Dois exemplos de construções narrativas na sociologia da saúde

Everardo Duarte Nunes Sobre o autor

Resumo

O objetivo deste artigo é revisitar um autor e uma autora na perspectiva de analisar em dois textos as narrativas construídas, No primeiro, da elaboração em medicina social das teorias sociológicas e, no segundo, da pesquisa qualitativa em saúde. Toma-se como objeto uma dimensão macro das narrativas, no sentido dado por Maines das possibilidades de construção de uma sociologia das narrativas e de uma narrativa da sociologia. Os textos analisados são da década de 1980, de autoria de JCM Pereira e MCS Minayo.

Palavras-chave
Narrativas; Sociologia; Medicina social; Pesquisa qualitativa

Introdução

Segundo Hydén11 Hydén L-C. Illness and narrative. Sociol Health Ill 1997; 19:48-69., o conceito de narrativa inicia a sua trajetória nos estudos sobre medicina e enfermidade no começo de 1980, mas dez anos depois, o lugar das narrativas sobre enfermidade no trabalho de sociólogos e antropólogos médicos é indiscutível11 Hydén L-C. Illness and narrative. Sociol Health Ill 1997; 19:48-69.. Na década de 1990 os pesquisadores começaram a se concentrar mais em analisar as narrativas e na função das narrativas nos contextos sociais22 Raine S. The narrative turn: interdisciplinary methods and perspectives. Student Anthro 2013; 3:64-80., referida por Maines33 Maines DR. Narrative’s moment and sociology’s phenomena: toward a narrative sociology. Sociol Q 1993; 34(3):17-38. como o momento da narrativa. Para ele, uma genuína sociologia narrativa pode ter uma dupla face: ser uma sociologia das narrativas e mais inclusivamente e reflexivamente incluir narrativas da sociologia.

Este artigo objetiva revisitar em dois textos da década de 1980 como as narrativas são construídas. No primeiro a utilização das teorias sociológicas no campo da medicina social e, no segundo, a pesquisa qualitativa em saúde.

Pereira - os clássicos na construção das narrativas das práticas de saúde

O sociólogo José Carlos Medeiros Pereira (1935-2009), cuja opção pela área da saúde data do seu ingresso no Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da USP/Ribeirão Preto, em agosto de 1976, é autor de um estudo sobre as relações entre os clássicos da sociologia e a saúde. A sua apurada formação teórica irá se refletir na sua tese de livre-docência A explicação sociológica em medicina social, defendida em novembro de 1983 (publicada em 2005)44 Pereira JCM. A explicação sociológica na medicina social. São Paulo: Editora Unesp; 2006., utilizando amplamente as formulações teóricas de Fernandes (1920-1995)55 Fernandes F. Fundamentos empíricos da explicação sociológica. São Paulo: Cia. Editora Nacional; 1967., que Dialogou com as principais correntes de pensamento do passado e presente, desde Spencer, Comte, Marx, Durkheim e Weber até Mannheim, Parsons, Merton e Marcuse, entre outros66 Ianni O. A sociologia de Florestan Fernandes. Est av 1996; 10:25-33..

Esta impregnação teórica revela-se no trabalho de Pereira, analisando o funcionalismo, a sociologia compreensiva, o materialismo dialético em pesquisas da década de 1970. Segundo Pereira44 Pereira JCM. A explicação sociológica na medicina social. São Paulo: Editora Unesp; 2006., Quando falamos em explicação sociológica de fenômenos médico-sociais, vamos nos referir, principalmente, a processos sociais vinculados à prática social da medicina

Inicia a exposição desenvolvendo dois longos capítulos sobre a atividade científica e a abordagem científica da realidade, ressaltando que a sociologia é a ciência social que melhor permite a rotação de perspectivas que advogamos para alargar e aprofundar o estudo dos fenômenos médico-sociais44 Pereira JCM. A explicação sociológica na medicina social. São Paulo: Editora Unesp; 2006..

