Resumo
O objetivo do estudo foi analisar a associação entre o consumo de alimentos ultraprocessados (AUP) e parâmetros lipídicos. Estudo transversal realizado com adolescentes de ensino médio. O consumo alimentar foi analisado por meio de recordatório alimentar de 24h, sendo os AUP identificados de acordo com a NOVA classificação de alimentos. Os níveis de colesterol total, HDL-c e triglicérides, foram determinados por colorimetria enzimática e a fração de LDL-c estimada por fórmula. Utilizou-se o teste t de Student ou Mann-Whitney para comparação de médias e regressão linear para realizar associações entre as variáveis. Os resultados mostram que o consumo de AUP foi mais frequente nas adolescentes do sexo feminino, entre a faixa etária 17 a 19 anos, com renda familiar superior a dois salários mínimos e de escolas particulares. Nota-se que os indivíduos no maior tercil de consumo de AUP apresentaram maior ingestão energética, de carboidratos e de sódio, com menor ingestão de proteínas e de fibras. Observou-se, ainda, que o maior consumo de AUP foi associado negativamente aos níveis de HDL-c e positivamente aos níveis de triglicerídeos e dislipidemia. Portanto, os AUP estão associados a uma piora no perfil nutricional da dieta e alterações negativas nos parâmetros lipídicos de jovens.
Palavras-chave
Alimentos industrializados; Dislipidemia; Consumo alimentar; Adolescentes
Abstract
The scope of this study was to analyze the association between ultra-processed food (UPF) consumption and lipid parameters. It was a cross-sectional study performed with high school adolescents. Food consumption was analyzed by means of a 24-hour food recall form, where UPF were identified in line with the NOVA system of food classification. The total cholesterol levels, HDL-c and triglycerides were determined by enzymatic colorimetry and the LDL-c fraction estimated by formula. The Student’s t-test or Mann-Whitney was used to compare averages, and linear regression to make associations among the variables. The results show that UPF consumption was more frequent in female adolescents between 17 and 19 years of age, with a family income above two minimum wages and from private schools. It was observed that individuals in the upper third of UPF consumption had a higher energetic, carbohydrate and sodium intake, with a lower intake of proteins and fibers. Moreover, it was found that a higher UPF intake was negatively associated with HDL-c levels and positively associated with triglyceride levels and dyslipidemia. Therefore, UPF is associated with a worsening of the nutritional profile of the diet and contributes to negative changes in the lipid parameters of young individuals.
Key words
Industrialized foods; Dyslipidemia; Food consumption; Adolescents
Introdução
A prevalência de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) relacionadas à alimentação inadequada, como dislipidemias, diabetes tipo II, hipertensão e alguns tipos de cânceres, está crescendo em todo o mundo11 Paulo TRS, Gomes IC, Santos VB, Christofaro DGD, Castellano SM, Feitas Júnior IF. Atividade física e estado nutricional: fator de proteção para doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) em idosas? Rev Bras Promoç Saúde 2014; 27(4):527-532.,22 Schmidt MI, Duncan BB, Azevedo e Silva G, Menezes AM, Monteiro CA Barreto SM, Chor D, Menezes PR. Chronic non-communicable diseases in Brazil: burden and current challenges. Lancet 2011; 377(9781):1949-1961.. Segundo Balbinot33 Balbinot RAA. Diabetes, doenças cardiovasculares e obesidade: análise da legislação na Argentina, no Brasil e na Colômbia. R Dir Sanit 2014; 15(2):91-107., 63% dos óbitos anuais são decorrentes das DCNT, representando 14 milhões de pessoas com menos de 70 anos.
Ao mesmo tempo que a prevalência de DCNT é crescente, a produção e o consumo de alimentos ultraprocessados (AUP) estão aumentando, tanto nos países de alta renda quanto nos de baixa renda44 Rauber F, Louzada MLC, Steele EM, Milett C, Monteiro CA, Levy RB. Ultra-Processed Food Consumption and Chronic Non-Communicable Diseases-Related Dietary Nutrient 13 Profile in the UK (2008-2014). Nutrients 2018; 10(5):587.. Alimentos ultraprocessados, conforme definido pelo sistema de classificação de alimentos NOVA, são formulações industriais obtidas a partir de substâncias derivadas de alimentos, que normalmente contêm vários tipos de aditivos55 Monteiro CA, Cannon G, Moubarac JC, Louzada MLC, Jaime PC. The UN Decade of Nutrition, the NOVA food classification and the trouble with ultra-processing. Public Health Nutr 2018; 21(1):5-17.. Análises de inquéritos alimentares representativos conduzidos nos Estados Unidos66 Martinez Steele E, Popkin BM, Swinburn B, Monteiro CA. The share of ultra-processed foods and the overall nutritional quality of diets in the US: Evidence from a nationally representative cross-sectional study. Popul Health Metr 2017; 15(1):6., Canadá77 Moubarac JC, Batal M, Louzada ML, Martinez Steele E, Monteiro CA. Consumption of ultra-processed foods predicts diet quality in Canada. Appetite 2017; 108:512-520. e Brasil88 Louzada ML, Ricardo CZ, Martinez Steele E, Levy RB, Cannon G, Monteiro CA. The share of ultra-processed foods determines the overall nutritional quality of diets in Brazil. Public Health Nutr 2018; 21(1):94-102. mostraram que o elevado consumo de AUP resulta em dietas nutricionalmente desequilibradas.
