Resumo
O objetivo do estudo foi investigar a existência de desigualdades raciais na prevalência de problemas emocionais, na busca por serviços de saúde e no uso de psicotrópicos. Trata-se de um estudo transversal de base populacional que utilizou dados do inquérito de saúde de Campinas (ISACamp) em 2014/15. Analisou-se 1.953 indivíduos com 20 anos ou mais de idade. Foram estimadas prevalências de transtorno mental comum (TMC), de relato de problemas emocionais, de insônia, de busca e uso de serviço de saúde e de uso de psicotrópicos segundo cor da pele autorreferida, tendo como categorias: brancos e pretos/pardos. Razões de prevalência foram estimadas com uso de regressão múltipla de “Poisson”. A prevalência de TMC foi mais elevada nos pretos/pardos em comparação aos brancos, mas não houve diferença entre eles quanto ao relato de problemas emocionais e de insônia. Verificou-se que os brancos procuraram mais os serviços de saúde por causa do problema emocional. O uso de psicotrópicos também foi superior nos brancos. Os resultados revelaram a presença de desigualdades raciais na presença de TMC, na procura de serviços de saúde e no uso de psicotrópicos, ressaltando a necessidade de ações que identifiquem e superem as barreiras que dificultam o acesso aos cuidados de saúde mental pelos diferentes segmentos raciais.
Palavras-chave
Raça e saúde; Transtornos mentais; Desigualdade social
Introdução
Os termos raça e etnia, embora estejam relacionados, expressam diferentes fundamentos. O conceito de etnia refere-se aos traços culturais e sociais de uma comunidade humana, como patrimônio cultural, língua, prática social, tradições e fatores geopolíticos11 Mersha TB, Abebe T. Self-reported race/ethnicity in the age of genomic research: its potential impact on understanding health disparities. Hum Genomics 2015; 9(1):1.; e a aparência e traços físicos, como a cor da pele, enquadram-se no conceito de raça, sendo socialmente construída e em vários contextos carregada de injustiças, preconceitos e discriminação11 Mersha TB, Abebe T. Self-reported race/ethnicity in the age of genomic research: its potential impact on understanding health disparities. Hum Genomics 2015; 9(1):1.,22 Faro A, Pereira ME. Raça, racismo e saúde: a desigualdade social da distribuição do estresse. Estud Psicol 2011; 16(3):271-278.. No Brasil é utilizada a classificação de raça/cor da pele autorreferida para a análise das desigualdades raciais e categorizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em: branca, preta, parda, amarela e indígena33 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Síntese de indicadores sociais: Uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro: IBGE; 2016.. Esta classificação é diferente nos Estados Unidos, onde as categorias são baseadas em características étnicas e são alteradas regularmente44 Travassos C, Williams DR. The concept and measurement of race and their relationship to public health: a review focused on Brazil and the United States. Cad Saude Publica 2004; 20(3):660-678..
Em 2005, a Comissão de Determinantes Sociais da Saúde da Organização Mundial de Saúde apresentou os fatores étnicos/raciais como um dos determinantes estruturais da saúde, que interagindo com os fatores intermediários, como as condições de vida e trabalho, comportamentos, barreiras para adoção de um estilo de vida saudável e o acesso ao sistema de saúde, podem, consequentemente, influenciar a ocorrência de problemas de saúde e o bem estar55 Organização Mundial de Saúde (OMS). Comissão de Determinantes Sociais de Saúde. Rumo a um Modelo Conceitual para Análise e Ação sobre os Determinantes Sociais de Saúde. Genebra: OMS; 2005.,66 Buss PM, Filho AP. A Saúde e seus Determinantes Sociais. Rev Saúde Coletiva 2007; 17(1):77-93.. Desigualdades de saúde associadas a raça/cor da pele têm sido evidenciadas em relação à mortalidade infantil77 Victora CG, Aquino EML, Leal MC, Monteiro CA, Barros FC, Szwarcwald CL. Maternal and child health in Brazil: progress and challenges. Lancet 2011; 377(9780):1863-1876., a mortes por causas mal definidas e causas externas88 Araújo EM, Costa M CN, Hogan VK, Mota ELA, Araújo TM, Oliveira NF. Diferenciais de raça/cor da pele em anos potenciais de vida perdidos por causas externas. Rev Saude Publica 2009; 43(3):405-412.,99 Volochko A, Vidal NP. Desigualdades raciais na saúde: mortalidade nas regiões de saúde paulistas, 2005. BIS Bol do Inst Saúde 2010; 12(2):143-153., ressaltando as mortes por agressão, nos homens negros jovens1010 Chor D, Lima CR de A. Aspectos epidemiológicos das desigualdades raciais em saúde no Brasil. Cad Saude Publica 2005; 21(5):1586-1594..
No Brasil, estudos de base populacional sobre desigualdades raciais no estado de saúde e prevalência de doenças têm evidenciado que o segmento que se autorrefere de cor preta ou parda apresenta maiores prevalências de transtornos mentais1111 Smolen JR, Araújo EM. Raça/cor da pele e transtornos mentais no Brasil: uma revisão sistemática. Cien Saude Colet 2017; 22(12):4021-4030., de doenças crônicas1212 Oliveira B, Thomaz E, Silva R. Associação da cor/raça aos indicadores de saúde para idosos no Brasil: um estudo baseado na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (2008). Cad Saude Publica 2014; 30(7):1-15., de menor sobrevida pelas doenças crônicas88 Araújo EM, Costa M CN, Hogan VK, Mota ELA, Araújo TM, Oliveira NF. Diferenciais de raça/cor da pele em anos potenciais de vida perdidos por causas externas. Rev Saude Publica 2009; 43(3):405-412.,1010 Chor D, Lima CR de A. Aspectos epidemiológicos das desigualdades raciais em saúde no Brasil. Cad Saude Publica 2005; 21(5):1586-1594., de pior estado de saúde autorreferido1212 Oliveira B, Thomaz E, Silva R. Associação da cor/raça aos indicadores de saúde para idosos no Brasil: um estudo baseado na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (2008). Cad Saude Publica 2014; 30(7):1-15.,1313 Pavão ALB, Werneck GL, Campos MR. Autoavaliação do estado de saúde e a associação com fatores sociodemográficos, hábitos de vida e morbidade na população: um inquérito nacional. Cad Saude Publica 2013; 29(4):723-734. e de pior estado nutricional1414 Malta DC, De Moura L, Tomie R, Bernal I. Diferenciais dos fatores de risco de Doenças Crônicas não Transmissíveis na perspectiva de raça/cor. Cien Saude Colet 2015; 20(3):713-725..
