Resumo
O estudo teve por objetivo identificar fatores associados ao envolvimento em acidentes de trânsito (AT) entre condutores de veículos. Para isso, realizou-se inquérito domiciliar na cidade de Jequié, Bahia, em 2013, com 1.406 condutores. Elaborou-se um modelo conceitual hierarquizado composto por quatro blocos de fatores de exposição, considerando as relações proximais-distais entre estes e o desfecho. Foi empregado modelo de regressão logística multinível para as estimativas de Razão de Chances (RC) e Intervalos de Confiança a 95% (IC95%). Observou-se maior chance de AT entre condutores de 15 a 29 anos (RC=3,15; IC95% 1,24-8,02); de cor da pele preta ou parda (RC=1,56; IC95% 1,03-2,35); motociclistas (RC=1,73; IC95% 1,15-2,60); com antecedentes de multa no trânsito (RC=1,75; IC95% 1,04-2,94); que referiram beber e dirigir (RC=1,68; IC95% 1,12-2,53) e usar telefone celular durante a condução (RC=1,63; IC95% 1,09-2,43). Os fatores proximais modificaram as medidas de associação das exposições dos níveis superiores do modelo hierarquizado, principalmente da variável sexo. Os resultados enfatizam os fatores comportamentais e ratificam o potencial de prevenção dos AT, em virtude da ocorrência de condições evitáveis associadas ao desfecho.
Palavras-chave
Acidentes de Trânsito; Inquéritos epidemiológicos; Fatores epidemiológicos; Condução de veículo
Introdução
O sinal distintivo de que os acidentes de trânsito (AT) se estabeleceram como grave problema de saúde pública mundial é a sua crescente participação no conjunto de causas de morbimortalidade, ceifando a vida de mais de um milhão de pessoas e produzindo até 50 milhões de incapacitados no mundo a cada ano11 World Health Organization (WHO). Global status report on road safety: time for action. Genebra: WHO; 2009.. Além do desmedido custo humano, esses eventos também afetam negativamente o desenvolvimento de sociedades, por meio dos altos custos em saúde, em assistência previdenciária, danos materiais e perda produtiva22 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Agência Nacional de Transportes Públicos (ANTP). Impactos sociais e econômicos dos acidentes de trânsito nas aglomerações urbanas brasileiras: relatório executivo. Brasília: IPEA, ANTP; 2003.,33 Vasconcellos EA. Políticas de Transporte no Brasil: a construção da mobilidade excludente. Barueri: Manole; 2013..
Esse ônus social e econômico é pago, em grande parte, pelos países em desenvolvimento, que respondem por mais de 90,0% das fatalidades do trânsito11 World Health Organization (WHO). Global status report on road safety: time for action. Genebra: WHO; 2009.. Embora sejam eventos preveníveis, a tendência para a morbimortalidade relacionada ao tráfego viário nesses locais é de crescimento, o que pode colocar os AT como a quinta causa mais frequente de óbito até 2030 no mundo11 World Health Organization (WHO). Global status report on road safety: time for action. Genebra: WHO; 2009.
2 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Agência Nacional de Transportes Públicos (ANTP). Impactos sociais e econômicos dos acidentes de trânsito nas aglomerações urbanas brasileiras: relatório executivo. Brasília: IPEA, ANTP; 2003.
3 Vasconcellos EA. Políticas de Transporte no Brasil: a construção da mobilidade excludente. Barueri: Manole; 2013.-44 World Health Organization (WHO). Global status report on road safety 2013: supporting a decade of action. Genebra: WHO; 2013.. Tal panorama fez com que a segurança viária ganhasse espaço na pauta de Organismos Internacionais, principalmente no início do século vinte e um. Por isso, em 2010, as Nações Unidas anunciaram a Década de Ação para Segurança Viária (2011-2020) com o intuito de estabilizar e reduzir as mortes causadas pelo trânsito a partir de ações conduzidas em nível nacional, regional e global55 World Health Organization (WHO). Global plan for the Decade of Action for Road Safety 2011-2020 [página na Internet]. 2010 [acessado 2017 Jul 16]. Disponível em: http://www.who.int/roadsafety/decade_of_action/plan/en/
http://www.who.int/roadsafety/decade_of_... .
O Brasil participa dessa iniciativa internacional, denominada no país como Projeto Vida no Trânsito (PVT)66 Morais Neto OL, Silva MMA, Lima CM, Malta DC, Silva Júnior JB. Projeto Vida no Trânsito: avaliação das ações em cinco capitais brasileiras, 2011-2012. Epidemiol Serv Saude 2013; 22(3):373-382.. Mesmo tendo assumido o compromisso com a segurança viária, os AT ainda produzem vítimas fatais e não fatais em magnitude assustadora no país, colocando em dúvida a sua capacidade de alcançar as metas estabelecidas para enfrentar este problema77 Blumenberg C, Martins RC, Costa JC, Ricardo LIC. Is Brazil going to achieve the road traffic deaths target? An analysis about the sustainable development goals. Inj Prev 2018; 24(4):250-255.. Segundo o Ministério da Saúde, os acidentes de trânsito causaram a morte de 38.651 pessoas88 Brasil. Ministério da Saúde (MS). DATASUS/Sistema de Informações sobre Mortalidade [página na Internet]. 2017 [acessado 2017 Mar 3]. Disponível em: http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php?area=0205
http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index... em 2015 e geraram, aproximadamente, 158 mil internações em hospitais do Sistema Único de Saúde99 Brasil. Ministério da Saúde (MS). DATASUS/Sistema de Informação Hospitalar [página na Internet]. 2017 [acessado 2017 Mar 20]. Disponível em: http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php?area=0203
http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index... . Embora esses números já mostrem uma situação preocupante, sabe-se que parte da magnitude dos AT ainda permanece pouco conhecida. Entretanto, outras fontes de informação têm contribuído para o dimensionamento do problema dos acidentes, como o Projeto VIVA (Vigilância de Violências e Acidentes), que registra os atendimentos em serviços de urgência e emergência. Em todas essas fontes, observa-se crescimento do número de vítimas de acidentes entre ocupantes de veículos, sobretudo entre condutores de motocicletas1010 Bahia CA, Malta DC, Mascarenhas MDM, Montenegro MMS, Silva MMA, Monteiro RA. Acidentes de transporte terrestre no Brasil: mortalidade, internação hospitalar e fatores de risco no período 2002-2012. In: Brasil. Ministério da Saúde (MS). Departamento de Análise de Situação em Saúde. Saúde Brasil 2012: uma análise da situação de saúde e dos 40 anos do Programa Nacional de Imunizações. Brasília: MS; 2013. p. 299-326.,1111 Brasil. Ministério da Saúde (MS). DATASUS/Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes [página na Internet]. 2015 [acessado 2015 Set 25]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?viva/2011/viva11p.def
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftoht... .
