Do paradigma psicossocial à moral religiosa: questões éticas em saúde mental

Adriana Dias de Assumpção Bastos Sonia Alberti Sobre os autores

Resumo

Na época em que as Comunidades Terapêuticas (CTs) chegaram ao Brasil, a lei sobre drogas era de competência jurídica e se aliava ao proibicionismo. Com a abertura política no final do século XX e o movimento da reforma psiquiátrica, instituiu-se uma política de competência da saúde para usuários de drogas. Com isso, abriram-se dois paradigmas antinômicos na gestão pública: o proibicionista e o psicossocial. Atualmente, vemos crescer no cenário brasileiro a discussão sobre o financiamento público das Comunidades Terapêuticas (CTs), o que introduz uma nova questão. Ela é ética e implica os limites entre a esfera pública e a privada na governança em saúde. Pesquisando a inserção das CTs, foi possível verificar, sua história no Brasil, a ligação delas com a religião, e os relatórios feitos a partir de inspeções nos seus funcionamentos. A metodologia de pesquisa seguiu o levantamento de documentos, artigos e livros, sites, manchetes de jornal, internet, a subsequente coleta de informações e análise dos dados. Como resultado observou-se um recrudescimento do paradigma proibicionista e sua associação à moral religiosa, o que é corroborado por autores que discutem as políticas de saúde para usuários de drogas.

Palavras-chave:
Política de Saúde; Usuários de Drogas; Serviços de Saúde Mental; Comunidades Terapêuticas; Religião

Introdução

Como trabalhadores e pesquisadores no campo da saúde mental e das políticas públicas para o campo de álcool e outras drogas desde 2005, temos acompanhado os avanços e retrocessos na gestão em saúde pública. Vimos a Redução de Danos (RD) tomar corpo enquanto diretriz política e como prática no cotidiano do trabalho, com o incremento dos Centros de atenção psicossocial (CAPS) a partir de sua instituição em 200211 Brasil. Portaria nº 336 de 19 de fevereiro de 2002. Dispõe sobre os Centros de Atenção Psicossocial - CAPS, para atendimento público em saúde mental, isto é, pacientes com transtornos mentais severos e persistentes em sua área territorial, em regime de tratamento intensivo, semi-intensivo e não-intensivo. Diário Oficial da União 2002; 20 fev.. Com isso, presenciamos um avanço no sentido da consolidação da atenção psicossocial no campo da saúde mental. Esse avanço, como veremos, é corroborado pela análise do texto das leis que regulam o campo de álcool e outras drogas.

Ao lado da consolidação da atenção psicossocial e da política de redução de danos, houve um importante incremento nos últimos anos da participação daqueles que se autodenominaram “Comunidades Terapêuticas” (CTs), consideradas, desde 2011, “pontos de atenção na Rede de Atenção Psicossocial na atenção residencial de caráter transitório”22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União 2011; 24 dez., passando, portanto, a fazer parte da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), mas, diferentemente dos CAPS, estas não se orientavam privilegiadamente pela política de redução de danos. Apesar disso, as CTs passaram a dividir o atendimento aos usuários com o trabalho dos CAPS e outros dispositivos que seguiam a mesma orientação destes. Sendo as CTs instituições privadas que recebem auxílio financeiro público, distam também nisso dos dispositivos públicos criados com a reforma psiquiátrica de 2001. No que tange a especificidade dos CAPSad - que atendem usuários de drogas e álcool -, a discrepância entre suas orientações e aquelas das CTs foram se tornando ainda mais evidentes.

A implementação da política de Redução de Danos não ocorreu sem dificuldades, dentre elas o estigma social que recai sobre o usuário de drogas, o que infelizmente persiste ainda hoje. A cultura da internação era, no início do século XXI - momento em que ações de redução de danos, que vinham sendo praticadas no Brasil desde o final do século anterior, se ampliaram e tomaram o estatuto de uma diretriz política do Ministério da Saúde -, muito pregnante, e ainda hoje faz parte de um discurso bastante enraizado e que, como podemos depreender dos resultados de nossa pesquisa, parece estar novamente tomando força. A proposta de internação em CTs tem sido o novo (velho?) mote de tratamento para usuários de drogas.

O paradigma ético, clínico e político da atenção psicossocial, que vinha sendo construído desde o início da reforma de 2001, tem como princípios “a desinstitucionalização; a liberdade; a autonomia e a cidadania”33 Teixeira MB, Ramôa ML, Engstrom E, Ribeiro, JM. Tensões paradigmáticas nas políticas públicas sobre drogas: análise da legislação brasileira no período de 2000 a 2016. Cien Saude Colet 2017; 22(5):1455-1466.(p.1456). Foi essa orientação que introduziu, nos primeiros anos deste século, a política da Redução de Danos, tão importante para o trabalho nos CAPS. Uma das perguntas que orientam nossa pesquisa é: como mantê-lo, no momento em que se passa a privilegiar o financiamento de instituições privadas que, como veremos, desenvolvem uma perspectiva psicossocial bastante diferente daquela que é sustentada, justamente, pelo paradigma psicossocial da reforma? Observação já feita por Fracasso, ao descrever o modelo psicossocial das CTs, cuja “perspectiva psicossocial [...] difere da lógica da Atenção Psicossocial da RAPS, pois esta implica a concepção da integralidade e de outros princípios do SUS, aqui não contemplados”44 Fracasso L. Comunidades terapêuticas: histórico e regulamentações. Aberta/Senad/MJ [Internet]. [acessado 2017 Dez 12]. Disponível em: http://www.aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170605-134703-001.pdf
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.

O objetivo do artigo é verificar, em termos de políticas públicas - e mais especificamente, de políticas de saúde -, esse duplo movimento que se deu a partir de 2011, de um lado, o paradigma psicossocial e, portanto, da política de redução de danos como diretriz para o campo de álcool e outras drogas, de outro, o protagonismo cada vez mais visível das CTs.

Metodologia

Partimos de uma revisão sistemática abrangendo diferentes tipos de fontes, desde artigos científicos até sites e matérias de jornais, material com o qual começamos a tentar responder as questões que nos eram impostas quando, no trabalho clínico em um CAPSad, nos deparamos com o crescimento das CTs (Tabela 1).

Tabela 1
Fontes pesquisadas.

A diversidade de fontes desse material se deveu ao fato de nossa pesquisa abarcar atores diversos no campo das políticas públicas, como as CTs e os Serviços de Saúde Mental, os usuários de drogas, assim como a religião e a própria história das CTs. Sempre procuramos preservar o modo discursivo encontrado em cada material por mais diverso que fosse.