Quanto à saúde mental, estudos realizados nos Estados Unidos1515 Simpson SM, Krishnan LL, Kunik ME, Ruiz P. Racial disparities in diagnosis and treatment of depression: A literature review. Psychiatr Q 2007; 78(1):3-14.
16 Han E, Liu GG. Racial Disparities in Prescription Drug Use for Mental Illness among Population in US. J Ment Health Policy Econ 2005; 8(3):131-143.
17 Zuvekas SH, Fleishman JA. Self-rated mental health and racial/ethnic disparities in mental health service use. Med Care 2008; 46(9):915-923.-1818 Cook BL, Carson NJ, Kafali EN, Valentine A, Rueda JD, Coe-Odess S, Busch S. Examining psychotropic medication use among youth in the U.S. by race/ethnicity and psychological impairment. Gen Hosp Psychiatry 2016; 45:32-39. detectaram entre a população negra menor associação entre o relato de problema mental e uso de serviços de saúde para tratar esses problemas1717 Zuvekas SH, Fleishman JA. Self-rated mental health and racial/ethnic disparities in mental health service use. Med Care 2008; 46(9):915-923., assim como menor propensão de usar medicamentos psicotrópicos1515 Simpson SM, Krishnan LL, Kunik ME, Ruiz P. Racial disparities in diagnosis and treatment of depression: A literature review. Psychiatr Q 2007; 78(1):3-14., mesmo apresentando maior comprometimento psicológico em relação à população branca1818 Cook BL, Carson NJ, Kafali EN, Valentine A, Rueda JD, Coe-Odess S, Busch S. Examining psychotropic medication use among youth in the U.S. by race/ethnicity and psychological impairment. Gen Hosp Psychiatry 2016; 45:32-39.. Alguns poucos estudos foram realizados no Brasil sobre o tema e também registraram desvantagens para a população negra1919 Pavão ALB, Ploubidis GB, Werneck G, Campos MR. Racial discrimination and health in Brazil: evidence from a population-based survey. Ethn Dis 2012; 22(3):353-359.
20 Almeida-Filho N, Lessa I, Magalhães L, Araújo MJ, Aquino E, James SA, Kawachi I. Social inequality and depressive disorders in Bahia, Brazil: interactions of gender, ethnicity, and social class. Soc Sci Med 2004; 59(7):1339-1353.
21 Anselmi L, Barros FC, Minten GC, Gigante DP, Horta BL, Victora CG. Prevalência e determinantes precoces dos transtornos mentais comuns na coorte de nascimentos de 1982, Pelotas, RS. Rev Saude Publica 2008; 42(Supl. 2):26-33.-2222 Bastos JL, Barros AJD, Celeste RK, Paradies Y, Faerstein E. Age, class and race discrimination: their interactions and associations with mental health among Brazilian university students. Cad Saude Publica 2014; 30(1):175-186.. Um deles apontou que a chance de depressão foi 77% maior entre os negros comparando com brancos1919 Pavão ALB, Ploubidis GB, Werneck G, Campos MR. Racial discrimination and health in Brazil: evidence from a population-based survey. Ethn Dis 2012; 22(3):353-359., outra pesquisa encontrou associação discreta entre a cor da pele e Transtornos Mentais Comuns (TMC) em mulheres2121 Anselmi L, Barros FC, Minten GC, Gigante DP, Horta BL, Victora CG. Prevalência e determinantes precoces dos transtornos mentais comuns na coorte de nascimentos de 1982, Pelotas, RS. Rev Saude Publica 2008; 42(Supl. 2):26-33., e Bastos et al.2222 Bastos JL, Barros AJD, Celeste RK, Paradies Y, Faerstein E. Age, class and race discrimination: their interactions and associations with mental health among Brazilian university students. Cad Saude Publica 2014; 30(1):175-186. verificaram que a chance de TMC foi quase 4 vezes maior nos indivídiuos que relataram discriminação por raça/cor da pele, quando comparados aos indivíduos brancos. No entanto, ainda não há na literatura brasileira pesquisas de base populacional que investigaram a existência de diferenças raciais na busca por serviços de saúde para problemas emocionais e na prevalência do uso de medicamentos psicotrópicos.
Desta forma, ressalta-se a importância desta investigação no Brasil, a fim de produzir informações capazes de contribuir para o aprimoramento de políticas destinadas a reduzir as desigualdades raciais em saúde.
Considerando-se a magnitude das desigualdades raciais presentes no Brasil e a carência de estudos nacionais sobre disparidades raciais em questões relacionadas à saúde mental, este estudo teve como objetivo investigar a existência de desigualdade racial nas prevalências de problemas emocionais, de transtorno mental comum e de insônia, na busca e no uso de serviços de saúde e na prevalência de psicotrópicos, em município de grande porte do sudeste brasileiro.
Métodos
Delineamento e população alvo
O estudo é do tipo transversal, de base populacional, no qual foram analisados dados de uma amostra de 1.953 indivíduos de 20 ou mais anos de idade, residentes na área urbana do município de Campinas, SP. As informações deste estudo são oriundas do “Inquérito de Saúde de Campinas” (ISACamp) realizado em 2014/15. Campinas é uma cidade de grande porte, localizada no estado de São Paulo, no sudeste do Brasil com população estimada em 2015 de 1.164.098 habitantes, sendo 98,3% residentes na área urbana. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) foi de 0,805 em 20102323 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Cidades IBGE: Panorama de Campinas. Rio de Janeiro: IBGE; 2018..
Amostragem e coleta de dados
A amostra do inquérito foi obtida por meio de amostragem probabilística, estratificada, por conglomerados e desenvolvida em dois estágios. No primeiro estágio, foram sorteados 70 setores censitários com probabilidade proporcional ao número de domicílios do setor. No segundo estágio, de cada um dos 70 setores, foram sorteados domicílios a partir das relações atualizadas dos endereços.
Como o inquérito ISACamp 2014/15 tinha como objetivo analisar aspectos referentes a três subpopulações de Campinas-SP – adolescentes, adultos e idosos –, os grupos etários de 10 a 19 anos, de 20 a 59 anos e de 60 anos ou mais constituíram os domínios de estudo. O número de pessoas para compor a amostra foi obtido considerando-se a estimativa de uma proporção de 50% (situação que corresponde à máxima variabilidade), intervalo de confiança de 95%, erro de amostragem entre 4% e 5% e efeito de delineamento igual a 2, resultando em 1.000 adolescentes, 1.400 adultos e 1.000 idosos. Para a obtenção desse tamanho de amostra, foram sorteados de forma independente, 3.119, 1.029 e 3.157 domicílios para entrevistas com adolescentes, adultos e idosos, já considerando taxas de não resposta de 27%, 22% e 20% respectivamente para os três domínios de idade. Em cada domicílio, foram entrevistados todos os moradores da faixa etária determinada. A opção de não sorteio de indivíduos em cada domicílio se deve ao fato de que este tipo de delineamento é similar em termos de acurácia e tem menor custo em relação ao que prevê o sorteio de uma pessoa por domicílio2424 Alves MCGP, Escuder MML, Claro RM, Silva NN. Sorteio intradomiciliar em inquéritos de saúde. Rev Saude Publica 2014; 48(1):86-93.. Maiores detalhes sobre o processo amostral encontram-se disponíveis na página da internet (https://www.fcm.unicamp.br/fcm/ccas-centro-colaborador-em-analise-de-situcao-de-saude/ISACamp/2014).