Em seguida reanalisa o paradigma funcionalista, exemplificando com o estudo sobre a Enfermagem como profissão de Ferreira-Santos, que evidencia

a posição social das enfermeiras (...) profissão estruturalmente ligada ao sexo feminino, socialmente subordinado ao masculino na divisão sexual assimétrica do trabalho vigente em nossa sociedade, o padrão de submissão é reforçado no seu relacionamento com os médicos, na maioria homens44 Pereira JCM. A explicação sociológica na medicina social. São Paulo: Editora Unesp; 2006..

Ressalta na pesquisa as conexões funcionais entre o sistema social hospitalar e o papel das enfermeiras.

Outro trabalho considerado não ser retilineamente funcionalista, é o de Freire Costa sobre as funções que a higiene assumiu na cidade do Rio de Janeiro em meados do século passado [século XIX], para ajustar o comportamento social das famílias brancas, livres e proprietárias às novas condições objetivas da existência. Comenta que às vezes, a análise resvala para o terreno perigoso de considerar a higiene como causa das transformações às quais se faz referência, mas, de modo geral se mantém fiel à consideração de que as medidas higienizadoras constituíam um efeito das transformações relativamente profundas (...) que se produziram no Brasil (...)44 Pereira JCM. A explicação sociológica na medicina social. São Paulo: Editora Unesp; 2006..

No campo da doença mental e psiquiatria, Pereira44 Pereira JCM. A explicação sociológica na medicina social. São Paulo: Editora Unesp; 2006.tenta extrair elementos de uma análise funcionalista do estudo de Birman A psiquiatria como discurso da moralidade, na França de 1793-1850.

Não tendo encontrado exemplos de aplicação do método compreensivo weberiano na medicina social brasileira, analisa a assistência médica dentro dessa perspectiva. Destaca as tensões entre a esfera médica e outras esferas sociais no comportamento dos agentes sociais (médicos):obtenção de lucros, salários, manutenção de relações de poder, etc. e, a ênfase colocada nos ideais profissionais e de práticas sociais de fomento e prevenção da saúde, difíceis de serem programadas, inclusive por parte da população beneficiada, mais interessada em medidas imediatas colocando a prevenção como algo muito distante e nebuloso44 Pereira JCM. A explicação sociológica na medicina social. São Paulo: Editora Unesp; 2006..

Em relação ao método dialético, a análise se detém nas dissertações de mestrado de Mendes-Gonçalves Medicina e história: raízes sociais do trabalho médico, Nogueira Medicina interna e cirurgia: a formação social da prática médica e na tese de Donnangelo Saúde e sociedade. Neles destaca a importância do uso do método dialético, especialmente em sua aplicação à história, para explicar fenômenos sociais - relações, processos, instituições - vinculados à prática social da medicina. Os três trabalhos tratam de problemas de mudança quer do trabalho médico, quer da concepção do objeto e finalidade da medicina, das práticas sociais da medicina, da situação social do médico, etc.44 Pereira JCM. A explicação sociológica na medicina social. São Paulo: Editora Unesp; 2006. que se prestam a uma abordagem dialética. Tentam captar a realidade em seus aspectos complexos e contraditórios (...) do plano analítico ao sintético, de modo que o todo examinado acabe se apresentando prenhe de determinações significantes44 Pereira JCM. A explicação sociológica na medicina social. São Paulo: Editora Unesp; 2006. .

Segundo Pereira essas pesquisas que abordam as práticas sociais da medicina, são tanto objeto da sociologia como da medicina social. Esta como medicina de fronteira, é, em grande parte, sociologia na e da medicina44 Pereira JCM. A explicação sociológica na medicina social. São Paulo: Editora Unesp; 2006..

