O cuidado da pessoa idosa em dor no campo de práticas da Saúde Coletiva

Care of the elderly individual in pain in the field of Public Health practices

Wagner Jorge dos Santos Karla Cristina Giacomin Josélia Oliveira Araújo Firmo Sobre os autores

Resumo

A dor envolve dimensões socioculturais e psicossociais que influem na experiência e expressão do fenômeno doloroso, bem como nos recursos humanos e tecnológicos necessários para o seu cuidado. Este artigo busca compreender o significado atribuído por idosos ao cuidado da pessoa na velhice que vivencia processo álgico e discuti-lo a partir da abordagem conferida à dor nas práticas de saúde coletiva. A pesquisa foi desenvolvida na abordagem qualitativa de cunho antropológico e fundamentada no contato intersubjetivo entre pesquisador/sujeitos pesquisados. Foram realizadas entrevistas individuais semiestruturadas com 57 idosos. A metodologia de Signos, Significados e Ações orientou a coleta e análise dos dados possibilitando a investigação das representações e comportamentos concretos associados à experiência da dor. Observou-se o sentido do cuidado da dor nas práticas da saúde coletiva em três categorias analíticas: a dor no contexto de vida, a linguagem no cuidado da pessoa em dor, e a dor infligida nas práticas de cuidado. O cuidado da dor na atenção à saúde não se prende ao orgânico, mas mobiliza toda a existência da pessoa idosa, interfere no processo comunicativo e produz sofrimento. O cuidado à dor precisa incluir o usuário no processo terapêutico e mobilizá-lo para assumir de volta sua vida.

Palavras-chave
Dor; Assistência Integral à Saúde; Idoso; Saúde Pública

Abstract

Pain involves sociocultural and psychosocial dimensions that influence the experience and expression of the pain phenomenon, as well as the human and technological resources required for its care. This article seeks to understand the meaning attributed by elderly people to care of the person in old age who experiences pain and discuss it from the approach to pain in public health practices. The research was developed using a qualitative anthropological approach and based on the intersubjective contact between the researcher and the individuals researched. Individual semi-structured interviews were conducted with 57 elderly people. The methodology of Signs, Meanings and Actions governed the collection and analysis of the data to investigate behavior associated with pain. The meaning of care of pain in public health practices was observed in three analytical categories, namely pain in the context of life, language in the care of the person in pain, and the pain inflicted in care practices. The care of pain in health care is not limited to the organic aspect, but it mobilizes the whole existence of the elderly person, interferes in the communicative process and causes suffering. Care of pain must include the users in the therapeutic process and mobilize them to regain control over their lives.

Key words
Pain; Comprehensive Health Care; Elderly; Public Health

Introdução

A dor, importante questão nas práticas de saúde coletiva, envolve dimensões biológicas, socioculturais e psicossociais que influem na experiência e na expressão do fenômeno doloroso, além de mobilizar uma multiplicidade de recursos humanos e tecnológicos para o cuidado da sua cronicidade11 Lima MAG, Trad LAB. A dor crônica sob o olhar médico: modelo biomédico e prática clínica. Cad. Saúde Pública 2007; 23(11):2672-2680.. A melhora dos resultados do processo intencionado de cuidados a uma pessoa idosa em dor exige planejamento do tratamento, fundamentado na compreensão dos recursos cognitivos, funcionais e sociais da pessoa, levando-se em conta o apoio familiar disponível, bem como fortalecendo aspectos do relacionamento paciente-médico22 Makris UE, Abrams RC, Gurland B, Carrington Reid M. Management of persistent pain in the older patient: a clinical review. JAMA 2014; 312(8):825-836..

O cenário do envelhecimento populacional fez aumentar a incidência e a prevalência de certas síndromes dolorosas. Ainda assim essa condição é subestimada por pessoas e profissionais que acreditam equivocadamente que a dor seria um processo normal no contexto de vida na velhice33 Kaye AD, Baluch A, Scott JT. Pain management in the elderly population: a review. Ochsner J 2010; 10(3):179-187.. Essa crença reforça a visão da dor como parte inevitável do envelhecimento, naturaliza a experiência álgica como algo a ser suportado e se constitui como uma das muitas barreiras para o gerenciamento efetivo da dor em pessoas idosas44 Catananti C, Gambassi G. Pain assessment in the elderly. Surg Oncol 2010; 19(3):140-148.. Consequentemente, as pessoas idosas nem sempre têm acesso a cuidados adequados à dor55 Muntinga ME, Jansen APD, Schellevis FG, Nijpels G. Expanding access to pain care for frail, older people in primary care: a cross-sectional study. BMC Nurs 2016; 15:26..

No cotidiano da prática clínica, o conceito biomédico da dor define-a como um sinal de alerta de lesão ou dano tecidual real. Contudo, a dor relatada por adultos mais velhos usualmente apresenta uma correlação muito fraca com a evidência de patologia tecidual66 Keefe FJ, Porter L, Somers T, Shelby R, Wren AV. Psychosocial interventions for managing pain in older adults: outcomes and clinical implications. Br J Anaesth 2013; 111(1):89-94.. Nesse sentido, não obstante o vasto arsenal teórico-prático do saber biomédico, segundo Conrad e Barker77 Conrad P, Barker KK. The social construction of illness, key insights and policy implications. J Health Soc Behav 2010; 51(Supl. 1):S67-S79., a medicina simplesmente é incapaz de ver ou medir a dor77 Conrad P, Barker KK. The social construction of illness, key insights and policy implications. J Health Soc Behav 2010; 51(Supl. 1):S67-S79., a qual se configura como o sintoma mais subjetivo e cuja visibilidade e mensuração dependem do relato do paciente, não havendo exames de imagem ou de laboratório que possam constatá-la88 Minatti SP. O psicanalista no tratamento da dor. Rev Latinoam Psicopat Fund 2012; 15(4):825-837..

