Transformando incertezas em regulamentação legitimadora? As decisões das agências NICE e CONITEC para doenças raras

Geison Vicente Cássia Cunico Silvana Nair Leite Sobre os autores

Resumo

A avaliação de tecnologias em saúde (ATS), enquanto prática científica e tecnológica é, ao mesmo tempo, um desafio, a fim de determinar o valor das tecnologias a serem incorporadas. Este estudo teve como objetivo explorar e comparar os resultados e elementos técnicos das avaliações emitidas para doenças raras, entre a agência inglesa (NICE) e a brasileira (CONITEC). A primeira etapa do estudo envolveu a busca sistemática das avaliações no período de 2013 a 2019. Na segunda etapa, os relatórios foram analisados com base em: (i) revisão narrativa descritiva e (ii) cálculo da frequência absoluta e relativa de acordo com cada domínio e componente (elemento) aplicado do modelo da rede Europeia de ATS. O total de 24 medicamentos foram distintamente avaliados no período do estudo. Por meio de 126 questões (elementos) distribuídas entre nove domínios, a análise revelou que 67 (53,2%) e 44 (35,0%) estavam descritas nos relatórios, 42 (33,3%) e 59 (47,0%) foram consideradas apenas parcialmente e 17 (13,5%) e 23 (18,0%) não foram consideradas nos relatórios do NICE e da CONITEC, respectivamente. Foi constatado uma concordância relativamente baixa da agência brasileira em relação à inglesa nos relatórios emitidos para doenças raras. Permanece indeterminado se as agências são capazes de capturar os diversos valores desses medicamentos, bem como gerenciar as incertezas nas avaliações.

Palavras-chave:
Avaliação de tecnologias em saúde; Doenças raras; Regulamentação governamental; Incerteza

Introdução

Em sistemas de saúde universais, como no Brasil e na Inglaterra, a institucionalização da avaliação de tecnologia em saúde (ATS) pode ser considerada um marco histórico11 Lima SGGL, Brito C, Andrade CJCA. O processo de incorporação de tecnologias em saúde no Brasil em uma perspectiva internacional. Cien Saude Colet 2019; 24(5):1709-1722.. Conceitualmente, a ATS é um processo multidisciplinar que utiliza métodos explícitos para determinar o valor de uma tecnologia de saúde em diferentes pontos de seu ciclo de vida, buscando assim, orientar a tomada de decisão a fim de promover um sistema de saúde equitativo, eficiente e de alta qualidade22 Rourke OB, Ortwijn W, Schuller T. The new definition of health technology assessment: A milestone in international collaboration. Int J Technol Assess Health Care 2020; 36(3):187-190..

Na Inglaterra, o desenvolvimento da ATS remonta à década de 1990, com a criação de um nível de avaliação baseada em evidências - analisada em termos de custo por ano de vida ajustado por qualidade (AVAQ)33 Crinson I. The politics of regulation within the 'Modernized' NHS: the case of beta interferon and the 'Cost-Effective' treatment of multiple sclerosis. Critical Social Policy 2014; 24(1):30-34.. Tal mudança proporcionou uma evidente reforma no sistema de saúde inglês, com ênfase na transparência e no envolvimento do público nas decisões introduzidas e programadas por meio da criação do National Institute of Health and Care Excellence (NICE) (agência de ATS reconhecida mundialmente)44 Abraham J. The pharmaceutical industry, the state and the NHS. In: Gabe J, Calnan M. The New Sociology of the Health Service. London: Routledge; 2009. p. 99-120.,55 Rawlins M, Barnett D, Stevens A. Pharmacoeconomics: NICE's approach to decision-making. Br J Clin Pharmacol 2010; 70(3):346-349.. Atualmente, o órgão possui um papel muito significativo na avaliação de medicamentos com base na relação custo-benefício para uso no National Health Service (NHS), particularmente onde existe o impacto significativo na alocação de recursos55 Rawlins M, Barnett D, Stevens A. Pharmacoeconomics: NICE's approach to decision-making. Br J Clin Pharmacol 2010; 70(3):346-349..