Neste momento vale retomar a análise de Ianni77 Ianni AMZ. O campo temático das ciências sociais em saúde no Brasil. Tempo soc 2015; 27(1):13-32., ao comparar as duas versões (1986 e 2003) do artigo de Pereira Medicina, saúde, sociedade, especialmente no que se refere à assistência médica, presente na tese de 1983. Ianni77 Ianni AMZ. O campo temático das ciências sociais em saúde no Brasil. Tempo soc 2015; 27(1):13-32. comenta que para Pereira88 Pereira JCM. Medicina, saúde e sociedade. Estudos de Saúde Coletiva 1986; 4:29-37. saúde e doença são objetos tanto sociais como biológicos e que ele reconhece que a assistência médico-clínica é uma instituição social criando interações na área médica. O objeto saúde teria assim a preeminência da clínica médica. Na edição de 2003, Pereira (apud Ianni77 Ianni AMZ. O campo temático das ciências sociais em saúde no Brasil. Tempo soc 2015; 27(1):13-32.)

desenvolve sua crítica a esse objeto clínico, individual, biomédico (...) portador de um excesso do componente biológico e da ausência de social. (...) a clínica enxerga o indivíduo apenas em sua face biológica e assim o manipula - específico, individualizado, relativo aos agentes etiológicos e/ou fatores causais das doenças -, em oposição aos contextos mais gerais, coletivos e sociais, determinantes do processo saúde-doença.

Segundo Ianni77 Ianni AMZ. O campo temático das ciências sociais em saúde no Brasil. Tempo soc 2015; 27(1):13-32., essa proposta é paradoxal, Por um lado, reconhecia a natureza do indivíduo como ser social (...) e que, a doença se manifestaria no que esse indivíduo representava ou expressava de social. Por outo lado, ele não procedeu a uma crítica teórico-epistemológica sobre a concepção do biológico em si, que é também, e, sobretudo, produto social e cultural.

Na perspectiva de Levine99 Levine DN. Visions of the sociological tradition. Chicago: The University Chicago Press; 1995., a narrativa de Pereira classifica-se como pluralista - diversidade teórica e humanista - utilização dos clássicos.

Frente às possibilidades metodológicas do funcionalismo, da dialética e da sociologia compreensiva, o autor destaca a da complementaridade, numa referência a Fernandes55 Fernandes F. Fundamentos empíricos da explicação sociológica. São Paulo: Cia. Editora Nacional; 1967..

Minayo - a narrativa da e na pesquisa qualitativa

Campo privilegiado para a abordagem narrativa, a pesquisa qualitativa tem em Maria Cecília de Souza Minayo uma autora original e criativa, impulsionando não apenas desenvolvimentos metodológicos, mas criando condições, inclusive institucionais (CLAVES-Centro Latino-americano de Estudos de Violência e Saúde, hoje Departamento de Estudos sobre Violência e Saúde Jorge Carelli/Ensp/Fiocruz), para o avanço e sustentação de um campo diversificado de pesquisas. Socióloga e antropóloga, mestre em antropologia social e doutora em saúde pública a sua grande área de atuação é a Saúde Coletiva e seus desdobramentos em metodologia da pesquisa qualitativa em saúde, ciências sociais em saúde, violência e saúde, políticas de saúde, avaliação de programas sociais e de saúde.

Neste momento, o objetivo é salientar a sua absoluta contribuição ao campo da pesquisa qualitativa. Em 1989, apresentou o seu doutorado - O desafio do conhecimento. Metodologia da pesquisa social qualitativa em saúde1010 Minayo MCS. O desafio do conhecimento. Pesquisa qualitativa em saúde. 9ª ed. São Paulo: Hucitec; 2006., editado nesse ano, encontra-se hoje na 14ª edição.

Trata-se de um texto [didaticamente escrito] que se volta para o interior do campo legado pelos clássicos, sem perder a perspectiva da dinâmica científica que somente as pesquisas empíricas podem fornecer1111 Nunes ED. Resenha O desafio do conhecimento. Cien Saude Colet 2007; 12(4):1087-1088..

