Enfrentando uma nova realidade a partir da síndrome congênita do vírus zika: a perspectiva das famílias

Alessandra Gomes Mendes Daniel de Souza Campos Letícia Batista Silva Maria Elisabeth Lopes Moreira Luana Oliveira de Arruda Sobre os autores

Resumo

Este artigo apresenta os resultados parciais da pesquisa sobre o enfrentamento às implicações sociais da síndrome congênita do vírus zika (SCVZ). Buscou-se analisar as repercussões trazidas pelo diagnóstico na vida das famílias atendidas num Instituto de referência no Rio de Janeiro, a partir de um estudo qualitativo, conduzido pela análise temática de conteúdo das entrevistas semiestruturadas realizadas junto a 15 mães, no período de outubro de 2017 a junho de 2018. Os resultados revelaram o desamparo de famílias e profissionais de saúde frente à revelação de um diagnóstico difícil e inédito; a ausência de estruturação de uma rede de referência e contrarreferência no atendimento às crianças quando recém-diagnosticadas; a imposição de uma rotina exaustiva de cuidados, gerando isolamento social, exaustão e sobrecarga dessas mulheres; e a dificuldade de acesso às políticas públicas. Entre os recursos de enfrentamento a essas adversidades destacaram-se a religiosidade e a articulação com outras mulheres que atravessavam a mesma experiência.

Palavras-chave
Criança; Cuidado; Políticas públicas; Zika

Introdução

No segundo trimestre de 2015, o Brasil confrontava-se com uma situação inédita e preocupante: a multiplicação sem precedentes do número de nascimentos de crianças com microcefalia e outras malformações fetais, cuja etiologia era, até então, desconhecida. Estávamos diante do que mais tarde veio a ser diagnosticado como a síndrome congênita do vírus zika (SCVZ), transmitido pelo mesmo vetor da dengue e do chicungunya. Tratava-se uma apresentação desconhecida do vírus zika em seres humanos com repercussões graves da transmissão vertical, cujas implicações biopsicossociais, políticas e econômicas eram desconhecidas. Configurou-se, naquele contexto, um quadro de emergência em saúde pública, que impunha um conjunto de necessidades: produzir conhecimentos, estruturar o atendimento e prevenir a ocorrência de novos casos. Para fazer frente a estes desafios, diferentes instituições, nacionais e internacionais, envidaram um conjunto de esforços, entre os quais, a partir de 2016, se constituiu uma coorte de pesquisa clínica num instituto de referência em pesquisa, ensino e atenção à saúde no Rio de Janeiro, com o objetivo de conhecer suas implicações, paralelamente à oferta de cuidado às crianças e suas famílias.

Vinculado a esta coorte, constituiu-se o projeto de pesquisa que articulava ensino, pesquisa e atenção à saúde na análise do enfrentamento às adversidades trazidas pela síndrome, a partir da triangulação de dados, coletados por meio da análise de prontuários, observação participante e entrevistas semiestruturadas. Este artigo apresenta os resultados das entrevistas semiestruturadas, onde se buscou estabelecer uma aproximação com o ponto de vista dos sujeitos que vêm lidando com a experiência de prover os cuidados cotidianos de crianças afetadas pelo vírus zika. À luz da produção teórica sobre a síndrome no âmbito das ciências sociais e saúde, buscou-se apreender mudanças e impactos trazidos pelo diagnóstico na vida dessas famílias, bem como os recursos lançados no enfrentamento a esta experiência. Partiu-se do pressuposto de que a síndrome constitui uma condição crônica complexa de saúde11 Moreira MCN, Gomes R, Sá MC. Doenças crônicas em crianças e adolescentes: uma revisão bibliográfica. Cien Saude Colet 2014; 19(7):2083-3094. na infância, na qual estão presentes limitações de funções físicas e/ou mentais, dependência medicamentosa, dietética, tecnológica, necessidade de terapia de reabilitação e de cuidado multidisciplinar, e de que esta experiência é atravessada pelas contradições que estão presentes na sociedade, as quais se expressam em assimetrias de poder nas relações de gênero, classe social, raça e geração22 Saffioti HIB. A Síndrome de o pequeno poder. In: Azevedo G, organizadora. Crianças vitimizadas: a síndrome do pequeno poder. São Paulo: Iglu Editora; 1989 p. 25-47..

Ao situar a SCVZ neste contexto, estamos nos referindo a uma condição crônica de saúde que traz sérios comprometimentos ao desenvolvimento neuromotor das crianças afetadas33 Eickmann SH, Carvalho MD, Ramos RC, Rocha MA, van der Linden V, Silva PF. Zika virus congenital syndrome. Cad Saude Publica 2016; 32:e00047716. e que demanda um conjunto de bens e serviços de saúde acessados com importantes dificuldades. A síndrome impõe também uma reflexão sobre a experiência com a deficiência e o predomínio de uma concepção biomédica que a encara como anormalidade e relega a “segundo plano uma concepção mais plena de um modelo social da deficiência, que a concebe como uma forma corporal de estar no mundo”44 Scott RP, Lira LC, Matos SS, Souza FM, Silva ACR, Quadros MT. Therapeutic paths, care and assistance in the construction of ideas about maternity and childhood in the context of the Zika virus. Interface (Botucatu) 2018; 22(66):673-684.. Neste cenário, a construção dos conceitos de infância e de maternidade se compõe a partir do conjunto de possibilidades de compreensão dos processos sociais que atravessam a vida dessas crianças e suas famílias, onde “estar no mundo extrapola a experiência de ser atendido cotidianamente por profissionais de saúde”44 Scott RP, Lira LC, Matos SS, Souza FM, Silva ACR, Quadros MT. Therapeutic paths, care and assistance in the construction of ideas about maternity and childhood in the context of the Zika virus. Interface (Botucatu) 2018; 22(66):673-684..