No Brasil, em 2011, frente à necessidade de uma eficiente alocação de recursos com critérios explícitos de incorporação de tecnologias, foi criada a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (CONITEC). Esse órgão atua como assessor do Ministério da Saúde (MS) conferindo recomendações aos gestores públicos para decisões quanto à incorporação, exclusão ou alteração de novos medicamentos, produtos e procedimentos, assim como a elaboração e revisão de Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT)66 Brasil. Lei n. º 12.401, de 28 de abril de 2011. Altera a Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial da União 2011; 29 abr.. Apesar de demonstrar muita similaridade com outras agências regulatórias, a CONITEC ainda apresenta algumas distinções. Entre elas está a autoridade na tomada de decisão, o escopo das evidências utilizadas e a ausência da produção de uma etapa prévia de seleção e/ou priorização de temas a serem analisados11 Lima SGGL, Brito C, Andrade CJCA. O processo de incorporação de tecnologias em saúde no Brasil em uma perspectiva internacional. Cien Saude Colet 2019; 24(5):1709-1722..

Devido à natureza multidimensional dos processos de avaliação e o alto envolvimento de partes interessadas (a citar prestadores de cuidados de saúde, órgãos de financiamento, indústria, pacientes e formuladores de políticas de saúde) a avaliação de incorporação de novos tratamentos tem se tornado um processo de alta complexidade técnica, política e social. Muitas agências, como o NICE, têm enfrentado problemas em termos de manutenção de sua legitimidade77 Calnan M. Health Policy, Power and Politics: Sociological Insights. United Kingdom: Bingley Emerald; 2020.,88 Brown P, Calnan M. Political accountability of explicit rationing: legitimacy problems faced by NICE. J Health Serv Res Policy 2010; 15(2):1-2.. Em algumas ocasiões, a tomada de decisão tem considerado as pressões de grupos específicos de forma explícita ou implícita, tais como a do público, das organizações de pacientes e da própria indústria farmacêutica, os quais obtém suas reivindicações acatadas por meio de viés regulatório33 Crinson I. The politics of regulation within the 'Modernized' NHS: the case of beta interferon and the 'Cost-Effective' treatment of multiple sclerosis. Critical Social Policy 2014; 24(1):30-34.,44 Abraham J. The pharmaceutical industry, the state and the NHS. In: Gabe J, Calnan M. The New Sociology of the Health Service. London: Routledge; 2009. p. 99-120.,77 Calnan M. Health Policy, Power and Politics: Sociological Insights. United Kingdom: Bingley Emerald; 2020.-88 Brown P, Calnan M. Political accountability of explicit rationing: legitimacy problems faced by NICE. J Health Serv Res Policy 2010; 15(2):1-2..

Pesquisadores britânicos, em análise envolvendo o NICE, demonstraram que a tomada de decisão na avaliação de medicamentos de alto preço acontece na forma de negociação e navegação entre o uso de métodos pragmáticos e o gerenciamento de camadas de incertezas envolvidas na avaliação. Os autores identificaram, nas avaliações realizadas pelo NICE, incertezas epistemológicas, incertezas relacionadas aos processos/procedimentos técnicos e aquelas relacionadas aos contextos e relações interpessoais99 Brown P, Calnan M. NICE technology appraisals: working with multiple levels of uncertainty and the potential for bias. Med Health Care Philos 2013; 16:281-293.-1010 Calnan M, Hashem F, Brown P. Still elegantly muddling through? NICE and uncertainty in decision making about the rationing of expensive medicines in England. Int J Health Serv 2017; 47(3):571-594..