As sensações corporais que as pessoas experimentam e as respectivas interpretações médicas dos profissionais que atendem a essas demandas são definidas de acordo com códigos específicos desses dois grupos, validados pela representação de corpo e de doença que está em vigor99 Ferreira J. O Corpo Sígnico. In: Alves PC, Minayo MCS. Saúde e doença: um olhar antropológico. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1994. p. 101-112. num dado momento histórico da cultura local. Cassell e Skopek1010 Cassell EJ, Skopek L. Language as a tool in medicine: methodology and theoretical framework. J Med Educ 1977; 52(3):197-203. compreendem a linguagem como o principal meio de acesso e instrumento predominante pelo qual a informação sobre o processo saúde/doença é transmitida entre o médico e seu paciente, razão pela qual o entendimento dos usos e funções da linguagem no campo de práticas da saúde é crucial para a assistência eficaz.

Assim, no encontro médico-usuário, na medida em que a dor é inerentemente subjetiva, o auto relato da pessoa idosa deve ser reconhecido como padrão-ouro para sua avaliação1111 Portenoy RK, Lesage P. Management of cancer pain. Lancet 1999; 353(9165):1695-1700., devendo os médicos assumirem um papel mais ativo no processo de reconhecimento, avaliação e controle da dor experimentada por pessoas idosas1212 Karttunen NM, Turunen J, Ahonen R. Hartikainen S. More attention to pain management in community-dwelling older persons with chronic musculoskeletal pain. Age Ageing 2014; 43(6):845-850. Dessa convergência, entende-se o cuidado na dimensão dialógica do encontro, isto é, na abertura a um autêntico interesse em ouvir o outro1313 Ayres JRCM. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saúde Soc 2004; 13(3):16-29..

Nesse sentido, a vivência álgica desafia os serviços públicos de saúde, particularmente em relação às tecnologias das relações de cuidado1414 Santos WJ, Giacomin KC, Firmo JOA. Avaliação da tecnologia das relações de cuidado nos serviços em saúde: percepção dos idosos inseridos na estratégia saúde da família em Bambuí, Brasil. Cien Saude Colet 2014; 19(8):3441-3450., pois precisa encontrar na relação com a alteridade o acolhimento necessário de sua expressão – condição basilar no campo da saúde. O objetivo desse artigo é compreender o significado atribuído pelos idosos da comunidade ao cuidado da pessoa na velhice que vivencia processo álgico e discuti-lo a partir da abordagem conferida à dor nas práticas de saúde coletiva.

Percurso Metodológico

A presente pesquisa foi desenvolvida na perspectiva da abordagem qualitativa, constituindo-se em um estudo de cunho antropológico. O método de investigação utilizado foi baseado no contato direto intersubjetivo entre o pesquisador e o sujeito pesquisado em seu setting das vivências diárias, o qual, segundo Turato1515 Turato ER. Métodos qualitativos e quantitativos na área da saúde: definições, diferenças e seus objetos de pesquisa. Rev Saúde Pública 2005; 39(3):507-514., oportuniza a construção das significações dos fenômenos do processo saúde-doença para a vida das pessoas na comunidade. Na perspectiva de que o tecido social se organiza de maneira simbólica e pragmática a partir dos significados partilhados culturalmente, o interesse do presente estudo volta-se para a busca do significado das coisas como elemento estruturante e organizador do pensar e agir das pessoas no cotidiano da vida local1515 Turato ER. Métodos qualitativos e quantitativos na área da saúde: definições, diferenças e seus objetos de pesquisa. Rev Saúde Pública 2005; 39(3):507-514..

Uma das grandes contribuições da antropologia para saúde foi a construção de um quadro conceitual e metodológico inovador que investiga o envelhecimento a partir da perspectiva êmica1616 Uchôa E. Contribuições da antropologia para uma abordagem das questões relativas à saúde do idoso. Cad Saúde Pública 2003; 19(3):849-853.. Nela, a interpretação do pesquisador é construída na concepção dos entrevistados e não como uma discussão pautada apenas na visão do pesquisador ou da literatura1515 Turato ER. Métodos qualitativos e quantitativos na área da saúde: definições, diferenças e seus objetos de pesquisa. Rev Saúde Pública 2005; 39(3):507-514.. Dessa maneira, os participantes foram convocados a falar sobre a vida e sobre si, mais especificamente sobre suas condições de saúde e experiência funcional e social no cotidiano da vida diária. Isso possibilitou ao pesquisador o mergulho no ambiente local e cultural desses idosos, lugar onde eles se organizam e que lhes confere significados particulares às experiências.

O modelo de Signos, Significados e Ações, desenvolvido por Corin et al. 1717 Corin E, Uchôa E, Bibeau G, Kouma-Re B. Articulation et variations des systèmes de signes, de sens et d'actions. Psychopathol Afr 1992; 24:183-204., utilizado na coleta e análise das informações do universo pesquisado, origina-se na corrente interpretativa da antropologia, na qual emerge uma nova concepção da relação entre indivíduos e cultura1818 Uchôa E, Vidal JM. Antropologia médica: elementos conceituais e metodológicos para uma abordagem da saúde e da doença. Cad Saúde Pública 1994; 10(4):497-504.. De acordo com Geertz1919 Geertz C. The interpretation of cultures. New York: Basic Books Inc. Publishers; 1973. – que se situa na origem dessa corrente –, a cultura constitui um universo de símbolos e significados que permite os sujeitos de um grupo interpretar suas experiências e guiar suas ações. A cultura é entendida como o contexto que confere inteligibilidade as situações e acontecimentos da vida, estruturando o campo social em um tecido semântico. A cultura é, portanto, um texto interpretável.