Na adolescência, é comum que o hábito alimentar inadequado esteja associado ao estilo de vida moderno, fato que se conecta ao desenvolvimento econômico e crescimento constante do processo de urbanização, provocando modificações importantes na forma de acesso e composição do próprio alimento99 Brevidelli MM, Coutinho RMC, Costa LFV, Costa LC. Prevalência e fatores associados ao sobrepeso e obesidade entre adolescentes de uma escola pública. Rev Bras Promoç Saúde 2015; 28(3):379-386.. Portanto, é importante destacar que a substituição das refeições tradicionais por AUP é cada vez mais comum, tanto no ambiente domiciliar quanto fora do domicílio1010 Oliveira AV, Costa APJ, Pascoal LM, Santos LH, Chaves ES, Araújo MFM. Correlação entre indicadores antropométricos e pressão arterial de adolescentes. Texto Contexto Enferm 2014; 23(4):995-1003.,1111 Souza AM, Barufaldi LA, Abreu GA, Giannini DT, Oliveira CL, Santos MM, Leal VS, Vasconcelos FAG. ERICA: ingestão de macro e micronutrientes em adolescentes brasileiros. Rev Saúde Pública 2016; 50(Supl. 1):5s..
O impacto na saúde dos alimentos ultraprocessados na dieta permanece incerto, uma vez que não foram realizados estudos epidemiológicos e de intervenção suficientes para esse fim1212 Juul F, Hemmingsson E. Trends in consumption of ultra-processed foods and obesity in Sweden between 1960 and 2010. Public Health Nutr 2015; 18(17):3096-3107.. No entanto, existem evidências para alguns AUP específicos: bebidas açucaradas são um dos principais contribuintes para alterações lipídicas, obesidade infantil, ganho de peso, doenças cardiovasculares (DCV) e diabetes tipo 2; as gorduras trans presentes nos alimentos ultraprocessados afetam negativamente a saúde cardiovascular; e carnes processadas estão associadas ao aumento do risco de mortalidade por DCV e alguns tipos de cânceres1313 Ambrosini GL, Oddy WH, Huang RC, Mori TA, Beilin LJ, Jebb SA. Prospective associations between sugar-sweetened beverage intakes and cardiometabolic risk factors in adolescents. Am J Clin Nutr 2013; 98(2):327-334.
14 Hu FB. Resolved: there is sufficient scientific evidence that decreasing sugar-sweetened beverage consumption will reduce the prevalence of obesity and obesity-related diseases. Obes Rev 2013; 14(8):606-619.-1515 Bendsen NT, Christensen R, Bartels EM, Astrup A. Consumption of industrial and ruminant trans fatty acids and risk of coronary heart disease: a systematic review and meta-analysis of cohort studies. Eur J Clin Nutr 2011; 65(7):773-783.. Além disso, estudos observacionais mostraram que o consumo de fast food está positivamente associado a maior ingestão de energia, ganho de peso, resistência à insulina e níveis elevados de triglicerídeos1616 Pereira MA, Kartashoy AI, Ebbeling CB, Van Horn L, Slattery ML, Jacobs DR Jr, Ludwing DS. Fastfood habits, weight gain, and insulin resistance (the CARDIA study): 15-year prospective analysis. Lancet 2005; 365(9453):36-42.
17 Bowman SA, Vinyard BT. Fast food consumption of US adults: impact on energy and nutrient intakes and overweight status. J Am Coll Nutr 2004; 23(2):163-168.-1818 Asghari G, Yuzbashian E, Mirmiran P, Mahmoodi B, Azizi F. Fast food intake increases the incidence of metabolic syndrome in children and adolescents: tehran lipid and glucose study. PLoS One 2015; 10(10):e0139641..