A complexidade envolvida nos processos de avaliação de novas tecnologias para sua incorporação em sistemas de saúde ganha contornos específicos em determinados cenários, como no caso da avaliação de medicamentos para doenças raras, devido à escassez de estudos com metodologia rigorosa e diferentes valores que embasam as partes interessadas1111 Aith F, Bujdoso Y, Nascimento PR, Dallari SG. Os princípios da universalidade e integralidade do SUS sob a perspectiva da política de doenças raras e da incorporação tecnológica. Revista de Direito Sanitário 2014; 15(1):10-39.,1212 Angelis A, Lange A, Kanavos. Using health technology assessment to assess the value of new medicines: results of a systematic review and expert consultation across eight European countries. Eur J Health Econ 2018; (19):123-152.. As imensas incertezas que cercam a avaliação de tratamentos para doenças raras estão relacionadas com o crescimento dos acordos de compartilhamento de risco ou de entrada gerenciada nos sistemas de saúde em diversos países1313 Zampirolli Dias C, Godman B, Gargano LP, Azevedo PS, Garcia MM, Souza Cazarim M, Pantuzza LLN, Ribeiro-Junior NG, Pereira AL, Borin MC, de Figueiredo Zuppo I, Iunes R, Pippo T, Hauegen RC, Vassalo C, Laba TL, Simoens S, Márquez S, Gomez C, Voncina L, Selke GW, Garattini L, Kwon HY, Gulbinovic J, Lipinska A, Pomorski M, McClure L, Fürst J, Gambogi R, Ortiz CH, Canuto Santos VC, Araújo DV, Araujo VE, Acurcio FA, Alvares-Teodoro J, Guerra-Junior AA. Integrative Review of Managed Entry Agreements: Chances and Limitations. Pharmacoeconomics 2020; 38(11):1165-1185.. Tais acordos procuram gerenciar o fato de que os novos tratamentos propostos não apresentam o nível desejável de evidências científicas sobre sua eficácia e produzem grande impacto econômico para sistemas ou planos de saúde1313 Zampirolli Dias C, Godman B, Gargano LP, Azevedo PS, Garcia MM, Souza Cazarim M, Pantuzza LLN, Ribeiro-Junior NG, Pereira AL, Borin MC, de Figueiredo Zuppo I, Iunes R, Pippo T, Hauegen RC, Vassalo C, Laba TL, Simoens S, Márquez S, Gomez C, Voncina L, Selke GW, Garattini L, Kwon HY, Gulbinovic J, Lipinska A, Pomorski M, McClure L, Fürst J, Gambogi R, Ortiz CH, Canuto Santos VC, Araújo DV, Araujo VE, Acurcio FA, Alvares-Teodoro J, Guerra-Junior AA. Integrative Review of Managed Entry Agreements: Chances and Limitations. Pharmacoeconomics 2020; 38(11):1165-1185.-1414 Ferrario A, Kanavos P. Dealing with uncertainty and high prices of new medicines: A comparative analysis of the use of managed entry agreements in Belgium, England, the Netherlands and Sweden. Soc Sci Med 2015; (124):39-47..

Para a definição do termo doenças raras, a maioria dos países utiliza dados relacionados aos limites de prevalência, havendo poucos países que consideram indicadores relacionados à gravidade e/ou ausência de tratamento1515 Richter T, Nestler-Parr S, Babela R, Khan ZM, Tesoro T, Molsen E, Hughes DA; International Society for Pharmacoeconomics and Outcomes Research Rare Disease Special Interest Group. Rare Disease Terminology and Definitions-A Systematic Global Review: Report of the ISPOR Rare Disease Special Interest Group. Value Health 2015; 18(6):906-914.. A legislação da União Europeia define como doença rara aquela com prevalência de não mais que 50 casos para cada cem mil habitantes, podendo ser considerada a prevalência superior para condições fatais, gravemente crônicas e debilitantes1616 Europe. The European Parliament and the Council of the European Union. Regulation no. 141/2000 of 16 December 1999, on orphan medicinal products (141):1-9.. Na Inglaterra, também foi proposto o termo doenças ultrarraras, como aquelas doenças com risco de vida ou condições debilitantes que afetam ≤1:50.000 pessoas1717 National Institute for Health and Care Excellence (NICE). Citizens Council Report nº. 4. Ultra-orphan drugs, London: 2004. [cited 2020 Abr 25]. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK4017 21/pdf/Bookshelf_NBK401721.pdf.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK40...
. O Brasil corrobora com o conceito empregado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) que considera como doença rara a prevalência de 65 indivíduos para cada cem mil habitantes1818 Brasil. Portaria nº 199, de 30 de Janeiro de 2014. Institui a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras com Diretrizes para Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e institui incentivos financeiros de custeio. Diário Oficial da União 2014;31 jan..

O presente estudo objetivou explorar e comparar os resultados dos processos de ATS que resultaram na decisão de incorporação por compartilhamento de risco ou de entrada gerenciada de medicamentos pelas agências NICE e CONITEC, identificando em que medida estas consideraram os critérios técnicos consensuados internacionalmente no processo de avaliação de medicamentos para doenças raras.