Alguns inquéritos nacionais, conduzidos em 2008 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio - PNAD) e 2013 (Pesquisa Nacional de Saúde - PNS), abordaram o tema dos AT e estimaram proporções de envolvimento nesses eventos na ordem de 2,5%1212 Malta DC, Mascarenhas MDM, Bernal RTI, Silva MMA, Pereira CA, Minayo MCS, Morais Neto OL. Análise das ocorrências das lesões no trânsito e fatores relacionados segundo resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) - Brasil, 2008. Cien Saude Colet 2011; 16(9):3679-3687. e 3,1%1313 Malta DC, Andrade SSCA, Gomes N, Silva MMA, Morais Neto OL, Reis AAC, Nardi ACF. Lesões no trânsito e uso de equipamento de proteção na população brasileira, segundo estudo de base populacional. Cien Saude Colet 2016; 21(2):399-409., respectivamente, para a população brasileira. Entretanto, no intervalo temporal entre essas duas pesquisas, observou-se mudança do perfil dos acidentes quanto à categoria de vítima, com redução do percentual de ocupantes de carro e aumento para os motociclistas, grupo que representou mais que 60,0% de todos os que sofreram lesão por AT nas regiões Norte e Nordeste em 20131414 Morais Neto OL, Andrade AL, Guimarães RA, Mandacarú PMP, Tobias GC. Regional disparities in road traffic injuries and their determinants in Brazil, 2013. Int J Equity Health 2016; 15:142..
Ainda que o país apresente variadas fontes de informação, reconhece-se a escassez de dados sobre acidentes de trânsito a partir de fontes primárias, de base populacional, que possam identificar vítimas não captadas pelos sistemas de informação usuais, e referentes a municípios que não se constituem em grandes centros urbanos, onde se verifica progressiva ampliação da participação das causas externas na morbimortalidade local1515 Waiselfisz JJ. Mapa da violência dos municípios brasileiros. Brasília: RITLA/Instituto Sangari/MS/MJ; 2008.,1616 Morais Neto OL, Montenegro MMS, Monteiro RA, Siqueira Júnior JB, Silva MMA, Lima CM, Miranda LOM, Malta DC, Silva Júnior JB. Mortalidade por Acidentes de Transporte Terrestre no Brasil na última década: tendência e aglomerados de risco. Cien Saude Colet 2012; 17(9):2223-2236.. Nesse sentido, ganha relevância a realização de inquéritos populacionais com o intuito de contribuir para o conhecimento da extensão do problema dos AT e dos fatores determinantes.
A esse respeito, a literatura científica evidencia que os acidentes de trânsito apresentam determinação complexa e multifacetada. O referencial ecológico proposto por Haddon tem sido o mais utilizado nas pesquisas da área da saúde sobre o tema e estabelece causas relacionadas à pessoa, ao veículo e aos ambientes físico (viário) e sociocultural, que interagem para a ocorrência dos AT1717 Caiffa WT, Friche AAL. Urbanização, globalização e segurança viária: um diálogo possível em busca da equidade? Cien Saude Colet 2012; 17(9):2237-2245.. Dentre essas causas, o fator humano é considerado como elemento de maior participação na geração dos acidentes1818 Hoffmann MH. Comportamento do condutor e fenômenos psicológicos. Psicologia: Pesquisa Trânsito 2005; 1:17-24.. No entanto, convém explicitar que, embora tal fator constitua manifestação individual de condutas no trânsito, ele é determinado por uma rede complexa que inclui desde características psicológicas1818 Hoffmann MH. Comportamento do condutor e fenômenos psicológicos. Psicologia: Pesquisa Trânsito 2005; 1:17-24. e questões de gênero, a determinantes culturais e socioeconômicos1717 Caiffa WT, Friche AAL. Urbanização, globalização e segurança viária: um diálogo possível em busca da equidade? Cien Saude Colet 2012; 17(9):2237-2245.. Nesse sentido, o PVT elegeu dois fatores de risco, de ordem comportamental, como prioritários para intervenções no Brasil: o comportamento de beber e dirigir; e velocidade excessiva ou inadequada66 Morais Neto OL, Silva MMA, Lima CM, Malta DC, Silva Júnior JB. Projeto Vida no Trânsito: avaliação das ações em cinco capitais brasileiras, 2011-2012. Epidemiol Serv Saude 2013; 22(3):373-382..
Assim, considerando o problema dos acidentes de transporte terrestre no país e a importância de produzir informações sobre determinantes desses eventos a partir de pesquisas de base populacional, realizou-se este estudo com o objetivo de identificar fatores associados ao envolvimento em AT entre condutores de veículos no município de Jequié, Bahia.
Métodos
Estudo transversal, de base populacional, que constituiu a etapa de linha de base de uma pesquisa longitudinal sobre acidentes de trânsito, seus determinantes e repercussões na vida das pessoas envolvidas, realizada no município de Jequié, Bahia, entre 2013 e 2015. Os dados deste artigo referem-se ao ano 2013, quando a coorte foi constituída por meio de inquérito domiciliar.