Neste contexto, nota-se a importância de um levantamento a respeito do consumo alimentar e parâmetros lipídicos de adolescentes e suas associações com o crescimento da ingestão de AUP, contribuindo com as políticas de saúde e intervenções educativo-terapêuticas nas escolas, serviços e comunidade, o que poderia prevenir a ocorrência precoce de doenças crônicas não transmissíveis. Desta forma, o objetivo deste trabalho foi analisar a associação entre o consumo de alimentos ultraprocessados e parâmetros lipídicos em adolescentes.
Metodologia
O presente estudo faz parte do projeto base Saúde na escola: diagnóstico situacional no ensino médio. Trata-se de um estudo transversal, realizado no ano de 2016 com adolescentes matriculados no ensino médio, na rede pública estadual e particular de ensino do município de Teresina-PI.
A amostragem aleatória simples foi utilizada para a seleção das escolas, com estratos por área geográfica, tipo de gestão e porte, em que foram sorteadas uma escola pública e uma particular para área geográfica que corresponde a cada Gerência Regional de Ensino (GRE) e de cada porte (pequeno: até 115 alunos; médio: 116 a 215 alunos; grande: mais de 215 alunos), constituindo um total de 12 escolas públicas e 12 particulares.
A seleção dos adolescentes foi realizada por meio de amostragem probabilística estratificada proporcional. Utilizou-se o programa Epi Info 6.04d (Centers for Disease Control and Prevention, Atlanta, Estados Unidos) para calcular a amostra mínima, partindo do universo de 40.136 estudantes do ensino médio de escolas públicas estaduais e particulares, de acordo com o Censo Escolar de 20141919 Brasil. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Educação Básica. Censo Escolar 2014 [Internet]. [acessado 2015 Jun 14]. Disponível em: http://www.dataescolabrasil.inep.gov.br/dataEscolaBrasil/home.seam
http://www.dataescolabrasil.inep.gov.br/... , com o intervalo de confiança de 95%, prevalência de obesidade de 17,1%2020 Bloch KV, Klein CH, Szklo M, Kuschnir MCC, Abreu GA, Barufaldi LA, Veiga GV, Schaan B, Silva TLN. Prevalências de hipertensão arterial e obesidade em adolescentes brasileiros. Rev Saúde Pública 2016; 50(Supl. 1):9s., precisão de 5%, efeito de desenho de 1,4 e nível de significância de 5%2121 Armitage P. Statistical method in medical research. New York: John Wiley & Sons; 1981.. A amostra mínima exigida para esse estudo foi de 316 adolescentes. Considerando haver possíveis perdas de casos durante a coleta de dados, sortearam-se 10% a mais da amostra de cada escola, totalizando uma amostra final de 348 adolescentes.
A amostra foi distribuída nas escolas sorteadas proporcionalmente ao número de adolescentes por tipo de gestão das escolas e porte. A amostra destinada para cada escola foi distribuída por sorteio proporcional à série, sexo e idade.
A seleção dos participantes atendeu aos seguintes critérios de inclusão: adolescentes de 14 a 19 anos de idade, que estivessem devidamente matriculados na instituição de ensino que foi realizado o estudo, cujos estudantes, pais ou responsáveis aceitassem sua participação na pesquisa por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ou Termos de Assentimento Livre e Esclarecido. Foram excluídos do estudo aqueles que não respeitassem o período de jejum, adolescentes grávidas e ainda adolescentes com alguma doença que repercutisse na alimentação.
As informações sobre o consumo alimentar dos adolescentes, foram obtidas mediante aplicação do recordatório alimentar de 24 horas por nutricionistas previamente treinados, feito com base no método multiple pass2222 Moshfegh AJ, Rhodes DG, Baer DJ, Muravi T, Clemesn JC, Rumpler WV, Paul DR, Sebatian RS, Kucznski KJ, Ingwersen LA, Staples RC, Cleveland LE. The US Department of Agriculture Automated Multiple-Pass Method reduces bias in the collection of energy intakes. Am J Clin Nutr 2008; 88(2):324-332. e reaplicado em 40% da amostra após dois meses para correção da variabilidade intrapessoal, sendo utilizado o software Multiple Source Method (MSM) (version 1.0.1, 2011, Department of Epidemiology, German Institute of Human Nutrition Potsdam-Rehbrucke, Nuthetal, Brandenburg, Gemany)2323 The Multiple Source Method (MSM) [Internet]. [acessado 2017 Set 20]. Disponível em: https://msm.dife.de
https://msm.dife.de... .