Os dados do ISACamp 2014/2015 foram coletados por meio de questionário pré-codificado, que continha questões predominantemente fechadas e organizadas em onze blocos temáticos. A coleta de dados foi feita por entrevistadores treinados, por meio de entrevista direta ao indivíduo selecionado, otimizada pela utilização de tablet.
Variáveis analisadas no estudo
Variáveis sociodemográficas: raça/cor da pele autorreferida utilizando as categorias adotadas no censo demográfico. Neste estudo raça/cor de pele foi categorizada em: branca e preta /parda, tendo sido excluídas da análise as categorias de amarelos e indígenas pelo pequeno número de indivíduos na amostra pois representavam apenas 2% da população; sexo; idade (20 a 39, 40 a 59 e 60 anos ou mais); anos de escolaridade (0 a 4, 5 a 11 e 12 anos ou mais); renda familiar per capita em salários mínimos (SM) (≤ 1,5 e > 1,5 SM) e posse de plano privado de saúde.
Variáveis relacionadas à saúde emocional/mental: Relato de problema emocional/mental; tipo de problema emocional (ansiedade, depressão e outros); limitação provocada pelo problema (sem limitação ou com limitação); transtorno mental comum (TMC) avaliado pelo uso do instrumento Self-Reporting Questionnaire (SRQ 20), sendo classificado como positivo o indivíduo com 7 pontos ou mais2525 Gonçalves DM, Stein AT, Kapczinski F. Avaliação de desempenho do Self-Reporting Questionnaire como instrumento de rastreamento psiquiátrico: um estudo comparativo com o Structured Clinical Interview for DSM-IV-TR. Cad Saude Publica 2008; 24(2):380-390.; relato de insônia; limitação provocada pela insônia (sem limitação ou com limitação).
Variáveis relacionadas ao uso do serviço de saúde: Aplicáveis aos indivíduos que relataram algum problema emocional/mental: procura por algum serviço/profissional de saúde por causa do problema emocional/mental (sim ou não); motivo pela não procura (não achou necessário ou outros motivos); local onde procurou e obteve atendimento [Unidade Básica de Saúde (UBS)]/[Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)], consultório médico ou de outro profissional ou outros locais (que incluíam pronto socorro/emergência e hospital); quem pagou pelo atendimento [Sistema Único de Saúde (SUS), plano de saúde privado/convênio empresa, pagamento particular e outros].
Uso de psicotrópicos (sim, não) e tipo de psicotrópico: A informação sobre o uso de psicotrópico foi obtida com o uso das seguintes perguntas: (1) O(a) Sr(a) usou algum medicamento nos últimos 15 dias? Frente a resposta positiva: (2) Quantos e quais foram os medicamentos usados?
A anotação do nome do medicamento durante a entrevista foi feita sempre que possível mediante a apresentação da embalagem do medicamento ou da prescrição médica. O princípio ativo dos medicamentos utilizados foi identificado com o uso do Dicionário de Especialidades Farmacêuticas2626 EPUC. DEF - Dicionário de Especialidades Farmacêuticas 2015. 43ª ed. Rio de Janeiro: EPUC; 2015. e a codificação dos medicamentos foi feita com o uso do Anatomical Therapeutical Chemical Classification System (ATC)2727 World Health Organization (WHO). ATC/DDD Index 2016 [Internet]. 2016 [acessado 2018 Jan 10]. Disponível em: https://www.whocc.no/atc_ddd_index/
https://www.whocc.no/atc_ddd_index/... .
Foram considerados medicamentos psicotrópicos os inseridos nas seguintes classificações da ATC: antidepressivos (N06A), benzodiazepínicos (N03AE; N05BA; N05CD e N05CF), antiepilépticos (N03A) e outras classes compostas por analgésicos opioides (N02A), drogas anti-parkinsonianas (N04A e N04B), antipsicóticos, incluindo os estabilizadores de humor (N05A), psicoestimulantes (N06B) e drogas antidemência (N06D).
Análise dos dados
Todas as análises desenvolvidas no estudo consideraram os pesos decorrentes do delineamento amostral complexo e os pesos de não resposta, utilizando para isto, o módulo survey (svy) do software Stata 14.0 (Stata Corp., College Station, Estados Unidos).
Foram estimadas as prevalências das variáveis relacionadas à saúde mental/emocional, à procura e uso de serviço de saúde e ao consumo de medicamentos psicotrópicos segundo raça/cor da pele. A comparação entre estas proporções foi realizada pelo teste do qui-quadrado de Pearson (ᵡ2) com ajuste de Rao-Scott, considerando-se estatisticamente significativos aqueles com p < 0,05; e por meio das razões de prevalência ajustadas (por idade e sexo; e por idade, sexo e renda familar per capita em salário mínimo) e seus respectivos intervalos de confiança de 95%, calculadas pela regressão múltipla de Poisson.
Aspectos éticos
O projeto de pesquisa ISACamp 2014/2015 foi aprovado pela Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). A atual pesquisa foi aprovada pelo CEP da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, por meio da Plataforma Brasil. Todos os entrevistados assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido
Resultados
Dos domicílios sorteados para a realização das entrevistas com adultos e idosos, houve 7,4% de recusas e 4,4% de outras perdas. Entre os adultos e idosos identificados nos domicílios sorteados para serem entrevistados, houve 20,5% de recusas e 1,9% de outras perdas, resultando em uma amostra entrevistada de 1.953 indivíduos. A população estudada (20 anos ou mais) apresenta idade média de 54,4 (± 0,4) anos, com predomínio de mulheres (52,8%), sendo que 68,2% declararam-se brancos, 8,3% e 23,5% referiram ser pretos e pardos, respectivamente.