A escolha das fontes não seguiu uma vertente única. Identificamos algumas palavras-chave para nos acercarmos do que estava sendo produzindo em termos de artigos científicos sobre o tema. A palavra-chave ‘CTs’ geralmente vem acompanhada pela palavra-chave ‘usuário de drogas’ ou outro termo alusivo ao uso de drogas. O que se revelou nesse estudo é que os termos utilizados como ferramenta de investigação, geralmente, se entrecruzam nas pesquisas feitas na internet. Analisamos sites tanto das próprias CTs, de órgãos públicos quanto de entidades religiosas. Por vezes, a procura por um determinado tema nos levou a novos caminhos de pesquisa. Por exemplo: o site “Aberta: portal de formação à distância - sujeitos, contextos e drogas” da Secretária Nacional de Políticas Sobre Drogas (Senad/MJ), em que encontramos um módulo sobre o histórico e regulamentação das CTs44 Fracasso L. Comunidades terapêuticas: histórico e regulamentações. Aberta/Senad/MJ [Internet]. [acessado 2017 Dez 12]. Disponível em: http://www.aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170605-134703-001.pdf
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, nos levou a pesquisar as CTs pioneiras no Brasil e, portanto, a um percurso histórico para compreender a atual inserção das CTs no âmbito das políticas públicas, além de verificar a origem da relação entre CTs, instituições religiosas e o tratamento moral.

Para além dos artigos científicos e sites, retomamos: 1) textos legislativos sobre o campo de álcool e outras drogas; 2) Notas Técnicas e relatórios produzidos por entidades, como institutos de pesquisa e órgãos regulamentadores de profissões, e 3) livros e capítulos de livros cujos autores são referência para o tema proposto.

Análise do material encontrado

Todos os documentos e reportagens tomados como material de trabalho nessa pesquisa, por um lado demonstram a circulação entre o que é produzido na esfera pública, suas diretrizes políticas e o efeito delas na população e, por outro lado, revelam questões éticas importantes no que tange o financiamento público de instituições privadas. Também procuramos verificar o grau de afinidade entre o posicionamento ético das políticas públicas de saúde e o das comunidades terapêuticas.

Resultados

Uma questão sobre a escalada de incentivos: um breve histórico

Nossa pesquisa nos levou a um levantamento que acabou por trazer um rico testemunho sobre a maneira pela qual o discurso sustentado pelas CTs é legitimado, não apenas historicamente, como também em articulação com a psicologia, a psiquiatria e as ciências sociais. Na realidade, vários textos em defesa da atual modalidade das CTs são de autoria de mestres e doutores que desenvolvem trabalhos diretamente ligados às próprias CTs. Certamente, muitos desses profissionais sustentam um trabalho sério que se associa ao de pessoas que lideram instituições religiosas com todas as isenções fiscais a que têm direito, por lei. Foram essas que, na última década, galgaram posições importantes, legitimando politicamente as atividades das CTs ligadas a instituições privadas, para o que também se associaram a pessoas que se formaram, às vezes em instituições científicas de renome, para garantir um discurso articulado ao discurso acadêmico, tendo como única visada a defesa das atuais CTs e, last but not least, a de militar politicamente pelo financiamento governamental das CTs do modo como hoje se constituem.

De acordo com a Nota Técnica da IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada):

Além de financiamentos diretos, diversas CTs são portadoras de certificações, que são concedidas, pelos poderes legislativos e executivos das três instâncias administrativas, a instituições que prestam serviços de interesse do poder público. Estas certificações constituem-se em formas indiretas de subvenção pública, uma vez que autorizam o não pagamento de diversos tributos55 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Nota Técnica: Perfil das Comunidades terapêuticas brasileiras. Brasília: Diest/IPEA; 2017.(p.31).

Existem vários tipos de certificações passíveis de serem pleiteadas pelas CTs, que, como podemos ver nos dados retirados da Nota do IPEA55 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Nota Técnica: Perfil das Comunidades terapêuticas brasileiras. Brasília: Diest/IPEA; 2017., são amplamente concedidos, conforme a Tabela 2.

Tabela 2
Certificações concedidas às CTs.

A primeira regulamentação técnica das CTs foi feita pela ANVISA66 Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). RDC 101, de 30 de maio de 2001. Regulamento Técnico sobre o funcionamento dos serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso ou abuso de substâncias psicoativas (SPA), segundo modelo psicossocial, também conhecidos como Comunidades Terapêuticas (CT). Diário Oficial da União 2001; 31 de maio. Revogada pela RDC nº 29, de 30 de junho de 2011., em 2001, em que se manifesta a tentativa de garantir uma melhor qualidade desses serviços através de sua fiscalização. Já em 200377 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Executiva. Coordenação Nacional de DST/Aids. A Política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília: MS; 2003., as CTs apareciam como uma preocupação no texto da lei que se propunha a dar as diretrizes para o tratamento de usuários de drogas, pois esses serviços autointitulados “Comunidades Terapêuticas [...] multiplicaram-se sem qualquer regulamentação, evidenciando-se um funcionamento precário para muitos deles”77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Executiva. Coordenação Nacional de DST/Aids. A Política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília: MS; 2003.(p.46), o que levou à necessidade de explicitar, no texto padronizador, que o Conselho Nacional Antidrogas, CONAD, estabelecesse “um padrão básico para funcionamento dos mesmos, assegurando direitos e um mínimo de qualidade aos usuários”77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Executiva. Coordenação Nacional de DST/Aids. A Política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília: MS; 2003.(p.46, grifo nosso). Mas oito anos depois, as CTs são, ao contrário, institucionalizadas, como “serviço de saúde destinado a oferecer cuidados contínuos de saúde, de caráter residencial transitório por até nove meses para adultos com necessidades clínicas estáveis decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas”22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União 2011; 24 dez.. Essa Portaria de 2011 é, aliás, bastante paradoxal porque, de um lado, sustenta “estratégias de desinstitucionalização”, visando os Serviços Residenciais Terapêuticos, “moradias inseridas na comunidade, destinadas a acolher pessoas egressas de internação de longa permanência”22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União 2011; 24 dez.(grifo nosso), mas, por outro lado, advoga pelo recolhimento de até nove meses para adultos drogaditos. Numa escalada de incentivos, um ano depois, instituiu-se o “incentivo financeiro de custeio destinado aos Estados, Municípios e ao Distrito Federal para apoio de Comunidades Terapêuticas, voltado para pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas, no âmbito da Rede de Atenção Psicossocial”88 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 131, de 26 de janeiro de 2012. Institui incentivo financeiro de custeio destinado aos Estados, Municípios e ao Distrito Federal para apoio ao custeio de Serviços de Atenção em Regime Residencial, incluídas as Comunidades Terapêuticas, voltados para pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas, no âmbito da Rede de Atenção Psicossocial. Diário Oficial da União 2012; 27 jan.. Incentivo que até hoje ainda não foi liberado pelo Ministério da Saúde pelo simples fato de que esses estabelecimentos não se mostram conformes ao estabelecido na regulamentação da ANVISA99 Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). RDC 29, de 30 de junho de 2011. Dispõe sobre os requisitos de segurança sanitária para o funcionamento de instituições que prestem serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de substâncias psicoativas. Diário Oficial da União 2011; 1 jul..

