Casulo AC, Alves G, organizadores. Precarização do trabalho e saúde mental: o Brasil da Era Neoliberal. Bauru: Projeto Editorial Praxis; 2018.

Cristiane Batista Andrade Sobre o autor
2018

O livro intitulado “Precarização do trabalho e saúde mental: o Brasil da Era Neoliberal”11 Casulo AC, Alves G, organizadores. Precarização do trabalho e saúde mental: o Brasil da Era Neoliberal. Bauru: Projeto Editorial Praxis; 2018. chama a atenção, a começar pela sua capa. A imagem captada por Giovanni Alves (um dos organizadores do livro), em um dia de verão da capital de São Paulo, registra uma cena da Avenida Paulista. Ela expõe, na sua centralidade, um morador de rua que dorme ao relento, na solidão e diante da presença de crianças, homens, mulheres, jovens e idosos que por ali caminhavam a pé ou descansavam com suas bicicletas. Famílias de classe média diante de uma grande loja de moda feminina e sua propaganda de descontos em seus produtos, cena captada que traduz a proposta central da obra, cuja finalidade é discorrer sobre as políticas neoliberais e a reforma trabalhista, tendo como enfoque as influências na saúde da classe trabalhadora no Brasil. Por meio da introdução e três capítulos em forma de ensaios, cada autor/a traz a análise do trabalho e suas transformações, bem como suas relações com a saúde de trabalhadores/as.

A introdução escrita por Giovanni Alves possui duas partes, “A nova precariedade salarial e o sociometabolismo do trabalho no século XXI” e “Reforma Trabalhista”, com embasamento da sociologia do trabalho, analisa o debate sobre a precarização do trabalho e as mudanças nas regulações salariais e também nas formas de organização, como o toyotismo e a inserção da tecnologia nos modos de produção. Nessa primeira parte, o autor corrobora que a organização do trabalho intensifica as atividades laborais e traz consequências para a saúde, como o aumento dos adoecimentos, levando, por exemplo, a casos de estresse e de assédio moral. O tempo do trabalho intensifica-se, e a classe trabalhadora fica à mercê das demandas da produção, sobretudo com o uso de redes sociais e a conexão full time com as atividades realizadas. Não sem motivo, há de se pensar na formação profissional para atender as necessidades do mercado e, assim, Alves mostra a “pedagogia das competências” como norte do processo educacional para a aprendizagem técnica, além das formas comportamentais, emocionais e, por vezes, morais.

É interessante perceber como Alves trabalha com os conceitos de precariedade salarial e o trabalho informal para sinalizar as mudanças da acumulação capitalista e a exploração do e pelo trabalho, o que já vem sendo discutido pela sociologia do trabalho tanto em âmbito nacional22 Antunes R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo Editorial; 2018., como em análises internacionais33 Harvey D. Organización para la transición anti-capitalista. Argumentos 2010; 23(63):35-58.. Ademais, o autor do ensaio mostra como, no Brasil, os rebaixamentos dos salários, as novas formas de organização do trabalho e os avanços das políticas neoliberais influenciam as condições de vida da classe trabalhadora e as relações sociais, corroborando as consagradas análises de David Harvey33 Harvey D. Organización para la transición anti-capitalista. Argumentos 2010; 23(63):35-58. sobre a crise econômica e do capital no mundo.

O tempo fora do trabalho é tomado pelas atividades trazidas para serem realizadas no espaço privado, visto que as metas para a produtividade são exacerbadas, o que, de acordo com o autor, pode configurar na manipulação do self e da subjetividade dos/as trabalhadores/as. Essa análise trazida pelo autor oferece subsídios para entender o modus operandi das relações de trabalho contemporâneo e suas repercussões na saúde e subjetividade dos/as trabalhadores/as. Da mesma forma apontada pelo autor, Antunes22 Antunes R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo Editorial; 2018. assinala que os contratos precarizados de trabalho, a intensificação das atividades laborais, a diminuição dos direitos trabalhistas e as metas constantes e acirradas podem perpetuar as “[...] práticas de assédios capazes de gerar adoecimentos, depressões e suicídios”22 Antunes R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo Editorial; 2018. (p. 35), sobretudo na área de prestação de serviços, como é o caso da saúde, educação, rede de bancos, etc.