Metodologia

Desenho do estudo e definição da amostra

Trata-se de um estudo exploratório baseado na análise documental qualitativa e quantitativa dos relatórios de recomendações de medicamentos para doenças raras, no período de janeiro de 2017 a dezembro de 2019, publicados pela CONITEC. Com base nos medicamentos avaliados pela CONITEC, individualmente, esses foram pesquisados na plataforma de dados do NICE e comparados quando disponível à respectiva avaliação entre os países. Os dados avaliados são de domínio público e foram coletados por meio de fontes secundárias disponíveis no website da CONITEC (http://conitec.gov.br/) e do NICE (https://www.nice.org.uk/). Os países de análise comparativa foram escolhidos devido ao tempo de consolidação e estruturação de suas agências de ATS, associado a um contexto de sistema de saúde universal. A análise quantitativa das recomendações positivas ou negativas foi realizada após a seleção dos relatórios que se enquadraram na definição de doença rara, conforme estabelecido na Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras pelo Brasil1616 Europe. The European Parliament and the Council of the European Union. Regulation no. 141/2000 of 16 December 1999, on orphan medicinal products (141):1-9. nos anos entre 2013 a 2019. A avaliação de medicamentos que foi interrompida ou ainda estava em desenvolvimento na coleta de dados (junho a dezembro de 2019) não foi considerada para a análise.

Com base na avaliação prévia conduzida na primeira etapa do estudo (Quadro 1), verificou-se que, no Brasil, os medicamentos eculizumabe, nusinersena e a alfaelosulfase foram os únicos para doenças raras incorporados com base em incorporação condicionada. Os mesmos medicamentos também são alvo de acordos de entrada gerenciada no sistema de saúde Inglês. Nesse sentido, foi escolhido esse recorte para aplicação do modelo de análise da União Europeia e comparação com os respectivos relatórios emitidos pelo NICE.

Quadro 1
Medicamentos avaliados para doenças raras pelo NICE e CONITEC e as respectivas recomendações.

Modelo de análise

Utilizou-se o modelo da rede Europeia de ATS (HTA Core Model® versão 3.0)1919 European Network for Health Technology Assessment (EUnetHTA). HTA Core Model(r) version 3.0 [Internet]. [cited 2019 Jul 8]. 2016. Available from: www.htacoremodel.info/BrowseModel.aspx.
www.htacoremodel.info/BrowseModel.aspx...
-2020 Kristensen FB, Lampe K, Wild C, Cerbo M, Goettsch W, Becla L. The HTA Core Model(r) - 10 Years of Developing an International Framework to Share Multidimensional Value Assessment. Value Heal 2017; 20(2):244-250. para análise de conteúdo dos relatórios emitidos pela CONITEC e pelo NICE. As análises dos relatórios selecionados a partir dos critérios de exclusão e inclusão (Figura 1), foram conduzidas por dois avaliadores individualmente. O modelo aplicado diz respeito a um formato estruturado da produção de ATS, o qual relaciona os principais atributos que devem estar presentes em uma avaliação de medicamentos. O modelo é formado por nove domínios e cada domínio é dividido em componentes, sendo que cada componente consiste em várias questões (elementos) que devem ser abordadas ao longo do processo de ATS. Essa análise de domínios, componentes e elementos foi conduzida e comparada pelos pesquisadores reportando os resultados como: domínio (componente) presente e descrito nos relatórios (quando foi possível a questão elemento ser respondida integralmente), ausente e não descrito nos relatórios (quando não foi possível responder a pergunta elemento e os relatórios não abordaram sobre a questão) ou parcialmente descrito nos relatórios (quando apesar da questão ser considerada nos relatórios, não foi possível a obtenção ou a projeção de dados e cálculos). Esses domínios e componentes foram então comparados entre as agências.

Figura 1
Fluxograma das etapas envolvidas no recorte do estudo.

Análise dos dados

As informações da primeira etapa do trabalho foram analisadas a partir dos relatórios disponíveis nos websites das agências e apresentadas em tabelas descritivas. Na segunda etapa, foi escolhido o recorte de análise, para aplicação do modelo da União Europeia. Os resultados qualitativos e quantitativos dessa etapa foram analisados por meio de tabelas descritivas do Microsoft Excel® para os cálculos. Para o propósito da comparação, os relatórios foram analisados em duas partes na segunda etapa do estudo: (1) dados da revisão narrativa descritiva; (2) cálculo da frequência absoluta e relativa de acordo com cada domínio e componente seguindo a seguinte equação: %=número de elementos descritos ou não descritos ou parcialmente descritos nos relatórios *100/número total de elementos do domínio (n total do modelo=126).

