principais ramos de geração de acidentes e doenças ocupacionais no Brasil1717 Leão LHC, Muraro AP, Palos CC, Martins MAC, Borges FT. Migração internacional, saúde e trabalho: uma análise sobre os haitianos em Mato Grosso, Brasil. Cad Saude Publica 2017; 33(7):e0018181..

Quanto a maior utilização dos serviços de saúde entre as mulheres haitianas entrevistadas, pode-se considerar como uma característica frequentemente observada em outros grupos populacionais. Estudos realizados na população americana1818 Cherry DK, Woodwell DA. National ambulatory medical care survey: 2000 summary. Centers for Disease Control and Prevention, Advanced Data N, 328, June 5, DHHS Publication No. (PHS) 2002- 1250, 02-0379 (5/02). e com brasileiros1919 Pinheiro R, Viacava F, Travassos C, Brito AS. Gênero, morbidade, acesso e utilização de serviços de saúde no Brasil. Cien Saude Colet 2002; 7(4):687-707., também observaram essa associação. Isso pode estar relacionado com o fato de mulheres procurarem mais os serviços de saúde para exames de rotina para cuidado preventivo ou pré-natal, como observado em estudo com bolivianos em São Paulo, em que o pré-natal estava entre os principais motivos para a busca por serviços de saúde, pois mais da metade das entrevistadas haviam engravidado no Brasil e acessado o sistema para as consultas2020 Waldman TC. Movimentos migratórios sob a perspectiva do direito à saúde: Imigrantes bolivianas em São Paulo. Rev de Direito Sanitário 2011; 12(1):90-114.. Adicionalmente, estudos realizados com haitianos em outras cidades do Brasil, como Chapecó2121 Risson AP. Cartografia da atenção à saúde de imigrantes haitianos residentes em chapecó, SC [dissertação]. Chapecó: Universidade Comunitária da Região do Chapecó; 2016. e Manaus1616 Santos FV. A inclusão dos migrantes internacionais nas políticas do sistema de saúde brasileiro: o caso dos haitianos no Amazonas. Hist Cienc Saude-Manguinhos 2016; 23(2):477-494., mostraram que a gestação é um importante fenômeno de aproximação das mulheres imigrantes com os serviços de saúde do SUS. Entretanto, ressalta-se que este dado pode estar relacionado também com a fragilidade dos serviços de saúde em relação a ações de promoção e prevenção no que se refere a saúde do homem.

Em relação a renda, a prevalência de utilização dos serviços de saúde foi maior entre aqueles com maiores ganhos. Indivíduos mais pobres têm pior acesso aos serviços, apesar de necessitar de maiores cuidados com a saúde, o que acaba por aprofundar o quadro de desigualdade2222 Neri M, Soares W. Desigualdade social e saúde no Brasil. Cad Saude Publica 2002. 18(Supl.):77-87.. Cabe destacar, que no momento da pesquisa, 47,3% dos entrevistados não estavam trabalhando e mais da metade possuíam apenas o nível fundamental completo (50,8%).

Verificou-se ainda que o tempo de residência no Brasil caracteriza-se como um provável fator determinante para a utilização dos serviços de saúde, podendo estar também relacionado à maior compreensão da língua portuguesa e maior entendimento sobre o sistema de saúde do país. Especificamente quanto ao domínio do idioma, esta hipótese foi confirmada no presente estudo pela análise múltipla, quando ajustado o entendimento do idioma pelo tempo de residência no Brasil e apenas este último manteve-se associado à utilização do serviço de saúde. Estudo com migrantes bolivianos em São Paulo mostrou que o tempo de residência no Brasil associou-se à utilização de diferentes serviços de saúde, especialmente a atenção primária que, por sua vez, foi mais utilizada entre aqueles que viviam há mais tempo no país (5 anos ou mais). Ainda neste estudo, quanto ao tratamento em farmácias ou serviços de emergência, o grupo de imigrantes estabelecidos no Brasil há mais tempo mostrou um padrão semelhante aos brasileiros em situação de vulnerabilidade2323 Silveira C, Carneiro Júnior N, Ribeiro MCSA, Barata RCB. Living conditions and access to health services by Bolivian immigrants in the city of São Paulo, Brazil. Cad Saude Publica 2013; 29(10):2017-2027..

