Avaliação da qualidade de vida de pessoas idosas com HIV assistidos em serviços de referência

Kydja Milene Souza Torres de Araújo Márcia Carréra Campos Leal Ana Paula de Oliveira Marques Suelane Renata de Andrade Silva Rosaline Bezerra Aguiar Maria Tereza Dantas Bezerra Tavares Sobre os autores

Resumo

O objetivo deste estudo foi avaliar a qualidade de vida de pessoas idosas que vivem com HIV em Recife-PE. Estudo descritivo, quantitativo de corte transversal com amostra de conveniência e aleatória composta por 241 sujeitos. Aplicou-se o instrumento HIV/AIDS Target Quality of life (HAT-Qol). A qualidade de vida esteve comprometida nos domínios preocupações com o sigilo (51, 89), função sexual (63) e preocupações financeiras (64, 74). As melhores pontuações foram em preocupações com a medicação (87, 91), preocupações com a saúde (86, 80) e aceitação do HIV (82, 78). Os homens apresentaram pontuações para uma melhor qualidade de vida em todos os domínios. Conclui-se que dentre os fatores associados à melhor qualidade de vida nos homens está a escolaridade, a situação financeira, sua autopercepção e o estigma relacionado ao HIV, que parece ser mais forte em relação às mulheres.

Palavras-chave
Qualidade de vida; Idoso; Idoso de 80 anos ou mais; HIV

Introdução

Em todo o mundo, inclusive no Brasil, nota-se uma mudança na estrutura da pirâmide populacional nos últimos anos, ou seja, essa mudança reflete a tendência do envelhecimento populacional de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística11 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Síntese de Indicadores Sociais. Uma análise das condições de vida da população brasileira - 2014. Rio de Janeiro: IBGE; 2014.. Considerando que esse aumento da população idosa ocorre a passos largos, é importante refletir sobre alguns desafios: a fragilidade dos sistemas previdenciário e de saúde e a tendência de diminuição do tamanho das famílias, o que leva a um déficit no cuidado e na integração social desses indivíduos.

Esse processo de “transição demográfica” inevitavelmente vem acompanhado da “transição epidemiológica” e então vivenciamos um aumento na carga das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT’s). Nesse meio também insere-se outras doenças como a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA) em português, ou Adquired Immunity Deficiency Syndrome (AIDS) em inglês, cujos dados epidemiológicos revelam que o quantitativo de pessoas idosas contaminadas pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) vem crescendo22 Andrade HAS, Silva SK, Santos MIPO. AIDS em idosos: vivências dos doentes. Esc. Anna Nery 2010; 14(4):712-719..

Assim, a infecção pelo HIV nas pessoas de “mais idade” surge como um problema de saúde pública, já que estas são mais vulneráveis física e psicologicamente, enfrentam uma maior dificuldade no acesso aos serviços de saúde, além de serem tratados com invisibilidade em relação à sua exposição ao risco, tanto sexualmente como pelo uso de drogas ilícitas.

Esse agravo na terceira idade significa mais que uma doença, ou seja, torna-se um fenômeno social de grandes dimensões, uma vez que vem a impactar princípios morais, éticos e religiosos33 Rezende MCM, Lima TJPL, Rezende MHV. Aids na terceira idade: determinantes biopsicossociais. Rev. Estudos 2009; 36(1/2):235-253.. Comumente é pensado que o indivíduo idoso já não tem tantas habilidades e é inapto a executar algumas funções sozinho. Logo, é também difícil pensar que as pessoas idosas possam relacionar-se sexualmente. Essa resistência e dificuldade em ver a pessoa idosa como “ser sexualmente ativo” faz com que boa parte dos programas sociais destinados a este público seja voltado para a socialização.

Viver com o HIV na terceira idade e enfrentar as dificuldades impostas pela condição sorológica em relação à qualidade de vida torna-se um grande desafio, uma vez que, além de enfrentar as dificuldades que surgem com o envelhecimento, essas pessoas convivem também com uma doença estigmatizada, sem cura e regida pelo preconceito44 Andrade HAS, Silva SK, Santos MIPO. AIDS em idosos: vivências dos doentes. Esc. Anna Nery 2010; 14(4):712-719..