Resultados

Perfil geral de recomendações das agências

No total, vinte e três relatórios de recomendações para doenças raras foram emitidos pela CONITEC de 2017 a 2019, treze medicamentos foram recomendados à incorporação e dez foram recomendados a não incorporação. Nesse período, o total de nove recomendações foram emitidas pelo NICE por meio do programa de avaliação de tecnologias altamente especializadas. As buscas sistemáticas realizadas no website do NICE em distintos anostambém resultou na comparação de doze medicamentos os quais foram respectivamente avaliados pela CONITEC (Quadro 1). Observou-se, no entanto, que as agências receberam distintas demandas para incorporação de medicamentos no período selecionado. O total de dez medicamentos foram avaliados unicamente pelo NICE entre o período de 2013 a 2019 (Quadro 2) e doze medicamentos avaliados unicamente pela agência CONITEC entre 2017 a 2019 (Quadro 3). A esse grupo de medicamentos não foi possível uma comparação entre as agências, pelo fato de não serem demandas para avaliação do mesmo princípio ativo e/ou para mesma indicação clínica.

Quadro 2
Medicamentos para doenças raras avaliados apenas pela CONITEC e não pelo NICE.

Após essa etapa de buscas, coletou-se entre as agências o total possível de comparações, que se tratava da mesma indicação clínica do demandante e mesmo princípio ativo (Quadro 1) resultando em dez comparações de medicamentos. Nesse subgrupo supramencionado, nove medicamentos obtiveram recomendações favoráveis baseados em critérios previamente definidose um (canaquizumabe) obteve recomendação desfavorável pelo NICE. Na CONITEC, o total de quatro medicamento foram recomendados à incorporação com critérios pré-definidos e seis recomendados a não incorporação (Quadro 1).

Análise comparativa das agências no modelo HTA Core Model®

O resultado da aplicação do modelo da rede Europeia (Core Model®) revelou que 67 das 126 questões (elementos) (53,2%) distribuídas entre os componentes I a IX foram consideradas relevantes (descritas) nos relatórios do NICE para os medicamentos eculizumabe, nusinersena e alfaelosulfase. Já nos relatórios da CONITEC, o total de 44 de 126 questões (elementos) (35,0%) foram consideradas relevantes e descritas nos relatórios dos medicamentos avaliados pela agência brasileira para os mesmos medicamentos. Na análise do maior número de elementos descritos pelas agências, verificou-se que no NICE esses foram dos domínios: I) Problema de saúde e atual uso da tecnologia, com 83,3%; II) Descrição e características técnicas da tecnologia, com 53,3% e IX) Aspectos legais, 83,3% de elementos descritos. Na CONITEC, entre os elementos que foram melhor descritos estão os dos domínios: I) Problema de saúde e atual uso da tecnologia, 83,3%; V) Custo e avaliação econômica, 50% e VIII) Aspectos sociais, 50,0%.

Na análise do grupo de elementos que não foram descritos nos relatórios, o total de 17 das 126 questões (elementos) (13,5%) não foram descritas nos relatórios do NICE. Nos relatórios da CONITEC, 23 das 126 questões (elementos) (18,0%) também não foram descritas nos relatórios. Os domínios que menos foram descritos nos relatórios do NICE, foram os seguintes: II)Descrição e características técnicas da tecnologia, 33,3% e III) Segurança, 33,3%. Na CONITEC foram os domínios: VII) Aspectos organizacionais, 50,0% e IX)Aspectos legais 50,0%.

Em relação à categorização dos elementos parcialmente descritos nos relatórios, o total de 42 de 126 questões (33,3%) foram categorizadas a esse grupo nos relatórios do NICE, sendo os domínios: V) Custo de avaliação econômica, com 66,7%; VI) Análise ética, 55,6%; VII) Aspectos organizacionais, 50,0% e VIII) Aspectos sociais, 50,0% os prevalentes. Na CONITEC, o total de 59 de 126 questões (47,0%) foram pertencentes a esse grupo, sendo os domínios: III) Segurança, 66,7% e IV) Efetividade Clínica, 83,3% e VI - Análise ética (66,7%) os prevalentes.

Quando se compara as três categorias descritivas entre as agências ao modelo preconizado aplicado, verificou-se que o NICE apresentou uma maior porcentagem de elementos descritos nos seus relatórios (53,2%) e a CONITEC apresentou maior número de elementos não descritos (18,0%) ou parcialmente descritos (47,0%).