A Tabela 1 apresenta as características demográficas e socioeconômicas da população, segundo raça/cor da pele. Observou-se que a população preta/parda difere significativamente da população branca, sendo composta por maior percentual de adultos jovens (52,7% versus 43,4%), de indivíduos de menor renda (70,6% versus 47,3%), sem plano privado de saúde (68,2% versus 46,5%) e com menor percentual de indivíduos com nível de escolaridade superior (12,8% versus 33,8%).
Características demográficas e socioeconômicas da população estudada segundo raça/cor da pele. Campinas, SP, 2014-2015.
O transtorno mental comum identificado com o uso do instrumento SRQ-20 teve uma prevalência significativamente maior entre os indivíduos que se declararam pretos e pardos (20,1% versus 15,2%; p = 0,0233), enquanto o relato de problema emocional/mental e insônia não se diferenciou de forma estatisticamente significante entre os segmentos raciais. Quando a análise da RP de TMC entre os segmentos raciais foi ajustada por renda, além do ajuste por idade e sexo, a associação perdeu a significância estatística (Tabela 2).
Prevalência e razão de prevalência do relato de problema emocional/mental, TMC e insônia segundo raça/cor da pele. Campinas, SP, 2014-2015.
Observou-se que os indivíduos de cor de pele branca procuraram mais por serviço de saúde por causa do problema emocional/mental do que os pretos e pardos (RP = 1,3). Entre aqueles que não procuraram por serviço de saúde, os brancos, em sua maior parte, referiram não achar necessário; os motivos relacionados às barreiras no sistema de saúde, como tempo de espera muito grande, horário de funcionamento incompatível com as atividades do trabalho, entre outros (categorizados como outros motivos) foram mencionados mais pelos indivíduos pretos e pardos (21,8% versus 8,3%; RP = 0,4). No que se refere ao local do atendimento, observou-se que os pretos e pardos foram atendidos, em sua maioria, em UBS ou CAPS (41,5% versus 26,9%, p = 0,0183). Os indivíduos que se declararam brancos foram mais atendidos em consultórios médicos ou de outros profissionais comparados aos pretos e pardos (RP = 1,7). O pagamento desses atendimentos foi realizado, principalmente, pelo SUS no caso dos indivíduos pretos e pardos (63,3% versus 34,0%, p = 0,0005) e por plano privado ou convênio de empresa no caso dos indivíduos brancos (47,7% versus 24,2%, p = 0,0056). As diferenças observadas mantiveram-se praticamente as mesmas quando a variável renda foi introduzida no modelo de regressão (Tabela 3).
Prevalência e razão de prevalência das informações relacionadas à busca por serviço de saúde por causa do problema emocional/mental segundo raça/cor da pele. Campinas, SP, 2014-2015.
A Tabela 4 apresenta para o conjunto da população adulta do município, independentemente da presença de relato de problema emocional, a prevalência e a razão de prevalência do uso de medicamentos psicotrópicos segundo os segmentos raciais e considerando presença e limitações de problema emocional/mental, TMC e insônia. A prevalência total do uso de medicamentos psicotrópicos foi maior entre os brancos (RP = 1,8) e foi maior neste segmento em quase todas as categorias/condições apresentadas na tabela. O consumo de psicotrópicos só não foi mais elevado nos brancos nos casos em que havia relato de presença de limitação decorrente do problema emocional/mental ou da insônia, nos casos de depressão e nos indivíduos que não relataram problema emocional (Tabela 4).
Prevalência e razão de prevalência do uso de medicamentos psicotrópicos, segundo cor da pele e características do problema emocional/mental, TMC e insônia. Campinas 2014 - 2015.
Em relação às classes de medicamentos psicotrópicos utilizados pelo conjunto da população, independente de relato de problema emocional, os antidepressivos foram os mais utilizados (6,5%), com uma prevalência significativamente superior entre os brancos (7,7%) em comparação aos indivíduos pretos e pardos (4,0%; RP = 1,8). Entre os segmentos raciais, não se observou diferença na prevalência de utilização dos medicamentos antidepressivos mais frequentes (fluoxetina e sertralina), entretanto o uso de outros antidepressivos foi superior entre os brancos (RP = 2,2). A classe dos benzodiazepínicos e dos antiepilépticos apresentaram prevalência de utilização de 3,8% e 2,4%, respectivamente, porém não houve diferença no consumo entre os segmentos raciais. Os demais psicotrópicos que incluíam os analgésicos opioides, medicamentos antiparkinsonianos, antipsicóticos, psicoestimulantes e antidemência foram significativamente mais utilizados pelos indivíduos que se declararam brancos (RP = 3,4) (Tabela 5).
Prevalência do uso de medicamentos psicotrópicos segundo classe medicamentosa e cor da pele. Campinas-SP 2014 - 2015.
Discussão
A população de Campinas-SP, em 2014/2015, era constituída, em sua maioria, de pessoas que se declaravam brancas (68,2%), valor pouco superior ao da população do estado de São Paulo (63,9%) em 20102828 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo demográfico: População residente, por cor ou raça, segundo a situação do domicílio, o sexo e a idade. Rio de Janeiro: IBGE; 2010.. Em Campinas-SP, 23,5% e 8,3% da população referiu ser de cor de pele/raça parda e preta, respectivamente. A composição por raça/cor de pele difere muito entre as regiões brasileiras2828 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo demográfico: População residente, por cor ou raça, segundo a situação do domicílio, o sexo e a idade. Rio de Janeiro: IBGE; 2010. e contextos com maior predomínio da população branca ou negra podem propiciar influências diferentes sobre as disparidades de condições de vida e saúde entre os grupos raciais nas diferentes regiões do país44 Travassos C, Williams DR. The concept and measurement of race and their relationship to public health: a review focused on Brazil and the United States. Cad Saude Publica 2004; 20(3):660-678.,1212 Oliveira B, Thomaz E, Silva R. Associação da cor/raça aos indicadores de saúde para idosos no Brasil: um estudo baseado na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (2008). Cad Saude Publica 2014; 30(7):1-15..
Os achados do estudo mostram as desigualdades raciais que prevalecem no município: o percentual de indivíduos brancos com 12 ou mais anos de escolaridade é quase três vezes superior e o com renda familiar per capita superior a 1,5 salários mínimos quase 2 vezes superior ao da população negra. Essa desigualdade é similar à observada no Brasil, pois segundo o IBGE33 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Síntese de indicadores sociais: Uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro: IBGE; 2016., em 2015, o total de pessoas de cor preta ou parda que cursavam o ensino superior era de apenas 12,8%, enquanto entre os brancos, este percentual era de 26,5%. No total da população brasileira analfabeta, 10,6% eram pretos e pardos e 4,9% eram brancos2929 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça. Brasília: IPEA; 2016.. Em 2015, os pretos e pardos apresentavam, em média, 54% da renda percebida pelos brancos2929 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça. Brasília: IPEA; 2016.. A desigualdade racial em relação a posse de plano privado de saúde também pode ser observada neste estudo, constatando-se que pretos e pardos, em maior parte (68,2%), não possuem plano de saúde, sendo, portanto, dependentes do SUS.