Costa55 Costa AM. A determinação social da microcefalia/zika1 no Brasil. Cadernos de trabalho da rede water-lat-gobacit. Serie Áreas Temáticas - AT5 Água e Saúde. Desigualdades estrutural e microcefalia: a determinação social de uma epidemia. 2017; 3(9):44-61. sinaliza a hegemonia da abordagem biomédica e centrada no inseto vetor na busca de compreensão dos efeitos da exposição ao vírus zika, em detrimento dos processos sociais que o determinam, o que contribui para diluir a responsabilidade do estado sobre a epidemia e seus desdobramentos, com sua subsequente naturalização. Compreender os processos sociais nos quais se inscreve a SCVZ pressupõe, portanto, conhecer as condições de vida nas quais se movem essas famílias, seu acesso a serviços e infraestrutura55 Costa AM. A determinação social da microcefalia/zika1 no Brasil. Cadernos de trabalho da rede water-lat-gobacit. Serie Áreas Temáticas - AT5 Água e Saúde. Desigualdades estrutural e microcefalia: a determinação social de uma epidemia. 2017; 3(9):44-61.. Silva et al.66 Silva ACR, Matos SS, Quadros MT. Economia Política do Zika: Realçando relações entre Estado e cidadão. Revista AntHropológicas 2017; 28(1):1-24. sugerem que o discurso do estado tem se centrado na busca por tecnologias para o controle do mosquito, a mobilização social e a construção de ações integradas, em detrimento do apoio concreto às crianças e suas famílias, cujo orçamento é fortemente impactado pelas necessidades trazidas pelo adoecimento crônico na infância66 Silva ACR, Matos SS, Quadros MT. Economia Política do Zika: Realçando relações entre Estado e cidadão. Revista AntHropológicas 2017; 28(1):1-24.. Estas precisam arcar com o peso social e econômico da epidemia, mobilizando um campo político e econômico no qual a falta de recursos destas famílias se intensifica pela perda de emprego formal77 Scott RP, Quadros MT, Rodrigues AC, Lira LC, Matos SS, Meira F, Saraiva J. A epidemia de zika e as articulações das mães num campo tensionado entre feminismo, deficiência e cuidado. Cadernos de gênero e diversidade 2017; 3(2):73-92..

A hegemonia da abordagem biomédica e mosquito-centrada da epidemia tem se feito acompanhar por uma imagem pública na qual predomina a díade mãe-criança, reafirmando modelos de parentalidade em que a mulher está identificada como cuidadora única88 Moreira MCN, Mendes CHF, Nascimento M. Zika, protagonismo feminino e cuidado: ensaiando zonas de contato. Interface (Botucatu) 2018; 22(66):697-708., a qual pouco converge com as pautas do movimento feminista ou com o debate sobre cuidado e divisão sexual do trabalho. Reproduz-se, assim, a histórica associação entre a supervalorização da maternidade e das práticas de cuidado, amor, dedicação e sacrifício44 Scott RP, Lira LC, Matos SS, Souza FM, Silva ACR, Quadros MT. Therapeutic paths, care and assistance in the construction of ideas about maternity and childhood in the context of the Zika virus. Interface (Botucatu) 2018; 22(66):673-684.. Este cenário fez brotar um movimento de mulheres/mães voltadas para o reconhecimento público das necessidades das crianças e famílias afetadas pelo ZIKAV, constituindo associações voltadas para a luta por direitos, cuja relação com o estado vem configurando uma arena de disputas desiguais66 Silva ACR, Matos SS, Quadros MT. Economia Política do Zika: Realçando relações entre Estado e cidadão. Revista AntHropológicas 2017; 28(1):1-24. e constitui também o caldo de cultura no qual as famílias/mulheres enfrentam individualmente a experiência de cuidado às crianças gravemente afetadas pelo vírus, cuja análise propomos a seguir.

Considerando a experiência das famílias no processo de adoecimento e tratamento por síndrome congênita do vírus zika como uma mediação fundamental para a construção de conhecimentos nessa temática, buscou-se analisar os elementos que interagem em seu cotidiano e que se relacionam diretamente com o processo de cuidado. A partir da compreensão das “racionalidades” (entendidas aqui num sentido metodológico, e não ontológico) que movem os sujeitos, buscou-se investigar os principais limites e potencialidades inscritos na experiência com o adoecimento pela SCZV. Isto é, considerando a comunicação, situada no tempo e no espaço, como algo que complementa os homens diante de sua finitude99 Minayo MCS. O Desafio do Conhecimento: Pesquisa Qualitativa em Saúde. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 1992., a ideia foi explorar as falas destas famílias situadas a partir do contexto em que foram produzidas, e identificar os desafios e potencialidades presentes nesta experiência. Propôs-se, assim, explorar os campos de possibilidades nos quais estes sujeitos se situam1010 Velho G. Projeto Metamorfose - Antropologia das Sociedades Complexas. Rio de Janeiro: Editora Zahar; 1994. e identificar o espaço aberto à formulação e implementação de seus projetos, espaço este resultante da interação entre o processo sócio-histórico e o seu potencial interpretativo do mundo simbólico da cultura1010 Velho G. Projeto Metamorfose - Antropologia das Sociedades Complexas. Rio de Janeiro: Editora Zahar; 1994..