Neste momento é oportuno situar como Cecília narra os caminhos trilhados nesse ofício de pesquisar.

(...) quero esclarecer que participo das ideias das ciências sociais compreensivas e da hermenêutica-dialética que, cada vez mais, tendem a recuperar o papel dos indivíduos nos processos mostrando que seu protagonismo tem sido fundamental para a efetivação das mudanças sociais. Obviamente essa linha teórica não se iguala e nem dá força ao pensamento da história tradicional e conservadora que confere aos reis, aos poderosos e aos governantes o mérito como detentores das chaves das transformações. Nem se situa no âmbito da sociologia positivista ou do marxismo mecanicista para os quais os indivíduos ou são reflexos da coletividade ou cumprem funções intercambiáveis nos processos de mudança. Ao contrário, ao pôr ênfase na atuação de alguns indivíduos, as correntes que privilegiam os sujeitos (individuais, grupais e coletivos) evidenciam que existe, subjacente a toda construção social, uma dialética entre os desejos e as vontades voltados para uma específica ação social; as mediações de instituições que são construídas ou reencaminhadas para que esses desejos e vontades sejam alcançados; e determinados atores individuais e coletivos que se engajam na realização concreta da institucionalização dos projetos. Com certeza, sem o empenho de uma parte nesse triângulo virtuoso, a história não seria a mesma1212 Novaes MR. Contribuições ao pensamento social em saúde no Brasil [tese] Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2004..

O livro em análise reafirma-se como um tratado de metodologia qualitativa que carrega em suas formulações pragmáticas a densidade teórica que as sustentam. Nas palavras de Cecília:

Eu tento sempre relacionar teoria e método, mostrar que não existe método sem teoria e vice-versa. Que toda vez que você trabalha uma teoria, ao mesmo tempo tem que trabalhar com sua aplicação; ela se realiza na própria aplicação que é a metodologia1212 Novaes MR. Contribuições ao pensamento social em saúde no Brasil [tese] Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2004..

Trata-se de uma metodologia artesanalmente construída e narrada. Aqui, a referência a Benjamin1313 Benjamin W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Benjamin W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense; 1994. p. 197-221. é imediata, a narrativa como

uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso.

Para Cecília a prática sociológica é vivida como um ofício e a pesquisa social como instrumento de um itinerário intelectual associado a uma prática pedagógica, que Bourdieu et al.1414 Bourdieu P, Chamboredon J-C, Passeron J-C. Ofício de sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. 7ª ed. Petrópolis: Vozes; 2010. chamam de A pedagogia da pesquisa. Segundo esses sociólogos,

Um ensino da pesquisa que tenha como projeto expor os princípios de uma prática profissional e inculcar, simultaneamente, uma certa atitude em relação a essa prática, isto é, fornecer os instrumentos indispensáveis ao tratamento sociológico do objeto e, ao mesmo tempo, uma disposição ativa para utilizá-los de forma adequada, deve romper com as rotinas do discurso pedagógico para restituir a força heurística aos conceitos e operações mais completamente ‘neutralizados’ pelo ritual da apresentação canônica.

Teoricamente, as metodologias qualitativas são

entendidas como aquelas capazes de incorporar a questão do significado e da intencionalidade como inerentes aos atos, às relações e às estruturas sociais, sendo essas últimas tomadas tanto no seu advento quanto na sua transformação, como construções humanas significativas1010 Minayo MCS. O desafio do conhecimento. Pesquisa qualitativa em saúde. 9ª ed. São Paulo: Hucitec; 2006..