O município de Jequié faz parte da região Sudoeste da Bahia e localiza-se a 365 km da capital do estado1919 Bahia. Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia. Regiões Econômicas do Estado da Bahia [mapa na Internet]. 2015 [acessado 2015 Nov 20]. Disponível em: http://www.sei.ba.gov.br/site/geoambientais/mapas/pdf/regioes_economicas_2015.pdf
http://www.sei.ba.gov.br/site/geoambient... , estando fora do eixo metropolitano. Em 2013, sua população foi estimada em 161.391 habitantes2020 Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estimativas populacionais [página na Internet]. 2013 [acessado 2014 Jul 29]. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/estimativa2013/estimativa_dou.shtm
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/... e apresentava 30,8 veículos para cada 100 residentes, com maior relação de motocicleta do que automóvel por habitante (15,5 motos e 10,4 carros por 100 habitantes, respectivamente)2020 Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estimativas populacionais [página na Internet]. 2013 [acessado 2014 Jul 29]. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/estimativa2013/estimativa_dou.shtm
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/... ,2121 Brasil. Departamento Nacional de Trânsito (Denatran). Frota de veículos [página na Internet]. 2013 [acessado 2014 Jun 1]. Disponível em: http://www.denatran.gov.br/frota.htm
http://www.denatran.gov.br/frota.htm... .
Os participantes do estudo foram condutores de veículos motorizados terrestres (automóveis, caminhonetes, motocicletas, motonetas, ciclomotores, van, ônibus e caminhões), que residiam em domicílio particular da zona urbana do município. O corte mínimo da idade para inclusão na pesquisa foi de 14 anos devido à possibilidade de encontrar adolescentes conduzindo veículos, em especial os ciclomotores. Foram excluídos os moradores de domicílios temporários, tendo em vista a necessidade da fase de acompanhamento da pesquisa longitudinal na qual este estudo está inserido.
A amostra foi calculada no programa EPI-Info (Versão 6.0), com base nos seguintes parâmetros: proporção de envolvimento em AT=9,0% (proporção determinada a partir dos achados de um Inquérito de Saúde e Nutrição, no qual 7,8% dos adultos referiram envolvimento em AT nos últimos 12 meses, como qualquer usuário da via pública2222 Magalhães AF, Lopes CM, Koifman RJ, Muniz PT. Caracterização dos acidentes de trânsito auto-referidos, em inquérito de base populacional, Rio Branco, Acre, 2008. In: Magalhães AF. Prevalência dos acidentes de trânsito auto-referidos em Rio Branco-Acre [dissertação]. Rio Branco: Universidade Federal do Acre; 2009. p. 54-79.. Como a presente pesquisa abordou a população de condutores de veículos, considerou-se pertinente a projeção da frequência para 9,0%); α=5,0%; precisão=2,0%; e efeito de desenho=2; o que resultou em um tamanho amostral de 1.572 condutores.
Para a seleção dos participantes foi utilizada amostragem por conglomerado em estágio único, com sorteio de 35 Setores Censitários (SC), dos 169 SC urbanos que o município apresentava2323 Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo 2010 [página na Internet]. 2010 [acessado 2013 Jan 9]. Disponível em: http://www.censo2010.ibge.gov.br/
http://www.censo2010.ibge.gov.br/... . Esse quantitativo foi estabelecido levando em conta alguns critérios atribuídos pelos pesquisadores - após realização de estudo piloto em um SC, verificou-se que a fração de acesso à população de pesquisa representou, aproximadamente, um terço de todos os domicílios do setor. Dessa maneira, considerando tal fração no número médio de domicílios por SC (241 domicílios/SC2323 Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo 2010 [página na Internet]. 2010 [acessado 2013 Jan 9]. Disponível em: http://www.censo2010.ibge.gov.br/
http://www.censo2010.ibge.gov.br/... ); a densidade média de dois adultos por domicílio, sendo um deles um provável condutor; e possibilidade de encontrar residências sem condutores, devido à condição socioeconômica de algumas regiões do município, levantou-se que, em média, 60 domicílios por SC poderiam ser incluídos no estudo. Assim, seriam necessários 26 SC para a amostra. Entretanto, alguns setores sorteados possuíam número de domicílios menor que a média municipal, o que fez com o quantitativo fosse ampliado para 35 setores.
A coleta de dados do inquérito ocorreu entre julho e outubro de 2013. Os entrevistadores percorreram todas as quadras dos SC selecionados, com mapas disponibilizados via internet pelo IBGE, e abordaram todos os domicílios para verificar a existência de condutores. Para as residências onde não foi possível entrevistar todos os elegíveis, ausentes ou impossibilitados de participar na primeira abordagem, agendaram-se visitas em horário conveniente ao participante. Estabeleceu-se o número máximo de três tentativas de agendamento, ou retorno ao domicílio fechado em horários distintos, para, em caso de insucesso, considerar o condutor/domicílio como não resposta. A média de condutores entrevistados por domicílio participante foi de 1,2 para os 35 SC, variando de 1,0 a 1,4 condutor/domicílio.
Os dados foram produzidos por meio de entrevistas com formulário estruturado e consulta na base de dados do Censo 2010 do IBGE, para obter informação sobre a renda dos setores censitários.
A variável dependente do estudo foi o envolvimento autorreferido em acidente de trânsito nos 12 meses anteriores à entrevista, estando na condição de condutor no momento do AT (sim; não). A definição de AT adotada na pesquisa foi: “todo acidente com veículo ocorrido na via pública, o que inclui qualquer atropelamento, colisão entre veículos, acidentes com bicicleta, moto e quedas dentro de ônibus (ou para fora dele), quedas de caminhão e motos que ocorrem em ruas ou estradas, podendo ou não causar ferimentos nas pessoas” (definição adaptada dos conceitos da Classificação Internacional de Doenças, 10ª Revisão2424 Organização Mundial da Saúde (OMS). Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas relacionados à Saúde - 10ª revisão [página na Internet]. 2008 [acessado 2013 Out 6]. Disponível em: http://www.datasus.gov.br/cid10/V2008/cid10.htm
http://www.datasus.gov.br/cid10/V2008/ci... e do estudo de Magalhães et al.2525 Magalhães AF, Lopes CM, Koifman RJ, Muniz PT. Prevalência de acidentes de trânsito auto-referidos em Rio Branco, Acre. Rev Saude Publica 2011; 45(4):738-44.).
As variáveis independentes foram organizadas em blocos para análise multivariada, a saber:
- Bloco 1 - Variável de vizinhança: renda média do SC (representada pelo rendimento mensal das pessoas com 10 anos de idade e mais, com e sem rendimento, categorizada em: menor que R$500,00; de R$500,00 a R$724,00; e maior que R$724,00).
