Resumo
O termo “atenção básica” tem seu uso restrito a poucos países como o Brasil. No mundo, desde a Conferência de Alma-Ata de 1978, o termo “atenção primária à saúde” (APS) é utilizado para designar o cuidado no primeiro nível de atenção. O artigo sintetiza as experiências de avaliação em atenção primária à saúde, a partir da revisão do conjunto de manuscritos publicados pela Revista Ciência & Saúde Coletiva. Fez-se busca bibliográfica na base de dados SciELO desse periódico, no período 1996-2020. Selecionaram-se diversos descritores no espectro da avaliação e atenção básica/atenção primária. Os estudos revisados sugerem a existência de dois períodos analíticos ao longo dos 25 anos da Revista. O primeiro, caracterizado pelos estudos de 1996-2010, teve como teoria predominante, os estudos de avaliação de estrutura/processo e resultados a partir de Donabedian. O segundo, de 2011-2020, as teorias de Billings sobre condições sensíveis à APS e de atributos da APS de Starfield. As principais dimensões apresentadas nos estudos referem-se a avaliações com abordagem quantitativa e induzidas pelas políticas e consultas públicas do Ministério da Saúde, além de instrumentos referendados por esse.
Palavras-chave:
Avaliação em saúde; Atenção Primária à Saúde; Brasil
Introdução
O termo “atenção básica” ou “atenção básica à saúde” tem seu uso a poucos países como o Brasil. No mundo, desde a Conferência de Alma-Ata de 1978, no Cazaquistão, o termo “atenção primária à saúde” (“cuidados primários de saúde”, em Portugal; “atención primária de salud” em espanhol, e “primary health care” em inglês) é utilizado para designar o cuidado no primeiro nível de atenção, que pode ser definido tal como Starfield11 Starfield B. Primary Care: Concept, Evaluation, and Policy. New York: Oxford University Press; 1992. como aquele que se caracteriza por quatro atributos essenciais: acesso de primeiro contato, longitudinalidade, coordenação do cuidado e integralidade. Diferencia-se ainda quando além desses, estão presentes também outros três atributos, denominados, atributos derivados: orientação familiar, comunitária e competência cultural.
No Brasil, a então chamada “atenção básica em saúde” contemplou ao longo das décadas qualquer serviço ambulatorial prestado em postos e centros de saúde. Por exemplo, historicamente, o IBGE desde a década de 1970 foi o primeiro órgão a sistematizar nacionalmente uma análise dos estabelecimentos de saúde sem internação (denominação dada por este órgão aos postos e centros de saúde com cuidado ambulatorial) em seu inquérito administrativo intitulado “Pesquisa de Assistência Médico-Sanitária - AMS”22 Oliveira ES. Assistência médico-sanitária: notas para uma avaliação. Cad Saude Publica 1991; 7(3):370-395.. O Brasil se destaca no cenário mundial por oferecer um dos maiores sistemas públicos de cobertura universal do mundo, reconhecido por diversos autores33 Macinko J, Harris MJ. Brazil's Family Health Strategy - Delivering Community-Based Primary Care in a Universal Health System. N Engl J Med 2015; 372(23):2177-2181. e baseado na atenção primária à saúde. No país, a oferta de ações, serviços e procedimentos é desenvolvida por uma rede de unidades de atenção primária à saúde (postos e centros de saúde, unidades de saúde familiar) de responsabilidade majoritariamente municipal. Nessa modalidade de prestação de serviços existiam até abril/2020, 47 mil estabelecimentos de saúde em praticamente todos os 5.570 municípios e Distrito Federal44 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) [Internet]. Brasília: DATASUS/Secretaria Executiva; 2020 [acessado 2020 Jun 25]. Disponível em: http://cnes2.datasus.gov.br/Mod_Ind_Unidade.asp?VEstado=00. A relevância e capilaridade dessa rede de APS demonstrou sua importância ao acolher no 1º semestre de 2020 as pessoas com sintomas leves de síndrome gripal, no contexto da pandemia do novo coronavírus COVID-1955 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria GM/MS n°188, de 3 de fevereiro de 2020. Declara Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus (2019-nCoV). Diário Oficial da União 2020; 4 fev.. Segundo o IBGE66 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) COVID-19. Microdados. Coordenação de Rendimentos (COREN), Diretoria de Pesquisas. Rio de Janeiro: IBGE; 2020. em sua PNAD COVID-19, dos 24 milhões de brasileiros com sintomas de síndrome gripal em maio/2020, 84,3% não buscaram unidade de saúde. Dentre esses que não procuraram unidade de saúde e ficaram em casa, mais de 500 mil receberam visita de algum profissional de equipe de saúde da família ou agente comunitário de saúde. Portanto, a APS ampliou em parte o acesso da população ao cuidado, apoiando a operacionalização das ações de vigilância em saúde dos casos leves e seus contatos, minimizando o afluxo de pacientes aos serviços de urgência e emergência, contribuindo para minimizar o colapso do SUS durante a pandemia.