Considerando os medicamentos e ambas as agências, o único domínio que convergiu no grupo dos elementos “descritos” foi o I) problemas de saúde e uso atual de tecnologia. Entre os domínios de análise com maior ocorrência de elementos “não descrito” ou “descrito parcialmente” destacam-se aqueles relacionados à organização dos serviços de saúde e dos profissionais envolvidos com o tratamento (entre eles o domínio VII) materiais, instalações, pessoal habilitado, equipamentos; treinamento e informações necessárias; modelo de dispensação da tecnologia; análise do processo, recurso e manejo, aqueles relacionados às evidências de segurança e efetividade, ou de benefícios do tratamento como o domínio III e IV) benefício em saúde e qualidade de vida (QUALY); efetividade e segurança; identificação e medida de preço, valor e comparação de custo e desfechos da tecnologia com base no julgamento de preço baseado em valor e definição de prioridade entre diferentes tecnologias de saúde; redução do risco de danos; danos diretos e indiretos para pacientes e aqueles relacionados à análise ética como o domínio VI - prevalência social e moral, normas e valor relevante da tecnologia, questão ética da tecnologia e consequência da implementação e não implementação, identificação de problemas éticos e morais inerente a avaliação da tecnologia).

Discussão

A análise comparativa conduzida neste estudo permitiu identificar que distintos medicamentos estão sendo avaliados pelas duas agências de ATS. Como constatado pelo Quadro 2 e 3, o total de 24 medicamentos distintos foram demandados no período estudado nas agências. Esse fato pode ser dependente dos aspectos regulatórios de autorização de entrada no mercado desses medicamentos em cada país. O Regulamento nº 141/2000 do Conselho do Parlamento Europeu instaurou nos países da União Europeia incentivos que ajudaram a aprovação no mercado de novas terapias para doenças raras2121 European Parliament. Regulation (EC) No 141/2000 of the European Parliament and of the Council. Off J Eur Communities 1999; 43:1-5.. O fato também ocorreu no Brasil, porém em 2017, por meio da Resolução da Diretoria Colegiada 204 e 205 que propiciou celeridade ao processo de autorização desses medicamentos2222 Brasil. Resolução da Diretoria Colegiada - RDC N° 204, de 27 de Dezembro de 2017. Diario Oficial da União no 248. 28 de Dezembro de 2017. Brasília; 2017c.-2323 Brasil. Resolução da Diretoria Colegiada - RDC N° 205, de 28 de Dezembro de 2017. Diário Oficial da União no 249, de 29 de dezembro de 2017. Brasília; 2017b.. No entanto, a autorização de entrada no mercado pode não refletir em um maior acesso a esses medicamentos nos sistemas de saúde. O fato ocorre pela dificuldade de definir os atributos e componentes de valor a esses medicamentos por meio de uma avaliação tecnológica clássica ou padrão2424 Iskrov G, Miteva-Katrandzhieva T, Stefanov R. Health Technology Assessment and Appraisal of Therapies for Rare Diseases. Adv Exp Med Biol 2017; 1031:221-231.. Nesse sentido, considerando que a maioria desses medicamentos não são comprovadamente custo-efetivos, as agências de ATS Europeias iniciaram o compartilhamento de informações em rede e a criação de novos programas nos países, visando fornecer uma padronização para a variada extensão e escopo de elementos que podem ser considerados em uma ATS para doenças raras2525 Nicod E, Annemans L, Bucsics A, Lee A, Upadhyaya S, Facey K. HTA programme response to the challenges of dealing with orphan medicinal products: Process evaluation in selected European countries. Health Policy 2019; 123(2):140-151..

Quadro 3
Medicamentos para doenças raras avaliados apenas pelo NICE e não pela CONITEC.

Conforme evidenciado pela análise dos relatórios dos medicamentos eculizumabe, nusinersena e alfaelosulfase, avaliados por meio da matriz da rede da União Europeia, os componentes descritos em sua totalidade pelo NICE configuraram a metade (53,2%) dos elementos preconizados pelo modelo da rede. Já pela agência brasileira, 35,0 % dos elementos foram totalmente considerados. Consoante com os resultados de Kõrge et al.2626 Kõrge K, Berndt N, Hohmann J, Romano F, Hiligsmann M. Evaluation of the hta core model for national health technology assessment reports: Comparative study and experiences from european countries. Int J Technol Assess Health Care 2017;(33):644-653., a exemplo de caso, os pesquisadores encontraram uma concordância de 50% entre o modelo da União Europeia (Core Model® 2.4) e os relatórios produzidos pelo Conselho de Genética do governo de Luxemburgo. Tais resultados demonstraram maior semelhança com as avaliações do NICE e maior discrepância com a agência CONITEC. Nesse sentido, é possível refletir a importância do compartilhamento de informações e padronizações em um modelo estruturado em rede. Entre as principais vantagens de usar um modelo está a possibilidade de colaboração de agências menores e menos experientes com outras agências mais experientes sobre as consequências de curto e longo prazo da aplicação de uma tecnologia de saúde específica, bem como o escopo de evidências utilizadas para as tomadas de decisão final.