A denominação Comunidade Terapêutica (CT) e os investimentos públicos no tratamento de usuários de drogas

Por CT entendia-se, na segunda metade do século XX, uma proposta de reformulação das instituições psiquiátricas que vigiam então. Denominada em 1959 por Maxwell Jones - psiquiatra sul-africano que viveu radicado no Reino Unido, considerado o criador do conceito -, a CT visava dinamizar a organização de ‘grupos de discussão’ e ‘grupos operativos’ que envolvessem pacientes internados em seus tratamentos. Jones “entendia que a função terapêutica era uma tarefa que deveria ser assumida por todos, fossem técnicos, fossem os familiares, fossem os pacientes. Para tanto, introduziu reuniões, assembleias diárias, quando todos os aspectos relacionados à instituição eram debatidos”1010 Amarante P. Saúde Mental e atenção psicossocial. 20ª ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007.(p.42). É interessante notar que, aos poucos, e especialmente nos Estados Unidos, associou-se o tratamento psiquiátrico ao tratamento de usuário de drogas e utilizou-se essa mesma denominação, que originalmente tinha uma proposta bastante progressista, para instituir uma orientação que, como observado, é, ao contrário daquela, fundamentalmente segregacionista, pois visa, cada vez mais, a marginalização de usuários de drogas, indicando a internação para todos. O interessante nisso não é apenas o fato de que se desvirtuou totalmente aquela ideia original da CT, mas também a mudança de seu emprego, associando-a ao tratamento de usuários de drogas. De acordo com De Leon, “Afora a designação, não há elementos que permitam ver com clareza se as CTs psiquiátricas inglesas influenciaram as CTs de tratamento da dependência química na América do Norte”1111 De Leon, G. A comunidade terapêutica: teoria, modelo e método. 5a ed. São Paulo: Edições Loyola Jesuítas; 2014.(p.14).

Há uma hipótese, de 18 de abril de 2017 do IPEA55 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Nota Técnica: Perfil das Comunidades terapêuticas brasileiras. Brasília: Diest/IPEA; 2017., segundo a qual uma das origens do que hoje se divulga como CTs remonta às propostas do Doutor ou Reverendo Frank Buchman (que viveu de 1878 a 1961), criador do Grupo de Oxford, nos Estados Unidos e na Inglaterra, associado por Fracasso à criação dos grupos AA tendo como mote a espiritualidade1212 Fracasso L. Comunidades terapêuticas. In: Diehl A, Cordeiro D, Laranjeira R, organizadores. Dependência química: prevenção, tratamento e políticas públicas [CD-ROM que acompanha o livro]. Porto Alegre: Artmed; 2011. p. 61-69.. O que explicaria como algumas práticas utilizadas por Jones foram incorporadas pelas CTs do Brasil e outros países, adquirindo “características próprias, combinando fundamentos religiosos a práticas originárias do campo médico-psiquiátrico, em uma obra que se propõe pia e moralizante”55 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Nota Técnica: Perfil das Comunidades terapêuticas brasileiras. Brasília: Diest/IPEA; 2017.(p.9).

As atuais CTs identificam os usuários de drogas como tendo uma doença incurável1313 Costa SF. As Políticas Públicas e as Comunidades Terapêuticas nos Atendimentos à Dependência Química [Internet]. [acessado 2017 Dez 10]. Disponível em: http://www.uel.br/revistas/ssrevista/pdf/2009/29%20AS%20POL%CDCAS%20P%DABLICAS%20E%20AS%20COMUNIDADE%20TERAP%CAUTICAS-COM%20REVIS%C3O%20DO%20AUTOR.pdf
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(p.5), o que introduz a orientação religiosa nas “‘fazendas’ e ‘fazendinhas’ de tratamento de dependência a álcool e drogas, geralmente de natureza religiosa, que se denominam - de forma oportunista e fraudulenta - ‘comunidades terapêuticas’ para ganharem legitimidade social e científica”1010 Amarante P. Saúde Mental e atenção psicossocial. 20ª ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007.(p.43). E é justamente essa legitimidade que vem fazendo com que o trabalho com usuários de drogas e psicóticos tenha cada vez menos oportunidade de auferir um investimento público. Senão vejamos:

Em 2002, o então Ministro da Saúde José Serra julgava procedente que a cada 200 mil habitantes houvesse um CAPS III e a cada município com mais de 70 mil habitantes, um CAPSad II11 Brasil. Portaria nº 336 de 19 de fevereiro de 2002. Dispõe sobre os Centros de Atenção Psicossocial - CAPS, para atendimento público em saúde mental, isto é, pacientes com transtornos mentais severos e persistentes em sua área territorial, em regime de tratamento intensivo, semi-intensivo e não-intensivo. Diário Oficial da União 2002; 20 fev.. Com um total de trinta e três CAPS1414 Prefeitura do Rio de Janeiro [Internet]. [acessado 2017 Jun 14]. Disponível em: http://prefeitura.rio/web/sms/caps
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para o atendimento de toda população do Município do Rio de Janeiro - estimada em 6.520.266 habitantes pelo IBGE1515 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) [Internet]. 2018 [acessado 2018 Jan 27]. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/v4/brasil/rj/rio-de-janeiro/panorama
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em 2017 -, temos hoje1414 Prefeitura do Rio de Janeiro [Internet]. [acessado 2017 Jun 14]. Disponível em: http://prefeitura.rio/web/sms/caps
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apenas dois CAPSad II e quatro CAPSad III e um CAPSad II da rede estadual, somando um total de sete CAPSad. Ora, a lei que regulamentou a reforma psiquiátrica no Brasil é de 2001, A Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de álcool e outras drogas data de 2003, estamos em 2017 e temos apenas sete CAPSad com a missão de atender uma população de mais de seis milhões de habitantes e apenas quatro CAPSad III, que têm a capacidade de atender, também durante a crise, as necessidades de usuários que são também psicóticos!

O que se revela é a impossibilidade de atender a demanda da população que necessitaria desse tipo de serviço, com a quase absoluta falta de investimentos do governo no incremento do trabalho laico, sustentado na experiência que diferentes profissionais em saúde mental adquiriram durante os últimos dez anos, na rede. Observe-se ainda que, na atualidade, não há qualquer mobilização do Estado para constituir outros equipamentos a comporem a rede pública de saúde mental, malgrado as inúmeras mobilizações de trabalhadores e usuários da saúde mental visando alertar as autoridades, fazendo circular no Facebook1616 Página do Facebook [Internet]. 2017 [acessado 2018 Dez 26]. Disponível em: https://www.facebook.com/NenhumServicoMenos/
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e Whatsapp, vários vídeos na tentativa de evitar, em 2017, o fechamento e desmonte de dispositivos no Rio de Janeiro. O desmonte denunciado só faz aumentar a descrença no atendimento público interpretado como falho e ineficaz, justificando, cada vez mais, o investimento nas CTs.

As CTs do século XXI aparecem aí e, na sua grande maioria, foram criadas por comunidades religiosas, no mais das vezes, evangélicas neopentecostais. Em pleno ano de 2012, ressurge o financiamento, pelo Estado, de instituições não estatais para tratamento de pacientes em sofrimento psíquico - aquilo que justamente a Reforma Psiquiátrica de 2001 havia afastado, fechando os hospitais psiquiátricos de iniciativa privada e que engrossavam com polpudos incentivos governamentais os bolsos de seus proprietários, em detrimento do atendimento clínico, físico e social de seus pacientes...