Na Revista Ciência & Saúde Coletiva, em 1998, Hartz e Pouvourville77 Hartz ZMA, Pouvourville G. Avaliação dos Programas de Saúde: a eficiência em questão. Cien Saude Colet 1998; 3(1):68-82., depois Hartz88 Hartz ZMA. Avaliação dos programas de saúde: perspectivas teórico-metodológicas e políticas institucionais. Cien Saude Colet 1999; 4(2):341-354., em 1999, em 2002, Bodstein99 Bodstein R. Atenção básica na agenda da saúde. Cien Saude Colet 2002; 7(3):401-412. e também Costa e Pinto1010 Costa NR, Pinto LF. Avaliação de programa de atenção à saúde: incentivo à oferta de atenção ambulatorial e a experiência da descentralização no Brasil. Cien Saude Colet 2002; 7(4):907-923. foram os primeiros autores a abordar, debater e investigar a questão das experiências de avaliação em saúde (inicialmente como avaliação de programas) e da projeção da atenção básica na agenda da saúde pública brasileira, respectivamente em 1999 e 2002. Posteriormente, dezenas de estudos foram publicados pela Revista descrevendo, analisando e avaliando experiências locais, regionais e internacionais na área da atenção primária à saúde. A proposta desse texto é refletir, através de uma revisão da literatura as contribuições desses autores e as temáticas predominantes abordadas pelos mesmos na contribuição para a Saúde Coletiva brasileira, sem pretender esgotar o debate.
Metodologia
Buscamos responder às seguintes perguntas: (i) como os autores da Revista Ciência & Saúde Coletiva abordaram a temática da avaliação em saúde desde 1996, partindo do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), do Programa de Saúde da Família (PSF), para a atenção básica, para a Estratégia de Saúde da Família até chegar à atenção primária à saúde?, (ii) atenção básica e atenção primária à saúde foram analisadas como sinônimos, conceitos construídos ou em construção nos artigos sobre avaliação em saúde publicados pela Revista Ciência & Saúde Coletiva nos últimos 25 anos?, (iii) a criação da Secretaria Nacional de Atenção Primária à Saúde (SAPS) pelo Ministério da Saúde do Brasil em 2019, à luz das questões anteriores, definem uma mudança no paradigma para a avaliação em saúde nos últimos 25 anos ou trata-se apenas de mudança semântica na publicação dos artigos posteriores?
O conjunto de estudos analisados foi identificado através de pesquisa bibliográfica integrativa, de forma a sistematizar e seguir a mesma metodologia de Assis et al.1111 Assis M, Hartz ZMA, Valla VV. Programas de promoção da saúde do idoso: uma revisão da literatura científica no período de 1990 a 2002. Cien Saude Colet 2004; 9(3):557-581..