Considerando que essa investigação é fundamental para o conhecimento acerca das suas representações sociais, bem como da influência deste agravo no processo do envelhecer e no bem-estar do que envelhece, um estudo foi desenvolvido em Recife-PE com o objetivo de avaliar a qualidade de vida da pessoa idosa que vive com o HIV.

Método

Este estudo descritivo, quantitativo, de corte transversal foi realizado nos Serviços de Referência para o tratamento do HIV em Recife/PE. A população foi constituída por pessoas idosas infectadas pelo vírus HIV, de ambos os sexos, cadastradas nos serviços segundo dados fornecidos pela Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco – Programa Estadual de DST/AIDS.

A prevalência esperada para o evento – HIV foi de 50%, uma vez que, apesar de maximizar a amostra, os estudos sobre qualidade de vida em pessoas idosas infectadas com HIV, encontrados na literatura especializada, não apresentam consenso sobre essa magnitude.

Foi utilizado o Fator de Correção para População Finita, logo, o tamanho da amostra ficou determinado em 241 indivíduos que foram selecionadas por amostragem de conveniência e aleatória, de acordo com a agenda dos atendimentos ambulatoriais, com a distribuição dos antirretrovirais pelas farmácias e com a agenda dos laboratórios dos estabelecimentos.

Foram incluídos neste estudo aqueles indivíduos que estavam fazendo uso da Terapia Antirretroviral (TARV) há no mínimo 04 semanas e excluídos os que apresentaram déficit cognitivo, o qual foi investigado através do Mini Exame do Estado Mental (MEEM).

Foi utilizado o HIV/AIDS – Target Quality of Life (HAT-Qol) para avaliação da “Qualidade de Vida”. Trata-se de um instrumento específico para quem tem HIV composto por 34 perguntas, referentes às últimas 4 semanas, distribuídas em 9 domínios: função geral, satisfação com a vida, preocupações com a saúde, preocupações financeiras, preocupações com a medicação, aceitação do HIV, preocupações com o sigilo, confiança no profissional e função sexual55 Soárez PC, Castela A, Abrão P, Holmes WC, Ciconelli RM. Tradução e validação de um questionário de avaliação de qualidade de vida em AIDS no Brasil. Rev. Panam. Salud Publica 2009; 25(1):69-76..

Cada pergunta contém 5 opções de respostas (todo o tempo, a maior parte do tempo, parte do tempo, pouco tempo, nunca) com pontuações que variam de 1 (pior) a 5 (melhor), em que deve ser assinalada apenas a que caracteriza melhor as últimas 04 semanas. Após as respostas, foi realizada a soma dos valores atribuídos a cada item de cada um dos 9 domínios para se obter o escore total de cada. Em seguida, os valores foram transferidos para uma escala de 0 a 100, onde zero (0) corresponde ao pior escore e cem (100) ao melhor.

Na definição do uso de testes não paramétricos e paramétricos utilizou-se o Teste de Shapiro-Wilk. Não foi encontrada normalidade em nenhum dos domínios do HAT-Qol. Para testar a hipótese de que dois grupos teriam distribuição igual, foi utilizado o teste não paramétrico de Mann-Whitney e quando a comparação foi entre três ou mais grupos, utilizou-se o teste não paramétrico de Krurskal-Wallis.

O resultado desse teste indica a rejeição ou não da hipótese nula. A rejeição indica que ao menos um dos grupos é diferente dos demais, porém não informa qual. Nesse sentido, para descobrir quais grupos foram diferentes, utilizou-se os testes de comparações múltiplas descritos por Campbell e Skillings66 Campbell G, Skillings JH. Nonparametric Stepwise Multiple Comparasion Procedures. J Am Stat Assoc 1985; 80(392):998-1003.. Para todos os testes utilizou-se o nível de significância de 5%. Para verificar o grau de correlação entre os itens dos dados obtidos através do HAT-Qol, utilizou-se o coeficiente “alfa de Cronbach”.

A pesquisa desenvolvida está vinculada ao projeto “Identificação do perfil social e epidemiológico dos idosos infectados pelo HIV/AIDS assistidos em serviços de referência”, submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Pernambuco.