Um estudo investigando os elementos mais frequentemente utilizados e emitidos em uma avaliação de ATS, por distintas agências da Europa e das Américas, identificou os domínios de efetividade, custo-efetividade, segurança e qualidade de vida, como os principais domínios considerados pelos representantes das agências nos respectivos países2727 Stephens JM, Handke B, Doshi JA. International survey of methods used in health technology assessment (HTA): Does practice meet the principles proposed for good research. Comp Effect Res 2012; (2):29-44.. Os aspectos melhor descritos e considerados na avaliação dos medicamentos para doenças raras encontrados nos relatórios do NICE (Tabelas 1 e 2), corrobora com a utilização em todas as recomendações de acordos de compartilhamento de risco ou esquemas de acesso ao paciente (descontos sigilosos de preço com a indústria farmacêutica), bem como com a criação de um programa de avaliação de tecnologias altamente especializadas no NICE1414 Ferrario A, Kanavos P. Dealing with uncertainty and high prices of new medicines: A comparative analysis of the use of managed entry agreements in Belgium, England, the Netherlands and Sweden. Soc Sci Med 2015; (124):39-47.,2828 The National Health and Care Excellence Health (NICE) 2013. Interim process and methods of the highly specialised technologies programme. National Institute for Health and Care Excellence. [cited 2020 Jul 5]. Available in: https://www.nice.org.uk/Media/Default/About/what-we-do/NICE-guidance/NICE-highly-specialised-technologies-guidance/Highly-Specialised-Technologies-Interim-methods-and-process-statements.pdf.
https://www.nice.org.uk/Media/Default/Ab...
. A esse distinto cenário, seletos medicamentos são indicados pelo governo (até três ao ano), que podem ter uma gama de elementos e critérios formais considerados como prioritários na tomada de decisão da agência, refletindo na disponibilidade de tratamentos alternativos a esse grupo populacional. No entanto, a decisão ainda depende do julgamento do Comitê e o quanto de carga de evidência incerta o sistema de saúde está disposto a pagar2929 Pearce F, Godfrey J. Evaluation of Highly Specialised Technologies for very rare diseases in England, National Institute for Health and Care Excellence. 2013. [cited 2020 Jul 5]. Available from: http://www.rare-diseases.eu/wpcontent/uploads/2013/08/139_t4.pdf. Accessed 13 august 2020.
http://www.rare-diseases.eu/wpcontent/up...
.

Tabela 1
Matriz de análise comparativa dos domínios, componentes (elementos) do modelo da rede europeia de ATS aplicado nos relatórios de medicamentos para doenças raras do NICE e CONITEC.
Tabela 2
Porcentagem dos domínios categorizados com base nos relatórios da CONITEC e NICE.

Vários elementos não foram descritos nos relatórios de ambas agências, ou apenas parcialmente descritos, em maior porcentagem e prevalência pela agência brasileira (Tabelas 1 e 2). É importante destacar que muitos desses elementos são relativos a evidências de segurança e efetividade, bem como os aspectos organizacionais, o que indica maior nível de incertezas para a tomada de decisão - que se pretende ser baseada em evidências. Muitas vezes, para lidar com domínios de incertezas, os tomadores de decisão utilizam-se de fenômenos de intuições ou heurísticas, o qual tem sido reportado na literatura como uma importante ferramenta nas tomadas de decisões. Um exemplo disso, é a ‘heurística de afeto’ que pode melhorar a eficiência do julgamento derivando avaliações de risco e benefício, quando se consideram percepções e, consequentemente, considerando apenas parte dos atributos e não da sua totalidade3030 Finucane M, A Alhakami, P Slovic, Johnson S. The affect heuristic in judgments of risks and benefits. J Behav Decis Mak 2000; 13(1):1-17..