Esse modelo permite o acesso às lógicas dos conceitos que a população de uma comunidade local privilegia e utiliza como signos para compreender e explicar uma determinada condição, assim como identificar os diferentes significados de um contexto particular que intervêm na construção de comportamentos concretamente adotados em ações por esta população frente ao problema1818 Uchôa E, Vidal JM. Antropologia médica: elementos conceituais e metodológicos para uma abordagem da saúde e da doença. Cad Saúde Pública 1994; 10(4):497-504.,2020 Corin E, Bibeau G, Uchôa E. Eléments d'une semiologie anthropologique des troubles psychiques chez les Bambara, Bwa et Soninké du Mali. Anthropol Soc 1993; 17:125-156.. Corin et al. 1717 Corin E, Uchôa E, Bibeau G, Kouma-Re B. Articulation et variations des systèmes de signes, de sens et d'actions. Psychopathol Afr 1992; 24:183-204. parte do comportamento concreto dos indivíduos para reconstruir as lógicas conceituais subjacentes a esses comportamentos1616 Uchôa E. Contribuições da antropologia para uma abordagem das questões relativas à saúde do idoso. Cad Saúde Pública 2003; 19(3):849-853., sistematizando e correlacionando a construção de maneiras típicas de pensar e agir dos sujeitos pesquisados. Assim, o trabalho desse modelo vai proceder a pesquisa a partir do pragmático para reconstruir o semântico da temática pesquisada, compreendendo o processo saúde-doença como uma construção cultural que se expressa concretamente em maneiras específicas de pensar e agir, possibilitando aos idosos a construção da sua experiência do processo de adoecer, entremeada a uma elaboração cultural de formas singulares percebidas de envelhecer.

Para reconstruir o universo de representações (maneiras de pensar) e comportamentos (maneiras de agir) associados à vivência da dor foram entrevistados idosos residentes em Bambuí, Minas Gerais. O município tem uma cobertura da Estratégia Saúde da Família (ESF) estimada em 95%2121 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB/DataSUS) - Cadernos de Informações de Saúde Minas Gerais [Internet]. 2010 [acessado 2018 Fev 07]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/tabdata/cadernos/mg.htm
http://tabnet.datasus.gov.br/tabdata/cad...
para uma população de cerca de 23.000 habitantes, 16,08% dos quais idosos2222 Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Cidades, Minas Gerais, Bambuí: síntese das informações [Internet]. 2010 [acessado 2018 Fev 07]. Disponível em: http://cod.ibge.gov.br/2VW8Z
http://cod.ibge.gov.br/2VW8Z...
. Os idosos foram selecionados a partir do cadastro da ESF, sendo escolhidos levando em consideração os critérios estabelecidos para garantir a heterogeneidade dos participantes segundo: o território das equipes da ESF de 6 Unidades Básicas de Saúde no município, o sexo, a idade e a condição funcional. Somente foram entrevistados idosos reconhecidos pelo entrevistador sem alterações cognitivas que impedissem a compreensão das perguntas das entrevistas. O critério de saturação teórica foi utilizado para regular o tamanho do universo de pesquisa2323 Fontanella BJB, Ricas J, Turato ER. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Cad Saúde Pública 2008; 24(1):17-27..

A técnica de pesquisa utilizada na coleta das informações foi a entrevista individual com roteiro semiestruturado realizada pela equipe de pesquisa, permitindo a ampliação do campo de fala dos idosos, sendo que as entrevistas foram realizadas em seus domicílios. As entrevistas tiveram inicialmente as seguintes perguntas geradoras: “Como você acha que está sua saúde?”, “Para você, o que é uma saúde boa?”, “E saúde ruim?”, “Como é o seu dia a dia, sua rotina?”, “Como é um dia em sua vida?”. A partir das respostas obtidas, outras perguntas foram feitas de maneira aberta abordando o contexto biopsicossocial, os recursos, o impacto e o significado do processo saúde-doença e a experiência da dor. Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas, permitindo na leitura atenta da análise textual a identificação das categorias analíticas, fundamentando a análise dos dados na interação entre as diferentes categorias e sua articulação com o contexto sociocultural vigente2424 Giacomin KC, Uchoa E, Lima-Costa MFF. Projeto Bambuí: a experiência do cuidado domiciliário por esposas de idosos dependentes. Cad Saúde Pública 2005; 21(5):1509-1518..

Aspectos Éticos

Esta pesquisa é parte do projeto intitulado Abordagem Antropológica da Dinâmica da Funcionalidade em Idosos que foi aprovado pelo Comitê de Ética em pesquisa com seres humanos do Instituto René Rachou/Fiocruz. Todos os participantes assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido, em acordo com a Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012 do Conselho Nacional de Saúde.

Resultados e discussão

Todos os 57 idosos (27 homens e 30 mulheres) com idades variando entre 61 e 96 anos que compõem o universo pesquisado estavam sendo assistidos pela ESF. No grupo, prevalecem baixa escolaridade, forte predomínio da religião católica e origem rural, sendo as principais razões de mudança da área rural para a cidade a maior proximidade com o serviço de saúde e/ou com a escola dos filhos. Quanto ao estado civil, 24 eram casados, 07 solteiros, 25 viúvos e 01 vivia em união estável; a maioria com filhos.