- Bloco 2 - Sociodemográficas: sexo (masculino; feminino), faixa etária (15 a 29 anos; 30 a 44 anos; 45 a 59 anos; 60 anos e mais), cor da pele (preta ou parda; branca), convivência marital (sim; não), escolaridade (superior completo; 2º grau completo; 1º grau completo).
- Bloco 3 - Experiências no trânsito: possui Carteira Nacional de Habilitação (CNH) (sim; não), antecedente de multa no trânsito nos últimos 12 meses (sim; não), opinião favorável à “nova” Lei Seca (Lei nº 12.760/2012) (sim; não), e tipo de condutor (motociclista; motorista). Esta última variável derivou do questionamento sobre o tipo de veículo que o participante referiu conduzir mais frequentemente e foi categorizada em: “motorista”, para os que referiram automóvel ou outros veículos de quatro ou mais rodas, e “motociclista”, para os que referiram motocicleta, motoneta ou ciclomotor.
- Bloco 4 - Comportamentos no trânsito: beber e dirigir (ingestão de qualquer quantidade de bebida alcoólica) (sim; não), usar telefone celular enquanto dirige (sim; não), referir gostar de correr ao dirigir (sim; não), e adotar velocidade insegura em via urbana (sim: > 50km/h; não: ≤ 50 km/h), variável categorizada a partir do questionamento sobre a velocidade máxima que costuma dirigir.
O critério de corte para definição de velocidade insegura nesta pesquisa foi baseado em relatórios da Organização Mundial da Saúde (OMS), que considera 50 km/h como a melhor prática para os limites em área urbana, pois tanto reduzem as chances de AT quanto minimizam lesões e mortes11 World Health Organization (WHO). Global status report on road safety: time for action. Genebra: WHO; 2009.,44 World Health Organization (WHO). Global status report on road safety 2013: supporting a decade of action. Genebra: WHO; 2013..
O software Stata®, versão 12.0, foi utilizado para análise dos dados. Foram estimadas frequências das variáveis para descrição das características dos participantes e, para comparação entre as proporções de AT, foi empregado o teste Qui-Quadrado Rao-Scott (p ≤ 0,05); versão que se adequa a dados com estrutura de dependência devido ao desenho amostral utilizado.
A análise de fatores associados foi baseada em um modelo conceitual hierarquizado (Figura 1), elaborado de acordo às relações proximais-distais das exposições e do desfecho. A estratégia hierarquizada de análise apresenta algumas vantagens em comparação com a análise multivariada tradicional, pois é adequada para situações nas quais se tem um grande número de variáveis, além de considerar relações de mediação que podem existir na determinação dos fenômenos em estudo2626 Fuchs SC, Victora CG, Fachel J. Modelo hierarquizado: uma proposta de modelagem aplicada à investigação de fatores de risco para diarreia grave. Rev Saude Publica 1996; 30(2):168-78..
Modelo conceitual hierarquizado para análise de fatores associados ao envolvimento em acidentes de trânsito entre condutores de veículos.
Foi empregado o modelo de Regressão Logística Multinível para as estimativas de Razão de Chances (RC) e Intervalos de Confiança a 95% (IC95%), com uso da sintaxe xtlogit, do Stata®. A escolha do modelo de regressão multinível também leva em consideração a estrutura de dependência dos dados, portanto, as estimativas levaram em conta o efeito do desenho do estudo. Para a seleção das variáveis na modelagem, estabeleceram-se valores de p ≤ 0,20 na etapa bivariada e p ≤ 0,10 na multivariada-intrablocos. Na etapa hierarquizada, considerou-se p ≤ 0,05 para significância estatística. O teste da razão de máxima verossimilhança foi utilizado para avaliar a permanência das variáveis no modelo.
Todos os preceitos éticos foram seguidos no estudo. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva, da Universidade Federal da Bahia.
Resultados
Da amostra de 1.572 condutores, 1.407 foram entrevistados e 165 pessoas não foram encontradas no domicílio em todas as tentativas estipuladas para realização da entrevista. Um participante foi excluído da análise devido ao número de dados faltantes do formulário de entrevista. Assim, o percentual de perda amostral situou-se em 10,6%, e os resultados do artigo referem-se a 1.406 pessoas. O envolvimento em acidentes de trânsito nos últimos 12 meses, na condição de condutor de veículo, foi referido por 10,4% (147) dos participantes.
Na Tabela 1, observa-se que as frequências de envolvimento em AT variaram de acordo a categorias dos fatores de exposição, com resultados estatisticamente significantes para maior proporção de AT em pessoas jovens, de cor da pele preta ou parda, sem convivência marital, que dirigem motocicleta, não sendo habilitados, com antecedentes de multa, que não concordavam com a “nova” Lei Seca e que relataram comportamentos inseguros e ilegais no trânsito.
Características da população do estudo e frequências absolutas e relativas de acidentes de trânsito (AT) entre condutores de veículos, segundo categorias das variáveis sociodemográficas e relacionadas ao trânsito. Jequié, Bahia, 2013 (n = 1.406).
No modelo de regressão bivariado verificou-se que a renda média do SC e a escolaridade não estiveram associadas ao desfecho. As demais variáveis seguiram para o modelo multivariado (intrablocos). Embora a renda do SC não tenha apresentado valor de p < 0,20, ela foi mantida nas outras etapas da análise por se tratar de uma variável contextual. Observa-se que o desfecho se manteve associado, no Bloco 2, com sexo, faixa etária, cor da pele e convivência marital. No Bloco 3, apresentou associação com tipo de condutor, antecedente de multa de trânsito, não concordar com a “nova” Lei Seca. Já no Bloco 4, não se associou somente a “adotar velocidade insegura em via urbana” (Tabela 2).
Valores de Razão de Chances (RC) das análises de regressãoa bivariada e multivariada intrablocos para fatores associados a acidentes de trânsito (AT) entre condutores de veículos. Jequié, Bahia, 2013 (n = 1.406).
Na Tabela 3, encontram-se os resultados da análise hierarquizada a partir dos modelos A (Blocos 1 e 2), B (Blocos 1, 2 e 3) e C (Blocos 1, 2, 3 e 4). No modelo A, observou-se o efeito direto da associação entre envolvimento em AT e sexo, faixa etária e convivência marital, ajustado pela renda do SC. A chance de envolvimento em AT entre homens foi 52,0% maior do que para mulheres, ajustado pelas demais variáveis. Quanto à faixa etária, observaram-se valores maiores de razão de chances entre pessoas de 15 a 29 anos e entre 30 a 44 anos.