A classificação dos alimentos ultraprocessados foi realizada segundo a NOVA2424 Monteiro CA, Cannon G, Levy RB, Moubarac JC, Jaime P, Martins AP, Canella D, Louzada M, Parra D, Ricardo C, Calixto G, Machado P, Martins C, Martinez E, Baraldi L, Garzillo J, Sattamini I. NOVA. The star shines bright. World Nutr 2016; 7 (1-3):28-38. com base na extensão e finalidade do processamento de alimentos aplicados. Existem 4 grupos de classificação. O Grupo 1 inclui alimentos que são frescos ou processados de maneira que não foram adicionados sal, açúcar, óleos ou gorduras e não contêm aditivos. O Grupo 2 apresenta ingredientes culinários processados, que são substâncias obtidas do primeiro grupo ou da natureza, podendo conter aditivos para preservar as propriedades originais e o Grupo 3 contêm alimentos processados, com a adição de sal, açúcar ou óleo e uso de processos como fumo, cura ou fermentação. No Grupo 4 foram inclusos produtos ultraprocessados de alimentos e bebidas, feitos predominantemente ou inteiramente de substâncias industriais, com pouco ou nenhum alimento integral, estando prontos para comer, beber ou aquecer, como as bebidas carbonatadas, salsichas, biscoitos, doces (confeitaria), iogurtes de frutas, sopas e macarrão empacotados instantaneamente, petiscos doces ou salgados, leite açucarado e bebidas de frutas.
No presente estudo, o Grupo 4 foi utilizado como o objeto principal, no qual o consumo dos alimentos foi classificado em quatro estratos. Em seguida, selecionou-se apenas o grupo de Alimentos Ultraprocessados para análise detalhada das quantidades de energia, carboidratos, proteínas, gorduras totais, gorduras saturadas, fibra alimentar e sódio, que foram calculados pelo software Nutwin, versão 1.6.0.7, do Departamento de Informática em Saúde da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), por meio do uso dos dados da Tabela Brasileira de Composição de Alimentos (TACO)2525 Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação (NEPA). Tabela Brasileira de Composição de Alimentos (TACO). Campinas: NEPA, UNICAMP; 2011., Tabela de Composição Nutricional dos Alimentos Consumidos no Brasil2626 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo demográfico: resultados gerais da amostra. Rio de Janeiro: IBGE; 2011. e ainda a Tabela United States Department of Agriculture (USDA) Food Search for Windows, versão 1.0, SR232727 Raper N, Perloff B, Ingwersen L, Steinfeldt L, Anand J. An overview of USDA's Dietary Intake Data System. J Food Compost Anal 2004; 17:545-555.. Essa análise possibilitou verificar a contribuição dos alimentos ultraprocessados para o valor calórico total da dieta. Os indicadores relativos à ingestão de fibra e sódio foram expressos por 1.000 kcal, enquanto os demais nutrientes foram expressos em percentual do total de calorias ingeridas. Para avaliar a adequação do consumo alimentar utilizou-se a Dietary reference intakes for energy, carbohydrate, fiber, fat, fatty acids, cholesterol, protein and amino acids2828 Institute of Medicine. Dietary Reference Intakes for Energy, Carbohydrate, Fiber, Fat, Fatty Acids, Cholesterol, Protein, and Amino Acids. Whashington: The National Academies Press; 2005..
Uma amostra de sangue venoso (5mL) foi colhida nas dependências das escolas, estando os estudantes em jejum de 10 horas. Após centrifugação do sangue a 3.000 rpm por 15 minutos, a 25º C, obteve-se o soro para determinação das concentrações de colesterol total (CT), High Density Lipoprotein Cholesterol (HDL-c) e triglicerídeos (TG). Estes parâmetros foram determinados segundo o método enzimático colorimétrico, utilizando kits Labtest®. Enquanto que a fração de Low-Density Lipoprotein Cholesterol (LDL-c) foi calculada de acordo com a fórmula de Friedwald et al.2929 Fridewald WT, Levy RI, Fredrickson DS. Estimation of the concentration of low-density lipoprotein cholesterol in plasma, whit out use of the preparative ultracentrifuge. Clinic chem 1972; 18(6):499-502. (LDL-c = CT – HDL-c - TG/5). Foram utilizados como referência os valores para lipídios séricos adotados pela atualização da Diretriz Brasileira de Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose3030 Faludi AA, Izar MCO, Saraiva JFK, Chacra APM, Bianco HT, Afiune Neto A, Bertolami A, Pereira AC, Lottenberg AM, Sposito AC, Chagas ACP, Casella-Filho A, Simão AF, Alencar Filho AC, Caramelli B, Magalhães CC, Magnoni D, Negrão CE, Ferreira CES, Scherr C, Feio CMA, Kovacs C, Araújo DB, Calderaro D, Gualandro DM, Mello Junior EP, Alexandre ERG, Sato IE, Moriguchi EH, Rached FH, Santos FC, Cesena FHY, Fonseca FAH, Fonseca HAR, Xavier HT, Pimentel IC, Giuliano ICB, Issa JS, Diament J, Pesquero JB, Santos JE, Faria Neto JR, Melo Filho JX, Kato JT, Torres KP, Bertolami MC, Assad MHV, Miname MH, Scartezini M, Forti NA, Coelho OR, Maranhão RC, Santos Filho RD, Alves RJ, Cassani RL, Betti RTB, Carvalho T, Martinez TLR, Giraldez VZR, Salgado Filho W. Atualização da Diretriz Brasileira de Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose - 2017. Arq Bras Cardiol 2017; 109(2):1-76., cujos valores de referências são para, LDL-c < 100 mg/dL, HDL-c ≥ 45 mg/dL CT < 150 mg/dL e TG < 100 mg/dL.