Critérios de busca
Utilizamos como única fonte a base de dados da Revista Ciência & Saúde Coletiva no SciELO, para o período completo de suas edições até seus 25 anos, ou seja, o período de setembro/1996 até abril/2020, considerando quaisquer dos índices indexados nos idiomas português ou inglês, com as chaves de busca “E” ou “AND” e as seguintes combinações de palavras-chave: “avaliação e atenção primária”, “Atenção Primária à Saúde e avaliação de serviços de saúde”, “Atenção Primária à Saúde e qualidade da assistência à saúde”, “avaliação da atenção básica”, “serviços básicos de saúde”, “avaliação e cuidados de saúde primários”, “avaliação em Saúde e Saúde da Família”, “Avaliação e Saúde da Família”, “Avaliação e agentes comunitários de saúde”, “Avaliação e Programa de Saúde da Família”.
Embora o termo “avaliação” não estivesse associado aos termos “serviços básicos de saúde”, “atenção primária à saúde e pagamento por desempenho”, “atenção primária à saúde e pesquisa em serviços de saúde”, “atenção primária à saúde e internações por condições sensíveis à atenção básica/primária”, “Programa de Saúde da Família”, “Agente comunitário de saúde”, “agentes comunitários”, optamos por incluí-lo na busca inicial para uma leitura abrangente e captura de todos os resumos, tendo em vista, que a área da avaliação de programas, com o então PACS e PSF, terem sido no final das décadas de 1990/2000, analisadas sob a perspectiva descritiva e epidemiológica.
Elaboramos no Excel, um extenso banco de dados contendo variáveis descritoras de cada um dos artigos levantados para a realização da pesquisa bibliográfica, realizada e aqui analisada em duas etapas e em parte dos resultados, estratificamos a análise em dois grupos, artigos publicados até 2010 x artigos publicados depois de 2010. Isso porque depois de 2010, a revista passou a ter periodicidade mensal e gostaríamos de medir o efeito dessa mudança na publicação dos artigos.
Na 1ª etapa, encontramos relacionados na base, um total 201 artigos, para os quais foram lidos os resumos e pré-selecionamos 181, após a extração de textos duplicados e de acordo com os critérios de inclusão e exclusão. No primeiro caso, incluímos os textos: (i) com foco na avaliação em saúde simultaneamente à abordagem na atenção ambulatorial/básica/atenção primária, (ii) com abordagem de programas de Saúde, atenção básica, cuidados básicos de saúde, atenção primária associados à avaliação de programas, políticas ou serviços de saúde. Já entre os critérios de exclusão, consideramos: (i) estudos de revisão de literatura, (ii) avaliações em saúde, sem foco na atenção básica/atenção primária, (iii) artigos duplicados, (iv) foco específico em análises descritivas sem associação com avaliação, (v) idiomas não acessíveis (outros além do português, inglês, espanhol e francês).
Na 2ª etapa, após analisar os resumos, eliminaram-se 115 artigos, especialmente aqueles cujas palavras-chave iniciais não estavam relacionadas simultaneamente e direta ou indiretamente ao objeto da revisão sistemática (avaliação em saúde e atenção básica/atenção primária). Portanto, a amostra final da 2ª etapa para a qual foi realizada a leitura completa dos textos foi composta por 65 artigos (Tabela 1).