O vínculo criado entre a população haitiana com os Agentes Comunitários de Saúde, conforme o tempo de residência no Brasil, também pode contribuir para a maior procura por estes serviços, visto que estes profissionais são membros da comunidade e fazem a integração entre a equipe e as famílias inseridas em dado território2424 Oliveira EM, Spiri WC. Programa Saúde da Família: a experiência de equipe multiprofissional. Rev Saude Publica 2006; 40(4):727-733..

Deve-se considerar também que, além do aspecto biológico relacionado a fluxos migratórios, as pessoas não se movem apenas entre fronteiras nacionais, mas também entre e dentro de sistemas médicos diferenciados2525 Sargent C, Larchanché S. Transnational migration and global health: the production and management of risk, illness, and access to care. Annual Review of Anthropology 2011; (40):345-361., podendo ser necessário um tempo de adaptação ao novo sistema no país de destino. No Haiti, o Sistema de Saúde é descrito como uma verdadeira “Colcha de Retalhos”, com predomínio de serviços de saúde privados2626 Wamai RG, Larkin C. Health development experiences in Haiti: what can be learned from the past to find a way forward? JMAJ 2011; 54(1):56-67.,2727 Bordin R, Misoczky MC. Sistema Nacional de Saúde do Haiti - Uma introdução: Caracterização sociodemográfica. In: Barcelos R, Bordin R, Misoczky MC, organizadores. Fortalecimento da rede de serviços de saúde: Um relato da cooperação Brasil/Cuba/Haiti. Porto Alegre: Pubblicato Editora; 2015. p. 27-30.. Os serviços de saúde dispostos no sistema de saúde haitiano atinge 60% da população, sendo que 40% aderem a práticas tradicionais de atenção à saúde2727 Bordin R, Misoczky MC. Sistema Nacional de Saúde do Haiti - Uma introdução: Caracterização sociodemográfica. In: Barcelos R, Bordin R, Misoczky MC, organizadores. Fortalecimento da rede de serviços de saúde: Um relato da cooperação Brasil/Cuba/Haiti. Porto Alegre: Pubblicato Editora; 2015. p. 27-30..

A autoavaliação de saúde é um importante indicador da percepção de saúde, sendo verificado uma considerável proporção de imigrantes que auto avaliaram sua saúde como ruim e estes, por sua vez, apresentaram maior chance de utilizar os serviços. Deve-se considerar o fenômeno do “migrante saudável” caracterizado pelo fato dos imigrantes apresentarem melhores condições de saúde do que a população autóctone, supostamente pela “seleção” de imigrantes, tanto pela necessidade dos mercados de trabalho nos países de recepção quanto pela saúde necessária para as viagens difíceis e violentas por vezes2828 Razum O, Zeeb H, Rohrmann S. The 'Healthy Migrant Effect'- Not Merely a Fallacy of Inaccurate Denominator Figures. Int J Epidemiol 2000; 29(1):199-200.. Além disso, outro fator que pode estar relacionado é o baixo nível de escolaridade dessa população, tendo em vista que indivíduos com maior nível de escolaridade podem ter maior acesso às informações sobre cuidados em saúde, promoção e prevenção, além de maior adesão aos tratamentos terapêuticos prescritos e também uso de serviços de saúde2929 Brasil. Ministério da saúde (MS). Relatório Final da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde. As causas sociais das iniquidades em saúde no Brasil. Brasília: MS; 2008. [acessado 2016 Fev 8]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/causas_sociais_iniquidades.pdf
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.