Após várias leituras sob um olhar cuidadoso e específico acerca do cuidado da pessoa em dor nas práticas da saúde coletiva emergiram da análise três categorias analíticas: A dor no contexto de vida, A linguagem no cuidado da pessoa em dor, e A dor infligida nas práticas de cuidado.

A dor no contexto de vida

Esta categoria apresenta a dor como “coisa de velho”, sendo a sua vivência compreendida como algo pertinente e naturalizado para esse momento da vida.

Duas senhoras, indagadas sobre suas condições de saúde, relatam:

A gente tem é as coisas assim de velho que é uma dor aqui, fica sentada, uma dor assim ... (M33, 74 anos, viúva).

O reumatismo tá acabando comigo! Mas eu sinto assim muita canseira! O reumatismo nos ossos dói demais! (M8, 83 anos, viúva).

No campo de fala do universo de pesquisa, essa percepção corrobora um dos mitos mais populares na sociedade ocidental, segundo o qual, no pensamento de Minayo2525 Minayo MCS. Envelhecimento demográfico e lugar do idoso no ciclo da vida brasileira. In: Trench B. Rosa TEC, organizadores. Nós e o outro: envelhecimento, reflexões, práticas e pesquisa. São Paulo: Instituto de Saúde; 2011. p. 7-15., compreende o envelhecimento como se fosse uma doença. A mesma perspectiva consagra uma visão essencialista da dimensão biológica e impõe a medicalização da velhice. Neste contexto cultural e existencial, a dor é a expressão reveladora de que, nos atravessamentos do corpo, a vida pode entrar em colapso, destruindo a unidade de si mesmo e acabando com a força vital do ser. Para Morris2626 Morris DB. The culture of pain. Berkeley: University of California Press; 1991. as pessoas experimentam a dor conforme e integralmente à maneira que elas interpretam, configurando a partir de sua vivência álgica o seu modo de pensar e se organizar como ser no mundo.

Uma senhora idosa quando perguntada se fica mais deitada, responde:

Deitada e solitária. Tem vez que eu não guento deitar. Eu sinto muita dor (M28, 76 anos, viúva).

Outro idoso, ao responder sobre suas atividades da vida diária relata:

Não faço nada. Aqui minha vida aqui é à toa. [...] A minha saúde não tá boa não. [...] Eu sinto é uma dor nas pernas que nossa senhora (H23, 82 anos, casado).

Os signos que sustentam as razões da vivência da dor do idoso desvelam a realidade de um corpo que está sem atividade, abandonado a um estado reduzido de movimentos e uma vida solitária marcada pela falta da companhia do outro. No contexto cultural local, a dor dos idosos encontra-se em total articulação dialética com a inatividade, o abandono e a solidão como lugar privilegiado de produção da vida e significação da existência. O significado presente nas narrativas sobre a vivência da dor expressa a perspectiva de que a vida não está boa ou que o cotidiano está permeado de algo desagradável. Le Breton2727 Le Breton D. Antropologia da dor. São Paulo: Editora Fap-Unifesp; 2013. compreende que toda dor envolve uma dimensão moral na medida em que, a partir de sua experiência acumulada, a vivência álgica leva o sujeito ao questionamento da sua relação com o mundo.

Ao ser indagada sobre a experiência da dor, uma idosa relata:

Eu fiquei ruim. Essa noite eu não dormi. Dor no corpo, dor. Os ossos, então fica doendo demais, isso tudo dói. Ferroa tudo assim! Às vezes eu tô assim sentada dá aquelas agulhadas no meu corpo. Aí eu fico quieta (M8, 83 anos, viúva).

A vivência da dor interfere no cotidiano da vida transformando o viver em desprazer e para ser suportável, a relação entre a dor e a diminuição dos movimentos ou até mesmo a completa quietude, compromete a qualidade de vida no sentido negativo. Na cultura local, a presença da dor configura-se no esvaziamento do repertório de vida e no empobrecimento das fontes de satisfação. Para Lima e Trad11 Lima MAG, Trad LAB. A dor crônica sob o olhar médico: modelo biomédico e prática clínica. Cad. Saúde Pública 2007; 23(11):2672-2680. o sentido “doloroso” da vivência álgica passa ocupar espaço relevante no cotidiano da vida na medida em que confronta a pessoa com “o quanto o incapacita ou passa a ser o foco principal sobre o qual tudo gira”11 Lima MAG, Trad LAB. A dor crônica sob o olhar médico: modelo biomédico e prática clínica. Cad. Saúde Pública 2007; 23(11):2672-2680.(p.2675).

Cinco idosas e um idoso comentam a maneira pela qual essa experiência repercute na vida de cada um deles:

Não dou conta de tanta dor nas cadeiras assim. Não tô dando conta de fazer nada (M2, 63 anos, casada).

A gente fica doente, a gente dá trabalho demais! Parece que eu perdi a coragem! (M27, 80 anos, solteira).

A perrengada pegou eu. Eu não dou conta de mexer com nada. Às vezes eu vou lá pego um cavalo dou uma volta lá no pasto, mas dá uma canseira (H23, 83 anos, casado).

A gente quando não dá conta de andar mais, as pernas da gente bambeia (M4, 81 anos, viúva).

A gente tem dificuldade, assim, que agora a gente não tem aquela disposição de nova mais (M5, 77 anos, viúva).

Eu não faço nada com a mão. Eu pego as coisas com esse dedo, agora o dedo não tá dando, não tem força mais. Tudo bobo a minha mão (M8, 83 anos, viúva).