Os dados foram organizados em planilhas do Excel® e, posteriormente, exportados para o programa SPSS (Windows ® version 22.0). O teste de Kolmogorov-Smirnov foi aplicado para verificar a normalidade das distribuições das variáveis. Para comparação de médias utilizou-se o teste t de Student ou Mann-Whitney de acordo com a distribuição das variáveis. A regressão linear foi utilizada para associar o percentual de ingestão calórica do consumo de alimentos ultraprocessados e variáveis sociodemográficas e metabólicas, associar os indicadores nutricionais e o perfil lipídico nos tercis de consumo de alimentos ultraprocessados e, ainda, associar as frações lipídicas e dislipidemia com o consumo de alimentos ultraprocessados de forma fragmentada em quatro diferentes modelos (Tabela 4), de acordo com as variáveis utilizadas para ajuste (sexo, idade, renda familiar e tipo de escola). O nível de significância adotado na decisão dos testes foi de p < 0,05. A coleta de dados foi iniciada após aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e pela Secretaria de Educação e Cultura do Piauí (SEDUC), de acordo com a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS)3131 Rauber F, Campagnolo P, Hoffman D, Vitolo MR. Consumption of ultra-processed food products and its effects on children's lipid pro?les: a longitudinal study. Nutr Metab Cardiovasc Dis 2015; 25:116-122..
Resultados
Do total de 348 adolescentes, excluíram-se 21 participantes, dos quais 11 recusaram e os outros tiveram hemólise nas amostras de sangue. Assim, a amostra final foi constituída por 327 adolescentes.
A Tabela 1 mostra a caracterização da população de estudo (n = 327) segundo as variáveis sociodemográficas e metabólicas. Observa-se que o consumo de alimentos ultraprocessados foi maior entre os adolescentes do sexo feminino e aqueles com idade entre 17 a 19 anos, com renda familiar superior a dois salários mínimos e estudantes de escola particular.
Análise bruta e ajustada da contribuição energética do consumo de alimentos ultraprocessados segundo as variáveis sociodemográficas e metabólicas (n=327).
Nota-se com a análise ajustada, que o sexo feminino manteve-se associado ao consumo de ultraprocessados e que os participantes do estudo com idade entre 17 a 19 anos obtiveram uma ingestão calórica adicional de 0,15% atribuída ao consumo desses alimentos em comparação com participantes entre 14 a 16 anos de idade (IC95%: 1,34; 6,37). Associações positivas ainda foram observadas entre os adolescentes com renda superior a dois salários mínimos e estudantes de escolas particulares.
A avaliação da alimentação total dos adolescentes e das frações do consumo alimentar de ultraprocessados é apresentada na Tabela 2. A dieta dos adolescentes excede as recomendações de consumo para o percentual de contribuição de gorduras totais e gorduras saturadas e se mostra insuficiente em relação ao consumo de fibras. Ao comparar a dieta total com a fração relativa à ingestão de AUP observa-se um aumento em relação ao consumo de carboidratos, gorduras totais, gorduras saturadas e densidade de sódio (Na) e ainda um decréscimo no consumo de fibras alimentares (menor em 2,3 vezes) e proteínas totais (menor em 2,6 vezes).
Médias de indicadores nutricionais referentes ao consumo alimentar total e ao consumo de alimentos ultraprocessados de adolescentes.