Metodologia

Trata-se de um estudo qualitativo, conduzido pela análise de conteúdo a partir da vertente temática1111 Gibbs G. Análise de dados qualitativos. Porto Alegre: Artmed; 2009.,1212 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1977.. Os relatos sobre as trajetórias do adoecimento crônico na infância na vida dessas famílias emergiram da experiência de 15 mulheres atendidas no referido instituto, que participaram de entrevistas semiestruturadas, realizadas no período de outubro de 2017 a junho de 2018, cujo roteiro constou de perguntas abertas enfocando o percurso assistencial realizado até chegar ao instituto; a descoberta do diagnóstico da criança; as mudanças ocorridas na vida das famílias a partir de então; as dificuldades encontradas; e os recursos lançados no enfrentamento a essas dificuldades.

Na fase de pré-análise, os depoimentos foram transcritos na íntegra, permitindo a leitura flutuante do acervo, após a qual realizou-se a leitura de cada entrevista e procedeu-se à organização do material empírico. A segunda fase, de codificação, consistiu na análise detalhada do material selecionado e na codificação dos dados com base nas unidades temáticas, possibilitando uma descrição dos conteúdos manifestos e latentes99 Minayo MCS. O Desafio do Conhecimento: Pesquisa Qualitativa em Saúde. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 1992.. Em seguida, foi realizada a categorização temática1212 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1977., a partir do agrupamento em núcleos de sentido, tomando como referência a similaridade dos conteúdos presentes nos discursos dos sujeitos e o referencial teórico da pesquisa, a partir dos quais emergiram as seguintes categorias: (1) a descoberta do diagnóstico; (2) as implicações sociais da SCVZ; (3) o enfrentamento de uma nova realidade a partir do diagnóstico.

O estudo atendeu integralmente às exigências éticas da Resolução 466/CNS/12, aprovado pelo CAAE. As falas das participantes foram identificadas pelo número da entrevista, a fim de preservar seus anonimatos.

Resultados e discussão

Embora não tenha sido realizado um recorte prévio de gênero, todas as entrevistadas eram mulheres, mães das crianças, o que reflete a histórica responsabilização feminina pelo cuidado familiar de pessoas com adoecimento crônico. A média das idades dessas mulheres era de 27 anos e, em sua maioria, possuíam pelo menos o nível médio de instrução formal, três das quais o superior. Nove entrevistadas utilizavam o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que garante aos idosos e pessoas com deficiência o direito a um salário mínimo mensal, desde que satisfeito o critério de renda familiar mensal per capita inferior a um quarto do salário mínimo. Embora não saibamos se este repõe as perdas provocadas no orçamento familiar, a utilização pelas entrevistadas corrobora sua importância no enfrentamento às adversidades impostas pelo adoecimento crônico na infância, mesmo considerando os critérios de renda restritivos do benefício e o fato de não gerar garantias trabalhistas e previdenciárias para essas cuidadoras.

O ingresso na Rede de Saúde

A emergência em saúde pública que se instalara a partir de 2015 trouxe a necessidade de estruturação emergencial de serviços, sem que houvesse tempo suficiente para o planejamento das ações e organização de um fluxo de atendimento na rede de atendimento. Neste contexto, as famílias que participaram das entrevistas, em geral, ingressaram no Instituto de referência no qual se desenvolveu a pesquisa através de redes informais, procura espontânea e captura dos casos clinicamente mais complexos em outras unidades de saúde. Face ao cenário de emergência em saúde pública, o Instituto flexibilizou seus critérios de acesso e constituiu uma porta de entrada diferenciada para as crianças com SCVZ, as quais foram imediatamente absorvidas, avaliadas, acompanhadas ou encaminhadas, conforme o diagnóstico, sem maiores exigências burocráticas ou vinculação ao sistema de regulação. Para tanto, foi fundamental a articulação entre pesquisa e atenção em saúde, na qual parte da estruturação do atendimento foi financiado por recursos de pesquisa, da mesma forma que era necessário produzir conhecimentos acerca daquela nova condição de saúde para que se ofertasse o cuidado qualificado e necessário.

[...] você não teve Zika, o pai dela não teve Zika, mas a forma que você tá me falando, o médico que me encaixou aqui... era exatamente o aspecto de criança que eles procuravam, pra poder... pra pesquisar a doença, né. (Dep. n. 13)

Se os centros de referência se encontravam com as portas abertas para o acolhimento a essas famílias, a chegada até ele, para as entrevistadas, se deu de forma aleatória. Na ausência de um fluxo previamente estruturado, a internet e a experiência de outras mães, encontradas em corredores de unidades de saúde, figuraram como principais fontes de informação e orientação em relação ao acesso ao tratamento, não obstante a expedição da Portaria Interministerial 4051313 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria interministerial, n° 405, de 15 de março de 2016. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Único de Assistência Social (Suas), a Estratégia de Ação Rápida para o Fortalecimento da Atenção à Saúde e da Proteção Social de Crianças com Microcefalia. Diário Oficial da União 2016; 16 mar., de março de 2016, intitulada “Estratégia de ação rápida no enfrentamento à microcefalia”, visando promover a identificação, a avaliação e o cuidado das crianças sob suspeita de acometimento pelo vírus.