Valores de Razão de Chances (RC) e Intervalos de Confiança a 95% (IC95%) da análise hierarquizadaa para fatores associados a acidentes de trânsito (AT) entre condutores de veículos. Jequié, Bahia, 2013 (n = 1.406).
No modelo B, após introdução do Bloco 3, pôde-se observar o efeito direto das variáveis antecedente de multa no trânsito e tipo de condutor, ajustada pelas variáveis dos Blocos 1 e 2. A inclusão do Bloco 3 promoveu redução das razões de chance de envolvimento em AT para as variáveis faixa etária e sexo, com destaque para esta última, que deixou de estar associada no Modelo B (RC=1,40 e IC95% 0,94-2,08) (Tabela 3).
Com a introdução do Bloco 4, o Modelo C foi ajustado e constituiu o modelo final de fatores associados. Assim, estimou-se o efeito direto dos comportamentos de beber e dirigir (RC=1,68; IC95% 1,12-2,53) e do uso de celular durante a condução (RC=1,63; IC95% 1,09-2,43) sobre o envolvimento em acidentes, ajustados pelas demais variáveis. Neste modelo, observou-se aumento nas razões de chance de algumas variáveis (tipo de condutor e cor da pele) e redução para outras (antecedentes de multa, faixa etária e sexo). Desse modo, estiveram associados ao envolvimento em AT os seguintes fatores: faixa etária, com razão de chance de 3,15 para condutores de 15 a 29 anos (IC95% 1,24-8,02); cor da pele, com chance de envolvimento 56,0% maior entre os que se declararam pardos ou pretos (IC95% 1,03-2,35); tipo de condutor, tendo o motociclista chance 73,0% maior que os motoristas (IC95% 1,15-2,60); convivência marital; antecedente de multa no trânsito; e os comportamentos de beber e dirigir e usar telefone celular enquanto dirige (Tabela 3).
Discussão
Os fatores associados ao envolvimento em acidentes de trânsito entre condutores de veículos foram investigados por meio de abordagens pouco usuais no país, como o inquérito de base populacional e a aplicação de modelo hierarquizado.
Observou-se que o estudo, embora restrito à população de condutores, encontrou resultados que seguiram o padrão sociodemográfico de ocorrência da morbimortalidade por AT no país e no mundo, com maior proporção de acidentes para o sexo masculino e jovens, corroborando achados nacionais1414 Morais Neto OL, Andrade AL, Guimarães RA, Mandacarú PMP, Tobias GC. Regional disparities in road traffic injuries and their determinants in Brazil, 2013. Int J Equity Health 2016; 15:142.,2525 Magalhães AF, Lopes CM, Koifman RJ, Muniz PT. Prevalência de acidentes de trânsito auto-referidos em Rio Branco, Acre. Rev Saude Publica 2011; 45(4):738-44.,2727 Marín-Leon L, Vizzotto MM. Comportamentos no trânsito: um estudo epidemiológico com estudantes universitários. Cad Saude Publica 2003; 19(2):515-523. e internacionais2828 Özkan T, Lajunen T. What causes the differences in driving between young men and women? The effects of gender roles and sex on young drivers' driving behavior and self-assessment of skills. Transportation Research Part F 2006; 9(4):269-277.,2929 Factor R, Mahalel D, Yair G. Inter-group differences in road-traffic crash involvement. Accid Anal Prev 2008; 40(6):2000-2007., assim como entre aqueles de cor da pele preta ou parda1111 Brasil. Ministério da Saúde (MS). DATASUS/Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes [página na Internet]. 2015 [acessado 2015 Set 25]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?viva/2011/viva11p.def
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftoht... , solteiros3030 Whitlock G, Norton R, Clark T, Jackson R, MacMahon S. Motor vehicle driver injury and marital status: a cohort study with prospective and retrospective driver injuries. J Epidemiol Community Health 2003; 57:512-516., que usam motocicleta1111 Brasil. Ministério da Saúde (MS). DATASUS/Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes [página na Internet]. 2015 [acessado 2015 Set 25]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?viva/2011/viva11p.def
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftoht... ,1212 Malta DC, Mascarenhas MDM, Bernal RTI, Silva MMA, Pereira CA, Minayo MCS, Morais Neto OL. Análise das ocorrências das lesões no trânsito e fatores relacionados segundo resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) - Brasil, 2008. Cien Saude Colet 2011; 16(9):3679-3687. e que referem antecedentes de multa e comportamentos inseguros no trânsito2727 Marín-Leon L, Vizzotto MM. Comportamentos no trânsito: um estudo epidemiológico com estudantes universitários. Cad Saude Publica 2003; 19(2):515-523.,3131 World Health Organization (WHO). Mobile phone use: a growing problem of driver distraction. Genebra: WHO; 2011.,3232 Korpinen L, Pääkkönen R. Accidents and close call situations connected to the use of mobile phones. Accid Anal Prev 2012; 45:75-82..
Apesar da maior proporção de AT observada entre homens, o sexo deixou de estar associado ao envolvimento em acidentes a partir da inclusão das variáveis sobre experiência no trânsito. O valor da razão de chances tornou-se ainda mais reduzido quando da introdução das variáveis sobre comportamentos de risco. A ausência de associação entre sexo e envolvimento em AT no modelo final pode sugerir que o efeito desta exposição sobre o desfecho seja mediado pelas variáveis que refletem experiências no trânsito e condutas arriscadas, o que é plausível, uma vez que estudos mostram diferenciais de gênero no engajamento em comportamentos de risco e em violações no trânsito3333 McDonald CC, Sommers MS, Fargo JD. Risky driving, mental health, and health-compromising behaviours: risk clustering in late adolescents and adults. Inj Prev 2014; 20:365-372.. A literatura sobre o tema aponta maior risco de AT para homens e, no presente estudo, observou-se maior frequência de acidentes nos condutores do sexo masculino, assim como foi notado que, no modelo multivariado final, a razão de chances para homens foi 22,0% maior do que para mulheres, embora esta diferença não tenha apresentado significância estatística. O que os dados do modelo final podem indicar é que, uma vez tendo adotado condutas de risco, homens e mulheres estariam igualmente expostos aos AT.