Corroborando Ferreira99 Ferreira J. O Corpo Sígnico. In: Alves PC, Minayo MCS. Saúde e doença: um olhar antropológico. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1994. p. 101-112. os relatos dos idosos confirmam a noção de que qualquer prejuízo às atividades normais da vida diária configura um estado vivencial doentio percebido como sintoma e mediado por sensações desagradáveis de dor, mal-estar, cansaço e fraqueza. Essa realidade de envelhecer com incapacidade e com dor se apresenta cotidianamente como demanda na atenção primária. Para os idosos assistidos a dor não tratada tem um impacto negativo na qualidade de vida e na saúde dessas pessoas55 Muntinga ME, Jansen APD, Schellevis FG, Nijpels G. Expanding access to pain care for frail, older people in primary care: a cross-sectional study. BMC Nurs 2016; 15:26..

Indagada se a dor na perna atrapalha, esta idosa responde:

Foi uma dor aqui nessa perna que não descobre o que é. Aí embaraça a gente um pouco. Já fiz muitos exames, já fiz três raio x, não acusa nada e nem vai acusar que isso é velhice. Não é? Velhice, como diz o outro: gente, as mulher tão ficando tudo velha! “Tô com isso, tô com aquilo”. Gente, isso é velhice! Que doença que é a da sua mãe? É velhice! (M19, 83 anos, viúva).

No campo de fala da idosa a dor não se reduz ao corpo, a dor é a velhice, pois a velhice é doença. Essa velhice que marca o corpo, mas não vai ser vista naquilo que o saber e a tecnologia biomédica querem ver. A dor é assim a metáfora denunciadora para além do fato, onde o que é doente não se prende ao orgânico, mas espalha o sentido do lugar que o idoso ocupa na existência.

Um idoso perguntado se tem medo que piore alguma coisa ou que volte a fase de dor, responde:

Eu sinto muita dor na coluna cervical. A única parte minha que eu não sinto dor ainda é nas mãos. Nos ombros, perna, lombo, eu não dou conta nem de levar a mão na cabeça. Aí eu vou suportando, aí vou levando uma vida razoável. Nunca entrei em depressão, com essas doenças toda, mesmo pelo tempo de cama que eu fiquei, sempre tomo um antidepressivo (H43, 62 anos, união estável).

A existência humana é corporal2828 Le Breton D. A sociologia do corpo. 2ª ed. Petrópolis: Vozes; 2007., o que confere ao processo álgico o sentido de que a dor está na vida. Nessa condição existencial a vida se torna razoável, o que não deixa alternativa à pessoa idosa em dor, a não ser ir levando e suportando todas as repercussões que a vivência da dor confere ao seu percurso na vida.

A dor não é somente sensação, mas igualmente emoção, sentido e percepção que lança o sujeito a ter que se confrontar com o seu inteiro, com toda a espessura de sua história pessoal e com as contingências presente na materialidade da vida. Para Le Breton2828 Le Breton D. A sociologia do corpo. 2ª ed. Petrópolis: Vozes; 2007. o corpo é portador e condutor semântico da relação da pessoa com o mundo, evidenciando o desenho do contexto social e cultural em que se insere na forma de construção de sua conexão com a dor e o sofrimento. Nesse sentido, e corroborando o pensamento de Lima e Trad11 Lima MAG, Trad LAB. A dor crônica sob o olhar médico: modelo biomédico e prática clínica. Cad. Saúde Pública 2007; 23(11):2672-2680., o cuidado da pessoa em dor nas práticas de saúde coletiva precisa saber incluir o usuário e reconhecê-lo na sua integralidade, contemplando no seu projeto terapêutico todas as complexas dimensões de uma existência corporal em um trabalho construído pela aproximação e respeito à singularidade do usuário e à sua dor.

A linguagem no cuidado da pessoa em dor

Esta categoria expõe a linguagem como ferramenta que viabiliza ou não o acesso e o cuidado da pessoa em dor.

Um idoso responde a indagação de como as Unidades Básicas de Saúde [por eles denominados “postinhos”] tem funcionado:

Porque aqui nosso é só agente de saúde que fala assim: teve diarreia? Não. Fecha o caderno e vai embora. Não quer saber de mais nada. Só isso (M17, 61 anos, casada).

No campo de fala dos idosos se evidencia a percepção de que os profissionais de saúde muito pouco ou nada querem conversar. Para a agente comunitária a diarreia fica maior que o sujeito, que por sua vez fica eclipsado pelo desejo do profissional de querer saber somente da doença e não do doente. Essa assistência empobrecida de palavra não se vincula com a materialidade da vida do usuário e não consegue fazer ponte com a noção de saúde que pudesse enxergar a pessoa na sua historicidade e integralidade.

Dessa forma, o desejado encontro pelo diálogo não se estabelece, muito menos se tem abertura para querer saber da vida e dos sentidos da existência que produzem o processo saúde/doença. Ora, o significado desse processo é uma construção social, segundo os critérios e modalidades que a sociedade fixa e que confere ao sujeito o sentido do que é ser doente99 Ferreira J. O Corpo Sígnico. In: Alves PC, Minayo MCS. Saúde e doença: um olhar antropológico. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1994. p. 101-112.. Da mesma maneira, na perspectiva do campo social, os significados do corpo e da dor na velhice não se configura naquilo que são, mas no que representam2929 Blessmann EJ. Corporeidade e envelhecimento, o significado do corpo na velhice. Estud Interdiscip Envelhec 2004; 6:21-39..