[...] eu fiz amizade com uma menina, que também tava internada com a filha dela, aí ela falou que aqui era muito bom, que aqui dava tudo né?!, o suporte que a criança precisava, aí eu perguntei se ela tinha como ver com a médica de me encaixar. Aí ela viu com doutora, e ela falou pra eu vir. Foi assim que cheguei aqui (Dep n.08)

Essa ausência de amparo assistencial que é relatada no que diz respeito ao acesso ao tratamento necessário não se restringiu ao fluxo de atendimento, conforme veremos a seguir.

A descoberta do diagnóstico

No universo das famílias entrevistadas, a descoberta do diagnóstico se deu em dois momentos distintos: durante a gestação ou no pós-parto. Em ambos casos, destacou-se o desamparo compartilhado por famílias e profissionais de saúde em relação ao desconhecimento do diagnóstico, visto que nos deparávamos com a primeira geração de grávidas infectadas pelo ZIKAV no Brasil1414 Rubin EJ, Greene MF, Baden LR. Zika virus and microcephaly. N Engl J Med 2016; 374(10):984-985..

[...] Eu bati uma ultra né? Aí descobri que estava grávida. Aí, assim que descobri, comecei a fazer o pré-natal lá na Clínica, onde eu moro. Aí até os cinco meses quando bati a ultra não deu nada. Aí de cinco para seis já deu a cabecinha pequenininha, o punho dela tortinho, aí eu comentei que tinha pegado a zika com dois meses. Aí ela foi e pediu outra ultra, outro mês que passou, para ver se realmente ia continuar torta a mãozinha, a cabecinha pequena, aí ela foi e me encaminhou dizendo que poderia ser uma gravidez de risco e tal [...] (Dep. n. 09.)

A descoberta do diagnóstico coincidiu com os primeiros esforços de pesquisa frente à epidemia do zika. As famílias vivenciaram o desemparo provocado pela chegada de uma criança com o diagnóstico de uma doença crônica pouco compreendida cientificamente. As incertezas com relação ao futuro, ao desenvolvimento das crianças, eram questões que estavam colocadas, e que tendiam a se aprofundar, em alguns casos, pela dificuldade de definição do diagnóstico: quando ele nasceu [...] disseram para mim que era suspeita, eu só tive a confirmação depois de dois meses (Dep. n. 01.). A confirmação do diagnóstico, contudo, nem sempre é suficiente à compreensão dessas incertezas, conforme no relato abaixo, no qual se destaca a vivência cotidiana da dúvida no que se refere ao desenvolvimento do filho:

Em si, eu não sei... se alguém chegar para mim e perguntar o [...] tem microcefalia, qual é a parte do que vai fazer, eu não vou saber explicar. Por que eu em si, até hoje não sei. Por que eles explicam que o [...] teve microcefalia e que ele tem um bom desenvolvimento [...] Mas eu não sei qual a fase que foi atingida, ou que não foi, o que vai afetar, o que não vai. Então eu não vou saber explicar porque eu também não sei muito. (Dep. n. 13.)

A associação entre as malformações fetais identificadas nos exames de imagem durante o pré-natal e uma epidemia que apavorava a sociedade, foi realizada de forma gradativa pelas famílias. Em alguns casos, a identificação inicial de hidrocefalia no feto trouxe, durante um período, a expectativa de um diagnóstico mais “confortável”, visto que não estaria relacionado a uma doença até então desconhecida, com prognóstico indefinido. Em muitas falas, apesar das alterações nos exames de imagem, este diagnóstico somente se confirmou após o nascimento da criança.

[...] Mas assim, eu ... eu... quando eu tinha lá um vizinho, que ele tinha essa doença, a hidrocefalia, e com a operação ele colocou a válvula, ele andou, falou... uma criança normal. Então aquilo me confortava, né? Quando foi da Zika, o negócio ficou mais restrito sim. Mas assim, a gente vai aprendendo cada dia a amar. A entender a doença. A aceitar muitas coisas... E eu agora tô tirando de letra. Agora é bem mais fácil (Dep. n. 04)

Os relatos das entrevistadas sugerem uma importante dificuldade dos profissionais de saúde na comunicação de um diagnóstico que selaria o destino daquelas famílias: soube quando ela nasceu ... quando ela nasceu que eu estava levando ponto, o pediatra foi e falou: ‘sua filha tem microcefalia’. Isso. Só falou que ela tinha microcefalia (Dep. n.7). Ainda que estivéssemos diante de uma situação inédita, a comunicação de uma notícia difícil no pós-parto imediato, ainda sob a realização de procedimentos, sem qualquer preparo ou esclarecimento, demanda problematizações futuras.

Os relatos desta outra mãe, que informou ter descoberto o diagnóstico do filho a partir da leitura da declaração de nascido vivo, corroboram a necessidade de reflexão acerca da qualificação dos profissionais de saúde para o acolhimento a essas famílias e, mais particularmente, a comunicação de notícias difíceis.