Resultados da 1ª etapa: perfil do universo de artigos selecionados para a revisão bibliográfica (N = 181)
Uma questão importante a ser destacada é que a Revista Ciência & Saúde Coletiva desde sua primeira edição em setembro de 1996 teve um enorme crescimento na submissão de artigos, e com isso, ao longo do tempo, sua periodicidade foi mudando. Passou de dois números anuais entre 1996 e 2001, para três edições anuais entre 2002 e 2006, seguindo-se para duas edições entre 2007 e 2010, até finalmente tornar-se uma revista mensal. Isso ajuda a explicar o porquê observou-se na busca realizada para esse estudo, um maior número de artigos no período pós-2010. Mesmo assim, como veremos adiante, proporcionalmente ao número total de textos publicados, destacam-se os anos de 2006 (edição 11.3) e 2020 (edição 25.4) (Gráfico 1); o ano de 2020 foi considerado de forma parcial, isto é, até o mês de abril. Uma explicação que vemos é que esses dois anos, refletem, respectivamente os anos em que foram instituídas a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB, 1ª edição) e 2020. Esse último ano configura-se o ano seguinte à criação em 2019, de uma Secretaria Nacional de Atenção Primária à Saúde (SAPS) no âmbito do Ministério da Saúde e do novo modelo federal de financiamento das Equipes de Saúde da Família. Por outro lado, outros números especiais da Revista tiveram uma concentração de artigos publicados na temática da avaliação e atenção primária à saúde, com ênfase nos números 16.11 (2011) e 22.3 (2017).
Distribuição dos artigos pré-selecionados e proporção de artigos em relação ao total publicado. Revista Ciência & Saúde Coletiva, 1996-2020 (n = 181).
Buscamos também alguns termos pré-definidos em cada um dos artigos completos (N = 181), para traçar uma análise ao longo dos 25 anos da presença ou não de cada termo e com isso podermos inferir uma aproximação objetiva para a história da publicação dos artigos na Revista no contexto de mudanças que a atenção primária à saúde vem passando no Brasil, desde a criação do então PACS e PSF na década de 1990, o papel da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a transformação do PSF em “Estratégia de Saúde da Família”, a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB, 1ª edição em 2006). Por isso, escolhemos os termos “ABRASCO”, “PSF”, “atenção básica”, “ESF (Equipe de Saúde da Família)”, “ESF (Estratégia de Saúde da Família)”, “PNAB”, “APS” para uma busca específica no corpo de cada texto publicado. Curiosamente os artigos publicados no período em questão utilizaram a mesma abreviatura “ESF” ou “eSF” tanto para designar “Equipe de Saúde da Família” (forma de organizar um grupo de profissionais em unidades de saúde, como postos de saúde, centros de saúde ou unidades de saúde familiar) como “Estratégia de Saúde da Família” (enquanto modelo estruturante de atenção à saúde). A análise traz a evolução da presença de cada um dos termos pré-selecionados, com participação incipiente de artigos que mencionam a “ABRASCO” como uma das referências nos temas de “avaliação” e “atenção básica/atenção primária”. Já os termos “PSF” e “ESF (Estratégia de Saúde da Família) são aqueles que ao longo do tempo obtiveram um maior número de citações com valor máximo no período 2010-2014, quando então decrescem e são ultrapassados pelo termo “APS” entre 2019-2020. Com a criação da SAPS/MS em maio/20191212 Reis JG, Harzheim E, Nachif MCA, Freitas JC, D'Ávila O, Hauser L, Martins C, Pedebos LA, Pinto LF. Criação da Secretaria de Atenção Primária à Saúde e suas implicações para o SUS. Cien Saude Colet 2019; 24(9):3457-3462. e com o novo modelo de financiamento federal para a atenção primária à Saúde - o “Previne Brasil”1313 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria GM/MS nº 3.222, de 10 de dezembro de 2019. Dispõe sobre os indicadores do pagamento por desempenho, no âmbito do Programa Previne Brasil. Brasília: Ministério da Saúde, 2019b. Diário Oficial da União 2019; 11 dez. -, espera-se que esse o uso do termo “atenção primária”, “atenção primária à saúde”, passe a se consolidar e venha a obter um maior número de citações a partir de 2020 (Gráfico 2). Destacamos que em 2020, o Gráfico 2 registra no período “2019-2020” apenas os artigos publicados até o mês de abril/2020 (ou seja, 16 meses), um período bem inferior aos demais utilizados para sua elaboração (48 meses).
Distribuição dos artigos pesquisados sem duplicados segundo palavras-chave específicas selecionadas. Revista Ciência & Saúde Coletiva, 1996-2020 (n = 181).