McCaffery3030 McCaffery M. Nursing theories related to cognition, bodily pain, and man-environment interactions. Los Angeles: University of California Los Angeles Students' Store; 1968. define a dor como experiência subjetiva ao afirmar que o conhecimento e avaliação da dor só se dará a partir do auto relato da pessoa sob sua própria dor, pois a dor é tudo o que a pessoa que experimenta diz que é e da maneira como se configura para ela. A dor, portanto, nunca aparecerá se não for dita e a efetividade do seu cuidado muito menos se realizará sem a escuta e a aproximação sem pressa mediada pelo campo das palavras.

Uma idosa responde se no “postinho” da comunidade tem médico:

Aí, médico de postinho, ele: “ah tá bão demais, você tá ótima e tudo!”. Não, aqui não tem médico não (M32, 73 anos, casada).

Na percepção da usuária idosa fica evidente a dificuldade do profissional em identificar as demandas reais que ela traz e em construir uma escuta que se efetive como prática de cuidado exitosa. O cuidado da pessoa em dor deve tomar como ponto de partida a fala do usuário, estabelecendo para o campo de práticas o princípio fundamental do projeto terapêutico de se acreditar no dizer da dor de quem a experimenta e dirige sua demanda ao profissional da saúde11 Lima MAG, Trad LAB. A dor crônica sob o olhar médico: modelo biomédico e prática clínica. Cad. Saúde Pública 2007; 23(11):2672-2680.. O mais importante elemento na identificação bem-sucedida da causa de dor em adultos mais velhos deriva, de forma determinante, da comunicação com o idoso3131 Dentino A, Medina R, Steinberg E. Pain in the elderly. Identification, evaluation, and management of older adults with pain complaints and pain-related symptoms. Prim Care 2017; 44(3):519-528..

Dois idosos abordam os sentidos do campo da linguagem presente na relação com os profissionais de saúde:

Que o SUS a gente vai lá, eles dão um remedinho, a gente não precisa falar muita coisa que eles já tão dando receita. Então eu pago (M55, 86 anos, casada).

Antigamente, senhora precisava de um médico, médico ia na porta da senhora e conversava. Hoje em dia não (H9, 74 anos, casada).

Os signos “não falar” e “conversava” denota no campo de práticas um tecnicismo que silencia a palavra, caracterizando intervenções que se distanciam da experiência do usuário. Para Ayres3232 Ayres JRCM. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde. Cien Saúde Colet 2001; 6(1):63-72. a linguagem é a experiência que nos coloca em presença do outro, configurando nesse contato intersubjetivo o sentido de nos levar reconhecer a si mesmo, cada um por sua vez em espaços de troca construídos de fala e escuta. Nesse encontro dialógico a linguagem só existe como em ato criador de sujeitos e seus mundos, onde o médico encontra seu paciente e este, o seu médico.

Uma idosa responde ao questionamento de como está a saúde:

A minha saúde eu nem sei te contar, porque toda hora eu tô sentindo uma coisa, eu já tô de muita idade, acho que tudo ajuda. [Mas a saúde está boa, mais ou menos ou ruim?] Eu mesma não tô me entendendo. Uma hora eu animada, outra hora eu tô desanimada, assim, e eu até alimento bem, durmo bem... (M16, 96 anos, viúva).

No processo comunicativo e de interação usuário-profissional, essa falta ou empobrecimento de repertório simbólico por parte da usuária para contar o que se vivencia, dificulta a aproximação e a construção do projeto terapêutico. Sensações que não encontram palavras para expressá-las provocam angústia, como se a pessoa não pudesse acessá-las. Quando idosos têm dificuldades em transitar pelo campo da linguagem, isso pode ser um impeditivo para que o cuidado se efetive e a gestão dos cuidados tende a ser consequentemente inadequada3333 Gregory J. How can we assess pain in people who have difficulty communicating? A practice development project identifying a pain assessment tool for acute care. Int Practice Dev J 2012; 2(2):1-22..

No caso específico da vivência álgica, não saber contar a dor faz com que ela fique maior, na medida em que maior será o desemparo, e maior a necessidade de restituição alteritária. Sentir é algo que busca palavra, que reclama o contorno necessário e suficiente para dar sentido àquilo que se vive. E o sentido pode ser tanto aquilo que significa, mas igualmente aquilo que se sente e pulsa na alma. Para Hanna Arendt3434 Arendt H. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras; 1987. os atos de cuidado transformam a dor crônica em uma experiência intersubjetiva na medida em que “toda dor é suportável, desde que possamos construir uma história sobre ela”3434 Arendt H. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras; 1987.(p.95). Nesse sentido, os acontecimentos vividos na existência humana só ganham importância e significado quando adquirem possibilidade de serem nomeados, postos em linguagem, embora também seja possível sofrer do que não podemos dizer3535 Borges SMN. Propostas para uma relação: profissionais de saúde e mulheres. Cad Saúde Pública 1991; 7(2):284-289..

Outra idosa ao ser indagada se faz fisioterapia, responde:

Eu vou lá no centro, mas depois eu não dou conta de voltar de dor nos joelhos. [...] Os médicos mandam eu caminhar, outros falam que eu não posso caminhar porque o meu joelho tá desgastando. Aí eu não sei se eu posso caminhar ou não (M32, 73 anos, casada).