A Tabela 3 apresenta indicadores do perfil nutricional da dieta para os tercis de consumo dos alimentos ultraprocessados. Observa-se que a energia total da dieta, o teor de carboidrato e a densidade de sódio aumentaram significativamente com a elevação da contribuição de AUP, enquanto a fração de proteínas totais e fibras alimentares diminuiu com o aumento do consumo de ultraprocessados. Ao controlar as variáveis sexo, idade, tipo de escola e renda familiar, notou-se que as mesmas não modificaram esses resultados. O teor de gorduras totais, gorduras saturadas e fibras alimentares manteve-se inadequados às recomendações de consumo em todos os tercis da amostra.
Indicadores nutricionais do consumo de alimentos e do perfil lipídico de adolescentes, segundo tercis de consumo de alimentos ultraprocessados.
Após o ajuste dos diferentes modelos (Tabela 4), observou-se que os adolescentes com maior consumo de AUP (Tercil 3), apresentaram maior risco de alterações lipídicas, sendo observadas associações negativas com as concentrações de HDL-c, demonstrando que quanto maior o consumo de ultraprocessados menor será a fração de HDL-c. Além disso, nota-se associação positiva entre o aumento do consumo de AUP e TG elevados e com a presença de dislipidemia, o que confirma, que o consumo elevado de ultraprocessados está associado à dislipidemias.
Coeficientes brutos e ajustados da associação entre o consumo de alimentos ultraprocessados e parâmetros lipídicos.
Discussão
O presente estudo demonstrou que os alimentos ultraprocessados estão associados a um perfil nutricional negativo, como as alterações nos níveis lipídicos de adolescentes. Tais resultados também foram destacados por Rauber et al.3131 Rauber F, Campagnolo P, Hoffman D, Vitolo MR. Consumption of ultra-processed food products and its effects on children's lipid pro?les: a longitudinal study. Nutr Metab Cardiovasc Dis 2015; 25:116-122. em que o consumo de AUP na idade pré-escolar foi um preditor do aumento das concentrações de parâmetros lipídicos durante a infância. Em adolescentes, Vaz et al.3232 Vaz JS, Buffarini R, Kac G, Bielemann RM, Oliveira I, Menezes AB, Assunção MCF. Dietary patterns are associated with blood lipids at 18-year-olds: a cross-sectional analysis nested in the 1993 Pelotas (Brazil) birth cohort. Nutr J 2018; 17(1):77. verficaram associação entre o maior consumo do padrão alimentar contendo fast foods com a diminuição de níveis de HDL-c e que o maior consumo do padrão alimentar contendo doces e refrigerantes esteve associado ao aumento dos níveis de TG.
Observou-se que, alunos de escolas públicas tendem a consumir menos alimentos altamente processados. Em contraposição, discentes de instituições particulares apresentam maior contribuição de alimentos ultraprocessados. Estudos demonstram que alimentos vendidos em lanchonetes comerciais, geralmente encontradas dentro de escolas particulares, apresentam baixo teor nutricional e alto valor energético3333 Oliveira, JS, Barufaldi LA, Abreu GA, Leal VS, Brunken GS, Vasconcelos SML, Santos MM, Bloch KV. ERICA: uso de telas e consumo de refeições e petiscos por adolescentes brasileiros. Rev Saúde Pública 2016; 50(1):7., enquanto as escolas públicas tem sua política de alimentação voltada a atender os parâmetros regidos pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa Saúde na Escola (PSE) que regem a segurança alimentar e nutricional, além da promoção da alimentação saudável, influenciando em melhores escolhas e hábitos alimentares3434 Monteiro CA, Moubarac JC, Levy RB, Canella D, Louzada ML, Cannon G. House hold availability of ultra-processed foods and obesity in nineteen European countries. Public Health Nutr 2018; 21(1):18-26..
Considerando os aspectos econômicos, nota-se nesse estudo que os adolescentes com renda familiar inferior a dois salários mínimos tiveram menor consumo de alimentos ultraprocessados. Resultados semelhantes foram destacados por Simões et al.3535 Simões BS, Barreto SM, Molina MCB, Luft VC, Duncan BB, Schmidt MI, Benseñor IJM, Cardoso LO, Levy RB, Giatti L. Consumption of ultra-processed foods and socioeconomic position: a cross-sectional analysis of the Brazilian Longitudinal Study of Adult Health (ELSA-Brasil). Cad Saúde Pública 2018; 34(3):e00019717., em que relataram que os participantes com piores indicadores socioeconômicos (escolaridade, renda e classe social) mostraram menor contribuição calórica de AUP. Apesar do consumo de alimentos ultraprocessados ser maior em países de alta renda, estudos mostraram que essa ingestão aumenta, em termos relativos e absolutos3636 Ricardo CZ, Claro RM. Cost and energy density of diet in Brazil, 2008-2009. Cad Saúde Pública 2012; 28(12):2349-2361.,3737 World Health Organization (WHO). Global status report on noncommunicable diseases 2014: attaining the nine global noncommunicable diseases targets; a shared responsibility. Geneva: WHO; 2014. em países de alta e média renda, especialmente nos últimos anos3838 Monteiro CA, Moubarac JC, Cannon G, Ng SW, Popkin B. Ultra-processed products are becoming dominant in the global food system. Obes Rev 2013; 14(Supl. 2):21-28..