Resultados da 2ª etapa: o perfil da amostra de artigos selecionados para leitura na íntegra (N = 65)
Um subconjunto de 65 artigos foi lido na íntegra e classificado na base de dados criada segundo as variáveis: filiação institucional do 1º autor do artigo, classificação temática predominante, local do estudo, objeto/unidade de análise, tipo de amostra/censo, período de coleta de dados e fonte/material utilizado (Quadro 1).
Do total de artigo selecionados, 87,9% são artigos cujos primeiros autores possuem filiações institucionais brasileiras. Destacam-se os estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, que juntos possuem 53,0% do total dos textos levantados. Observamos ainda que todas as regiões estão representadas, ainda que a Região Norte, registre timidamente apenas 3,0% de autores nos estados do Amazonas e Tocantins. Entre os países estrangeiros, Portugal destaca-se com 9,1% de autores, sendo este valor superior a 11 estados brasileiros individualmente (Pernambuco, Rio Grande do Norte, Bahia, Maranhão, Paraná, Distrito Federal, Santa Catarina, Ceará, Paraíba, Tocantins e Amazonas). Percebe-se, com isso, o grande potencial que a Revista consolidou em Portugal na área de avaliação e cuidados de saúde primários.
Classificação temática predominante
A leitura na íntegra dos 65 artigos selecionados na amostra bibliográfica, permitiu-nos aproximar os temas principais, classificando os textos pela sua abordagem predominante na área de avaliação (Tabela 2). Do total de artigos, ao se estratificar em dois grupos, chama-nos a atenção as diferenças registradas ao longo dos últimos 25 anos na Revista Ciência & Saúde Coletiva.
No 1º grupo de artigos, publicados até 2010, destacam as “pesquisas avaliativas com comparação de modelos de atenção (ESF x modelo tradicional; saúde bucal)” e “avaliação da implantação do PAB, das equipes de Saúde da Família, Saúde Bucal (inclusive avaliação econômica/financeira)” que juntos respondem por cerca de 50% do total de textos selecionados para análise nesse período. No 2º grupo, para os manuscritos publicados entre 2011 e 2020, as áreas “estudos epidemiológicos (com indicadores clínicos e de gestão, podendo incluir as ICSAP)”, e “pesquisas avaliativas com usuários/ profissionais de saúde/gestores (muitas, utilizando o instrumento Primary Care Assessment Tool - PCAT)”, somaram juntas 60,4% do total de artigos publicados sobre avaliação em saúde e atenção básica/atenção primária, na última década (Tabela 3).
De forma semelhante, quando comparamos os dois grupos (artigos publicados até 2010 x artigos publicados entre 2011 e 2020), encontramos diferenças marcantes e, nesse caso, uma diversidade, que demonstra a riqueza conceitual e teórica pelas quais a Revista Ciência & Saúde Coletiva contemplou seus leitores ao longo dos últimos 25 anos.
No 1º grupo, artigos publicados até 2010, a “teoria donabediana de avaliação de estrutura/processo/resultado1414 Donabedian A. The seven pillars of quality. Arch Pathol Lab Med 1990; 114(11):1115-1118.”, com 29,4% dos manuscritos representou a categoria com maior destaque. Já no grupo de textos publicados entre 2011-2020, a teoria de Billings1515 Billings J, Teicholz N. Uninsured patients in District of Columbia hospitals. Health Affairs 1990; 9(4):158-165., sobre Ambulatory Care Sensitive Conditions (ACSC) e a teoria dos atributos da APS de Starfield1616 Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: Unesco, MS; 2002. representaram cada uma, 18,5% do total de artigos, seguidos também empatados com 15,4% por “avaliações normativas” e “teoria de avaliação de estrutura/processo/resultados” (Tabela 3).