Resultados

Participaram 241 pessoas idosas, sendo 151 (62,7%) homens e 90 (37,3%) mulheres, com idade média de 64,9 anos que variou entre a idade mínima de 60 anos e a máxima de 82. Desses, 83 (34,4%) declararam-se solteiros, 74 (30,7%) casados e os demais, viúvos e separados. Houve prevalência daqueles que tinham entre 1 e 4 anos de estudo (28,6%), seguidos pelos que tinham entre 5 e 8 anos de estudo (24,5%) e em último lugar estavam os analfabetos (10,4%). Percebeu-se que os homens tem maior escolaridade e entre os analfabetos destacaram-se as mulheres.A raça prevalente foi a parda com 147 (61,0%) indivíduos e o tempo de diagnóstico variou de 6 meses a 30 anos, com uma média de 12 anos.

Em relação aos dados do HAT-Qol, as médias dos domínios oscilaram entre 49,59 e 86,35. O domínio que apresentou maior média foi “Preocupações com a medicação” e a menor foi encontrada em “Preocupações com o sigilo”. O primeiro é composto por 5 questões que avaliam o impacto do uso da TARV nas últimas quatro semanas. O segundo, também com 5 questões, investiga as ações frente ao sigilo no ambiente familiar e profissional.

Na avaliação de consistência interna obteve-se um alto coeficiente de alfa de Cronbach, o qual foi maior que 0,7 em todos os domínios com exceção da “Função Geral”, que apresentou um coeficiente de 0,65 conforme a Tabela 1.

Tabela 1
Caracterização da amostra segundo a distribuição dos domínios do HAT-QoL. Recife/PE. 2017.

Quanto aos escores médios, o desvio padrão e o resultado do teste de Mann-Whitney para cada domínio do HAT-Qol segundo o sexo, notou-se que o sexo masculino apresentou melhor escore em todas as dimensões, sendo no domínio “Função sexual” a maior diferença entre as médias. Ainda foi observado que houve diferença estatisticamente significante nos domínios: Função geral; Satisfação com a vida; Preocupações com a saúde e Preocupações financeiras como mostra a Tabela 2.

Tabela 2
Caracterização da amostra segundo a distribuição das médias e desvios padrões dos escores dos domínios do HAT-QoL por sexo. Recife/PE. 2017.

Ao realizar a avaliação da qualidade de vida segundo a variável “Idade” observou-se que apenas no domínio “Preocupações financeiras” houve diferença estatisticamente significante. Nesse domínio as pessoas idosas de 65 a 70 anos obtiveram a melhor média (65,4) de escore. Nos domínios “Preocupações com o sigilo” e “Confiança no profissional” o grupo de idosos acima de 70 anos obteve as melhores médias, com 55,7 e 80,7, respectivamente.

A “Situação conjugal” apresentou diferença estatisticamente significante apenas com a “Satisfação com a vida” e “Função sexual”. No primeiro domínio as pessoas casadas obtiveram melhor média (80,6), já na função sexual foram os separados (65,7). Nas comparações múltiplas, houve diferença estatisticamente significante do grupo de casados em relação ao de solteiros no domínio “Satisfação com a vida”, e no grupo de separados em relação aos viúvos no domínio “Função sexual”.

A “Escolaridade” foi estatisticamente significante na “Função geral”,“Satisfação com a vida”,“Preocupações financeiras”,“Confiança no profissional” e “Função sexual”. Com as comparações múltiplas identificou-se que os analfabetos ou com escolaridade de até 4 anos apresentaram comparativamente menores médias em relação àqueles com escolaridade superior a 5 anos de estudo.

Quanto a “Raça”, houve diferença estatisticamente significante no domínio “Aceitação do HIV” e “Função sexual”. Os melhores escores nesses domínios foram das pessoas que se declararam pardas, amarelas ou indígenas. Quando da realização das comparações múltiplas, apenas “Aceitação do HIV” apresentou diferença estatisticamente significante entre os grupos de pessoas pardas, amarela ou indígenas e o grupo de pessoas brancas.

