Este livro traz um estudo de natureza cultural e crítica para formulações de políticas públicas adequadas ao enfoque de organismos geneticamente modificados (OGM). O autor é professor de políticas públicas na Universidade de Stirling, no Reino Unido. Ele é co-organizador do Grupo Permanente de Política Ambiental do Consórcio Europeu de Pesquisa Política (ECPR) e já publicou anteriormente sobre governança de mudanças climáticas, política de energia e biotecnologia agrícola.
Apesar de ser um livro publicado há quatro anos, sua aplicabilidade é extremamente atual para o campo da saúde coletiva, em especial no tocante à segurança alimentar e dos alimentos. Principalmente no caso do Brasil, que é um dos maiores exportadores de grãos do mundo e considerando a multiplicação do agronegócio brasileiro, a crítica das politicas públicas adotadas para o setor é ainda bastante pertinente.
No preâmbulo, o autor sinaliza o panorama de conflito regulatório e diferenciado entre os Estados Unidos (EUA) e a Europa (UE) no tocante ao controle, aos riscos e à segurança alimentar em termos globais, apresentando o veredicto do Painel de Disputas da Organização Mundial do Comércio (OMC, 2006) que marcou tratamento regulamentar divergente de organismos geneticamente modificados (OGM) dos produtos derivados, pelos EUA e pela UE. O Painel criticou o atraso indevido da UE na aprovação de variedades geneticamente modificadas (GM) (para importação ou cultivo) e a proliferação de medidas nacionais de salvaguarda com base em avaliações científicas inadequadas dos riscos. Entretanto, Cheyne afirma que o Painel “evitou as áreas mais controversas, como a questão da segurança física e a legalidade dos requisitos de rotulagem, concentrando-se nos aspectos processuais e produzindo uma opinião jurídica relativamente estreita”11 Cheyne I. Life After the Biotech Products Dispute, Environmental Law Review 2008; 10(1):52-64..
Na época, a UE declarou que não via motivos para mudar seu atual quadro regulatório, ao mesmo tempo em que aumentava a pressão sobre os Estados membros recalcitrantes para que deixassem de usar medidas nacionais de salvaguarda. Assim, estava criada a controvérsia transatlântica, onde o veredicto da OMC negou a relevância da “abordagem de precaução” da UE à biotecnologia, que a UE havia conseguido consagrar no Protocolo de Cartagena de 2000 sobre Biossegurança (na Convenção da ONU sobre Diversidade Biológica). Em parte, isso se deu porque os EUA não fizeram parte do Protocolo.
Embora não examine especificamente a disputa comercial EUA-UE, o livro é inspirado pela persistente divisão transatlântica sobre os OGM e também na busca pelas razões para as divergências regionais entre a opinião pública no tocante às incertezas de segurança para consumir tais produtos modificados.
Seu objetivo é revisitar o “estoque existente” de explicações e aumentar a compreensão dessa divergência regulatória, desenvolvendo uma análise cultural e política distinta. Procura mostrar que os estudos devem ser complementados por uma apreciação de fatores estruturais evoluídos historicamente, como atitudes públicas divergentes e seus valores e as identidades culturais relevantes para os OGM. No cerne das disputas polarizadas sobre a opção do uso da biotecnologia de alimentos em escala devem ser considerados pressupostos culturais presentes nas perspectivas sociológicas da modernidade22 Giddens A. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Unesp; 1991.. No debate da modernidade, as contraposições da segurança versus perigo e da confiança versus risco é um fenômeno de dois gumes. A compreensão da modernidade deve contemplar seu extremo dinamismo, o caráter globalizante das instituições modernas e compreender as descontinuidades das culturas tradicionais. Ou seja, a tecnicidade do papel sociológico acaba por prescrever comportamentos que serão discutidos nos altos fóruns.
A contribuição da obra para a saúde coletiva está presente em vários aspectos: (1) procura estabelecer elementos sócio-culturais para a compreensão das narrativas e disputas de mercado que envolve produtos transgênicos ou geneticamente modificados; (2) enfatiza que há culturas hegemônicas diversas nos EUA e na Europa, que tendem a privilegiar, cada um ao seu modo, a regulação do uso da tecnologia de produção alimentos de escala com a visão do DNA recombinante e de ênfase genômica aplicada; (3) enfatiza os riscos ambientais derivados da prática como provocativos de agravos à saúde; (4) permite observar melhor as diferenças de mercado dos EUA e da EU, no tocante à normalização da vigilância sanitária, à segurança alimentar e à interpretação de políticas públicas de segurança de alimentos dos EUA e da EU para ativar marcos regulatórios e a aplicabilidade de políticas públicas brasileiras, especialmente no tocante às ressalvas de saúde coletiva e de saúde ambiental.
No capítulo 1, o autor examina os marcos regulatórios para as tendências agrobiotecnológicas e de opinião pública de ambos os lados do Atlântico e traça sua evolução nas últimas décadas.