Em relação às análises sobre problemas emocionais/mentais, TMC e insônia, desenvolvidas neste estudo, constatou-se maior prevalência de TMC, identificado com o uso do instrumento SRQ-20, nos indivíduos que se declararam pretos e pardos, mas não houve diferença entre eles quanto ao relato de problemas emocionais/mentais e de insônia, indicando possível diferença entre os grupos raciais quanto à percepção e reconhecimento de problemas emocionais. Diferentes concepções sobre problemas emocionais e mentais e diferenças no reconhecimento e percepção de sintomas entre os segmentos raciais poderiam conduzir a este achado. Estudo prévio também encontrou menores frequências de percepção de problemas de saúde mental entre os indivíduos da população negra1717 Zuvekas SH, Fleishman JA. Self-rated mental health and racial/ethnic disparities in mental health service use. Med Care 2008; 46(9):915-923..
A maior prevalência de TMC na população negra tem sido detectada em alguns estudos2121 Anselmi L, Barros FC, Minten GC, Gigante DP, Horta BL, Victora CG. Prevalência e determinantes precoces dos transtornos mentais comuns na coorte de nascimentos de 1982, Pelotas, RS. Rev Saude Publica 2008; 42(Supl. 2):26-33.,2222 Bastos JL, Barros AJD, Celeste RK, Paradies Y, Faerstein E. Age, class and race discrimination: their interactions and associations with mental health among Brazilian university students. Cad Saude Publica 2014; 30(1):175-186. e atribuída por alguns autores à maior exposição ao estresse dos indivíduos pretos e pardos22 Faro A, Pereira ME. Raça, racismo e saúde: a desigualdade social da distribuição do estresse. Estud Psicol 2011; 16(3):271-278.. Segundo estudo de Willians et al.3030 Williams DR, Yan Yu Y, Jackson JS, Anderson NB. Racial Differences in Physical and Mental Health. J Health Psychol 1997; 2(3):335-351., a raça pode influenciar a exposição ao estresse por dois caminhos, seja relacionado à estrutura social, como posição socioeconômica, seja pelo estresse ligado às experiências de discriminação e racismo1111 Smolen JR, Araújo EM. Raça/cor da pele e transtornos mentais no Brasil: uma revisão sistemática. Cien Saude Colet 2017; 22(12):4021-4030.,3030 Williams DR, Yan Yu Y, Jackson JS, Anderson NB. Racial Differences in Physical and Mental Health. J Health Psychol 1997; 2(3):335-351.. Um estudo realizado no Brasil, mostrou que os indivíduos que relataram ter sofrido discriminação racial tiveram cerca de 80% mais chance de ter depressão, em análise ajustadas por variáveis socioeconômicas1919 Pavão ALB, Ploubidis GB, Werneck G, Campos MR. Racial discrimination and health in Brazil: evidence from a population-based survey. Ethn Dis 2012; 22(3):353-359..
No presente estudo, quando foi feito ajuste pela renda familiar per capita, a associação entre TMC e raça/cor da pele preta e parda torna-se não significativa, apontando que as diferenças socioeconômicas explicariam a maior prevalência de TMC na população negra do município. Todavia, é preciso considerar a complexidade do fenômeno que envolve as desigualdades de raça, pois características socioeconômicas e contextos de discriminação podem interatuar e influenciar desde o acesso à informação, à percepção do problema emocional/mental1111 Smolen JR, Araújo EM. Raça/cor da pele e transtornos mentais no Brasil: uma revisão sistemática. Cien Saude Colet 2017; 22(12):4021-4030. ao acesso aos serviços de saúde e tratamento1414 Malta DC, De Moura L, Tomie R, Bernal I. Diferenciais dos fatores de risco de Doenças Crônicas não Transmissíveis na perspectiva de raça/cor. Cien Saude Colet 2015; 20(3):713-725..
Em relação à busca por serviços de saúde por causa do problema emocional/mental, os indivíduos que se autodeclararam brancos procuraram 30% mais por auxílio profissional, do que os pretos e pardos, independentemente do grau de limitação do problema referido. Embora a limitação ou a gravidade do sofrimento psicológico prevejam significativamente a utilização de serviços de saúde1717 Zuvekas SH, Fleishman JA. Self-rated mental health and racial/ethnic disparities in mental health service use. Med Care 2008; 46(9):915-923., outros fatores também desempenham um papel importante na determinação de quem procura e recebe tratamento, como por exemplo, a percepção do indivíduo quanto à necessidade de busca por auxílio profissional, acessibilidade, os aspectos socioculturais e econômicos dos usuários3131 Travassos C, Martins M. Uma revisão sobre os conceitos de acesso e utilização de serviços de saúde. Cad Saude Publica 2004; 20(Supl. 2):S190-S198., entre outros. Estudos prévios de outros países já documentaram diferenças raciais no uso de serviços de saúde para problemas de saúde mental, mesmo controlando pelas variáveis socioeconômicas1717 Zuvekas SH, Fleishman JA. Self-rated mental health and racial/ethnic disparities in mental health service use. Med Care 2008; 46(9):915-923.,3232 Lê Cook B, McGuire TG, Lock K, Zaslavsky AM. Comparing methods of racial and ethnic disparities measurement across different settings of mental health care. Health Serv Res 2010; 45(3):825-847., assim como foi visto no presente estudo, no qual o ajuste por renda familiar per capita não modificou esta diferença. Os autores discutem que esta disparidade pode ser explicada, em parte, pela menor propensão, da população negra, em identificar/reconhecer sintomas como indicativos de problema de saúde mental, o que resulta em menor busca pelo serviço de saúde1717 Zuvekas SH, Fleishman JA. Self-rated mental health and racial/ethnic disparities in mental health service use. Med Care 2008; 46(9):915-923.. No Brasil, as disparidades raciais na busca pelo serviço de saúde, com foco na saúde mental, ainda têm sido pouco investigadas3333 Prado MAMB, Francisco PMSB, Barros MBA. Uso de medicamentos psicotrópicos em adultos e idosos residentes em Campinas, São Paulo: um estudo transversal de base populacional. Epidemiol e Serviços Saúde 2017; 26(4):747-758..