O projeto terapêutico da dor na atenção primária, fundamentada na abordagem multiprofissional, às vezes expõe as divergências entre as várias crenças “científicas” e existenciais entre os profissionais da assistência. A compreensão do processo de envelhecimento, da velhice e especificamente da dor, configura um complexo e multifacetado rol de possibilidades teóricas e práticas que influenciam tanto o diagnóstico quando a direção do tratamento. Nesse embate multiprofissional sobre qual a opinião profissional deve prevalecer, muitas vezes se esquecem de incluir o doente no processo terapêutico11 Lima MAG, Trad LAB. A dor crônica sob o olhar médico: modelo biomédico e prática clínica. Cad. Saúde Pública 2007; 23(11):2672-2680., seu desejo e a singularidade de sua dor. Para Markides3636 Markides M. The importance of good communication between patient and health professionals. J Pediatr Hematol Oncol 2011; 33(Supl. 2):S123-S125. o pensar e agir do saber biomédico que compreende o tratamento só por ele mesmo sem sequer pedir a opinião do paciente é baseado na perspectiva de que a opinião do médico é aquela que “sabe melhor” e por ser “especialista” tem a única e última palavra. Perguntar a opinião da idosa sobre os limites e possibilidades de seu corpo, das formas e intensidades do caminhar, é parte do processo de cuidar de quem sente a dor (e não da dor).

Dois idosos abordam a interação usuário-profissional:

Tem um médico que eu tenho aquela confiança de conversar com ele. Que nem eu falei pra ele – ‘Eu quero consultar com o senhor – eu quero que o senhor achar, me esclarecer (H7, 84 anos, casado).

Eu acho ele (o médico) ótimo. Conversa comigo, conta caso da vida dele (M14, 88 anos, viúva).

O signo conversar marca o sentido de superação da impessoalidade implícito à prática médica1414 Santos WJ, Giacomin KC, Firmo JOA. Avaliação da tecnologia das relações de cuidado nos serviços em saúde: percepção dos idosos inseridos na estratégia saúde da família em Bambuí, Brasil. Cien Saude Colet 2014; 19(8):3441-3450., configurando na cultura local a perspectiva de efetividade dos atos de cuidado. Nesse sentido, o processo comunicacional é um desafio na humanização em saúde3737 Deslandes SF, Mitre RMA. Processo comunicativo e humanização em saúde. Interface (Botucatu) 2009; 13(Supl.1):641-649..

Compreender a produção de fala na abordagem da vivência álgica e seu alcance no universo da cultura local dos idosos é fundamental para o cuidado do sujeito em dor, podendo inclusive ser parte do acolhimento e alívio mediado por uma postura antálgica na produção de cuidados. Igualmente, no cuidado da vivência da dor é importante entender o limite da linguagem humana que deixa um “resto” que não se apreende na abordagem verbal, ficando passível de manejo somente pela linguagem não verbal do toque, do olhar e da presença incentivadora e suportiva de quem produz cuidados.

A dor infligida nas práticas de cuidado

Esta categoria apresenta a dor infligida pela abordagem inadequada dos profissionais nas práticas de cuidado da saúde no sistema público.

Uma idosa ao dizer sobre a qualidade do “postinho”, centro de saúde nos bairros, avalia:

Francamente, nós nunca teve um médico bão no postinho. Nunca teve. Eu fui, eu tive o quê? Fiz uma cirurgia rápida aí, eu fui no médico lá, o médico falou assim, aqui no postinho ele falou assim: “não, isso é coisa à toa, isso é problema de vista. Toma bastante água!”. Tá, eu vim embora pra casa tomar água, né? Acabou que eu tive que fazer até uma cirurgia urgente, de uma hora pra outra. Eu tomando água... (M17, 61 anos, casada).

O sentido evidenciado na narrativa da idosa sugere que a presença (ou não) do médico no “postinho” não é uma questão meramente física, mas converge para uma significação dirigida aos efeitos das ações práticas na gestão do cuidado. A inadequação dos atos do profissional médico se torna ainda mais evidente na medida em que a usuária foi exposta ao risco de agravamento de sua condição de saúde em relação à sua demanda inicial. Ainda mais grave é a dificuldade de estabelecimento do diagnóstico inicial capaz de direcionar de maneira efetiva a assistência. Nessa perspectiva, a dor já não é mais aquilo que a pessoa traz para assistência, mas o efeito da assistência sobre a pessoa que demanda.

Neste sentido, precisamente a abordagem da dor no campo da saúde continua sendo realizada de forma inadequada, mesmo quando a equipe médica reconhece que os pacientes sofrem3838 Landi F, Onder G, Cesari M, Gambassi G, Steel K, Russo A, Lattanzio F, Bernabei R. Pain management in frail, community-living elderly patients. Arch Intern Med 2001; 161(22):2721-2724.. Diversas pesquisas têm mostrado que o manejo inadequado da dor pelo campo da saúde pode ser o resultado de duas questões fundamentais: o conhecimento insuficiente de avaliação e terapia da dor que gera tratamento insuficiente por clínicos1111 Portenoy RK, Lesage P. Management of cancer pain. Lancet 1999; 353(9165):1695-1700.; a prescrição inadequada ou ausente de medicamentos analgésicos3939 Auret K, Schug AS. Underutilisation of opioids in elderly patients with chronic pain: approaches to correcting the problem. Drugs Aging 2005; 22(8):641-654.. Contudo, outros estudos4040 Weissman DE, Gordon D, Bidar-Sielaff S. Cultural aspects of pain management. J Palliat Med 2004; 7(5):715-717. têm demonstrado que os pacientes pertencentes a culturas diferentes dos profissionais de saúde que tratam deles, recebem manejo inadequado da dor. Dessa forma, o cuidado da dor no campo da saúde pode infligir dor nas pessoas assistidas e produzir vulnerabilidades, apesar da intencionalidade de querer cuidar.