Imigrantes passam por diversas mudanças durante o processo migratório e a adaptação no local de destino, que pode afetar sua saúde de forma positiva ou negativa. No presente estudo, quando indagados se a saúde mudou após migrar para o Brasil, mais da metade afirmou que houve mudança, sendo que 22,3% afirmaram que a saúde mudou para pior ou muito pior. Esta importante proporção observada pode estar relacionada, especificamente, com o fato de ser estrangeiro, visto que a mudança para um país desconhecido, a distância geográfica dos familiares, amigos e o processo de aprendizagem de novos elementos da cultura local, regional e nacional, podem ter contribuído para a mudança do estado de saúde após a imigração para o Brasil. Estudo realizado com imigrantes hispânicos e não-hispânicos negros, brancos e asiáticos nos Estados Unidos, observaram a elevação da prevalência de autoavaliação de saúde como ruim com o maior tempo de residência no país de destino, não havendo diferença quanto ao grupo étnico, embora os imigrantes negros enfrentassem maior desvantagem socioeconômica, quando comparados aos brancos e asiáticos3030 Alang SM, Mccreedy EM, Mcalpine DD. Race, Ethnicity, and Self-Rated Health Among Immigrants in the United States. J Racial Ethn Health Disparities 2015; 2(4):565-572..

Quando avaliados os indivíduos que relataram possuir alguma doença ou condição crônica, verificou-se que uma pequena proporção referiu ter utilizado serviços em UBS, entretanto, cabe destacar que o acompanhamento das condições crônicas na atenção básica é de suma importância, pois inclui ações de promoção, vigilância em saúde, prevenção e assistência aos portadores dessas doenças, permitindo a criação de vínculo entre os profissionais e o paciente e, consequentemente, o acompanhamento do seu caso clínico de forma mais efetiva3131 Malta DC, Morais NOL, Silva Júnior JB. Presentation of the strategic action plan for coping with chronic diseases in Brazil from 2011 to 2022. Epidemiol Serv Saúde 2011; 20(4):425-438..

O principal serviço utilizado pelos haitianos foram serviços de UBS, semelhante ao estudo realizado com bolivianos residentes em São Paulo2323 Silveira C, Carneiro Júnior N, Ribeiro MCSA, Barata RCB. Living conditions and access to health services by Bolivian immigrants in the city of São Paulo, Brazil. Cad Saude Publica 2013; 29(10):2017-2027.. Ressalta-se, ainda, a importante proporção de indivíduos que utilizaram algum serviço de urgência e emergência público. Para muitos usuários, esses serviços, a exemplo das UPAS (Unidades de Pronto Atendimento em Saúde), representam a porta de entrada ao sistema de saúde, tendo em vista que não necessita de agendamento, existindo assim a maior garantia de atendimento, de acesso à assistência com maiores recursos tecnológicos e a maior chance de resolutividade de forma imediata3232 Freire AB, Fernandes DL, Moro JS, Kneipp MM, Cardoso CM, Lima SBS. Serviços de urgência e emergência: quais os motivos que levam o usuário aos pronto-atendimentos? Saúde (Santa Maria) 2015; 41(1):195-200.. Questiona-se se todos os que buscaram este tipo de serviço estavam incluídos na população alvo, ou se havia casos de baixa complexidade que poderiam ser atendidos na atenção básica.

Proporção significativa de imigrantes haitianos afirmou possuir plano de saúde privado (19,2%), cabendo destacar que no Brasil, 27,9% da população possui plano privado3333 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional de Saúde 2013: percepção do estado de saúde, estilos de vida e doenças crônicas. Rio de Janeiro: IBGE. [acessado 2016 Fev 8]. Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv91110.pdf
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. Essa importante proporção de haitianos segurados pode estar relacionada à concessão de visto humanitário pelo CNIg (Conselho Nacional de Imigração), o que facilita a obtenção da documentação necessária para a regularização no país, diferente do que ocorre com outras nacionalidades3434 Fernandes D, Milesi R, Pimenta B, Carmo V. Migração dos Haitianos para o Brasil: a RN no 97/2012: uma avaliação preliminar. Refúgio, Migrações e Cidadania 2013; 8(8):55-60.. A documentação permite a inclusão desses imigrantes no mercado formal de trabalho, que pode vir acompanhado de benefícios ao trabalhador, a exemplo dos planos de saúde corporativos. Com isso, percebe-se uma polaridade de características neste grupo populacional. Numa população de maioria de baixo nível socioeconômico (neste estudo avaliado como escolaridade e renda), mas com expressiva proporção sendo assistidos por planos de saúde privado.