Em 2016, ao considerar as comunidades terapêuticas incluídas na “Tabela de Tipos de Estabelecimentos de Saúde do CNES, o tipo 83 − POLO DE PREVENÇÃO DE DOENÇAS E AGRAVOS E PROMOÇÃO DA SAÚDE”1717 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 1.482, de 25 de outubro de 2016. Inclui na Tabela de Tipos de Estabelecimentos de Saúde do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde - CNES o tipo 83 - Polo de Prevenção de Doenças e Agravos de Promoção da Saúde. Diário Oficial da União 2016; 27 out., a Portaria nº1.482 praticamente legitima as CTs como serviços de saúde, o que é muito grave, pois a grande maioria é de serviços religiosos e não de saúde. Diferentemente dos hospitais-colônia, privados, que eram subvencionados na segunda metade do século XX, as CTs que se consolidam na segunda década do século XXI são, na sua expressiva maioria, instituições de cunho religioso. Por um lado, garantem sua abrangência como ação diretamente promovida pelo Ministério da Saúde, por outro lado, legitimam-se na tradição do método dos “Doze passos ou Minesotta”.

De acordo com De Leon, “Os 12 passos e as 12 tradições de AA são os princípios que guiam o indivíduo no processo de recuperação” [...que, em verdade], “enfatizam a perda de controle da pessoa com relação à substância e a entrega a um ‘poder superior”1111 De Leon, G. A comunidade terapêutica: teoria, modelo e método. 5a ed. São Paulo: Edições Loyola Jesuítas; 2014.(p.19). Dentre os princípios de AA advindos do grupo de Oxford, “estão a noção de confessar-se aos outros”1111 De Leon, G. A comunidade terapêutica: teoria, modelo e método. 5a ed. São Paulo: Edições Loyola Jesuítas; 2014.(p.19). Ao analisarem o modelo de tratamento das CTs, Fossi e Guareschi apontam para “as práticas de confissão no tratamento para usuários de drogas, como a articulação entre a moral religiosa e as tecnologias de disciplina e a biopolítica na conformação do modelo de atenção à saúde nesse contexto”1818 Fossi LB, Guareschi NMF. O modelo de tratamento das comunidades terapêuticas: práticas confessionais na conformação dos sujeitos. Estudos Pesquisas Psicol 2015; 15(1):94-115.(p.94).

Seis comunidades pioneiras

Para examinarmos um pouco mais de perto a situação das CTs no contexto brasileiro, é preciso percorrermos sua história levando em conta o modelo de tratamento por elas proposto, a ligação das CTs com a moral religiosa, sua introdução nas políticas públicas e, ainda, examinar quem são os personagens que sustentam a eficácia de seu modelo de tratamento.

Partamos do exemplo de Laura Fracasso (cujos dados curriculares variam conforme o site), psicóloga graduada pela Universidade Metodista de São Paulo. É autora de um módulo do curso promovido e publicado pela Senad/MJ, em que data o início da CT no modelo “primeiramente desenvolvido na unidade de reabilitação social do Hospital Belmont (mais tarde chamado de Henderson), na Inglaterra, na metade da década de 1940”44 Fracasso L. Comunidades terapêuticas: histórico e regulamentações. Aberta/Senad/MJ [Internet]. [acessado 2017 Dez 12]. Disponível em: http://www.aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170605-134703-001.pdf
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(p.4). Apresenta um infográfico com o mapa do Brasil situando nele o que identifica como tendo sido as seis primeiras experiências de CT no país, todas elas da década de 1970, com exceção de uma fundada em Goiás, em 1968, o “Movimento Jovens Livres”, na casa de um casal de missionários evangélicos, como se lê no site do próprio “Movimento”. Das seis CTs indicadas, apenas uma não figura como tendo sido fundada por um religioso, a Clínica Pinel S.A., cuja data de fundação seria 1975, conforme o infográfico, em Porto Alegre. Marcelo Blaya Perez, que teria sido seu fundador, é, na realidade, um médico psiquiatra com formação sólida. A Clínica também tem um site1919 Perez MB. A clínica [Internet]. [acessado 2018 Jan 1]. Disponível em: http://www.clinicapinel.com.br/index.php/clinica
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e, nele, é o texto desse médico que figura na apresentação da instituição. Descreve seu próprio percurso, como chegou ao Rio Grande do Sul depois de ter terminado sua residência médica nos Estados Unidos na década de 1950, da falta que lhe fazia um lugar onde pudesse internar pacientes psicóticos de sua própria clínica e de como foi inicialmente acolhido pelo Hospital Espírita, mas, diante de uma certa ingerência religiosa nos tratamentos de seus pacientes, acabou decidindo criar sua própria clínica, a Pinel S.A., fundada em 28 de março de 1960. Recebia residentes de todo país e, depois de ter sido concursado na UFRGS como professor de Psiquiatria, a Pinel S.A., por ele criada, passou a receber residentes em psiquiatria de modo que lhes fosse franqueada uma formação não só teórica como também prática, na qual “aprenderam convivendo com os pacientes, familiares e colegas, o que as teorias dos livros ensinavam”1919 Perez MB. A clínica [Internet]. [acessado 2018 Jan 1]. Disponível em: http://www.clinicapinel.com.br/index.php/clinica
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. Descreve aquela experiência como pioneira para tratamento de psicóticos no Brasil, na qual se combinavam práticas de grupos ocupacionais e recreativos numa “comunidade clínica com regras e práticas que dessem ao psicótico/família condições para a ressocialização [e que] possibilitaram um bom índice de recuperação”1919 Perez MB. A clínica [Internet]. [acessado 2018 Jan 1]. Disponível em: http://www.clinicapinel.com.br/index.php/clinica
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. No momento em que o paciente e seus familiares aceitassem “o risco de viver na comunidade”, o paciente tinha acesso tanto ao hospital-dia quanto ao hospital-noite, também pioneiros no Brasil, de modo que “estes programas permitiam que eles passassem a noite e fim de semana no seu meio familiar, permanecendo na comunidade terapêutica nos horários diurnos, como os alunos de uma escola”1919 Perez MB. A clínica [Internet]. [acessado 2018 Jan 1]. Disponível em: http://www.clinicapinel.com.br/index.php/clinica
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. Não havia qualquer orientação religiosa no trabalho do Dr. Perez, inspirado nos movimentos de vanguarda de então, numa nova forma de tratar pacientes psicóticos, na contramão das muitas instituições totais descritas por Goffman2020 Goffman E. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: Editora Perspectiva S.A.; 1974., clínico e orientado pelo discurso científico e com propostas dialetizadas.