Há consenso na literatura científica, até o momento, que o maior envolvimento dos homens em acidentes se deve a diferenças de gênero, manifestadas pela maior exposição histórica do sexo masculino à motorização, assim como por representações de virilidade ao assumir condutas agressivas durante a condução de veículos2828 Özkan T, Lajunen T. What causes the differences in driving between young men and women? The effects of gender roles and sex on young drivers' driving behavior and self-assessment of skills. Transportation Research Part F 2006; 9(4):269-277.,2929 Factor R, Mahalel D, Yair G. Inter-group differences in road-traffic crash involvement. Accid Anal Prev 2008; 40(6):2000-2007.,3333 McDonald CC, Sommers MS, Fargo JD. Risky driving, mental health, and health-compromising behaviours: risk clustering in late adolescents and adults. Inj Prev 2014; 20:365-372.. Entretanto, com a intensa motorização contemporânea, observa-se a participação crescente das mulheres como condutoras de veículos e, mais recentemente, como condutoras de motocicletas. Tal fato pode contribuir para a redução das diferenças na frequência de AT entre os sexos, sinalizando, talvez, para uma redução do perfil “masculinizado” dos acidentes com condutores.
Ademais, algumas pesquisas internacionais não verificaram diferenças para certas condutas de risco no trânsito entre homens e mulheres, como o estudo de Wickens et al.3434 Wickens CM, Manna RE, Stoduto G, Butters JE, Ialomiteanu A, Smart RG. Does gender moderate the relationship between driver aggression and its risk factors? Accid Anal Prev 2012; 45:10-18., realizado no Canadá, sobre direção agressiva, e o de Lonczak et al.3535 Lonczak HS, Neighbors C, Donovan DM. Predicting risky and angry driving as a function of gender. Accid Anal Prev 2007; 39(3):536-545., que estudou aspectos de “angry driving” com condutores dos Estados Unidos. Necessário salientar que se tratam de achados em diferentes culturas, com níveis avançados de motorização e organização viária. Mesmo assim, trazem indícios de uma possível mudança, tanto nos padrões de exposição quanto no de condutas das mulheres no trânsito. No Brasil, pesquisadores apontam para o crescimento da representação das mulheres nos acidentes como condutoras3636 Davantel PP, Pelloso SM, Carvalho MDB, Oliveira NLB. A mulher e o acidente de trânsito: caracterização do evento em Maringá, Paraná. Rev Bras Epidemiol 2009; 12(3):355-367.,3737 Bringmann PB, Ferreira EC, Bringmann NV, Pelloso SM, Carvalho MDB. Um padrão de envolvimento dos adultos em acidentes rodoviários. Cien Saude Colet 2014; 19(12):4861-4868..
A análise hierarquizada mostrou que o envolvimento em AT esteve associado a fatores que encontram paralelo na literatura. Observou-se efeito tipo dose-resposta entre as categorias da faixa etária, com aumento na frequência de acidentes na medida em que diminuía a faixa de idade. Entretanto, pode-se verificar que esta variável exerceu efeito mediado sobre o desfecho, uma vez que a medida de associação foi reduzida nos Modelos B e C, mantendo maior proporção de envolvimento somente entre os condutores mais jovens, corroborando outros estudos1212 Malta DC, Mascarenhas MDM, Bernal RTI, Silva MMA, Pereira CA, Minayo MCS, Morais Neto OL. Análise das ocorrências das lesões no trânsito e fatores relacionados segundo resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) - Brasil, 2008. Cien Saude Colet 2011; 16(9):3679-3687.,1414 Morais Neto OL, Andrade AL, Guimarães RA, Mandacarú PMP, Tobias GC. Regional disparities in road traffic injuries and their determinants in Brazil, 2013. Int J Equity Health 2016; 15:142.,2525 Magalhães AF, Lopes CM, Koifman RJ, Muniz PT. Prevalência de acidentes de trânsito auto-referidos em Rio Branco, Acre. Rev Saude Publica 2011; 45(4):738-44.,2929 Factor R, Mahalel D, Yair G. Inter-group differences in road-traffic crash involvement. Accid Anal Prev 2008; 40(6):2000-2007. e enfatizando a transcendência do fenômeno AT, ao apresentar grande potencial de perda produtiva e incapacitação precoce.
A cor da pele foi outro fator associado ao envolvimento em acidentes, tendo os condutores de cor preta ou parda maior proporção do evento. Esse resultado é consistente com o perfil encontrado, de modo geral, para as causas externas no país1111 Brasil. Ministério da Saúde (MS). DATASUS/Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes [página na Internet]. 2015 [acessado 2015 Set 25]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?viva/2011/viva11p.def
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftoht... ,3838 Neves ACM, Mascarenhas MDM, Silva MMA, Malta DC. Perfil das vítimas de violências e acidentes atendidas em serviços de urgência e emergência do Sistema Único de Saúde em capitais brasileiras - 2011. Epidemiol Serv Saude 2013; 22(4):587-559.,3939 Araújo EM, Costa MCN, Hogan VK, Mota ELA, Araújo TM, Oliveira NF. Diferenciais de raça/cor da pele em anos potenciais de vida perdidos por causas externas. Rev Saude Publica 2009; 43(3):405-412., expressando as iniquidades sociais dos acidentes de trânsito. Uma das explicações para essa desigualdade seria a condição de maior vulnerabilidade a que as pessoas negras estão submetidas no ambiente viário, uma vez que, devido à exclusão social de grande parte desses indivíduos, acabam por constituir a maioria dos usuários vulneráveis da via pública4040 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS). Violência: uma epidemia silenciosa. Brasília: CONASS; 2007..