[...] esse diagnóstico não foi dado pelo médico, foi laudado no papel de nascidos vivos que a gente precisa para registrar no cartório. E ali sim tinha um campo de doenças congênitas e estava escrito microcefalia, e ali eu tive a real noção de que se tratava o problema do meu filho, que até então tinha feito todo o pré-natal, fez o parto direitinho, mas esse diagnóstico não tinha chegado até a mim. Até então ele tinha uma cabeça maior que o padrão e os edemas, só (Dep. n. 08)

Segundo Afonso e Mitre1515 Afonso SBC, Mitre RMA. Notícias difíceis: sentidos atribuídos por familiares de crianças com fibrose cística. Cien Saude Colet 2013; 18(9):2605-2613., as notícias difíceis são aquelas que alteram as perspectivas das pessoas perante o futuro, trazendo a sensação de perda de controle sobre os acontecimentos e a mudança de prioridades. Neste contexto, muitas vezes, o adoecimento passa a ocupar lugar central na vida das pessoas e/ou famílias. Baile et al.1616 Baile WF, Buckman R, Lenzia R, Globera G, Beale EA, Kudelka A. Spikes. A six-step protocol for delivering bad news: application to the patient with cancer. Oncologist 2000, 5(4):302-311. sinalizam que estas notícias constituem o ponto de partida para uma nova realidade familiar, eivada de novas necessidades e incertezas. A forma como esta comunicação é realizada pode interferir na relação da pessoa ou família com a doença e o tratamento1515 Afonso SBC, Mitre RMA. Notícias difíceis: sentidos atribuídos por familiares de crianças com fibrose cística. Cien Saude Colet 2013; 18(9):2605-2613..

A relação de comunicação entre os sujeitos – profissionais de saúde e usuários – afeta a percepção acerca da doença e do possível projeto terapêutico1717 Bury M. Illiness narratives: fact or fiction. Sociology of Health and Illness 2000; 23(3):263-285.. O ato de comunicar é considerado uma tecnologia leve em saúde, isto é, do âmbito das práticas relacionais e dialógicas que atuam como mediadoras fundamentais na relação estabelecida entre equipe de saúde e usuário/familiares, cujo papel é fundamental na construção do processo de cuidado em saúde. Portanto, para além da perplexidade trazida por um diagnóstico inédito e complexo, estes relatos sugerem a necessidade de aprofundamento e capilarização da discussão sobre a comunicação de notícias difíceis no âmbito do sistema único de saúde. Carneiro e Fleischer1818 Carneiro R, Fleischer SR. “Eu não esperava por isso. Foi um susto”: conceber, gestar e parir em tempos de Zika à luz das mulheres de Recife, PE, Brasil. Interface (Botucatu) 2018; 22(66):709-719., ao analisar a experiência do Recife, sinalizam a ausência de suporte e acolhimento às mulheres no contexto da comunicação do diagnóstico, levadas a buscarem sozinhas o significado do que viria a ser SCVZ, na internet, em casa e nas redes sociais. Segundo as autoras, embora o assunto fosse pouco conhecido pela biomedicina, nada parecia “justificar o modo como as mulheres foram comunicadas e, depois do diagnóstico, tão parcamente acolhidas”1818 Carneiro R, Fleischer SR. “Eu não esperava por isso. Foi um susto”: conceber, gestar e parir em tempos de Zika à luz das mulheres de Recife, PE, Brasil. Interface (Botucatu) 2018; 22(66):709-719..

As implicações sociais da SCVZ

Embora a gestação de um filho nem sempre tenha sido planejada ou mesmo idealizada pelas famílias, em geral, em nossa sociedade, as expectativas iniciais em relação ao nascimento de uma criança tendem a gravitar em torno da ideia de um bebê hígido. Confrontar-se com o diagnóstico da SCVZ pressupõe lidar com uma nova realidade, tanto no que diz respeito a seus aspectos afetivos, quanto no que se refere a problemáticas concretas, como a peregrinação por diferentes serviços em busca de atendimento, a reconfiguração de projetos de vida, o enfrentamento à estigmatização e, sobretudo, a ideia de que a criança terá um desenvolvimento diferenciado das demais.

Eu fiquei triste, chateada né? Porque foi uma gravidez planejada, não foi acidental, os dois queriam, o pai e a mãe. E pra mim foi um choque quando eu descobri, entendeu? [...] então assim, foi uma mudança que eu não esperava, foi um soco no estômago como meu marido costuma dizer, mas assim, eu acho que Deus prepara a gente porque desde o início eu preferi não sofrer, não chorar com isso (Dep. n. 9).

Lidar com um diagnóstico tão complexo e pouco conhecido durante a gestação e o pós-parto imediato implica sobrepor a adaptação da família à chegada de uma nova criança, que, em geral, já interfere nos horários de sono e repouso, a adaptação à realidade posta pelo diagnóstico. Neste sentido, é importante sinalizar que, conforme Eickmann et al.1919 Eickmann SH, Carvalho MD, Ramos RC, Rocha MA, van der Linden V, Silva PF. Zika virus congenital syndrome. Cad Saude Publica 2016; 32(7):e00047716., um dos sinais que compõem a SCVZ são a irritabilidade e o choro excessivo, o que foi apontado como fator de estresse por uma das entrevistadas, levando à exaustão do cuidado sem pausas: era muito ruim pra dormir, eu não dormia de jeito nenhum, foram 15 dias acordada (dep. 13).