Entre os indivíduos pretos e pardos que buscaram pelo serviço de saúde por causa do problema emocional/mental, a maior parte teve o seu atendimento realizado nas UBS/CAPS ou outros locais, enquanto os brancos em consultórios médicos ou de outros profissionais. A partir deste achado, assinala-se que os pretos e pardos acessaram mais o conjunto de serviços do SUS para os problemas emocionais do que os brancos. No geral, tanto os indivíduos brancos quanto negros, dependentes do SUS, procuraram menos pelos serviços de saúde para tratar o problema emocional/mental quando comparado àqueles que tinham plano privado de saúde (dados não apresentados em tabelas). Uma hipótese para a menor utilização dos serviços de saúde pelos usuários do SUS pode estar vinculada às barreiras relacionadas ao acesso às consultas nas UBSs, como tempo de espera muito grande, horário de funcionamento incompatível com as atividades do trabalho (resultado observado na Tabela 3), além de que as UBSs possuem protocolos de atendimento bem estabelecidos, dificultando o encaminhamento com médicos especialistas e posterior diagnóstico3434 Boccolini CS, Souza Junior PRB. Inequities in Healthcare utilization: results of the Brazilian National Health Survey, 2013. Int J Equity Health 2016; 15(1):150., o que pode explicar, mesmo que parcialmente, a disparidade observada. No entanto, não se pode deixar de inferir sobre o potencial e a efetividade da atuação do SUS na redução das iniquidades em saúde3535 Brasil. Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990. Lei Orgânica da Saúde. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 20 set..
O uso de psicotrópicos pela população do município, independentemente de ter ou não relato de problema emocional, revelou uso 80% superior nos brancos. Evidências de associação entre a raça/cor da pele e o uso de medicamentos psicotrópicos para o tratamento de problemas emocionais também foram observadas em estudos realizados no Brasil3333 Prado MAMB, Francisco PMSB, Barros MBA. Uso de medicamentos psicotrópicos em adultos e idosos residentes em Campinas, São Paulo: um estudo transversal de base populacional. Epidemiol e Serviços Saúde 2017; 26(4):747-758.,3636 Lopes CS, Hellwig N, Silva GAE, Menezes PR. Inequities in access to depression treatment: results of the Brazilian National Health Survey - PNS. Int J Equity Health 2016; 15(1):154. e em outros países1515 Simpson SM, Krishnan LL, Kunik ME, Ruiz P. Racial disparities in diagnosis and treatment of depression: A literature review. Psychiatr Q 2007; 78(1):3-14.,3737 Pierre G, Thorpe RJ, Dinwiddie GY, Gaskin DJ. Are there racial disparities in psychotropic drug use and expenditures in a nationally representative sample of men in the United States? Evidence from the Medical Expenditure Panel Survey. Am J Mens Health 2014; 8(1):82-90.. No entanto, estes estudos realizados no Brasil3333 Prado MAMB, Francisco PMSB, Barros MBA. Uso de medicamentos psicotrópicos em adultos e idosos residentes em Campinas, São Paulo: um estudo transversal de base populacional. Epidemiol e Serviços Saúde 2017; 26(4):747-758.,3636 Lopes CS, Hellwig N, Silva GAE, Menezes PR. Inequities in access to depression treatment: results of the Brazilian National Health Survey - PNS. Int J Equity Health 2016; 15(1):154. não tiveram como objetivo analisar a desigualdade racial no uso desses medicamentos, mas sim consideraram a variável raça/cor da pele como uma entre outras características demográficas associadas ao uso de psicotrópicos. Em inquérito anterior realizado em Campinas, Prado et al.3333 Prado MAMB, Francisco PMSB, Barros MBA. Uso de medicamentos psicotrópicos em adultos e idosos residentes em Campinas, São Paulo: um estudo transversal de base populacional. Epidemiol e Serviços Saúde 2017; 26(4):747-758. encontraram uma proporção 43% inferior no uso de psicotrópicos entre a população negra, quando comparada a branca, independente do relato de problema emocional. Estudo com dados da Pesquisa Nacional de Saúde identificou, em indivíduos depressivos, uso 66% superior de psicotrópicos entre os brancos em relação aos negros3636 Lopes CS, Hellwig N, Silva GAE, Menezes PR. Inequities in access to depression treatment: results of the Brazilian National Health Survey - PNS. Int J Equity Health 2016; 15(1):154.. A menor prevalência de uso de psicotrópicos entre os indivíduos pretos e pardos pode ser explicada pela menor proporção de busca por serviços de saúde por causa do problema emocional/mental, como já mencionado, uma vez que esses medicamentos são acessíveis apenas mediante prescrição médica3838 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 344, de 12 de maio de 1998. Diário Oficial da União 1998; 12 maio.. Considerando ainda que os indivíduos pretos e pardos do município de Campinas são, em sua maior parte, SUS dependentes, pode-se inferir outras barreiras relacionadas ao acesso a estes medicamentos, tais como, disponibilidade dos medicamentos nos serviços de saúde, acessibilidade dos usuários e dos pontos de dispensação e aceitabilidade, que inclui as atitudes e as expectativas dos usuários3939 Oliveira MA, Luiza VL, Tavares NUL, Mengue SS, Arrais PSD, Farias MR, Pizzol T da SD, Ramos LR, Bertoldi AD. Acesso a medicamentos para doenças crônicas no Brasil: uma abordagem multidimensional. Rev Saude Publica 2016; 50(Supl. 2):1-13..