Para o Prof. Dr. Perez, a orientação da clínica como CT para pacientes psicóticos durou apenas de 1960 a 1980. Depois disso, sua orientação foi completamente modificada e já não se trata mais da clínica “como descrita acima”. Por algum motivo, o médico deixou de orientar os trabalhos da clínica nessa data, apesar de ter se aposentado de suas funções clínicas somente em 20052121 Museu de História de Medicina do Rio Grande do Sul [Internet]. [acessado 2018 Jan 1]. Disponível em: http://www.muhm.org.br/?formulario=obras&submenu=5&metodo=0&id=137
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. Quem coordena atualmente os Serviços da Clínica é sua neta, Beatriz Blaya, psicóloga. Ela tem quatro enfermarias, de internação, duas masculinas e duas femininas2222 Clínica Pinel de Porto Alegre [Internet]. [acessado 2018 Jan 2]. Disponível em: http://www.clinicapinel.com.br/index.php/servicos/internacao-3
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. Uma das masculinas é exclusivamente para “dependência química a partir de 18 anos de idade” e uma das femininas “dispõe de programas especiais”2222 Clínica Pinel de Porto Alegre [Internet]. [acessado 2018 Jan 2]. Disponível em: http://www.clinicapinel.com.br/index.php/servicos/internacao-3
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para pacientes dependentes químicas. Existem regras estritas quanto a horário de visita (duas vezes por semana, por uma hora), com “duas pessoas por vez, sem revezamento, [familiares] que já tiverem participado do Programa de Família ao menos uma reunião”2323 Clínica Pinel de Porto Alegre [Internet]. [acessado 2018 Jan 2]. Disponível em: http://www.clinicapinel.com.br/index.php/horarios
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, e têm o horário do “Programa de Família”, com três horas de duração, uma vez por semana2323 Clínica Pinel de Porto Alegre [Internet]. [acessado 2018 Jan 2]. Disponível em: http://www.clinicapinel.com.br/index.php/horarios
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. Nenhum traço mais, portanto, da orientação dada pelo Dr. Perez, que visava a integração entre a clínica, a família, o paciente e a comunidade. No lugar disso, uma severa disciplina de horários, a ausência de liberdade de ir e vir. Perguntamos: estaria a Clínica Pinel S.A. filiada à Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (FEBRACT), fundada pelo “Padre Haroldo”44 Fracasso L. Comunidades terapêuticas: histórico e regulamentações. Aberta/Senad/MJ [Internet]. [acessado 2017 Dez 12]. Disponível em: http://www.aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170605-134703-001.pdf
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em 16 de outubro de 1990? Pergunta tanto mais importante quando se lê que apenas uma ínfima parte das CTs brasileiras se filiaram à Federação que, segundo Perrone2424 Perrone PAK. A comunidade terapêutica para recuperação da dependência do álcool e outras drogas no Brasil: mão ou contramão da reforma psiquiátrica? Cien Saude Colet 2014; 19(2):569-580., poderia ser um aparelho regulador das atividades dessas comunidades de modo a velar pelo bom funcionamento delas que, como o próprio autor cita a partir de uma avaliação do Conselho Federal de Psicologia, de uma forma geral, está longe de acontecer. Ora, se a Clínica Pinel S.A. é uma das CTs pioneiras no Brasil, como cita Fracasso no curso da Senad/MJ44 Fracasso L. Comunidades terapêuticas: histórico e regulamentações. Aberta/Senad/MJ [Internet]. [acessado 2017 Dez 12]. Disponível em: http://www.aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170605-134703-001.pdf
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, não deveria ela ser hoje federada à FEBRACT?

Chama também a atenção, no aprofundamento da pesquisa de textos sobre essas comunidades, uma discrepância deveras importante na utilização de nossa língua pátria. No texto de Perrone2424 Perrone PAK. A comunidade terapêutica para recuperação da dependência do álcool e outras drogas no Brasil: mão ou contramão da reforma psiquiátrica? Cien Saude Colet 2014; 19(2):569-580., por exemplo, ou ainda no já citado texto de Fracasso44 Fracasso L. Comunidades terapêuticas: histórico e regulamentações. Aberta/Senad/MJ [Internet]. [acessado 2017 Dez 12]. Disponível em: http://www.aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170605-134703-001.pdf
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, há todo um cuidado com a linguagem; o de Perrone, para além disso, é um texto muito bem construído, um verdadeiro texto acadêmico, resultado evidente de uma pesquisa aprofundada. Mas nos textos que figuram em sites de comunidades, até mesmo estas que são citadas por Fracasso44 Fracasso L. Comunidades terapêuticas: histórico e regulamentações. Aberta/Senad/MJ [Internet]. [acessado 2017 Dez 12]. Disponível em: http://www.aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170605-134703-001.pdf
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como pioneiras no Brasil, há problemas de linguagem, escrita e, em alguns, de presença de cookies com anúncios chulos diversos. E isso ao mesmo tempo em que se levanta neles o tratamento pelo amor, pela espiritualidade, pela entrega a Jesus, sem falar da persistente referência a uma ética que, no entanto, nenhum deles explicita, nem mesmo o texto de Fracasso44 Fracasso L. Comunidades terapêuticas: histórico e regulamentações. Aberta/Senad/MJ [Internet]. [acessado 2017 Dez 12]. Disponível em: http://www.aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170605-134703-001.pdf
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publicado na página do Ministério da Justiça!

Das seis CTs citadas por Fracasso44 Fracasso L. Comunidades terapêuticas: histórico e regulamentações. Aberta/Senad/MJ [Internet]. [acessado 2017 Dez 12]. Disponível em: http://www.aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170605-134703-001.pdf
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nesse texto como pioneiras, apenas uma foi criada por um Padre, justamente o Padre Haroldo Rahm, este mesmo citado como fundador da FEBRACT. Jesuíta nascido nos Estados Unidos, imigrou para o Brasil em 1964, em 1975 criou as “’Experiências de Oração’, germe da Renovação Carismática Católica no Brasil - RCC”2525 Instituto Padre Haroldo [Internet]. [acessado 2018 Jan 2]. Disponível em: http://www.padreharoldo.org.br/?navega=paginas&id_pag=25&menu=3
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, em 1978 “fundou em Campinas a CT ‘Fazenda do Senhor Jesus’ para oferecer tratamento e recuperação para homens dependentes de álcool e outras drogas”2525 Instituto Padre Haroldo [Internet]. [acessado 2018 Jan 2]. Disponível em: http://www.padreharoldo.org.br/?navega=paginas&id_pag=25&menu=3
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, e em 2006 “iniciou a Campanha de Prevenção às drogas através da Espiritualidade um movimento ecumênico que chamou-se ‘Fé na prevenção’”2525 Instituto Padre Haroldo [Internet]. [acessado 2018 Jan 2]. Disponível em: http://www.padreharoldo.org.br/?navega=paginas&id_pag=25&menu=3
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apoiado pela Senad/MJ. Seu trabalho, de grande monta, é religioso, apoiado na crença da força da fé e do amor a Deus que eram de seu ofício. Não há nada de errado nisso, evidentemente. Sua missão deve ter salvado muitas almas e, certamente, foi de grande ajuda para muitas famílias. Mas fazer dessa missão uma política pública de um estado que, constitucionalmente, é laico, necessariamente o associa ao que está em debate aqui. Sabemos que a Renovação Carismática é o movimento mais radical e mais integrista da Igreja Católica, orientação ideológica que já foi alijada da nossa república há mais de meio século. Seria, no mínimo, de bom tom que a Senad/MJ refletisse sobre isso.