As pessoas idosas com o “Tempo de Diagnóstico” superior a 20 anos obtiveram melhores médias nos domínios “Função geral, Satisfação com a vida, Preocupações com a saúde, Preocupações financeiras, Preocupações com a medicação, Aceitação do HIV e Confiança no profissional”. Já a diferença estatisticamente significante foi apenas em “Preocupações financeiras” (0,049) e “Aceitação do HIV” (0,002). Os testes de comparações múltiplas mostraram diferença estatisticamente significante apenas no domínio “Aceitação do HIV”, no qual aqueles com tempo de diagnóstico inferior a 5 anos apresentam um menor escore quando comparado aos demais.

Discussão

Segundo o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS, o indivíduo que tem HIV e idade igual ou superior a 50 anos já é considerado idoso, no entanto, conforme legislação nacional, foi considerado neste estudo “pessoa idosa” como aquela que tem idade igual ou superior a 60 anos. Nesse sentido, a idade média encontrada neste estudo foi de 64,9 anos, ou seja, são “idosos jovens”, pois tem idade entre 60 e 79 anos77 Santos PM, Souza BC, Marinho A, Mazo GZ. Percepção de qualidade de vida entre idosos jovens e longevos praticantes de hidroginástica. Rev. Bras. Qual. Vida 2013; 5(1):1-11..

Como citado anteriormente, aquelas pessoas na faixa etária dos 65 aos 70 anos obtiveram melhor escore no domínio “Preocupações financeiras”. Creditamos esse resultado ao fato de que provavelmente a pessoa com essa idade já tem maiores chances de ter alguma fonte de renda quando comparadas àquelas de 60 a 65 anos. Talvez essa diferença esteja relacionada a alguns pontos da legislação nacional voltada para a aposentadoria e benefícios assistenciais, sendo um deles o requisito para a aposentadoria por idade (65 anos para homens e 60 anos para mulheres que vivem em zona urbana), por isso, uma menor preocupação e uma melhor qualidade de vida nesse domínio.

Quanto à prevalência do HIV no sexo masculino existem vários fatores associados tais como a formação da identidade sexual masculina regida pelo tradicionalismo, por exemplo: início da sexualidade com prostitutas; a referência constante a um comportamento padronizado e a necessidade de correspondência às expectativas sociais dos amigos e sexuais das mulheres88 Goldenbert M. De Amélias a operárias: um ensaio sobre os conflitos femininos no mercado de trabalho e nas relações conjugais. In: Goldenbert M, organizadora. Os Novos Desejos. Rio de Janeiro: Record; 2000. p. 105-123..

Em relação à situação conjugal, relembramos que não faz muito tempo que a baixa expectativa de vida após os 60 anos e o preconceito existente na sociedade em relação ao divórcio nessa faixa etária, traziam uma conotação errônea quanto à separação entre as pessoas idosas, o que até pouco tempo atrás era incomun99 Aklander AR. "Divórcio grisalho": pesquisando atitudes e expectativas de mulheres separadas após longas uniões [dissertação]. Rio de Janeiro: Pontífica Universidade Católica; 2012.. No entanto, já nos anos 1990, foi previsto um aumento nas taxas de matrimônios desfeitos à medida que os baby boomers fossem envelhecendo, o que levaria a um maior número de pessoas idosas solteiras (em sua maioria homens) acompanhadas de atitudes liberais e comportamentos permissivos1010 Cherlin AJ. Recent Changes in American Fertility, Marriage and Divorce. Ann. Am. Acad. Pol. Soc. Sci. 1990; 510:145-154..

Acreditamos também que, no caso dos participantes do estudo, a existência da infecção pelo HIV e o estigma relacionado a essa problemática influenciam negativamente em assumir novos relacionamentos, talvez pelo medo de contaminar o outro ou então de ser rejeitado(a). Tal fato aplica-se também às pessoas viúvas, em sua maioria mulheres, das quais boa parte foi contaminada pelo parceiro, incidente que causa grande decepção e angústia e que leva à falta de confiança.