Do ponto de vista metodológico, a maior parte dos estudos considerou abordagem predominantemente quantitativa. Dois eixos distinguiram-se entre os períodos analisados (antes e depois de 2010), isto é, a grande pulverização de tipologias de avaliação esteve mais presente nos primeiros anos de publicação da revista.
Já o período posterior teve elevada concentração de artigos que, por um lado enfatizaram o uso de indicadores de atenção primária relacionados às internações por condições sensíveis à atenção primária (ICSAP). Devemos lembrar que o Ministério da Saúde lançou uma consulta pública que posteriormente se tornou uma Portaria1717 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria MS/GM nº 221, de 17 de abril de 2008. Publica, na forma do anexo desta portaria, a lista brasileira de internações por condições sensíveis à atenção primária. Diário Oficial da União 2008; 18 abr. com a lista brasileira de condições sensíveis de atenção básica1818 Alfradique ME, Bonolo PF, Dourado I, Lima-Costa MF, Macinko J, Mendonça CS, Oliveira VB, Sampaio LFR, De Simoni C, Turci MA. Internações por condições sensíveis à atenção primária: a construção da lista brasileira como ferramenta para medir o desempenho do sistema de saúde (Projeto ICSAP - Brasil). Cad Saúde Pública 2009; 25(6):1337-1349.. Seu uso e disseminação no Brasil é facilitado pelas décadas de existência do Sistema Informações Hospitalares (SIH-SUS) que agrega mensalmente as internações ocorridas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e as disponibiliza sob a forma de microdados não identificados nominalmente no site do Departamento de Informática do SUS (DATASUS).
Por outro lado, também contribuiu para a publicação dos artigos na Revista Ciência & Saúde Coletiva o uso do instrumento de avaliação dos atributos da APS proposto originalmente por Shi e Starfield1919 Shi L, Starfield B, Xu J. Validating the adult primary care assessment tool. J Fam Pract 2001; 50(2):161-164. e validado estatisticamente no Brasil pela própria Starfield (que esteve em 2002 na ENSP/Fiocruz para lançamento de seu livro seminal) e um grupo de pesquisadores da UFRGS2020 Harzheim E, Starfield B, Rajmil L, Álvarez-Dardet C, Stein AT. Consistência interna e confiabilidade da versão em português do Instrumento de Avaliação da Atenção Primária (PCATool-Brasil) para serviços de saúde infantil. Cad Saude Publica 2006; 22(8):1649-1659.. Esse instrumento, inclusive foi referendado pelo Ministério da Saúde do Brasil que publicou em 2010 o Manual do chamado conjunto de instrumentos “PCATool-Brasil”2121 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Manual do instrumento de avaliação da atenção primária à saúde: Primary Care Assessment Tool - PCATool-Brasil. Brasília: MS; 2010.. Esse Manual pode ser considerado como um divisor de águas para a Avaliação em Saúde e Atenção Primária, na medida em que possibilitou a capilarização nacional de uma metodologia de pesquisa avaliativa, considerando a experiência de usuários, gerentes e profissionais dos serviços de saúde. Podemos destacar inclusive uma versão brasileira desse instrumento validada para Saúde Bucal, tanto para usuários como para cirurgiões-dentista2222 Fontanive LT. Adaptação do instrumento Primary Care Assessment Tool - Brasil versão usuários dirigido à Saúde Bucal [dissertação]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2011.,2323 D'Avila OP. Avaliação de Serviços de Saúde Bucal na Atenção Primária a Saúde: análise conceitual, psicométrica e exploratória [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2016..
Nos estudos internacionais publicados pela Revista estão mais presentes a avaliação de indicadores de desempenho clínico-epidemiológicos, assim como as avaliações normativas, em particular, no caso de Portugal, com todo o arcabouço legal de seu Sistema Nacional de Saúde (SNS).