Em relação às classes dos psicotrópicos utilizados pela população de Campinas-SP, verificou-se que os antidepressivos com maior prevalência de uso, como a fluoxetina e a sertralina, não apresentaram diferenças de uso entre os segmentos raciais. Este dado pode ser explicado, em parte, pela disponibilização destes medicamentos nas unidades básicas de saúde do município, favorecendo o seu acesso4040 Campinas. Secretaria Municipal de Saúde (SMS). Relação de medicamentos padronizados para dispensação nas unidades de saúde do município de Campinas, SP [Internet]. 2014. [acessado 2016 Maio 15]. Disponível em: http://www.saude.campinas.sp.gov.br/saude/assist_farmaceutica/lista_padronizados.htm
http://www.saude.campinas.sp.gov.br/saud... . O mesmo ocorre com os benzodiazepínicos, clonazepam e diazepam, que são facilmente encontrados nas farmácias de atenção primária à saúde4040 Campinas. Secretaria Municipal de Saúde (SMS). Relação de medicamentos padronizados para dispensação nas unidades de saúde do município de Campinas, SP [Internet]. 2014. [acessado 2016 Maio 15]. Disponível em: http://www.saude.campinas.sp.gov.br/saude/assist_farmaceutica/lista_padronizados.htm
http://www.saude.campinas.sp.gov.br/saud... . No entanto, o uso de “outros antidepressivos” foi significativamente maior entre os brancos. Uma hipótese para este achado é que a maior parte destes medicamentos (exceto os antidepressivos tricíclicos que são disponibilizados nas UBSs) não está contemplada na relação municipal de medicamentos essenciais4040 Campinas. Secretaria Municipal de Saúde (SMS). Relação de medicamentos padronizados para dispensação nas unidades de saúde do município de Campinas, SP [Internet]. 2014. [acessado 2016 Maio 15]. Disponível em: http://www.saude.campinas.sp.gov.br/saude/assist_farmaceutica/lista_padronizados.htm
http://www.saude.campinas.sp.gov.br/saud... , o que configura em maiores obstáculos para o acesso, visto que a sua aquisição se limita ao desembolso integral do valor do medicamento em questão. Os “outros psicotrópicos” também foram mais utilizados pelos indivíduos brancos. Este dado pode indicar possíveis barreiras no acesso a estes medicamentos pelos indivíduos pretos e pardos, visto que a maior parte deles faz parte do componente especializado de assistência farmacêutica, ou seja, a sua aquisição depende do seguimento de protocolos clínicos e as barreiras para a obtenção são, em geral, maiores4141 Campinas. Secretaria Municipal de Saúde (SMS). Programa de medicamentos do componente especializado da assistência farmacêutica [Internet]. 2016. [acessado 2016 Jun 1]. Disponível em: http://www.saude.campinas.sp.gov.br/saude/assist_farmaceutica/alto_custo/medicamentos_alto_custo.htm
http://www.saude.campinas.sp.gov.br/saud... .
A análise dos resultados deste estudo deve levar em conta algumas limitações. As informações sobre medicamentos utilizados podem ter viés, mas, neste estudo, o cuidado em checar a embalagem do medicamento e as prescrições médicas possibilitou a identificação do grupo farmacológico de 98,8% dos psicotrópicos utilizados. Deve-se considerar, também, o possível viés de memória, porém o período recordatório de quinze dias para uso de medicamentos é considerado adequado3333 Prado MAMB, Francisco PMSB, Barros MBA. Uso de medicamentos psicotrópicos em adultos e idosos residentes em Campinas, São Paulo: um estudo transversal de base populacional. Epidemiol e Serviços Saúde 2017; 26(4):747-758.,4242 Moraes CG, Mengue SS, Pizzol TSD, Moraes CG, Mengue SS, Pizzol TSD. Concordância entre diferentes períodos recordatórios em estudos de utilização de medicamentos. Rev Bras Epidemiol 2017; 20(2):324-334.,4343 Quintana MI, Andreoli SB, Peluffo MP, Ribeiro WS, Feijo MM, Bressan RA, Coutinho ESF, De Jesus Mari J. Psychotropic drug use in São Paulo, Brazil - An epidemiological survey. PLoS One 2015; 10(8):1-14..
Os achados das análises de desigualdade racial nas prevalências de TMC, na busca por serviços de saúde para problemas emocionais/mentais e no uso de psicotrópicos contribuem para cobrir lacunas no conhecimento sobre o tema e para subsidiar o aprimoramento de políticas destinadas a reduzir as desigualdades raciais em saúde. As desigualdades raciais observadas na procura e no uso de serviços de saúde mental, bem como no tratamento medicamentoso, ressaltam a importância de ações e políticas públicas voltadas para a superação de barreiras ao acesso a cuidados em saúde mental que afetam, em especial, os segmentos socioeconomicamente desfavorecidos.
Agradecimentos
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo pelo apoio financeiro à realização do ISACamp 2014/15. À Secretaria Municipal de Saúde de Campinas e à Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde pelo apoio financeiro à realização do inquérito. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) pela bolsa de produtividade de MBA Barros. À FAPESP pela bolsa de doutorado de CSE Fernandes.
Referências
- 1Mersha TB, Abebe T. Self-reported race/ethnicity in the age of genomic research: its potential impact on understanding health disparities. Hum Genomics 2015; 9(1):1.
- 2Faro A, Pereira ME. Raça, racismo e saúde: a desigualdade social da distribuição do estresse. Estud Psicol 2011; 16(3):271-278.
- 3Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Síntese de indicadores sociais: Uma análise das condições de vida da população brasileira Rio de Janeiro: IBGE; 2016.
- 4Travassos C, Williams DR. The concept and measurement of race and their relationship to public health: a review focused on Brazil and the United States. Cad Saude Publica 2004; 20(3):660-678.
- 5Organização Mundial de Saúde (OMS). Comissão de Determinantes Sociais de Saúde. Rumo a um Modelo Conceitual para Análise e Ação sobre os Determinantes Sociais de Saúde Genebra: OMS; 2005.
- 6Buss PM, Filho AP. A Saúde e seus Determinantes Sociais. Rev Saúde Coletiva 2007; 17(1):77-93.
- 7Victora CG, Aquino EML, Leal MC, Monteiro CA, Barros FC, Szwarcwald CL. Maternal and child health in Brazil: progress and challenges. Lancet 2011; 377(9780):1863-1876.
- 8Araújo EM, Costa M CN, Hogan VK, Mota ELA, Araújo TM, Oliveira NF. Diferenciais de raça/cor da pele em anos potenciais de vida perdidos por causas externas. Rev Saude Publica 2009; 43(3):405-412.
- 9Volochko A, Vidal NP. Desigualdades raciais na saúde: mortalidade nas regiões de saúde paulistas, 2005. BIS Bol do Inst Saúde 2010; 12(2):143-153.
- 10Chor D, Lima CR de A. Aspectos epidemiológicos das desigualdades raciais em saúde no Brasil. Cad Saude Publica 2005; 21(5):1586-1594.
- 11Smolen JR, Araújo EM. Raça/cor da pele e transtornos mentais no Brasil: uma revisão sistemática. Cien Saude Colet 2017; 22(12):4021-4030.
- 12Oliveira B, Thomaz E, Silva R. Associação da cor/raça aos indicadores de saúde para idosos no Brasil: um estudo baseado na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (2008). Cad Saude Publica 2014; 30(7):1-15.
- 13Pavão ALB, Werneck GL, Campos MR. Autoavaliação do estado de saúde e a associação com fatores sociodemográficos, hábitos de vida e morbidade na população: um inquérito nacional. Cad Saude Publica 2013; 29(4):723-734.
- 14Malta DC, De Moura L, Tomie R, Bernal I. Diferenciais dos fatores de risco de Doenças Crônicas não Transmissíveis na perspectiva de raça/cor. Cien Saude Colet 2015; 20(3):713-725.
- 15Simpson SM, Krishnan LL, Kunik ME, Ruiz P. Racial disparities in diagnosis and treatment of depression: A literature review. Psychiatr Q 2007; 78(1):3-14.