Quanto à escolaridade, não foi realizada a identificação em nível primário, fundamental, médio e superior dos entrevistados, porém, a quantidade de anos de estudo mais referida tanto pelos homens quanto pelas mulheres foi de 1-4 anos de escolaridade. Tais achados assemelham-se com o perfil nacional da infecção pelo HIV1111 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Boletim Epidemiológico - HIV/AIDS. Brasília: MS; 2016., ou seja, pessoas com menor grau de instrução são as mais acometidas. Nesse sentido, o nível de escolaridade torna-se um importante componente na caracterização social do indivíduo1212 Rodrigues Júnior AL, Castilho EA. A epidemia da Aids no Brasil, 1991-2000: descrição espaço-temporal. Rev. Soc. Bras. Med. Trop. 2004; 37(4):312-317., podendo também estar relacionada à melhoria ou piora da qualidade de vida das pessoas1313 Liping M, Peng X, Haijiang L, Lahong J, Fan L. Quality of life of people living with HIV/AIDS. A cross-sectional study in Zhejiang Province, China. PloS ONE 2015; 10(8): e0135705..

Durante 8 anos (2007 a 2015), mais de 50% dos casos de HIV registrados no Sinan foram em pessoas que se declararam pretas e pardas em ambos os sexos1111 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Boletim Epidemiológico - HIV/AIDS. Brasília: MS; 2016.. Resultado semelhante foi encontrado neste estudo, no qual a variável “Raça” apenas apresentou diferença estatisticamente significativa com o domínio “Aceitação do HIV”, e quando realizado o teste de comparações múltiplas identificamos que os que têem uma melhor aceitação são os pardos, amarelos ou indígenas ao contrário dos que se declararam brancos.

Provavelmente esse resultado está relacionado ao contexto sociocultural em que nossa sociedade foi construída. Nela, os “brancos” sempre ocuparam um status social e econômico privilegiado, logo não seria fácil a aceitação de uma doença que está historicamente relacionada à vida promíscua, baixa renda, baixa escolaridade e que é mais comum nos negros e pardos1111 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Boletim Epidemiológico - HIV/AIDS. Brasília: MS; 2016..

Quanto ao “Tempo de diagnóstico” (máximo 30 anos) encontrado nesse estudo, poder-se-ia dizer que é o reflexo de uma alta eficácia e efetividade da Terapia Antirretroviral (TARV). Esta é de suma importância na resposta à infecção pelo HIV, pois atua prevenindo as conhecidas “infecções oportunistas” e consequentemente a morte. Logo, se a pessoa que vive com o HIV não interromper o tratamento poderá usufruir de uma expectativa de vida de aproximadamente 50 anos1414 UNAIDS. Prevention Gap Report. New York: UNAIDS; 2016..

Portanto, esse maior tempo de infecção poderia estar associado à uma melhoria na qualidade de vida, ou seja, à experiência do conviver com o HIV, visto a princípio como o fim, faz com que cada dia se torne um aprendizado. Assim, é necessário esse passar do tempo para que a aceitação da doença seja concreta1515 Reis RK, Haas VJ, Santos CB, Teles SA, Galvão MTG, Gir E. Sintomas de Depressão e Qualidade de Vida de Pessoas vivendo com HIV/aids. Rev. Latinoam. Enfermagem 2011; 19(4):874-881..

A maioria das pessoas que vivem com o HIV não se sentem confortáveis em revelar sua condição sorológica, optam por ocultá-la a maior parte do tempo e quando não, a vida toda, e procuram fazer da melhor maneira, para que assim evitem o preconceito1616 Lent C, Valle A. Aids: sujeito e comunidade. São Paulo: IDAC; 2000.. Essa informação justifica a menor pontuação encontrada neste estudo que foi “Preocupação com o sigilo”, a qual está fortemente associada ao estigma, preconceito, discriminação, desvalorização e julgamento do comportamento1717 Okuno MFP, Gomes AC, Meazzini L, Scherrer Júnior G, Belasco Júnior D, Belasco AGS. Qualidade de vida de pacientes idosos vivendo com HIV/AIDS. Cad Saude Publica 2014; 30(7):1551-1559..