Cecília constrói a narrativa abordando: os conceitos básicos sobre metodologia e abordagens qualitativas, formalizados na teoria, epistemologia e métodos; a construção do projeto de pesquisa e sua fase exploratória; o papel da teoria, estratégias e técnicas no trabalho de campo e a fase de análise do material qualitativo. Em todo percurso a autora imprime desdobramentos analíticos referenciados nos clássicos da sociologia e da antropologia, e em substratos filosóficos que dão sustentação aos argumentos na construção do próprio campo da pesquisa qualitativa em saúde. Fundamenta sua opção teórica numa construção da pesquisa que atravessa temáticas e fronteiras e se inscreve na interface das ciências sociais criando a sua própria discursividade teórica e técnica. Esta discursividade é dialógica tanto no sentido dado por Levine99 Levine DN. Visions of the sociological tradition. Chicago: The University Chicago Press; 1995. [admite sistematização, pluralidade teórica e utilização dos clássicos], mas ampliada ao se referir a pesquisas centradas na compreensão dos sujeitos investigados - sob a perspectiva dos atores em subjetividade1010 Minayo MCS. O desafio do conhecimento. Pesquisa qualitativa em saúde. 9ª ed. São Paulo: Hucitec; 2006.. Em seu ensaio de 2012 estão algumas “chaves” para se entender seu percurso metodológico quando realiza uma autorreflexão sobre o seu trabalho. Cria um decálogo, identificando substantivos e verbos estruturantes da pesquisa qualitativa: experiência, vivência, senso comum e ação; compreender, interpretar, dialetizar. Retoma os passos da pesquisa destacando que o pesquisador ao trabalhar o seu material empírico, ordenando-o e organizando-o, deve:

impregnar-se das informações e observações de campo, construir a tipificação do material recolhido no campo e fazer a transição entre a empiria e a elaboração teórica e exercitar a interpretação de segunda ordem. A compreensão propiciada pela leitura atenta, aprofundada e impregnante que deu origem às categorias empíricas ou unidades de sentido, nesse momento, deve merecer um novo processo de teorização1515 Minayo MCS. Análise qualitativa: teoria, passos, fidedignidade. Cien Saude Colet 2012; 17(3):621-626..

Considerações finais

Acredito que, dentro da proposta, este artigo atinge os seus objetivos. É clara a opção por uma narrativa da sociologia - observando os sociólogos como narradores e, portanto, indagando sobre o que eles fazem com as suas narrativas e com a de outras pessoas33 Maines DR. Narrative’s moment and sociology’s phenomena: toward a narrative sociology. Sociol Q 1993; 34(3):17-38., o que não minimiza a importância da sociologia das narrativas. A década de 1980 é citada como o momento do aparecimento da narrativa sobre o adoecimento, mas os estudos sobre o adoecimento crônico em termos que são sociais - não simplesmente médicos são anteriores a essa data1616 Strauss A. Chronic illness. In: Conrad P, Kern R, editors. The sociology fo health and illness: critical perspectives. New York: St. Martin’s Press; 1981. p. 138-149. (grifo do autor). Pioneiros nesse tema, dois nomes são celebrados: Kleinman1717 Kleiman A. The Illness Narratives: Suffering, Healing and the Human condition. New York: Basic Books; 1988. e Good1818 Good B. Medicine, rationality and experience: an anthropological perspective. Cambridge: Cambridge University Press; 1994.. Contemporâneos, Kleinman é médico, psiquiatra, antropólogo social; Good é antropólogo social e, trabalharam juntos em muitos projetos e coletâneas. Interessante situar que ambos dedicaram-se a estudar a experiência do adoecimento em diferentes culturas: americana, chinesa, iraniana e indonesiana.