Dentro dessa perspectiva, a interação social foi outro aspecto da mudança de rotina familiar que se apresentou de forma impactante. As atividades sociais tenderam a ser drasticamente reduzidas em virtude das impossibilidades impostas pelo cuidado, levando essas mulheres/mães a uma espécie de confinamento domiciliar, algo que se agravava na ausência de uma rede de apoio e de compartilhamento dos cuidados. Devido à escassez de tempo para realizar outras atividades, a pessoa responsável pelos cuidados, que tendia a ser a mãe da criança, no grupo analisado, acabava por se isolar de atividades sociais, culturais e de lazer.

Depois que ele nasceu é só eu e ele, tipo, mudou muita coisa mesmo. Para ir ao médico, é só eu e ele. Mudou muita coisa, totalmente. (dep.n. 12)

Mas é que eu tenho que ter um tempo muito grande pra ela né, aí as outras coisas ficam pra depois. Eu não saio mais de casa, à noite na igreja eu não vou. (dep. n. 11)

Scott et al.44 Scott RP, Lira LC, Matos SS, Souza FM, Silva ACR, Quadros MT. Therapeutic paths, care and assistance in the construction of ideas about maternity and childhood in the context of the Zika virus. Interface (Botucatu) 2018; 22(66):673-684. sugerem que a SCVZ soergue cuidados aos outros a um lema de vida, imbuindo esse cuidado de noções de sacrifício e de uma ambígua (des) valorização própria. Para os autores, arvorar-se na positividade da dedicação materna constitui um recurso simbólico importante frente a um futuro incerto e permeado de obstáculos. Para além destes elementos simbólicos, a confirmação do diagnóstico trouxe uma mudança concreta na vida profissional dessas mulheres. Estas deixaram de trabalhar para cuidar das crianças, justamente no momento em que aumentaram as despesas familiares com saúde, o que é validado por Looman et al.2020 Looman WS, O’Conner-Von SK, Ferski GJ, Hildenbrand DA. Financial and employment problems in families of children with special health care needs: implications for research and practice. J Pediatr Healthcare 2009; 23(2):117-125., que abordam essa questão em relação ao adoecimento crônico na infância.

Hoje em dia não posso mais trabalhar porque eu tenho que fazer os tratamentos dele. Ninguém vai querer contratar uma pessoa que vai viver mais em médico do que no trabalho” (Dep. n. 3).

Segundo Cunha et al.2121 Cunha AMFV, Blascovi-Assis SM, Fiamenghi Júnior GA. Impacto da notícia da síndrome de Down para os pais: histórias de vida. Cien Saude Colet 2010;15(2):445-451., após o recebimento do diagnóstico ocorrem diversas mudanças na rotina familiar, sendo exigidos tempo e dedicação maior na assistência ao filho adoecido cronicamente, deixando de lado outras tarefas. Esta nova realidade aponta uma importante sobrecarga para essas mulheres, que assumem integralmente o cuidado das crianças e se veem invisibilizadas em seu sofrimento, cobradas por um papel naturalizado que vincula maternidade a cuidado, abnegação, sacrifício e missão.

Eu tenho três filhos com ela. Eu não trabalho, eu já não trabalhava porque eu já estava desempregada, né? Eu estava separada do pai dela, aí assim [...] , foi uma luta muito grande né?! Na minha família, porque, assim [...] , não tinha ninguém para me dar um apoio, para me ajudar, com nada. Então, pra mim mudou radicalmente a minha vida, radicalmente mesmo, em tudo, tudo (Dep. n. 8).

Embora quase todas as famílias fossem nucleares, as mulheres figuraram como as principais responsáveis pelas crianças, dada a tradição cultural que vincula gênero (feminino) e cuidado, o que se agrava em casos de internações hospitalares e consultas ambulatoriais2222 Martins AJ, Cardoso MHCA, Llerena Junior JC, Moreira MCN. A concepção de família e religiosidade presente nos discursos produzidos por profissionais médicos acerca de crianças com doenças genéticas. Cien Saude Colet 2012; 17(2):545-553.. A ausência de políticas públicas de amparo ao (à) trabalhador(a), celetista ou informal, com dependentes em situação de adoecimento crônico, coloca este cuidado antes no campo da solidariedade entre empregador e empregado do que no campo de um direito garantido. Culturalmente, a ausência das mulheres no trabalho para acompanhamento hospitalar de dependentes tende a ser mais tolerada que a dos homens, bem como o risco de perda do emprego daí decorrente. Da mesma forma, o compartilhamento do cuidado das crianças e o apoio às famílias tende a ser realizado predominantemente por outras mulheres:

[...] posso contar com ela aqui no caso. Ela é minha vizinha, aí fica com a criança para eu fazer uma comida, varrer a casa, ajeitar as coisas que preciso ajeitar. Minha sogra também me ajuda. Minha mãe que mora perto de mim (Dep. n. 7)

A inserção da criança na política de educação constitui um elemento importante para reflexão, dada sua importância para a inclusão social e para o estímulo ao desenvolvimento, mas também pelo seu potencial de contribuição na reorganização das vidas dessas famílias. Esta perspectiva, entretanto, tende a ser tensionada pelo acometimento crônico. Em geral, as famílias sentem-se inseguras em compartilhar os cuidados de seus filhos com instituições que não sabem se estão suficientemente estruturadas para recebê-los.