As outras três CTs citadas por Fracasso44 Fracasso L. Comunidades terapêuticas: histórico e regulamentações. Aberta/Senad/MJ [Internet]. [acessado 2017 Dez 12]. Disponível em: http://www.aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170605-134703-001.pdf
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como pioneiras no Brasil são: “Comunidade Cristã S8”, fundada em 1971, em Niterói, pelo Pastor Geremias Fontes; “Desafio Jovem”, fundada em 1972, em Brasília, pelo Pastor Galdino Moreira Filho, e o “Movimento para Libertação de Vidas”, em 1975, em Maringá, pelo Pastor Nilton Tuller. Infelizmente não há espaço neste artigo para apresentar todos os resultados da pesquisa realizada sobre elas, mas nos é possível afirmar que essas experiências pioneiras citadas por Fracasso44 Fracasso L. Comunidades terapêuticas: histórico e regulamentações. Aberta/Senad/MJ [Internet]. [acessado 2017 Dez 12]. Disponível em: http://www.aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170605-134703-001.pdf
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emanam, todas, de projetos norte-americanos que, com a exceção de uma única - a Clínica Pinel S.A. -, não estavam, desde a origem, baseados no discurso científico, mas sim, no religioso. Isso é, no mínimo, curioso e, necessariamente, exige um estudo aprofundado no futuro. Se originalmente esses projetos eram sustentados com donativos dos evangelizados, a venda de produtos religiosos os mais diversos, não podemos esquecer a importância da imunidade tributária, ou isenções fiscais de que, no Brasil, gozam as instituições religiosas. Atualmente, parece que tais isenções já não são suficientes, pois as CTs demandam cada vez mais subvenções estatais. Então há todo direcionamento visando um investimento estatal nas CTs de absoluta maioria religiosa, em detrimento do investimento nos esforços que vêm sendo feitos a partir do que foi estabelecido no texto da Lei, desde 200377 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Executiva. Coordenação Nacional de DST/Aids. A Política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília: MS; 2003. - Lei de um estado que nela se quer laico - visando a redução de danos... Com efeito, não encontramos um único texto com a descrição das missões desses religiosos que não visasse, no final, a total abstenção das drogas. E essa certamente não é a visada da laica política de redução de danos, o que implica questões ideológicas de extrema importância.

Discussão

As CTs surgiram no Brasil, como afirma A Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Executiva. Coordenação Nacional de DST/Aids. A Política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília: MS; 2003., diante do “vazio de possibilidades para a reabilitação das pessoas com dependência ao álcool ou a outras drogas”77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Executiva. Coordenação Nacional de DST/Aids. A Política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília: MS; 2003.(p.39). Esse texto acentua o fato de que até aquele momento não havia uma política de saúde destinada a usuários de drogas, o que corrobora que o Ministério da Justiça era o único ator no cenário de produção e regulamentação de políticas voltadas para o campo de álcool e outras drogas. A lei nº 6.368 de outubro de 1976 que regulamentava, até então, a venda e o uso de drogas era absolutamente proibicionista2626 Brasil. Lei nº 6.368, de 22 de outubro de 1976. Dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, e dá outras providências. Diário Oficial da União 1976; 22 out. Revogada pela lei 11.343/2006.. Pelo ponto de vista da criminologia, os usuários eram criminosos; pelo da psiquiatria, eram doentes, portanto, aos usuários de drogas restavam as prisões ou os manicômios2727 Passos EH, Souza TP. Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de "guerra às drogas". Psicol Soc 2011; 23(1):154-162.. De toda forma, o tratamento é disciplinar - do modo como este se define a partir de Foucault2828 Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes; 1987. -, isto é, “opera por meio da normalização das condutas desviantes, em que o saber médico e o criminológico privilegiam como objeto de intervenção o criminoso, o louco, o delinquente, o ‘drogado’”2727 Passos EH, Souza TP. Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de "guerra às drogas". Psicol Soc 2011; 23(1):154-162.(p.157).

O proibicionismo ou guerra às drogas se contrapõe ao antiproibicionismo, ambos paradigmas do setor da justiça, da mesma forma que na saúde vemos a oposição entre o paradigma asilar e o paradigma psicossocial33 Teixeira MB, Ramôa ML, Engstrom E, Ribeiro, JM. Tensões paradigmáticas nas políticas públicas sobre drogas: análise da legislação brasileira no período de 2000 a 2016. Cien Saude Colet 2017; 22(5):1455-1466.. O paradigma proibicionista é o de um mundo ideal livre de drogas, para ele, o único tratamento possível é a abstinência, o que implica, no campo da saúde, o correlato paradigma asilar no qual “O indivíduo ocupa um lugar passivo em seu tratamento, sendo considerado doente, justificando, com isso, seu isolamento do meio familiar e social mais amplo”33 Teixeira MB, Ramôa ML, Engstrom E, Ribeiro, JM. Tensões paradigmáticas nas políticas públicas sobre drogas: análise da legislação brasileira no período de 2000 a 2016. Cien Saude Colet 2017; 22(5):1455-1466.(p.1456). No seu antípoda, o paradigma psicossocial se alia ao antiproibicionsmo, pois entende que a criminalização estigmatiza o usuário77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Executiva. Coordenação Nacional de DST/Aids. A Política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília: MS; 2003..

De acordo com Teixeira et al.33 Teixeira MB, Ramôa ML, Engstrom E, Ribeiro, JM. Tensões paradigmáticas nas políticas públicas sobre drogas: análise da legislação brasileira no período de 2000 a 2016. Cien Saude Colet 2017; 22(5):1455-1466., o paradigma psicossocial é herdeiro da reforma psiquiátrica, da qual herda referências sobre o sofrimento “que vão além da noção de doença”33 Teixeira MB, Ramôa ML, Engstrom E, Ribeiro, JM. Tensões paradigmáticas nas políticas públicas sobre drogas: análise da legislação brasileira no período de 2000 a 2016. Cien Saude Colet 2017; 22(5):1455-1466.(p.1456). A visão não é a “supressão sintomática e a necessária abstinência e sim a redução de riscos e danos”33 Teixeira MB, Ramôa ML, Engstrom E, Ribeiro, JM. Tensões paradigmáticas nas políticas públicas sobre drogas: análise da legislação brasileira no período de 2000 a 2016. Cien Saude Colet 2017; 22(5):1455-1466.(p.1456).

As CTs atuais não surgem em contraposição ao modelo doença/crime, nem mesmo se abstêm do poder disciplinar, como já pudemos demonstrar em várias partes do texto. Elas se aliam a esses modelos sustentados no paradigma da abstinência e introduzem um novo ingrediente, “a moral religiosa”2727 Passos EH, Souza TP. Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de "guerra às drogas". Psicol Soc 2011; 23(1):154-162.(p.157).