Dietas com a maior ingestão desses alimentos, portanto, com qualidade nutricional inferior, estão fortemente associadas ao aumento de prevalências de doenças cardiovasculares, dislipidemias, obesidade e síndrome metabólica99 Brevidelli MM, Coutinho RMC, Costa LFV, Costa LC. Prevalência e fatores associados ao sobrepeso e obesidade entre adolescentes de uma escola pública. Rev Bras Promoç Saúde 2015; 28(3):379-386.,3131 Rauber F, Campagnolo P, Hoffman D, Vitolo MR. Consumption of ultra-processed food products and its effects on children's lipid pro?les: a longitudinal study. Nutr Metab Cardiovasc Dis 2015; 25:116-122.,3939 Martins CA, Sousa AA, Veiros MB, González-Chica DA, Proença RP. Sodium content and labelling of processed and ultra-processed food products marketed in Brazil. Public Health Nutr 2015; 18(7):1206-1214.
40 Tavares LF, Fonseca SC, Garcia Rosa ML, Yokoo EM. Relationship between ultraprocessed foods and metabolic syndrome in adolescents from a Brazilian Family Doctor Program. Public Health Nutr 2012; 15(1):82-87.-4141 Batal M, Johnson-Down L, Moubarac JC, Ing A, Fediuk K, Sadik T, Tikhonov C, Chan L, Willows N. Quantifying associations of the dietary share of ultra-processed foods with overall diet quality in First Nations peoples in the Canadian provinces of British Columbia, Alberta, Manitoba and Ontario. Public Health Nutr 2017; 21(1):103-113..
Estudos anteriores demonstram que o maior consumo de alimentos ultraprocessados está relacionado ao menor consumo de vitaminas, proteínas e fibras, e, ainda, maior consumo de gorduras saturadas, açucares livres, carboidratos, sódio e ingestão global de energia. Os resultados deste trabalho corroboram a literatura indicando que AUP contribuem negativamente na qualidade nutricional da dieta. Conforme aumenta o tercil de consumo de ultraprocessados diminui-se a qualidade de distribuição de nutrientes4242 Cornwell B, Villamor E, Mora-Plazas M, Marin C, Monteiro CA, Baylin A. Processed and ultra-processed foods are associated with lower-quality nutrient profiles in children from Colombia. Public health nutr 2017; 21(1):142-147.
43 Louzada MLC, Ricardo CZ, Levy RB, Cannon G, Monteiro CA. The share of ultra processed foods determines the overall nutritional quality of diets in Brazil. Public Health Nutr 2018; 21(1):94-102.-4444 Alcântara Neto OD, Silva RCR, Assis AMO, Pinto EJ. Fatores associados à dislipidemia em crianças e adolescentes de escolas públicas de Salvador, Bahia. Rev Bras Epidemiol 2012; 15(20):335-345..
Essa associação inversa do consumo de alimentos ultraprocessados e qualidade da alimentação ratifica a necessidade de redução da participação desses produtos na rotina alimentar de adolescentes. Alcântara Neto et al.4444 Alcântara Neto OD, Silva RCR, Assis AMO, Pinto EJ. Fatores associados à dislipidemia em crianças e adolescentes de escolas públicas de Salvador, Bahia. Rev Bras Epidemiol 2012; 15(20):335-345. ressaltaram que o menor consumo de alimentos saudáveis, juntamente com elevada ingestão de alimentos gordurosos e industrializados acabam por promover maiores alterações sobre o perfil lipídico de jovens.
Nota-se que houve elevação de consumo de sódio nos segundo e terceiro tercis de consumo de AUP. Em estudo nacional realizado com quase 1.500 produtos processados e ultraprocessados, verificou-se que 60% apresentavam elevado conteúdo de Na (> 600mg / 100g), alguns desses produtos apresentavam até oito tipos diferentes de aditivos contendo Na em sua constituição3131 Rauber F, Campagnolo P, Hoffman D, Vitolo MR. Consumption of ultra-processed food products and its effects on children's lipid pro?les: a longitudinal study. Nutr Metab Cardiovasc Dis 2015; 25:116-122..