A respeito dos condutores de motocicleta, verificou-se maior frequência de acidentes neste grupo, o que reflete o padrão nacional contemporâneo para as ocorrências no trânsito, com predomínio dos usuários de motocicleta como vítimas de AT. Dados do Ministério da Saúde apontam que os ocupantes de moto correspondem à maioria das vítimas nos registros dos sistemas de informação do SUS, desde o atendimento ambulatorial, monitorado pelo VIVA1111 Brasil. Ministério da Saúde (MS). DATASUS/Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes [página na Internet]. 2015 [acessado 2015 Set 25]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?viva/2011/viva11p.def
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftoht... , até as estatísticas de óbito88 Brasil. Ministério da Saúde (MS). DATASUS/Sistema de Informações sobre Mortalidade [página na Internet]. 2017 [acessado 2017 Mar 3]. Disponível em: http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php?area=0205
http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index... . No cenário nacional, a Região Nordeste apresenta um quadro preocupante quanto às ocorrências envolvendo esta categoria1414 Morais Neto OL, Andrade AL, Guimarães RA, Mandacarú PMP, Tobias GC. Regional disparities in road traffic injuries and their determinants in Brazil, 2013. Int J Equity Health 2016; 15:142.. Estudos constatam o crescimento da violência no trânsito envolvendo motos nesta Região, especialmente em cidades de pequeno porte1616 Morais Neto OL, Montenegro MMS, Monteiro RA, Siqueira Júnior JB, Silva MMA, Lima CM, Miranda LOM, Malta DC, Silva Júnior JB. Mortalidade por Acidentes de Transporte Terrestre no Brasil na última década: tendência e aglomerados de risco. Cien Saude Colet 2012; 17(9):2223-2236. e fora do eixo metropolitano4141 Silva PHNV, Lima MLC, Moreira RS, Souza WV, Cabral APS. Estudo espacial da mortalidade por acidentes de motocicleta em Pernambuco. Rev Saude Publica 2011; 45(2):409-415..
A gênese dos acidentes envolvendo motociclistas no Brasil é bastante complexa, pois envolve macrodeterminates com elementos políticos, econômicos e sociais, somados a fatores relacionados ao estilo de condução e maior vulnerabilidade no trânsito, inerente a esse tipo de veículo. Podem-se destacar como alguns macrodeterminantes: i) a opção política pelo transporte individual e incentivos fiscais dirigidos às montadoras de veículos; ii) a situação de desemprego para um grande contingente populacional, que viu no uso da motocicleta uma possibilidade de renda; iii) a ascensão de ocupações com o uso da moto, nas quais estão presentes as lógicas da celeridade e da remuneração por produtividade; e iv) facilidades de aquisição e menor custo de manutenção deste veículo4242 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Departamento de Análise de Situação de Saúde. Impacto da violência na saúde dos brasileiros. Brasília: MS; 2005.,4343 Vasconcellos EA. O custo social da motocicleta no Brasil. Rev Transp Publicos 2008; 30/31:127-142..
Esse quadro contribuiu para que a motocicleta se avolumasse no trânsito, assumindo diferentes papeis na sociedade, suprindo demandas de deslocamento individual, algumas vezes familiar, em um contexto de precária mobilidade urbana e congestionamento das vias públicas, e funcionando como instrumento de trabalho. Acrescem-se, ainda, o baixo investimento governamental em medidas de engenharia de tráfego apropriadas às motos, devido ao privilégio histórico dos automóveis no ambiente viário4343 Vasconcellos EA. O custo social da motocicleta no Brasil. Rev Transp Publicos 2008; 30/31:127-142.,4444 Marín-Leon L, Belon AP, Barros MBA, Almeida SDM, Restitutti MC. Tendência dos acidentes de trânsito em Campinas, São Paulo, Brasil: importância crescente dos motociclistas. Cad Saude Publica 2012; 28(1):39-51..
O município de Jequié apresenta características que vão ao encontro dos determinantes, apontados pela literatura, para produção de acidentes com motociclistas. Uma delas é a grande frota de motocicletas da cidade, que, desde 2007, supera a frota de automóveis e demais veículos. Em 2006, as motos (motocicletas e motonetas) respondiam por 38,3% da frota local, alcançando 50,3% em 2013, enquanto a proporção de automóveis passou de 41,6% para 33,9% nesse mesmo período2121 Brasil. Departamento Nacional de Trânsito (Denatran). Frota de veículos [página na Internet]. 2013 [acessado 2014 Jun 1]. Disponível em: http://www.denatran.gov.br/frota.htm
http://www.denatran.gov.br/frota.htm... .Tais dados mostram uma verdadeira “transição veicular” no local, com presença massiva de um veículo inerentemente vulnerável.
Outro fator que se mostrou associado ao envolvimento em AT foi ter sido multado no trânsito. O estudo de Marín-Leon e Vizzotto2727 Marín-Leon L, Vizzotto MM. Comportamentos no trânsito: um estudo epidemiológico com estudantes universitários. Cad Saude Publica 2003; 19(2):515-523., com condutores jovens, encontrou associação entre histórico de multa e envolvimento em acidentes somente para o grupo dos homens. Os autores consideraram o “histórico de ter sido multado no trânsito” como uma variável que carrega, nela mesma, transgressões de normas e, por isso, esta seria uma expressão de comportamentos inadequados no trânsito, que contribuem para o aumento do risco de acidentes. Concorda-se com essa hipótese, ainda mais porque, após a inclusão das variáveis do último Bloco (sobre comportamentos de risco), a medida de associação entre antecedentes de multa e envolvimento em AT foi reduzida, o que sugere um efeito mediado pelas variáveis comportamentais estudadas.
Quanto aos comportamentos de risco, apenas adotar velocidade insegura na via urbana não apresentou associação com o desfecho. Condutores que referiram dirigir após ingerir bebida alcoólica apresentaram chance de envolvimento em AT 68,0% maior do que os que não referiram, o que mostra um resultado preocupante, mas, consistente com achados de pesquisas realizadas no país2727 Marín-Leon L, Vizzotto MM. Comportamentos no trânsito: um estudo epidemiológico com estudantes universitários. Cad Saude Publica 2003; 19(2):515-523. e até mesmo em outros contextos culturais, como Nova Zelândia4545 Horwood LJ, Fergusson DM. Drink driving and traffic accidents and Young people. Accid Anal Prev 2000; 32(6):805-814. e França4646 Constant A, Salmi LR, Lafont S, Chiron M, Lagarde E. Road casualties and changes in risky driving behavior in france between 2001 and 2004 among participants in the GAZEL Cohort. Am J Public Health 2009; 99(7):1247-1253..