Um idoso ao refletir sobre sua relação com o campo da saúde, narra:

E os médico, inclusive esta minha filha, falando de saúde, eu me queixo da sequela, dá aquela vontade de melhorar, melhorar a qualidade de vida, eles usam uma palavra que me machuca (H49, 77 anos, casado).

Outro idoso diz que alguém da comunidade “reclama que ele (o médico) é bruto” (M14, 88 anos, viúva). O campo das práticas de cuidado também inflige dor nos usuários que demandam alívio, principalmente se o diagnóstico médico (e da família) sobre a vivência da dor incorre em alguma forma de julgamento do usuário ou se a imposição de tratamento desqualifica a relação com o doente como parte importante no processo de comunicar a dor4141 van Hooft S. Pain and communication. Med Healthcare Fhil 2003; 6:255-262..

A abordagem clínica da dor no campo de práticas da saúde coletiva precisa preservar uma comunicação ética que respeite o usuário, sua singularidade, em confiança mútua e sem se basear em aspectos morais do comportamento do usuário alvo da assistência. A prática clínica necessita estabelecer o diálogo entre os sentidos técnicos e objetivos do saber biomédico com o conhecimento subjetivo do usuário sobre a sua história e vivências, seus efeitos sobre a doença em um corpo vivido no mundo4242 Giordano J, Abramson K, Boswell MV. Pain assessment: subjectivity, objectivity, and the use of neurotechnology. Part one: Practical and ethical issues. Pain Physician 2010; 13(4):305-315..

Uma idosa ao avaliar a qualidade dos serviços públicos de saúde, diz:

É sempre assim, sempre uma pessoa reclama uma coisa, sempre uma pessoa reclama outra, negócio de médico, negócio de atendimento. Não sei se eu tô com depressão, mas tem hora que dá uma choradeira. Ah, todo mundo aqui, muita gente mesmo reclama aqui negócio de saúde. Tem coisa aqui que se não correr pra fora, morre (M17, 61 anos, casada).

Na narrativa da idosa a dor da vida se mistura com a dor da desassistência (e vice-versa), onde o que se reclama é a própria falência da vida na metáfora da ausência do Estado que, por desamparar, pode até matar quem não correr para fora. O choro e a depressão passam ser a senha de que o idoso não consegue amparo e acolhimento na vida nem na assistência, que mistura e integra à sua dor sentidos de abandono. Assim, quando da dor na pessoa não se cuida, não é do corpo que não se cuida, mas do todo da vida.

A dor é um mistério para quem observa de fora4141 van Hooft S. Pain and communication. Med Healthcare Fhil 2003; 6:255-262., para quem não se aproxima, para quem não se aventura no campo da palavra e muito menos para quem não sabe escutar. Cuidar da pessoa em dor é essencialmente resolver o mistério, dando voz e ouvido para quem sofre. No campo da saúde coletiva as intervenções de cuidado da pessoa em dor precisam ir além da perspectiva cirúrgica ou farmacológica, mas fundamentalmente saber mobilizar os recursos pessoais da pessoa idosa. Lima e Trad11 Lima MAG, Trad LAB. A dor crônica sob o olhar médico: modelo biomédico e prática clínica. Cad. Saúde Pública 2007; 23(11):2672-2680. compreendem que os fundamentos para o projeto terapêutico da dor crônica devem ser construídos na direção do investimento no alívio e na reorganização do universo vivencial, não se comprometendo com a eliminação da dor. É preciso, portanto, recuperar a vida e as atividades de ser e se organizar no mundo, mesmo com a permanência da dor.

Considerações finais

Ao dar voz aos idosos, a pesquisa conseguiu construir uma descrição densa sobre a vida e as condições de saúde da pessoa idosa, reconfigurando nas ações relacionadas à sua experiência álgica, os significados locais das relações de cuidado. A dor do velho da comunidade está na concretude da vida, nas relações entre atores sociais que comunicam o cuidado, e na prática em saúde que se confronta com o saber a dor de quem é outro.

O cuidado da dor é fundamentalmente o cuidado do usuário que vivencia a dor. Para isso, é preciso garantir ao sujeito assistido o respeito à sua singularidade histórica e corporal, e o seu direito de poder dizer da sua dor e de obter escuta humanizada para o seu sofrimento.

O principal objetivo do cuidado da dor na atenção primária é devolver ao sujeito a sua vida, ajudando-o a se ocupar de si, voltar a se organizar preservando qualidade na vida, com, e apesar da dor. Porém, incluir o usuário no seu processo terapêutico revela-se o maior desafio da equipe, principalmente na mobilização do sujeito para deslocar a dor do lugar de centralidade na vida.

O campo de práticas em saúde coletiva precisa saber tensionar as ambiguidades da dor e direcioná-las para um lugar que humanize as relações na assistência. Se a dor pode desvelar a nossa fragilidade e finitude, é preciso compreender a dor como substrato que nos deixa saber que ainda estamos vivos e em nós pulsa sentidos da vida.

Incluir as dimensões éticas do respeito e do direito à vida na pauta do cuidado da pessoa idosa em dor são aspectos altamente significativos e necessários no encontro entre alteridades, pois o cuidar é sempre uma tarefa construída na assistência do (e com o) outro.

  • Financiamento
    Fundação de Amparo à Pesquisa do estado de Minas Gerais (FAPEMIG), bolsa de produtividade pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e bolsa de doutorado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    Nov 2020

Histórico

  • Recebido
    26 Abr 2018
  • Aceito
    10 Fev 2019
  • Publicado
    12 Fev 2019
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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