Vários relatórios vêm sendo feitos na tentativa de mostrar às autoridades que as CTs trabalham de forma antagônica aos preceitos do paradigma psicossocial, dentre eles destacamos: Relatório de inspeção em Comunidades terapêuticas financiadas pelo governo do Estado do Rio de Janeiro2929 Assembleia legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Relatório de Inspeção em Comunidades Terapêuticas Financiadas pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro [Internet]. ALERJ; 2013 [acessado 2017 Jun 23]. Disponível em: http://www.cressrj.org.br/download/arquivos/relatorio-ct-financiadas-pelo-gov-est-rj-junho-13.pdf
http://www.cressrj.org.br/download/arqui...
; Relatório da 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos: locais de internação para usuários de droga3030 Conselho Federal de Psicologia (CPF). Relatório da 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos: locais de internação para usuários de drogas [Internet]. Brasília: CPF; 2011 [acessado 2017 Jun 23]. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/03/2a_Edixo_relatorio_inspecao_VERSxO_FINAL.pdf; O Dossiê: Relatório de Inspeção de Comunidades Terapêuticas e Clínicas para Usuárias(os) de Drogas no Estado de São Paulo − Mapeamento das Violações de Direitos Humanos3131 Conselho Regional de Psicologia (CRP). O Dossiê: Relatório de Inspeção de Comunidades Terapêuticas e Clínicas para Usuárias (os) de Drogas no Estado de São Paulo - Mapeamento das Violações de Direitos Humanos [Internet]. São Paulo: CRP; 2016 [acessado 2018 Jan 10]. Disponível em: http://fileserver.idpc.net/library/dossie_relatorio_crpsp.pdf. Na mesma direção, se redigiu o relatório da inspeção que foi feita em outubro de 2017 pelo Ministério Público Federal (MPF), Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e Conselho Federal de Psicologia (CFP), desta feita, a partir da vistoria de 28 Comunidades Terapêuticas3232 Mariz R. Inspeção em comunidades terapêuticas encontra internações à força e instalações precárias [Internet]. O Globo; 2017 [acessado 2017 Out 20]. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/inspecao-em-comunidades-terapeuticas-encontra-internacoes-forca-instalacoes-precarias-21960702
https://oglobo.globo.com/brasil/inspecao...
,3333 Conselho Federal de Psicologia (CFP). Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura; Procuradoria Federal Dos Direitos do Cidadão [Internet]. Brasília: CFP; 2018 [acessado 2018 Set 4]. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/06/Relat%C3%B3rio-da-Inspe%C3%A7%C3%A3o-. Por último, é preciso referir também a Nota Técnica do IPEA55 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Nota Técnica: Perfil das Comunidades terapêuticas brasileiras. Brasília: Diest/IPEA; 2017.: Perfil das Comunidades Terapêuticas Brasileiras, publicada em 2017, resultado da pesquisa encomendada pela Senad/MJ em 2014 e realizada no período de 2014 a 2016. O intuito, diferentemente dos outros relatórios citados, era “reunir informações que permitissem o aperfeiçoamento dos processos de monitoramento e avaliação deste financiamento [o financiamento das CTs atuais]”3434 Santos MPG. Perfil das Comunidades Terapêuticas Brasileiras. Nota Técnica 2017 [Internet]. IPEA; 2017 [acessado 2018 Jan 10]. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=29865
http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?...
, o que introduz uma nova orientação que se deduz da própria finalidade explicitada: a de haver uma explícita intensão de visar um financiamento dessas instituições, levando-nos à pergunta: Por quê? Por que a insistência em afirmar as CTs como serviços de saúde? Por que insistir em seu financiamento público? Quem ganha com isso? Não nos parece que seja a população, que, como vimos, está carente de serviços calcados na atenção psicossocial, esta que leva cada um em consideração como cidadão e como sujeito...

Em seu prefácio, o Relatório da Inspeção Nacional em comunidades Terapêuticas -20173333 Conselho Federal de Psicologia (CFP). Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura; Procuradoria Federal Dos Direitos do Cidadão [Internet]. Brasília: CFP; 2018 [acessado 2018 Set 4]. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/06/Relat%C3%B3rio-da-Inspe%C3%A7%C3%A3o- introduz a seguinte questão: “Em nome da proteção e do cuidado, que formas de exclusão, de sofrimento e de tratamentos cruéis, desumanos e degradantes têm sido produzidas?”3333 Conselho Federal de Psicologia (CFP). Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura; Procuradoria Federal Dos Direitos do Cidadão [Internet]. Brasília: CFP; 2018 [acessado 2018 Set 4]. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/06/Relat%C3%B3rio-da-Inspe%C3%A7%C3%A3o-(p.9). Com relação ao tratamento dispensado aos usuários de drogas nas CTs, afirma: “A privação de liberdade é a regra que sustenta esse modelo de atenção”3333 Conselho Federal de Psicologia (CFP). Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura; Procuradoria Federal Dos Direitos do Cidadão [Internet]. Brasília: CFP; 2018 [acessado 2018 Set 4]. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/06/Relat%C3%B3rio-da-Inspe%C3%A7%C3%A3o-(p.9), e que, em todos os estabelecimentos visitados, “foram identificadas práticas que configuram violações de direitos humanos”3333 Conselho Federal de Psicologia (CFP). Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura; Procuradoria Federal Dos Direitos do Cidadão [Internet]. Brasília: CFP; 2018 [acessado 2018 Set 4]. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/06/Relat%C3%B3rio-da-Inspe%C3%A7%C3%A3o-(p.10). O relatório alerta para o fato de que, 18 das CTs visitadas informaram que recebiam “algum tipo de recurso ou doação de órgãos públicos”3333 Conselho Federal de Psicologia (CFP). Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura; Procuradoria Federal Dos Direitos do Cidadão [Internet]. Brasília: CFP; 2018 [acessado 2018 Set 4]. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/06/Relat%C3%B3rio-da-Inspe%C3%A7%C3%A3o-(p.18), o que necessariamente implica em que haja “fiscalização e acompanhamento das práticas desenvolvidas pelo destinatário dos recursos, o que não foi identificado nas vistorias”3333 Conselho Federal de Psicologia (CFP). Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura; Procuradoria Federal Dos Direitos do Cidadão [Internet]. Brasília: CFP; 2018 [acessado 2018 Set 4]. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/06/Relat%C3%B3rio-da-Inspe%C3%A7%C3%A3o-(p.18). Assim “o financiamento indiscriminado de instituições dessa natureza acaba por resultar na destinação de recursos públicos a locais onde há violações de direitos”3333 Conselho Federal de Psicologia (CFP). Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura; Procuradoria Federal Dos Direitos do Cidadão [Internet]. Brasília: CFP; 2018 [acessado 2018 Set 4]. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/06/Relat%C3%B3rio-da-Inspe%C3%A7%C3%A3o-(p.150). Donde se conclui que: “ao se destinar recursos para instituições com perfil de comunidades terapêuticas, deixa-se de fomentar outras iniciativas, mais coerentes com as normas e regras da saúde pública”3333 Conselho Federal de Psicologia (CFP). Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura; Procuradoria Federal Dos Direitos do Cidadão [Internet]. Brasília: CFP; 2018 [acessado 2018 Set 4]. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/06/Relat%C3%B3rio-da-Inspe%C3%A7%C3%A3o-(p.150).