Assim, de pré-escola, de creche. Que eu acho assim, que tinha que ter uma pessoa especializada na creche né, pra poder atender esse tipo de criança, não só com microcefalia, mas com outras deficiências né, porque não é todo mundo que consegue. Eu acho que deveria ter pessoas qualificadas na área escolar. (Dep. n. 13)

Ao abordar o desenvolvimento das crianças com SCVZ, se destaca o papel fundamental da estimulação precoce na exploração e no desenvolvimento das capacidades da criança, contribuindo para a sua evolução física, cognitiva, neurológica, social, comportamental e afetiva. No auge da epidemia, em 2016, o Ministério da Saúde construiu as Diretrizes de Estimulação Precoce para crianças de zero a três anos de idade com atraso no desenvolvimento neuromotor2323 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Diretrizes de estimulação precoce: crianças de zero a 3 anos com atraso no desenvolvimento neuropsicomotor decorrente de microcefalia. Brasília: MS; 2016.. Constituindo uma ação estratégica do Plano Nacional de Enfrentamento à Microcefalia2424 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Plano Nacional de Enfrentamento à Microcefalia. Brasília: MS; 2015., o documento orienta ações e equipes multiprofissionais de saúde para o cuidado direcionado a este público, abordando temáticas como a avaliação do desenvolvimento (visual, motor, auditivo, cognitivo e da linguagem), o uso de tecnologia assistiva, estimulação precoce, a importância do brincar e a participação ativa das famílias.

Não obstante o reconhecimento público da importância da estimulação precoce, o acesso ao atendimento multidisciplinar em reabilitação ainda constitui uma dificuldade importante vivida pelas famílias:

[...] é muito difícil você ter uma filha especial e não ter como fazer o tratamento ... ela não faz fisioterapia, porque não tem como fazer, porque lá onde eu moro não tem vaga, só aqui embaixo que tem, aí eu não posso vir porque não tem o dinheiro da passagem (Dep. n.08).

A epidemia se instalou no país no momento em que se aprofundava a contrarreforma do Estado, repercutindo no contingenciamento dos gastos com a seguridade social, com a consequente precarização, sucateamento e mesmo fechamento de serviços de saúde e reabilitação. Nessa conjuntura, parte importante dos atendimentos foram estruturados nos institutos especializados em articulação com projetos de pesquisa, sem garantia de continuidade para além dos prazos inicialmente previstos.

Passados três anos da epidemia, persistem importantes dificuldades na garantia do atendimento integral às necessidades das crianças com a SCVZ, entre as quais se destacam o acesso a medicamentos anticonvulsivantes, cadeiras de rodas e o próprio deslocamento até os serviços.

[...] Fonoaudiologia minha filha não faz. Fisioterapia só faz uma vez na semana e é aqui, e eu moro a 54 quilômetros daqui, então, é muito complicado. [...] o BPC também foi negado, porque eu trabalhava, tinha CNPJ de microempreendedora individual, então eu estou no quarto processo no INSS, aguardando o julgamento para ver se libera ou não o benefício, então, a ajuda vem da família até para comprar os medicamentos. A caixa de Sabril custa duzentos e noventa e sete Reais e ela usa duas caixas por mês. Então, um dá cinquenta, outro dá cem, tem sempre alguém ajudando (Dep. n.10).

O deslocamento até os serviços de saúde e, principalmente, os institutos de referência, que tendem a ser mais distantes do local de moradia das famílias, não é algo que se dê sem dificuldades. A precariedade da oferta de transportes coletivos adaptados se acrescenta à necessidade utilização de mais de uma condução, na maioria dos casos, e da necessidade de realização de mais de um cadastro para passe-livre. Na região metropolitana do Rio de Janeiro, existem atualmente cerca de três passes-livres diferentes (os municipais, o intermunicipal e o do metrô). As crianças que moram há mais de 50 km de distância do local onde realizam tratamento, em tese, estariam amparadas pela Portaria Nº 55, de 24 fevereiro2525 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 55, de 24 de fevereiro de 1999. Diário Oficial da União 1999; 25 fev., que define a responsabilidade de estados e municípios em garantir acesso ao tratamento em outros municípios ou estados, quando necessário. Contudo, quando este direito é garantido, são relatadas dificuldades importantes em relação a este atendimento, tanto pela ausência de veículos adequados quanto pelo tempo de espera das mães e crianças nas unidades de saúde até a saída dos carros, que tende a demorar horas.

Em relação ao transporte, porque hoje em dia, é tudo com a Secretaria de Saúde. Eles, as vezes botam na doblô, as vezes vamos de ônibus porque falam que nunca tem carro, e a gente tem que vir de madrugada, mas só vai ser atendido de tarde. Ou então ser atendido de manhã e ter que ficar até de tarde, e só chegar em casa à noite, esperando outros pacientes. (Dep. n. 06).

Enfrentando uma nova realidade a partir do diagnóstico

Consideradas as implicações sociais acima descritas, buscamos analisar nos depoimentos alguns recursos de enfrentamento às adversidades trazidas pelo diagnóstico. Três elementos se destacaram nas falas: a articulação com outras mulheres e mobilização política; a religiosidade e a relação com os serviços de saúde.

No contexto de uma doença inédita, cujos desdobramentos ainda eram pouco conhecidos, se comunicar com outras famílias que atravessavam a mesma experiência possibilitou a troca de informações e a articulação da luta por direitos. Esta mobilização, iniciada nas redes sociais e mídias de compartilhamento, se estendeu a encontros presenciais, atos e audiências públicas e ações judiciais com vistas ao acesso a medicamentos e outros recursos. O encontro com outras mulheres que atravessavam a mesma experiência, assim como o movimento das mães, é apontado pelas entrevistadas como um elemento de fortalecimento individual e coletivo.