Quanto aos resultados dos domínios do HAT-Qol segundo os sexos, o masculino obteve as maiores médias em todos. Isso pode significar que a qualidade de vida da mulher que vive com HIV é inferior à dos homens, sendo um dos principais motivos a associação do sexo feminino à “fragilização” impedindo assim autonomia feminina na participação social. Percebe-se que nos dias atuais a mulher ainda é tratada como “dependente do homem (marido)” e incapaz de ter e exercer os direitos cíveis, assim, essa desigualdade provoca repercussões negativas na qualidade de vida1818 Honório MD. "Cabra-macho, sim senhor!": um estudo sobre a masculinidade no nordeste do Brasil. GT 16 - Novas Sociologias: pesquisa interseccionais feministas, pós-coloniais. Curitiba: XV Congresso Brasileiro de Sociologia; 2011..

Quando o assunto é qualidade de vida, é oportuno lembrar que a função sexual exerce grande influência. A partir disso, relembramos a diferença entre as médias (a maior de todas) da função sexual entre os homens e as mulheres, conforme visto na Tabela 2. Poder-se-ia associar tal discrepância ao fato de que a maioria das mulheres, quando se torna conhecedora da sua sorologia, abnega-se da atividade sexual por alguns motivos: preocupação em “contaminar” o outro; falta de confiança; dificuldade em negociar o uso do preservativo1717 Okuno MFP, Gomes AC, Meazzini L, Scherrer Júnior G, Belasco Júnior D, Belasco AGS. Qualidade de vida de pacientes idosos vivendo com HIV/AIDS. Cad Saude Publica 2014; 30(7):1551-1559..

Outro fator relacionado ao resultado encontrado neste estudo no tocante à função sexual é que ainda no século XXI persistem os tabus voltados para a sexualidade da pessoa idosa, ou seja, este é um assunto que segue fortemente associado à jovialidade e dessa forma um corpo que já apresenta os sinais do envelhecimento humano não torna-se interessante, nem tampouco capaz de provocar desejos, principalmente quando trata-se das mulheres1919 Goldenberg M. Mulheres e envelhecimento na cultura brasileira. Cad. Espaç. Fem. 2012; 25(2):46-56..

Conclusão

Percebemos que a amostra deste estudo apresenta características similares ao perfil nacional das infecções por HIV, entretanto, por se tratar de indivíduos idosos, conta com uma característica particular: a cronicidade da infecção. A partir dessa informação podemos ver o quanto a indústria farmacêutica tem avançado no tratamento desse agravo, algo que pode refletir positivamente na melhoria da qualidade de vida.

Vale relembrar que o processo do envelhecimento vem acompanhado de várias alterações físicas, algumas vezes psíquicas e quase sempre clínicas, estas por sua vez têm como característica principal as doenças crônicas não transmissíveis as quais dependendo das condições biopsicossociais do indivíduo acometido, podem ter um peso maior ou menor na qualidade de vida.

Entretanto, o que pensar quando a doença crônica trata-se da infecção pelo HIV? Qual a intensidade do impacto desse agravo na qualidade de vida, principalmente quando acomete a pessoa idosa? Segundo resultados da presente pesquisa, parece haver uma dificuldade maior por parte das mulheres em relação ao enfrentamento, principalmente no quesito “função sexual”, pois trata-se de mulheres idosas e acometidas por um agravo sem cura (por enquanto), ligado à imagem de uma vida promíscua.

A partir desse resultado percebemos a importância em considerar a atividade sexual como influenciadora do bem estar na terceira idade, principalmente quando tratar-se da mulher idosa, a qual vivencia de forma mais negativa a dificuldade da sociedade em reconhecer o “ser idoso” como indivíduo sexualmente ativo. Na maioria dos casos ocorre a própria negação através da resistência em sentir-se atraente ou então atraída por outra pessoa.

Essa reação e negação muitas vezes estende-se à maioria das famílias, fato que contribui para que assuntos como a “prática do sexo seguro” sejam tratados apenas com os jovens e para aqueles mais velhos a discussão é voltada para a socialização.

No mais, podemos considerar que os longos anos de convivência com o HIV tiveram uma influência positiva na qualidade de vida dos entrevistados, uma vez que o tempo é necessário para que haja adaptação às mudanças que esse agravo provoca. Se no início essa epidemia invalidava o indivíduo, atualmente devido aos avanços da ciência, é possível viver normalmente, basta para isso a assiduidade no uso da terapia antirretroviral.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    04 Abr 2018
  • Aceito
    14 Set 2018
  • Publicado
    16 Set 2018
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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