Na segunda parte da Introdução sobre a Reforma Trabalhista vivenciada no Brasil (Lei 13.467/2017), com o neoliberalismo, sobretudo no governo Michel Temer (PMDB), Alves apresenta o desmonte dos direitos trabalhistas expressos pelo avanço das flexibilizações dos direitos da classe trabalhadora situados historicamente na sociedade brasileira e, principalmente, o desfalecimento das ações organizativas, como os sindicatos. Assim, fica evidente, pelas análises do autor, que a reforma trabalhista e suas mudanças não estão deslocadas do cenário mundial a despeito da crise do capital e acumulação flexível, da Recessão 2008/2009 e da desaceleração econômica chinesa, como ele próprio analisa.

Nesse sentido, essa segunda parte da introdução permite a compreensão da relação entre o capital, as políticas neoliberais e o contexto histórico da Reforma Trabalhista de 2017, além de apontar para o rebaixamento civilizatório, ou seja, para a barbárie e, por que não dizer, para a precarização e o empobrecimento social. No entanto, diante desse cenário, o autor pouco aprofunda as análises das ações ou não dos sindicatos e seus movimentos de resistência diante de tanto retrocesso para os/as trabalhadores/as.

O primeiro capítulo, chamado “O Brasil e a nova ordem neoliberal: impactos na saúde mental da classe trabalhadora”, de Ana Casulo, tem início com um dado impressionante do Observatório Digital de Saúde e Segurança do Trabalho: um trabalhador morre em decorrência de acidente de trabalho a cada três horas. As doenças relacionadas ao trabalho, como transtornos psicológicos e depressivos, doenças osteomusculares podem estar relacionadas com as transformações do trabalho no contexto neoliberal: a intensificação e a sobrecarga, a polivalência, a alta competitividade, a sobreposição do indivíduo face às ações coletivas, a exploração, além da ideologia dominante para o engendramento da relação capital e trabalho. Não sem razão, a autora analisa o uso de psicofármacos pelos/as trabalhadores/as nesta intensificação e individualização das relações com as atividades laborais.

Há, no entanto, uma ausência das análises da perspectiva de gênero sobre a saúde e o trabalho. Ou seja, a autora parte do pressuposto de que é preciso esmiuçar as questões postas pelo trabalho na atualidade, as crises sociais e econômicas – como o aumento do desemprego e a destituição de direitos relacionados ao trabalho. Entretanto, não considera as diferenciações e desigualdades do trabalho de homens e mulheres. A perspectiva analítica das relações de gênero e trabalho traz a constatação de que “[...] a precarização do trabalho e precarização familiar são indissociáveis”44 Hirata H. Tendências recentes da precarização social e do trabalho: Brasil, França, Japão. Caderno CRH 2011; 24(n. esp.1):15-22. (p. 14) e mostra que são as mulheres que estão nos empregos precários e, portanto, mais intensos e penosos. Há de considerar, nos estudos sobre saúde do trabalhador/a, o trabalho reprodutivo (cuidado familiar e organização da vida privada), que fica sob a responsabilidade, sobretudo, das mulheres44 Hirata H. Tendências recentes da precarização social e do trabalho: Brasil, França, Japão. Caderno CRH 2011; 24(n. esp.1):15-22., que mantêm a jornada de trabalho produtiva e reprodutiva de forma extenuante, já que muitas são provedoras da família.

O capítulo dois, nomeado “Assédio moral no trabalho, sofrimento psíquico e luta por direitos”, de Petilda Vasquez, analisa o capitalismo flexível e o neoliberalismo das duas últimas décadas, mostrando o assédio moral vivenciado por um professor de nível superior de uma instituição privada. A ênfase dada pela autora sobre o assédio moral no trabalho (AMT) está associada ao contexto neoliberal e às mudanças advindas com a reestruturação produtiva, como a intensificação das atividades, as exigências do mercado de trabalho pela crescente produtividade e as várias estratégias de competição entre aqueles que têm um emprego. Assim, por meio de outros autores, corrobora o aumento dos casos de mortes e acidentes de trabalho, bem como os afastamentos por motivos de doenças. Ainda segundo Vasquez, o sofrimento da classe trabalhadora diante da violência que humilha, constrange, aprisiona e discrimina pode estar relacionado com os casos de adoecimento no trabalho e com algumas situações de ocorrências de suicídio de trabalhadores/as. Sendo assim, é preciso que se “deem vozes” às pessoas para que possam verbalizar seus sofrimentos diante dessa violência no trabalho. Por meio de uma análise do estudo de caso com um professor, há indícios da premente necessidade de reestruturação do trabalho no ensino superior, já que o depoente verbaliza as perseguições, as situações hostis, a vergonha, as dores e o sofrimento causado pela sua demissão.