Tempo de submissão, aprovação e publicação dos artigos
Um dos indicadores utilizados para medir a qualidade de uma revista científica na base da Web of Science (WoS) é o tempo de publicação dos artigos submetidos. Para responder a essa questão, medimos o tempo (em meses), incluindo ainda, o período de aprovação do artigo. Isto é, construímos duas variáveis: tempo entre a submissão e publicação do artigo e, tempo entre a aprovação e publicação do mesmo.
Os dados evidenciam a grande queda de ambos os indicadores ao longo dos últimos 25 anos, em particular, a partir do ano de 2011, quando a Revista Ciência & Saúde Coletiva passou a ser editada mensalmente. Contudo, ainda encontramos alguns artigos que levaram mais de 12 meses entre o tempo de submissão e publicação e entre o tempo de aprovação e publicação (Gráfico 3).
Distribuição do tempo de submissão, aprovação e publicação dos artigos sobre avaliação e atenção primária à saúde. Revista Ciência & Saúde Coletiva, 1996-2020 (n = 65).
Considerações Finais
No período de 1996-2020, para os artigos publicados na Revista Ciência & Saúde Coletiva, a maior parte dos autores não distinguiu conceitualmente a “atenção básica” da “atenção primária à saúde”. Ou seja, retomando uma de nossas perguntas iniciais, a maioria dos autores considerou como sinônimos esses dois termos, pelo menos até 2015. Nesse artigo, contudo, definimos a atenção primária à saúde no Brasil como aquela que é prestada exclusivamente pelas Equipes de Saúde da Família (eSF), pois são esses os profissionais de saúde que tem por missão desenvolver os atributos de Starfield enunciados desde a primeira versão da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) ainda em 20063535 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria/MS nº 648, de 28 de março de 2006. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica para o Programa Saúde da Família (PSF) e o Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Diário Oficial da União 2006; 28 mar. e que foram radicalizados como o novo modelo de financiamento federal enunciado em 2019 que previu o monitoramento e a avaliação individual de cada eSF, considerando como unidade de análise, o indivíduo. Isto é, pela primeira vez na história da saúde pública do Brasil, os dados coletados de cada pessoa - clínicos e epidemiológicos -, passaram a ser registrados para gerar indicadores de base populacional e, o Ministério da Saúde começou transferir uma parte dos recursos financeiros fundo-a-fundo para os municípios com critérios por capitação3636 Harzheim E, D'Avila OP, Ribeiro DC, Ramos LG, Silva LE, Santos CMJ, Costa LGM, Cunha CRH, Pedebos LA. Novo financiamento para uma nova Atenção Primária à Saúde no Brasil. Cien Saude Colet 2020; 25(4):1361-1374..
Quanto à outra pergunta inicial que fizemos, a criação da Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS) - comandada inicialmente por um médico de família -, no âmbito do Ministério da Saúde em 2019, nosso estudo aponta que um maior número de autores da Revista começa a concentrar um maior uso do termo “atenção primária à saúde” em detrimento de “atenção básica à saúde”. O último número temático especial da Revista Ciência & Saúde Coletiva, de abril de 2020, já demonstra esse fato além da evolução do número de artigos publicados nessa direção nos últimos cinco anos.