- 16Han E, Liu GG. Racial Disparities in Prescription Drug Use for Mental Illness among Population in US. J Ment Health Policy Econ 2005; 8(3):131-143.
- 17Zuvekas SH, Fleishman JA. Self-rated mental health and racial/ethnic disparities in mental health service use. Med Care 2008; 46(9):915-923.
- 18Cook BL, Carson NJ, Kafali EN, Valentine A, Rueda JD, Coe-Odess S, Busch S. Examining psychotropic medication use among youth in the U.S. by race/ethnicity and psychological impairment. Gen Hosp Psychiatry 2016; 45:32-39.
- 19Pavão ALB, Ploubidis GB, Werneck G, Campos MR. Racial discrimination and health in Brazil: evidence from a population-based survey. Ethn Dis 2012; 22(3):353-359.
- 20Almeida-Filho N, Lessa I, Magalhães L, Araújo MJ, Aquino E, James SA, Kawachi I. Social inequality and depressive disorders in Bahia, Brazil: interactions of gender, ethnicity, and social class. Soc Sci Med 2004; 59(7):1339-1353.
- 21Anselmi L, Barros FC, Minten GC, Gigante DP, Horta BL, Victora CG. Prevalência e determinantes precoces dos transtornos mentais comuns na coorte de nascimentos de 1982, Pelotas, RS. Rev Saude Publica 2008; 42(Supl. 2):26-33.
- 22Bastos JL, Barros AJD, Celeste RK, Paradies Y, Faerstein E. Age, class and race discrimination: their interactions and associations with mental health among Brazilian university students. Cad Saude Publica 2014; 30(1):175-186.
- 23Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Cidades IBGE: Panorama de Campinas Rio de Janeiro: IBGE; 2018.
- 24Alves MCGP, Escuder MML, Claro RM, Silva NN. Sorteio intradomiciliar em inquéritos de saúde. Rev Saude Publica 2014; 48(1):86-93.
- 25Gonçalves DM, Stein AT, Kapczinski F. Avaliação de desempenho do Self-Reporting Questionnaire como instrumento de rastreamento psiquiátrico: um estudo comparativo com o Structured Clinical Interview for DSM-IV-TR. Cad Saude Publica 2008; 24(2):380-390.
- 26EPUC. DEF - Dicionário de Especialidades Farmacêuticas 2015 43ª ed. Rio de Janeiro: EPUC; 2015.
- 27World Health Organization (WHO). ATC/DDD Index 2016 [Internet]. 2016 [acessado 2018 Jan 10]. Disponível em: https://www.whocc.no/atc_ddd_index/
» https://www.whocc.no/atc_ddd_index/ - 28Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo demográfico: População residente, por cor ou raça, segundo a situação do domicílio, o sexo e a idade Rio de Janeiro: IBGE; 2010.
- 29Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça. Brasília: IPEA; 2016.
- 30Williams DR, Yan Yu Y, Jackson JS, Anderson NB. Racial Differences in Physical and Mental Health. J Health Psychol 1997; 2(3):335-351.
- 31Travassos C, Martins M. Uma revisão sobre os conceitos de acesso e utilização de serviços de saúde. Cad Saude Publica 2004; 20(Supl. 2):S190-S198.
- 32Lê Cook B, McGuire TG, Lock K, Zaslavsky AM. Comparing methods of racial and ethnic disparities measurement across different settings of mental health care. Health Serv Res 2010; 45(3):825-847.
- 33Prado MAMB, Francisco PMSB, Barros MBA. Uso de medicamentos psicotrópicos em adultos e idosos residentes em Campinas, São Paulo: um estudo transversal de base populacional. Epidemiol e Serviços Saúde 2017; 26(4):747-758.
- 34Boccolini CS, Souza Junior PRB. Inequities in Healthcare utilization: results of the Brazilian National Health Survey, 2013. Int J Equity Health 2016; 15(1):150.
- 35Brasil. Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990. Lei Orgânica da Saúde. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 20 set.
- 36Lopes CS, Hellwig N, Silva GAE, Menezes PR. Inequities in access to depression treatment: results of the Brazilian National Health Survey - PNS. Int J Equity Health 2016; 15(1):154.
- 37Pierre G, Thorpe RJ, Dinwiddie GY, Gaskin DJ. Are there racial disparities in psychotropic drug use and expenditures in a nationally representative sample of men in the United States? Evidence from the Medical Expenditure Panel Survey. Am J Mens Health 2014; 8(1):82-90.
- 38Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria no 344, de 12 de maio de 1998. Diário Oficial da União 1998; 12 maio.
- 39Oliveira MA, Luiza VL, Tavares NUL, Mengue SS, Arrais PSD, Farias MR, Pizzol T da SD, Ramos LR, Bertoldi AD. Acesso a medicamentos para doenças crônicas no Brasil: uma abordagem multidimensional. Rev Saude Publica 2016; 50(Supl. 2):1-13.
- 40Campinas. Secretaria Municipal de Saúde (SMS). Relação de medicamentos padronizados para dispensação nas unidades de saúde do município de Campinas, SP [Internet]. 2014. [acessado 2016 Maio 15]. Disponível em: http://www.saude.campinas.sp.gov.br/saude/assist_farmaceutica/lista_padronizados.htm
» http://www.saude.campinas.sp.gov.br/saude/assist_farmaceutica/lista_padronizados.htm - 41Campinas. Secretaria Municipal de Saúde (SMS). Programa de medicamentos do componente especializado da assistência farmacêutica [Internet]. 2016. [acessado 2016 Jun 1]. Disponível em: http://www.saude.campinas.sp.gov.br/saude/assist_farmaceutica/alto_custo/medicamentos_alto_custo.htm
» http://www.saude.campinas.sp.gov.br/saude/assist_farmaceutica/alto_custo/medicamentos_alto_custo.htm - 42Moraes CG, Mengue SS, Pizzol TSD, Moraes CG, Mengue SS, Pizzol TSD. Concordância entre diferentes períodos recordatórios em estudos de utilização de medicamentos. Rev Bras Epidemiol 2017; 20(2):324-334.
- 43Quintana MI, Andreoli SB, Peluffo MP, Ribeiro WS, Feijo MM, Bressan RA, Coutinho ESF, De Jesus Mari J. Psychotropic drug use in São Paulo, Brazil - An epidemiological survey. PLoS One 2015; 10(8):1-14.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
08 Maio 2020 - Data do Fascículo
Maio 2020
Histórico
- Recebido
30 Maio 2019 - Aceito
07 Ago 2019 - Publicado
14 Nov 2019