O mérito da perspectiva proposta pela autora é a sua interlocução com as formas de organização do trabalho, que advém da reestruturação produtiva, para que se compreenda o AMT e as suas relações com a subjetividade e a dignidade humana. No entanto, a autora não explora a complexidade dessa violência e suas articulações com as categorias analíticas de raça/etnia, gênero e as relações de poder para a compreensão do engendramento do assédio moral nas relações trabalhistas. Dessa maneira, é possível interrogar de que forma ele se apresenta ou não, diante das discriminações raciais e de gênero, do assédio sexual vivido, sobretudo pelas mulheres, e dos abusos nas relações de poder55 Andrade CB, Assis SG. Workplace bullying, gender, race and power: a review. Rev. bras. saúde ocup. 2018; 43:1-13. em uma sociedade que vive todas as formas do capitalismo flexível.

O capítulo três de Carla Silveira, “Reforma Trabalhista no Brasil: a primeira sentença”, debate a precursora decisão com o embasamento da reforma trabalhista por meio da Lei no. 13.467/2017. A autora analisa uma reclamação trabalhista – disponível em sistema de dados com acesso público – impetrada por um empregado rural que solicita, na justiça, o seu direito às verbas rescisórias e danos morais, ao ser dispensado pelo empregador quando cessou o direito ao auxílio por acidente de trabalho. Este havia sofrido um assalto durante suas atividades de trabalho e sofreu uma perfuração por arma de fogo em seu abdômen. Silveira considera que, apesar de a ação ter sido impetrada antes da configuração da reforma trabalhista, esta foi aplicada neste caso, de modo que todas as requisições da ação trabalhista foram negadas pela justiça, sendo o trabalhador obrigado a pagar oito mil e quinhentos reais pelos custos do processo.

Silveira aponta para as contradições que a Lei 13.467/2017 mantém, comprometendo a aplicação da justiça. Há a tendência de privilegiar o empresariado, o medo dos/as trabalhadores/as diante da insegurança de terem seus direitos assegurados na lei agora vigente, as sensações de impotência e indignação que essa “modernização” da CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas) impõe nas relações de trabalho. Diante disso, a tragédia é anunciada: de acordo com a referida lei, as gestantes e as lactantes podem trabalhar em atividades laborais insalubres, exceto quando a indicação médica possa proibi-la. Ressalta-se que, em maio de 2019, o Supremo Tribunal Federal retirou essa norma por liminar em ação proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos, pois, segundo o relator, a Constituição assegura a proteção à maternidade e à segurança/saúde no trabalho66 STF derruba trecho da reforma trabalhista que permitia grávida em ambiente insalubre [Internet]. O Globo. 2019 [acessado 2019 Jul 31]. Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/stf-derruba-trecho-da-reforma-trabalhista-que-permitia-gravida-em-ambiente-insalubre-23702994
https://oglobo.globo.com/economia/stf-de...
. Será o prenúncio do fim dos direitos trabalhistas e da Justiça do trabalho que está por vir? É a inquietação assumida pela autora deste capítulo.

Sendo assim, este livro contribui para pesquisadores/as da área e também para pessoas interessadas na temática do trabalho e suas relações com a saúde. Traz ao debate a organização e as condições de trabalho como centrais na vida das pessoas e, portanto, para a sua saúde, pois, sem estas análises macrossociais e do desenvolvimento do capitalismo contemporâneo, apontadas no livro, é difícil entender a complexidade da relação entre o trabalho e a saúde, para homens e mulheres, em um contexto de destituição de direitos trabalhistas obtidos ao longo do tempo.

Referências

  • 1
    Casulo AC, Alves G, organizadores. Precarização do trabalho e saúde mental: o Brasil da Era Neoliberal Bauru: Projeto Editorial Praxis; 2018.
  • 2
    Antunes R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital São Paulo: Boitempo Editorial; 2018.
  • 3
    Harvey D. Organización para la transición anti-capitalista. Argumentos 2010; 23(63):35-58.
  • 4
    Hirata H. Tendências recentes da precarização social e do trabalho: Brasil, França, Japão. Caderno CRH 2011; 24(n. esp.1):15-22.
  • 5
    Andrade CB, Assis SG. Workplace bullying, gender, race and power: a review. Rev. bras. saúde ocup. 2018; 43:1-13.
  • 6
    STF derruba trecho da reforma trabalhista que permitia grávida em ambiente insalubre [Internet]. O Globo 2019 [acessado 2019 Jul 31]. Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/stf-derruba-trecho-da-reforma-trabalhista-que-permitia-gravida-em-ambiente-insalubre-23702994
    » https://oglobo.globo.com/economia/stf-derruba-trecho-da-reforma-trabalhista-que-permitia-gravida-em-ambiente-insalubre-23702994

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Dez 2019
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