A técnica do DNA recombinante hoje é considerada como ciência primordial, sendo permitido produzir, modificar produtos e processos ou criar serviços de alto impacto para diversos segmentos industriais33 Rocha DRD, Marin VA. Transgênicos - Plantas Produtoras de Fármacos (PPF). Cien Saúde Colet 2011; 16(7):3339-3347., sendo isso aceito culturalmente pelo governo brasileiro44 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União 1988; 5 out..
No capítulo 2, as perspectivas político-econômicas apresentadas tendem a oferecer explicações da dinâmica regulatória centradas no ator e na sociedade, dando a devida consideração a vários grupos de interesse e à opinião pública. Em conjunto, essas explicações são altamente causais e persuasivas da divergência regulatória transatlântica. A combinação de incerteza científica e cobertura regulamentar inadequada levou a pedidos cada vez mais altos de reforma regulatória. Brown afirmara, na época de seu estudo, que fazia já mais de uma década que uma nova lei de biotecnologia mais abrangente ficava “em silêncio na prateleira’’55 Brown WY. It’s Time for a New Biotechnology Law [Internet]. The Brookings Institution 2011 [acessado 2019 Out 09]. Disponível em: https://www.brookings.edu/opinions/its-time-for-a-new-biotechnology-law/
https://www.brookings.edu/opinions/its-t... .
O capítulo 3 explora os conceitos de cultura e civilização e sugere que a visão de cultura como contexto permite uma reconciliação parcial com o estudo da política.
No capítulo 4, examina-se com mais detalhes o desempenho dessa política cultural ou de culturalização em prol dos OGM dentro dos “muros” da UE. Embora a mobilização de ONGs na Europa tenha sido vital para aumentar a pressão popular por um rigor regulatório, o autor afirmaria que “o sucesso dessas campanhas está relacionado não apenas às estruturas que permitem as oportunidades políticas, mas também à capacidade dos discursos anti-OGM de ‘ativar’ ansiedades generalizadas e preexistentes, baseadas na cultura”. Comparando com o outro lado do Atlântico, as ONGs americanas tentaram replicar o sucesso europeu, mas os ativistas dos EUA enfrentaram estruturas políticas menos favoráveis e uma poderosa coalizão pró-biotecnologia.
O capítulo 5 baseia-se no trabalho de historiadores ambientais e culturais, resumindo o que seria o papel da “natureza” e do “não natural’ na América (desde os primeiros assentamentos ingleses) e na Europa (desde a Idade Média), buscando obter um padrão analítico. Afirma que, enquanto as relações europeias com o ambiente natural eram marcadas por interdependência material e de preceitos espirituais, os colonos americanos abandonaram suas atitudes herdadas com relativa rapidez e assumiram o desafio de dominar um continente “selvagem”. Essa dinâmica teria dado origem a “disposições civilizatórias” divergentes – a tendência de perceber as relações entre a humanidade e a natureza como “interativas” ou “bifurcadas”.
Nos EUA, segundo o autor, a natureza assumiu um significado de “grandeza magnífica e de pura verdade”, enquanto que o ideal pastoral da paisagem e da natureza, que inclui elementos socioeconômicos e estéticos, permaneceu forte na Europa. Ali, isso teria alimentado importantes movimentos de resistência contra as modernas mudanças industriais ou tecnológicas. Talvez, afirma o autor, “a chegada de novas tecnologias não seja um problema em si, mas depende muito dos significados culturais a eles associados”.
Com base na comparação histórica acima, o capítulo 6 desenvolve ainda mais o vínculo entre atitudes culturais e a resistência do público europeu à agrobiotecnologia. Por outro lado, a sociedade americana é retratada como um contexto cultural modernista no qual os valores de eficiência, simplicidade e abundância tendem a afastar preocupações neo-tradicionalistas sobre identidades culturais estáveis, a paisagem intermediária e a herança culinária.
O livro elabora a tese de que as sociedades americanas e européias historicamente se moveram ao longo de trajetórias culturais distintas e que isso exerce uma poderosa influência sobre a política de biotecnologia nos EUA e na UE, tornando-se, por este perfil, atraente aos sociólogos e politólogos afetos aos assuntos de agroecologia e de agrobiotecnologia, uma vez que podem contracenar no espetáculo do “DNA Recombinante” de forma destacada.
Referências
- 1Cheyne I. Life After the Biotech Products Dispute, Environmental Law Review 2008; 10(1):52-64.
- 2Giddens A. As conseqüências da modernidade São Paulo: Unesp; 1991.
- 3Rocha DRD, Marin VA. Transgênicos - Plantas Produtoras de Fármacos (PPF). Cien Saúde Colet 2011; 16(7):3339-3347.
- 4Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União 1988; 5 out.
- 5Brown WY. It’s Time for a New Biotechnology Law [Internet]. The Brookings Institution 2011 [acessado 2019 Out 09]. Disponível em: https://www.brookings.edu/opinions/its-time-for-a-new-biotechnology-law/
» https://www.brookings.edu/opinions/its-time-for-a-new-biotechnology-law/
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
28 Set 2020 - Data do Fascículo
Out 2020