Ianni ÁMZ. Mudanças Sociais Contemporâneas e Saúde: Estudo sobre Teoria Social e Saúde Pública no Brasil. São Paulo: Hucitec Editora; 2018.

Cláudio Cordovil Oliveira Sobre o autor
2018

“O tempo passou na janela/Só Carolina não viu”. Os versos de canção homônima de Chico Buarque bem poderiam resumir certa vertigem experimentada por qualquer leigo informado ou mesmo pesquisador que se atrevesse a tentar mapear as mudanças sociais, políticas e econômicas ocorridas no Ocidente, a partir de meados do século 20. De fato, quem se disponha a obter uma visão do presente das ciências em seu conjunto (incluídas aí as Ciências Sociais) terá pela frente uma tarefa monumental. Afinal, os últimos 50 anos testemunharam progressos científicos de tal magnitude que os séculos que os precederam parecem compor uma pré-história longínqua. É a partir do assombro representado por tal “transição paradigmática” que Ianni nos convida a refletir.

O mote para a produção deste livro parece ter sido, nas palavras da autora, certo aturdimento, algumas inquietações ou uma sensação de “desencaixe”. Trata-se de verdadeira “sistematização crítica de sua produção científica “propriamente autoral” (sem coautores), tendo como ponto de partida sua tese homônima de livre docência em Ciências Sociais da Saúde, defendida na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, em 2012. O livro conta com 14 capítulos, divididos em quatro partes, sendo quatro deles inéditos.

Desde o ano 2000, a autora vem estudando o pensamento social em saúde que se abrigou no âmbito da Reforma Sanitária, e que se consolidou no que se convencionou chamar de “campo da Saúde Coletiva”. Agora, como a criança na fábula de Andersen, Ianni nos sugere que “o rei está nu”. E parece que já está há algum tempo.

Duas teses se encontram articuladas no conjunto da obra de Ianni, desde seu doutorado e no livro ora apresentado: Uma que daria conta do esgotamento do arcabouço explicativo do pensamento social em saúde no Brasil, especialmente aquele formulado a partir da década de 1970, e outra que atestaria o esgotamento das práticas e políticas no âmbito da Saúde Pública, em decorrência das radicais mudanças sociais ocorridas, especialmente na segunda metade do século passado.

Em sua opinião, os debates teórico-conceituais que fundamentaram o pensamento social no interior do campo da Saúde Coletiva estariam em descompasso com os processos sociais concretos hoje experimentados. Assim, paradoxalmente, a formulação teórica extremamente consistente e arrojada, que plasmara o campo, estaria hoje diante de uma realidade fugidia, que desarranja suas proposições e conceituações. Tal estado de coisas, poderia ser explicado, segundo a autora, por um esgotamento das capacidades explicativas utilizadas e dos resultados obtidos nas pesquisas empíricas, o que teria, segundo ela, produzido um efeito de “mais do mesmo”.

É o inventário qualificado desta espécie de dissonância epistêmico-teórico-cognitiva que Ianni ora nos oferece. Agora, lastreado pelo impacto que o contato da autora com a obra do sociólogo Ulrick Beck (especialmente o livro Sociedade de risco: Rumo a uma nova modernidade) lhe provocou, notadamente no que se refere ao reenquadramento da distinção entre natureza e sociedade.

A bem da verdade, é bom que se diga que o interesse das Ciências Sociais pelo “risco” é de inscrição tardia no Ocidente. Para que este interesse se manifestasse, seria necessário que os conflitos entre os diversos atores sociais envolvidos nas controvérsias acerca de riscos ganhassem proporções tais que sugerissem a importância deste sintagma (“risco”) como “a chave para a constituição e organização da sociedade contemporânea”11 Strydom P. Risk, Environment and society: ongoing debates, current issues and future prospects. London: Open University Press; 2002..

Além disso, deslocamentos metodológicos se fizeram necessários para que as Ciências Sociais abraçassem o tema, em uma chave não-naturalista, mas social e cultural, ainda que não-hegemônica ainda hoje, no campo da Saúde Coletiva. Em primeiro lugar, era importante que se deslocasse a natureza do ponto cego em que se encontrava, desde o advento das Ciências Sociais11 Strydom P. Risk, Environment and society: ongoing debates, current issues and future prospects. London: Open University Press; 2002.. Tal possibilidade de mudança de perspectiva se afigurou com a divulgação, em 1987, do relatório Nosso Futuro Comum, elaborado pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (ONU). Ele fazia o foco das preocupações da ameaça ambiental migrar para o tema do “desenvolvimento sustentável”, oferecendo a promessa de superação da pouco razoável dicotomia natureza/sociedade, a partir da definição de uma agenda de equidade global, justiça e direitos humanos.

Entre os textos analisados por Ianni em seu livro destaca-se Sociedade de risco: rumo a uma nova modernidade, de Ulrich Beck. Lançado em 1986, na Alemanha, ele acabou por se converter no mais influente livro sobre o tema dos riscos em uma chave cultural e social: O livro se mostrou um sucesso de vendas, tendo alcançado a marca de 60 mil exemplares vendidos, cinco anos após seu lançamento. De certa forma, é um divisor de águas na Sociologia, pois irá redirecionar sua trajetória, “tão especializada no status quo que se torna[ra] status quo”, nas palavras do próprio Beck.