Este estudo buscou conhecer o perfil de utilização dos serviços de saúde e os fatores associados, por meio de dados primários. Destaca-se a importância de tal investigação, uma vez que não é possível avaliar os serviços utilizados pelos estrangeiros no Brasil por meio dos principais Sistemas de Informação em Saúde do SUS, como o SIH-SUS (Sistema de Informação Hospitalar do SUS) e SIA (Sistema de Informação Ambulatorial), visto a não completude da informação da nacionalidade do paciente nos sistemas. Ressalta-se a importância do preenchimento deste campo, pois desta forma seria possível acessar as informações referentes aos tipos de serviços e tipos de procedimentos utilizados por imigrantes internacionais, podendo traçar assim um perfil de utilização de serviços por esta população.

Deve-se considerar, entretanto, algumas limitações do presente artigo, pois trata-se de um estudo transversal, a nível local, que buscou conhecer características básicas da utilização dos serviços de saúde, abordando a procura por serviços de saúde pelos indivíduos, não se aprofundando nos condicionantes e determinantes do uso desses serviços e, portanto, não é possível comprovar quais são as barreiras para uma atenção integral à saúde dessa população. Desta forma, o presente estudo, através de dados primários, visa a contribuir com alguns apontamentos básicos para o tema.

Conclusão e considerações finais

Baseados nos resultados desta investigação, conclui-se que os imigrantes foram assistidos pelo SUS em acordo com o princípio constitucional do direito à saúde no Brasil. Como já esperado, imigrantes que residiam no Brasil há mais tempo, apresentaram maior proporção de utilização dos serviços, pois quanto maior o tempo de residência favorece o maior entendimento do sistema de saúde do país. As informações apresentadas sugerem a importância de estudos sobre a associação entre vulnerabilidade e necessidades de saúde em população de imigrantes; pesquisas sobre o efeito do imigrante saudável no Brasil; o cumprimento do princípio constitucional da integralidade em tais populações; e estudos sobre migração internacional (fatores de migração, condições de viagem; fatores de atração ao país de destino), integração social e adoecimento.

Ressalta-se novamente a importância do conhecimento do padrão de utilização de serviços de saúde por imigrantes, pela necessidade de avaliação das políticas públicas considerando as vulnerabilidades impostas pela situação migratória. Importante também incorporar às políticas, ações de educação permanente para os profissionais de saúde e desenvolvimento de outras formas de comunicação além da linguagem verbal, que pode auxiliar no melhor acesso desse grupo populacional aos serviços de saúde.

Além disso, a partir de 2015, o agravamento da crise econômica no Brasil tem refletido diretamente nos postos de trabalho e causando a mobilidade dos haitianos para outros estados e países (como Estados Unidos), ou mesmo o retorno para o seu país de origem. Essa transitoriedade deve ser considerada no planejamento em saúde, visto ser um processo extremamente dinâmico.

Agradecimentos

Os autores são gratos ao Centro de Pastoral para Migrantes de Cuiabá, por terem dado acesso aos registros dos haitianos que foram acolhidos e também apoiarem em todo o percurso da pesquisa. Agradecimento especial aos participantes da pesquisa e a todos os colaboradores (estudantes de graduação e pós-graduação) que participaram do trabalho de campo e tabulação dos dados.

Este estudo foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do estado de Mato Grosso (FAPEMAT) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Dez 2019

Histórico

  • Recebido
    04 Set 2017
  • Aceito
    07 Maio 2018
  • Publicado
    09 Maio 2018
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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