Em seu livro, Kleinman1717 Kleiman A. The Illness Narratives: Suffering, Healing and the Human condition. New York: Basic Books; 1988. relata sua experiência como clínico, desde as primeiras observações no curso de medicina nos anos 1960. A partir dos conceitos de illness e illness narrative, seu relato com casos clínicos tratam da dor, da neurastenia, cuidado com o doente crônico, enfrentamento da doença crônica, a relação com a morte, o estigma e vergonha do adoecimento, o contexto social da cronicidade, a criação de doença fantasiosa, hipocondria e como cuidar do doente crônico. Para ele, A narrativa da doença (illness narrative) é uma história que o paciente conta, e outras pessoas significativas recontam para dar coerência aos eventos distintivos e ao curso de um sofrimento de longa-duração. Estrutura-se em uma

trama de metáforas básicas e dispositivos retóricos (...) extraídos de modelos culturais e pessoais para organizar experiências de maneiras significativas e para efetivamente comunicar estes significados.(...) A narrativa pessoal não reflete apenas a experiência do adoecimento, mas sim contribui para a experiência dos sintomas e sofrimento1717 Kleiman A. The Illness Narratives: Suffering, Healing and the Human condition. New York: Basic Books; 1988..

Para Atkinson1919 Atkinson P. Illness Narratives Revisited: The Failure of Narrative Reductionism. SRO 2009; 14(5):16 [acessado 2017 Dez 20]. Disponível em http://www.socresonline.org.uk/14/5/16.html
http://www.socresonline.org.uk/14/5/16.h...
:

Kleinman defende uma atenção especial por parte dos médicos às narrativas dos seus pacientes sugerindo que tal perspectiva encorajaria o equivalente a uma compreensão etnográfica do paciente e da experiência do paciente ou da paciente do ‘lifeworld of illness experience’.

Adverte que,

Nos últimos anos, testemunhamos uma extensão da virada narrativa que defende não apenas uma atenção analítica às narrativas da doença, mas uma forma de medicina narrativa que coloca o trabalho narrativo no coração da prática e da competência médica profissional1919 Atkinson P. Illness Narratives Revisited: The Failure of Narrative Reductionism. SRO 2009; 14(5):16 [acessado 2017 Dez 20]. Disponível em http://www.socresonline.org.uk/14/5/16.html
http://www.socresonline.org.uk/14/5/16.h...
(grifos do autor).

Good1818 Good B. Medicine, rationality and experience: an anthropological perspective. Cambridge: Cambridge University Press; 1994., diferente de Kleinman, trata de questões epistemológicas e, o que ele denomina sindrôme da experiência, definida como um conjunto de palavras, experiências e, sentimentos que tipicamente é compartilhado (run together no original) por membros de uma sociedade. O próprio autor ilustra essa questão com a sua experiência ao pesquisar as categorias de adoecimento popular no Irã e em clínicas médicas americanas explorando as diversas práticas interpretativas através das quais as realidades do adoecimento são construídas, autrorizadas e contestadas nas vidas pessoais e das instituições sociais. Saliente-se que Good sempre procurou estabelecer uma relação entre o contexto individual e contexto cultural e a noção de subjetividade. Em coletânea junto com Biehl et al.2020 Biehl J, Good B, Kleinman A. Subjectivity: ethnographic investigations. Berkeley, Los Angeles: University of California Press; 2007. esse último tema recebe amplo debate, como realidade empírica e como categoria analítica. Na área da medicina, Good continua investigando as relações cultura e desordens psiquiátricas.

Nestas considerações finais citar Kleinman e Good ajuda a restabelecer o que Maines33 Maines DR. Narrative’s moment and sociology’s phenomena: toward a narrative sociology. Sociol Q 1993; 34(3):17-38. denomina a criação de uma sociologia narrativa. Mais ainda, para mostrar que tanto nos textos analisados no artigo, como as referências a Kleinman e Good, mais próximos da antropologia social, há o que Maines já havia alertado que, tanto a sociologia das narrativas como as narrativas da sociologia constituem uma dualidade de foco bastante sensível com bordas muito difusas (fuzzy no original) e um centro ainda por criar.

Agradecimentos

O artigo é parte do projeto CNPq - Bolsa Produtividade.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Set 2019
  • Data do Fascículo
    Set 2019

Histórico

  • Recebido
    22 Nov 2017
  • Revisado
    29 Jan 2018
  • Aceito
    31 Jan 2018
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