Quero contribuir, ajudar outras mães que eu sei que, infelizmente né? ainda vão chegar aí, pra elas terem uma pequena noção de como é. Eu participo do movimento de mães, tem sido um conhecimento muito grande pra nós mães né? a gente toda quinta tá lá. Então assim, a gente é pioneira né? Praticamente, então eu troco com todo carinho, com todo amor, porque eu acho importante, eu acho que qualquer ajuda nessa hora é muito bem-vinda. (Dep. n. 01).

Moreira et al.88 Moreira MCN, Mendes CHF, Nascimento M. Zika, protagonismo feminino e cuidado: ensaiando zonas de contato. Interface (Botucatu) 2018; 22(66):697-708. destacam a mobilização dessas mulheres como elemento de “trânsito entre dor pessoal e causas coletivas; entre sofrimentos e direitos; entre formas e dimensões distintas do luto”, ao mesmo tempo que acentua a dimensão coletiva da iniquidade em saúde.

A religiosidade é um elemento de enfrentamento à SCVZ que também se faz presente nas falas. Para Aquino e Zago2626 Aquino VV, Zago MMF. O significado das crenças religiosas para um grupo de pacientes oncológicos em reabilitação. Rev. Latino-Am. Enfermagem 2007; 15(1):42-47., a religiosidade exerce um papel relevante em contextos de cuidados à saúde e enfrentamento de processos de adoecimento. Nas famílias entrevistadas não é muito diferente. É neste campo que são buscadas as respostas para o nascimento de uma criança com tais acometimentos de saúde.

Então assim, foi uma mudança que eu não esperava, foi um soco no estômago como meu marido costuma dizer, mas assim, eu acho que Deus prepara a gente porque desde o início eu preferi não sofrer, não chorar com isso. Deixei isso pra ele...(risos), respeitei porque ele falou: “Eu preciso fazer isso”. Então, eu falei: “Eu preciso ter forças porque ela ainda está dentro de mim”. Eu precisava desde então passar esse amor que eu já tinha, então tinha que ser maior ainda. Então, minha preocupação foi essa. [...] Quando ela nasceu, eu já estava preparada em recebê-la, né?, então preparei minha casa, minha família, conversei com todos, todos entenderam, e ela é essa criança muito amada, muito aceita. Não tive problema em aceitação (Dep. n. 01).

Não obstante as relações institucionais nos serviços de saúde tendam a ser verticalizadas e assimétricas, orientadas por um paradigma flexneriano, que fragmenta as necessidades de saúde da população a partir de especialidades que nem sempre dialogam entre si, uma das entrevistadas identificou a relação com o instituto de referência e os profissionais de saúde como recurso de enfrentamento às adversidades trazidas pela SCVZ:

[...] Encontro apoio aqui [no instituto de referência] dessas pessoas que atendem ela, com muito amor e carinho, acho que em todo lugar que ela entra, ela é muito querida. [...] Não é só ser médico, ir ali, tocar e perguntar, tem isso. Mas a gente vê a dedicação e o carinho dos médicos aqui, então, é isso que eu gosto de estar aqui. É difícil, mas eu me sinto bem aqui porque eu sei que aqui eu sou acolhida, minha filha é acolhida (Dep. n. 01).

A fala acima corrobora a importância da construção de relações horizontalizadas entre profissionais de saúde e usuários dos serviços. A garantia e preservação de espaços de cuidado, onde as famílias se sintam acolhidas e respeitadas, contribuem para o enfrentamento das adversidades impostas pelo adoecimento crônico na infância.

Conclusão

Este artigo buscou analisar a experiência de um conjunto de mulheres que enfrentam o desafio cotidiano de prover os cuidados de crianças acometidas pelo ZIKAV, uma condição crônica complexa de saúde cuja emergência recente aprofunda as incertezas e as adversidades enfrentadas. Parte dessas incertezas estão situadas no âmbito geral das problemáticas inerentes ao adoecimento crônico na infância. Outras se referem à particularidade de uma doença até então desconhecida, cujos desdobramentos clínicos, sociais e políticos se descortinam gradativamente ao longo do tempo.

Nesse cenário de antigas e novas incertezas, se destacam a dificuldade de acesso às políticas públicas, a necessidade de problematização da relação entre gênero, cuidado e divisão sexual do trabalho e a necessidade de capilarização do debate sobre o preparo dos profissionais de saúde para o acolhimento às famílias, sobretudo no momento em que está sendo comunicada uma notícia que selará seus destinos.

Se são grandes as adversidades enfrentadas por essas famílias, importantes também são os recursos mobilizados em seu enfrentamento. Entre estes, destaca-se o compartilhamento da experiência com outras mulheres, através do qual buscam alguma compreensão coletiva do processo que estão atravessando e o equacionamento de demandas públicas.

Agradecimentos

A pesquisa é financiada por recursos públicos, oriundos do II Programa Apoio à Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação em Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente do Instituto Fernandes Figueira/ Fiocruz e atende integralmente às exigências éticas da Resolução 466/CNS/12, aprovado pelo CAAE.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Set 2020
  • Data do Fascículo
    Out 2020

Histórico

  • Recebido
    29 Out 2018
  • Aceito
    18 Jan 2019
  • Publicado
    20 Jan 2019
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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