“Sociedade de risco”, expressão cunhada por Beck, é de importância seminal. Ela serviu para romper certa coalizão discursiva até então observada. Aquela do “meio ambiente como tecnologia”, a exigir soluções meramente técnicas, e não éticas e políticas, armadilha na qual as próprias Ciências Sociais caíram, ao subsidiar decisões de alto nível neste campo, com soluções gerencialistas oriundas de certo modernismo tecnocrático. Entre estas, a noção de que medidas de caráter tecnológico, como a mera busca de fontes alternativas de energia, seriam por si sós suficientes para dar conta dos problemas socioambientais que se anunciavam. A crise climática, que agora se revela em toda sua extensão, revela o acerto do vaticínio de Beck neste campo e, por extensão, a atualidade do novo livro de Ianni.

Mas o que seria a “sociedade de risco”? Para Beck, a lógica da distribuição de riquezas, que presidira a sociedade industrial até aproximadamente a década de 1970, se faz agora acompanhar pela lógica da distribuição de riscos em escala global. Tais riscos apresentam características singulares, pois são suscitados pela modernização e, de responsabilidade, em sua maior parte, da ciência e da tecnologia, ainda que frequentemente ignorados por ambas, por conta do tratamento reducionista que dá a estas questões. “A ciência é uma das causas, o meio de definição e a fonte de soluções para os riscos”, afirma Beck22 Beck U. Risk society: towards a new modernity. London: Sage; 1992.. Assim, as principais fontes de preocupação na sociedade de risco seriam as consequências do desenvolvimento tecnológico-econômico ocidental.

No livro de Ianni, e, por extensão, no campo da Saúde Pública, a constatação de Beck se torna patente, quando a autora menciona o uso indevido de antibióticos em seres humanos e na alimentação; a introdução acelerada no mercado de novos medicamentos que irão provocar mutações e hiper-resistência de microrganismos ou mesmo a erradicação fictícia de vetores da dengue, o que abrirá flancos para o surgimento da dengue tipo-2.

No campo da Saúde Coletiva, a ‘denúncia’ de Ianni já referida nesta resenha já não é, como ela mesma aponta em seu livro, de todo nova. A ‘nudez do rei’ já teria sido revelada, em maior ou menor grau, por autores por ela citados, como Amélia Cohn, Regina Bodstein e Ana Maria Canesqui, sem gerar maior alarme no campo.

No entanto, as implicações desta ‘denúncia’ aqui são reveladas em sua radicalidade, pois atingem frontalmente, segundo Ianni, as bases do dogma central da Saúde Coletiva: a determinação social do processo saúde-doença. A seu ver a oposição, perfilhada por este campo, entre as categorias “biológico” e “social” refletiria concepção rigidamente disciplinar ou simplificadora do substrato constitutivo destes conceitos, expurgando o biológico socialmente construído (grifo nosso) do campo de reflexões.

Na feliz síntese de Ianni à página 350 de seu livro: “O campo ocupou-se sobremaneira da determinação social do processo saúde-doença, criticando um biológico hegemônico nas práticas médicas biologicista sem construir, porém, uma crítica epistemológica ao conceito de biológico em si, fundamental num momento histórico social em que a oposição sociedade-natureza se tornava cada vez mais inconsistente e evidente (sic) diante da dissolução das fronteiras científicas (...)”.

É oportuno ressaltar que a teoria social contemporânea, notadamente aquela produzida no âmbito dos Estudos Sociais de Ciência (e Tecnologia), a qual o autor desta resenha se filia, cunhou a noção de “coprodução” para problematizar a distinção natureza-sociedade, tão cara à teoria social clássica. Por coprodução, entendem-se processos concomitantes pelos quais as sociedades modernas formam suas compreensões de mundo epistêmicas e normativas33 Cordovil-Oliveira C. Laços de sangue: hereditariedade e coprodução das ordens social e natural no século XIX. Physis 2017; 27(2):297-317..

É importante ressaltar que a autora não é adversária da Reforma Sanitária e de suas inegáveis conquistas. Em várias páginas do livro, é notável e elegante o tributo que presta ao arrojo das formulações teóricas que plasmaram o campo da Saúde Coletiva. O que faz é expressar os desafios a serem enfrentados pelo campo, especialmente em sua vertente teórica, quando do confronto com realidades inauguradas pelo advento da sociedade de risco.

Referências

  • 1
    Strydom P. Risk, Environment and society: ongoing debates, current issues and future prospects. London: Open University Press; 2002.
  • 2
    Beck U. Risk society: towards a new modernity. London: Sage; 1992.
  • 3
    Cordovil-Oliveira C. Laços de sangue: hereditariedade e coprodução das ordens social e natural no século XIX. Physis 2017; 27(2):297-317.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    Jan 2021
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