As alterações negativas que a ingestão de produtos ultraprocessados proporciona na alimentação de adolescentes, implica em possíveis alterações metabólicas, como as associações inversas e significativas entre as frações lipídicas e dislipidemias dos adolescentes no maior tercil de ingestão calórica proveniente de alimentos ultraprocessados. Nesta pesquisa notaram-se associações positivas entre maior consumo de AUP com níveis de TG e a ocorrência de dislipidemias e ainda associação inversa com níveis de HDL-c, em contrapartida Rauber et al.3131 Rauber F, Campagnolo P, Hoffman D, Vitolo MR. Consumption of ultra-processed food products and its effects on children's lipid pro?les: a longitudinal study. Nutr Metab Cardiovasc Dis 2015; 25:116-122., não encontraram associações entre esses parâmetros e o consumo de alimentos ultraprocessados, no entanto, a ingestão de ultraprocessados, associou-se a níveis elevados de LDL-c e colesterol total, ressaltando assim que o consumo de alimentos ultraprocessados acarreta em alterações nos perfis de lipoproteínas agravando o risco cardiovascular e metabólico na vida adulta4040 Tavares LF, Fonseca SC, Garcia Rosa ML, Yokoo EM. Relationship between ultraprocessed foods and metabolic syndrome in adolescents from a Brazilian Family Doctor Program. Public Health Nutr 2012; 15(1):82-87..
O baixo consumo de fibras alimentares observado nos adolescentes do presente estudo traz efeitos negativos para os desfechos lipídicos, pois o consumo diário de fibras alimentares de forma a atingir as recomendações para cada faixa etária está relacionado com a diminuição de TG, CT e relação LDL:HDL, além de melhorar os níveis de HDL-c4040 Tavares LF, Fonseca SC, Garcia Rosa ML, Yokoo EM. Relationship between ultraprocessed foods and metabolic syndrome in adolescents from a Brazilian Family Doctor Program. Public Health Nutr 2012; 15(1):82-87.,4343 Louzada MLC, Ricardo CZ, Levy RB, Cannon G, Monteiro CA. The share of ultra processed foods determines the overall nutritional quality of diets in Brazil. Public Health Nutr 2018; 21(1):94-102.,4444 Alcântara Neto OD, Silva RCR, Assis AMO, Pinto EJ. Fatores associados à dislipidemia em crianças e adolescentes de escolas públicas de Salvador, Bahia. Rev Bras Epidemiol 2012; 15(20):335-345..
Os resultados desse estudo contribuem com novas informações sobre associações entre o consumo de alimentos ultraprocessados e o perfil lipídico de adolescentes, assim como a presença de dislipidemias, portanto, ressalta-se a necessidade de uma avaliação mais abrangente sobre o efeito dos alimentos ultraprocessados em outros fatores de risco para doenças crônicas não transmissíveis como obesidade, hipertensão e diabetes. Este resultado, se confirmado em outras populações, será muito importante para a formulação de estratégias de saúde pública, no intuito de promover intervenções que objetivam a melhora dos hábitos alimentares, com o foco na redução do consumo de ultraprocessados ainda na adolescência.
Um ponto forte do trabalho foi à utilização da NOVA classificação de alimentos enfatizando o nível de processamento dos produtos e sua associação com os níveis lipídicos em adolescentes, visto que são escassos os trabalhos com essa temática. O estudo apresenta algumas limitações como o seu delineamento transversal, pois limita os achados ao nível de associações. O registro do consumo alimentar também foi considerado outra limitação, por ser realizado por meio de recordatório 24h, as informações obtidas dependiam, substancialmente, da memória dos adolescentes, podendo subestimar o consumo de ingredientes alimentares adicionados às refeições, marcas e quantidades de porções de alimentos ultraprocessados. Porém para sanar esses impasses foram realizados dois recordatórios alimentares em intervalos de dois meses e realizados ajustes de variabilidade intrapessoal. Além de ter sido utilizada diferentes tabelas de consumo de forma a deixar o programa de análises mais abrangente.
Conclusão
Os alimentos ultraprocessados influenciam negativamente a alimentação de adolescentes, estando associados a uma piora no perfil nutricional da dieta e, ainda, contribuem para alterações nos níveis lipídicos dessa população. Sugere-se maior acompanhamento e planejamento no programa alimentar do público adolescente, especialmente na rede de ensino particular, com redução do consumo de alimentos ultraprocessados e maior de frutas, verduras e cereais integrais.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
07 Out 2020 - Data do Fascículo
Out 2020
Histórico
- Recebido
26 Jan 2018 - Aceito
11 Fev 2019 - Publicado
13 Fev 2019