Os limites das amostras constituem uma questão recorrente que influenciam nos resultados. Vários autores apontam possíveis vieses quanto ao fato de se ter amostra de voluntários ou de colaboradores que desejaram participar3737 Ruffing-Rahal MA. Evaluation of group health promotion with community-dwelling older women. Public Health Nursing 1994; 11(1):38-48. e não representam adequadamente a população de cada estudo. Sobre esses aspectos as pesquisas amostrais domiciliares ainda são muito tímidas no Brasil e especialmente desenvolvidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que desde a década de 1980 inclui ou em suplementos especiais, ou em inquéritos específicos, como as Pesquisa Nacionais de Saúde (PNS), módulos que permitem avaliar o desempenho dos serviços de saúde no Brasil. A inovação mais recente nesse sentido, foi a inclusão de um Módulo que permite avaliar a atenção primária à saúde no Brasil, regiões e unidades da federação, com amostra probabilística domiciliar. Estamos nos referindo à PNS-2019 com o conjunto de questões do PCATool - versão reduzida usuário adulto, que foi incluída no instrumento de coleta de dados3838 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional de Saúde (PNS). Coordenação de Rendimentos (COREN). Diretoria de Pesquisas. Rio de Janeiro: IBGE; 2020.. Nesse sentido, uma recomendação é fazer o que vários países do mundo já fazem como o Reino Unido e o Canadá que regularmente incluem em suas pesquisas domiciliares (respectivamente a Health and Lifestyle Survey e a Canadian Community Health Survey) um conjunto de questões que permitem a avaliação de seus serviços de saúde, inclusive no âmbito da atenção primária3939 Office for National Statistics. Health and Lifestyle Survey [Internet]. United Kingdom; 2020 [acessado 2020 Jun 25]. Disponível em: https://www.ons.gov.uk/surveys/informationforhouseholdsandindividuals/householdandindividualsurveys/healthandlifestylesurveyhls
https://www.ons.gov.uk/surveys/informati... ,4040 Statistics Canada. Canadian Community Health Survey (CCHS) [Internet]. Ottawa; 2020 [acessado 2020 Jun 25]. Disponível em: https://www23.statcan.gc.ca/imdb/p2SV.pl?Function=getSurvey&SDDS=3226
https://www23.statcan.gc.ca/imdb/p2SV.pl... .
No aniversário de 25 anos da Revista Ciência & Saúde Coletiva, fica evidenciado que o papel indutor do Ministério da Saúde na definição de políticas/consultas públicas e instrumentos de avaliação esteve fortemente associado à publicação dos artigos no período aqui estudado. Em 2020, a publicação do novo Manual do conjunto de instrumentos que compõem PCATool-Brasil pelo Ministério da Saúde4141 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Saúde da Família. Manual do Instrumento de Avaliação da Atenção Primária à Saúde: PCATool-Brasil - 2020. Brasília: MS; 2020. deverá induzir a uma nova onda de estudos e pesquisas com o uso desse instrumento, ampliando o escopo inicial de avaliação dos serviços de atenção primária à saúde para avaliações de base domiciliar populacional, inaugurada pelo IBGE em sua Pesquisa Nacional de Saúde (PNS-2019). Nessa direção, considerando uma abordagem estatístico-epidemiológica, o futuro da avaliação em APS poderá caminhar para indicadores de base populacional (via prontuário eletrônico) e monitoramento de cada uma das Equipes de Saúde da Família no país, com o uso de um número de identificação única (CPF) e gestão mensal inédita de “registros duplicados”, vinculados à parte das transferências federais da APS para os municípios, definidos pelo Ministério da Saúde em 2019. Caminhando nessa direção talvez o Brasil consiga calcular na APS, indicadores intermediários e finalísticos sob a perspectiva clínica e epidemiológica, tal como os cuidados primários em saúde de Portugal, Espanha e Reino Unido o fazem há mais de 10 anos.
Referências
- 1Starfield B. Primary Care: Concept, Evaluation, and Policy. New York: Oxford University Press; 1992.
- 2Oliveira ES. Assistência médico-sanitária: notas para uma avaliação. Cad Saude Publica 1991; 7(3):370-395.
- 3Macinko J, Harris MJ. Brazil's Family Health Strategy - Delivering Community-Based Primary Care in a Universal Health System. N Engl J Med 2015; 372(23):2177-2181.
- 4Brasil. Ministério da Saúde (MS). Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) [Internet]. Brasília: DATASUS/Secretaria Executiva; 2020 [acessado 2020 Jun 25]. Disponível em: http://cnes2.datasus.gov.br/Mod_Ind_Unidade.asp?VEstado=00
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
04 Dez 2020 - Data do Fascículo
Dez 2020
Histórico
- Recebido
10 Jul 2020 - Aceito
13 Jul 2020 - Publicado
15 Jul 2020