Em 2017, diante da proposta de mudança na política de saúde mental, que efetivamente foi votada na Comissão tripartite em 14 de dezembro de 2017, pudemos assistir a todo tipo de manifestação nas redes sociais e mesmo em matérias de jornais3535 Martins H. Comissão aprova mudanças na política de saúde mental; conselhos protestam [Internet]. Agência Brasil; 2017. [acessado 2018 Jan 15]. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-12/comissao-aprova-mudancas-na-politica-de-saude-mental-conselhos-protestam
http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/no...
,3636 Cancian N. Nova política de saúde mental dará sobrevida a hospitais psiquiátricos [Internet]. Folha de São Paulo; 2017 [acessado 2018 Jan 15]. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/12/1942890-nova-politica-de-saude-mental-dara-sobrevida-a-hospitais-psiquiatricos.shtml
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2...
. Várias notas foram postas na internet por diferentes órgãos reguladores de profissões3737 Conselho Federal de Serviço Social (CFESS). Mudanças na Política Nacional de Saúde Mental: mais uma ameaça do governo ilegítimo [Internet]. CFESS; 2017 [acesso 2018 Jan 24]. Disponível em: http://www.cfess.org.br/visualizar/noticia/cod/1439
http://www.cfess.org.br/visualizar/notic...
,3838 Conselho Federal de Psicologia (CFP). CFP repudia mudanças na política de saúde mental [Internet]. CFP; 2017 [acessado 2018 Jan 24]. Disponível em: http://site.cfp.org.br/repudio-mudancas-politica-saude-mental/
http://site.cfp.org.br/repudio-mudancas-...
. Apesar dos relatórios e dos protestos, não apenas dos trabalhadores de saúde mental, mas também de várias entidades que divulgaram, maciçamente, as dificuldades advindas das novas orientações nas redes sociais, temos assistido cada vez mais à invasão de medidas que se aliam ao paradigma proibicionista.

Considerações finais

Diante do apresentado, como é que aqueles que querem ganhar a guerra às drogas pretendem fazê-lo? Pelo que pudemos observar com as últimas observações, certamente não é investindo em serviços de atenção psicossocial. A “guerra às drogas” está longe de reduzir danos, pois, como toda guerra, os acirra. A letalidade do proibicionismo se exprime no número de mortes, produto dessa guerra, e se alia ao capital de giro do tráfico, que nunca é só de drogas3939 Alarcon S. A síndrome de Elêusis: considerações sobre as políticas públicas no campo de atenção ao usuário de álcool e drogas. In: Alarcon S, Jorge MA, organizadores. Álcool e outras drogas: diálogos sobre um mal-estar contemporâneo. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2012. p. 45-62..

Nossa hipótese, portanto, é que o investimento nas CTs é um recrudescimento do proibicionismo e consequentemente do paradigma asilar. Hipótese que parece se confirmar quando nos defrontamos com o “Exército da fé”4040 Exército de Fé [Internet]. [acessado 2018 Jan 24]. Disponível em: http://exercitodefe.blogspot.com.br/
http://exercitodefe.blogspot.com.br...

41 Martins F. Polêmico 'exército' da Igreja Universal, Gladiadores do Altar chega ao Rio [Internet]. O Dia; 2015. [acessado 2018 Jan 26]. Disponível em: https://odia.ig.com.br/_conteudo/noticia/rio-de-janeiro/2015-03-05/polemico-exercito-da-igreja-universal-gladiadores-do-altar-chega-ao-rio.html
https://odia.ig.com.br/_conteudo/noticia...
-4242 Oliveira MA. Igreja Universal monta exército da fé: Apelar à simbologia militar para projetar uma nova geração de pastores e evangelizadores [Internet]. Verdade Mundial; 2015. [acessado 2018 Jan 24]. Disponível em: http://verdademundial.com.br/2015/06/a-igreja-universal-monta-exercito-da-fe-apelar-a-simbologia-militar-para-projetar-uma-nova-geracao-de-pastores-e-evangelizadores/
http://verdademundial.com.br/2015/06/a-i...
. E por que uma igreja quer um exército? Contra quem quer fazer guerra? No teor dos vídeos apresentados no YouTube, os usuários de drogas parecem ser alvo dessa guerra, uma vez que a “salvação” do drogado, bem como a diabolização das drogas, são motes que a sustentam. Referimos aqui esses vídeos como exemplo, apesar de muitos já terem sido retirados: “Com o despertar da polêmica, a Universal passou a bloquear o acesso ao conteúdo publicado sobre os gladiadores em seus canais oficiais na internet”4242 Oliveira MA. Igreja Universal monta exército da fé: Apelar à simbologia militar para projetar uma nova geração de pastores e evangelizadores [Internet]. Verdade Mundial; 2015. [acessado 2018 Jan 24]. Disponível em: http://verdademundial.com.br/2015/06/a-igreja-universal-monta-exercito-da-fe-apelar-a-simbologia-militar-para-projetar-uma-nova-geracao-de-pastores-e-evangelizadores/
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Ao discutirem as políticas públicas de saúde no período de 2000 a 2016, Teixeira et al.33 Teixeira MB, Ramôa ML, Engstrom E, Ribeiro, JM. Tensões paradigmáticas nas políticas públicas sobre drogas: análise da legislação brasileira no período de 2000 a 2016. Cien Saude Colet 2017; 22(5):1455-1466. afirmam que “o modelo de RD vem ganhando protagonismo principalmente, a partir de 2005, com o realinhamento da Política Nacional sobre Drogas”33 Teixeira MB, Ramôa ML, Engstrom E, Ribeiro, JM. Tensões paradigmáticas nas políticas públicas sobre drogas: análise da legislação brasileira no período de 2000 a 2016. Cien Saude Colet 2017; 22(5):1455-1466.(p.1462). Entretanto, afirmam que a partir de 2016, houve uma mudança nessa direção, “retomando o paradigma da guerra às drogas centrado na repressão da oferta e com uma política de cuidado e tratamento às pessoas com UPD baseado no modelo de doença presente nas CT, em detrimento ao modelo psicossocial da RAPS”33 Teixeira MB, Ramôa ML, Engstrom E, Ribeiro, JM. Tensões paradigmáticas nas políticas públicas sobre drogas: análise da legislação brasileira no período de 2000 a 2016. Cien Saude Colet 2017; 22(5):1455-1466.(p.1463).

Esse redirecionamento implica em uma tensão no campo de álcool e outras drogas e incide diretamente sobre aqueles que utilizam os serviços públicos de saúde, nesse caso os usuários de drogas, ferindo o princípio da universalidade de acesso que dá direito à saúde a todos. A premissa da abstinência implica no não acesso77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Executiva. Coordenação Nacional de DST/Aids. A Política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília: MS; 2003. à rede de saúde por grande parte dos usuários de drogas, “traçar uma política com base em um único objetivo [abstinência] é trabalhar em saúde com um modo estreito de entendimento”77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Executiva. Coordenação Nacional de DST/Aids. A Política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília: MS; 2003.(p.9), quando, na realidade, “o planejamento de programas deve contemplar grandes parcelas da população, de uma forma que a abstinência não seja a única meta viável e possível aos usuários”77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Executiva. Coordenação Nacional de DST/Aids. A Política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília: MS; 2003.(p.8).

Essa é exatamente a questão implícita no título de nosso trabalho, isto é, o fato de estarmos assistindo ao incremento da moral religiosa associada ao paradigma proibicionista em detrimento do paradigma psicossocial como direcionamento para as políticas públicas. Esse redirecionamento certamente põe em cena a discussão sobre as questões éticas que se colocam ao cuidado em saúde mental, que implicam entre outras coisas na forma como se trata o usuário de drogas, se acolhendo-o a partir de uma “estratégia” que visa “como objetivo a ser alcançado [...] a defesa de sua vida”77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Executiva. Coordenação Nacional de DST/Aids. A Política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília: MS; 2003., ou se segregando-o, tal como outrora se tratavam os “loucos”.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    Jan 2021

Histórico

  • Recebido
    07 Jun 2018
  • Aceito
    15 Abr 2019
  • Publicado
    17 Abr 2019
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br