A associação entre álcool e direção é um dos principais fatores de risco para ocorrência de acidentes de trânsito no mundo44 World Health Organization (WHO). Global status report on road safety 2013: supporting a decade of action. Genebra: WHO; 2013. e, por isso, diversos países estabeleceram em suas legislações níveis máximos de tolerância de álcool no sangue. Apesar da existência do aparato legal de “tolerância zero” para alcoolemia no Brasil, estabelecida pela Lei nº 11.705/2008 (“Lei Seca”), o comportamento de beber e dirigir ainda se faz presente no cotidiano da sociedade brasileira, uma vez que 24,3% dos adultos participantes da PNS afirmaram conduzir veículo após ingestão de qualquer quantidade de bebida alcoólica4747 Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional de Saúde 2013: percepção do estado de saúde, estilos de vida e doenças crônicas. Rio de Janeiro: IBGE; 2014.. Com efeito, pela relevância que esse comportamento apresenta na geração de acidentes, ele foi selecionado como um dos alvos nacionais para as ações do Projeto Vida no Trânsito, implantado no Brasil entre 2010 e 2011, consonante à Década de Segurança no Trânsito66 Morais Neto OL, Silva MMA, Lima CM, Malta DC, Silva Júnior JB. Projeto Vida no Trânsito: avaliação das ações em cinco capitais brasileiras, 2011-2012. Epidemiol Serv Saude 2013; 22(3):373-382..
Outro fator de ordem comportamental que apresentou associação com o envolvimento em AT foi o uso de telefone celular. Enquanto no Brasil são raras as pesquisas que abordaram esse comportamento na ocorrência de acidentes48, em outros países há produção de evidências3232 Korpinen L, Pääkkönen R. Accidents and close call situations connected to the use of mobile phones. Accid Anal Prev 2012; 45:75-82.,4646 Constant A, Salmi LR, Lafont S, Chiron M, Lagarde E. Road casualties and changes in risky driving behavior in france between 2001 and 2004 among participants in the GAZEL Cohort. Am J Public Health 2009; 99(7):1247-1253. sobre o perigo do uso de telefone celular durante a condução de veículos, como a pesquisa longitudinal realizada na França, que encontrou risco relativo para AT com lesões de 1,88 (IC95%: 1,35-2,61) entre os que sempre o usavam enquanto dirigiam4646 Constant A, Salmi LR, Lafont S, Chiron M, Lagarde E. Road casualties and changes in risky driving behavior in france between 2001 and 2004 among participants in the GAZEL Cohort. Am J Public Health 2009; 99(7):1247-1253..
A OMS aponta que o risco de sofrer acidentes de trânsito entre quem usa celular na direção pode variar de duas a nove vezes o risco dos que não utilizam esse aparelho e, por isso, lançou em 2011 o documento Mobile phone use: a growing problem of driver distraction, com o qual espera aumentar a conscientização sobre os riscos desse comportamento. Além disso, incentiva a produção de conhecimento sobre o tema, que é relativamente recente e permanece desconhecido em muitas nações3131 World Health Organization (WHO). Mobile phone use: a growing problem of driver distraction. Genebra: WHO; 2011..
O uso de aparelhos celulares durante a direção de veículos é uma conduta contemporânea, que compartilha de alguns determinantes já abordados para outros fatores associados, como a precariedade na fiscalização, sensação de impunidade e questões relativas aos processos de trabalho, como as ocupações que têm o veículo e o celular, juntos, como instrumentos para o trabalho. Além desses determinantes, há também outros fatores mais recentes, como o intenso uso deste aparelho pela sociedade nos últimos anos. A relação entre uso de celular e ocorrência de AT tem como processo subjacente o deslocamento da atenção das tarefas primárias (processos cognitivos da condução do veículo) para tarefas secundárias (uso do aparelho). Esse desvio, conhecido como distração cognitiva, é apontado como tão prejudicial ao desempenho do condutor quanto os efeitos do álcool3131 World Health Organization (WHO). Mobile phone use: a growing problem of driver distraction. Genebra: WHO; 2011..
Quanto às limitações da presente pesquisa, menciona-se o viés de sobrevivência e as dificuldades operacionais para alcançar o tamanho final da amostra, pois não foi possível encontrar alguns condutores em todas as tentativas estipuladas para realização da entrevista até o final do período de coleta. Mesmo assim, observaram-se importantes associações que foram coerentes e consistentes com os achados da literatura nacional e internacional sobre o tema. É possível que alguns resultados possam ter sido subestimados, tanto devido à questão amostral quanto devido à natureza de alguns assuntos, que são socialmente condenáveis e legalmente proibidos e, portanto, passíveis de serem omitidos pelos respondentes. No entanto, a magnitude observada para as frequências dos comportamentos de risco e das medidas de associação desses fatores com o envolvimento em AT expressam a gravidade da insegurança viária contemporânea.
Para concluir, observaram-se importantes fatores sociodemográficos e comportamentais associados ao envolvimento em acidentes de trânsito, com maior proporção desse evento no grupo de jovens, pardos ou pretos, sem convivência marital, motociclistas, com antecedentes de multa no trânsito e que adotam comportamentos de risco nesse ambiente, como beber e dirigir e uso do celular durante a condução de veículos. Um achado interessante, que difere da maior parte das evidências sobre o tema, foi a ausência de associação entre AT e sexo quando incluídas outras variáveis no modelo. Tal resultado pode ser explicado, em parte, pelo efeito de mediação de outros fatores de exposição posteriormente introduzidos, assim como por influência do poder da amostra. Por outro lado, também pode indicar redução das desigualdades de gênero nas ocorrências de trânsito. Observou-se que os fatores proximais modificaram as medidas de associação das exposições dos níveis superiores de determinação do modelo hierarquizado, o que sugere algum efeito mediado por esses fatores comportamentais, disparadores do evento.
Desse modo, os resultados deste estudo ratificam tanto o potencial de prevenção dos acidentes de trânsito, em virtude dos fatores evitáveis associados ao desfecho, quanto à urgência por investimentos em intervenções educativas e fiscalizadoras no trânsito e, sobretudo, em políticas de mobilidade segura que priorizem os deslocamentos de caráter coletivo.
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
06 Mar 2020 - Data do Fascículo
Mar 2020
Histórico
- Recebido
22 Dez 2017 - Aceito
18 Jun 2018 - Publicado
20 Jun 2018