Ademais, os mecanismos de compartilhamento de risco ou entrada gerenciada desses medicamentos nos sistemas de saúde (alguns envolvendo descontos sigilosos), podem ser a expressão do nível de incertezas descrito nos seus relatórios. Até outubro de 2018, o NICE tinha 184 acordos ativos com várias empresas e ao todo, 133 (72%) dessas negociações são simples descontos3131 Neil Grubert & Morse Consulting. International-Pharmaceutical-Managed-Entry-Agreements. Lessons Learned from Europe, the United States, Canada and Australia. [cited 2020 Set 10]. Available from: https://morseconsulting.ca/wp-content/uploads/2018/12/International-Pharmaceutical-Managed-Entry-Agreements-2018.pdf.
https://morseconsulting.ca/wp-content/up...
. O nusinersena foi o primeiro medicamento recomendado por meio de um acordo de compartilhamento de risco no Brasil3232 Brasil. Institui projeto piloto de acordo de compartilhamento de risco para incorporação de tecnologias em saúde, para oferecer acesso ao medicamento Spinraza (Nusinersena) para o tratamento da Atrofia Muscular Espinhal (AME 5q) tipos II e III no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial da União, 12 de junho de 2019. [acessado 2020 jan 20]. Disponível em: http://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-n-1.297-de-11-de-junho-de-2019-163114948.
http://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-...
. Outras tentativas e recomendações de forma similar foram praticadas previamente com os medicamentos avaliados nesse estudo (eculizumabe e alfaelosulfase), sendo que nestes casos as Portarias de incorporação descrevem a condição de que dados do uso em três anos sejam avaliados para reconsideração da incorporação (entrada gerenciada). No entanto, conforme os resultados obtidos da matriz aqui aplicada, os elementos relativos à organização de serviços e de profissionais para aplicação dos novos tratamentos, são pouco, ou nada descritos nos relatórios da agência. No caso brasileiro este resultado é especialmente preocupante, pois deficiências reconhecidas nos serviços de saúde especializados, de média e alta complexidade, indicam falta de condições essenciais para o acompanhamento efetivo destes tratamentos e a para a geração de informações de vida real confiáveis e isentas, capazes de subsidiar a avaliação dos resultados dos possíveis benefícios dos tratamentos. Neste contexto, é fundamental que os relatórios de recomendação de incorporação tragam destaque para estes elementos e induzam ao necessário investimento nos serviços de saúde correspondentes ao alto investimento em medicamentos que está sendo aprovado.

Garrison et al.3333 Garrison LP Jr, Zamora B, Li M, Towse A. Augmenting Cost-Effectiveness Analysis for Uncertainty: The Implications for Value Assessment-Rationale and Empirical Support. J Manag Care Spec Pharm 2020; 26(4):400-406. destacaram que existem decisões sobre medicamentos que demonstraram inúmeras incertezas atribuídas ao julgamento dos critérios utilizados, que vão além do quesito de custo-efetividade como único componente de análise. Esta medida não pode ser considerada como único elemento na tomada de decisão, e de fato os resultados aqui apresentados indicam que as decisões não baseadas totalmente na demonstração de custo-efetividade. A análise pode ser aumentada considerando uma série de elementos potenciais de valor, como o valor da severidade da doença, o seguro de proteção contra riscos financeiros, o valor de esperança e valor de conhecimento. Atualmente, determinadas agências incorporaram alguns critérios e os utilizam de modo formal, como no NICE, o qual busca capturar na avaliação desses medicamentos: a necessidade clínica não atendida, o nível de inovação, a qualidade de vida (baseada em relatos) e o preço baseado em valor, visando uma tomada de decisão ampliada para esses medicamentos2525 Nicod E, Annemans L, Bucsics A, Lee A, Upadhyaya S, Facey K. HTA programme response to the challenges of dealing with orphan medicinal products: Process evaluation in selected European countries. Health Policy 2019; 123(2):140-151.,2828 The National Health and Care Excellence Health (NICE) 2013. Interim process and methods of the highly specialised technologies programme. National Institute for Health and Care Excellence. [cited 2020 Jul 5]. Available in: https://www.nice.org.uk/Media/Default/About/what-we-do/NICE-guidance/NICE-highly-specialised-technologies-guidance/Highly-Specialised-Technologies-Interim-methods-and-process-statements.pdf.
https://www.nice.org.uk/Media/Default/Ab...
.

Uma nova ferramenta está sendo proposta internacionalmente como forma de integração de fatores relevantes para os processos de ATS em todo o mundo. A análise de decisão multicritérios (ADMC) considera, além dos conceitos clássicos empregados em ATS (por exemplo, os propostos pelo modelo da União Europeia), diferentes valores e critérios (atributos) que possam ser utilizados na prática de forma padronizada2424 Iskrov G, Miteva-Katrandzhieva T, Stefanov R. Health Technology Assessment and Appraisal of Therapies for Rare Diseases. Adv Exp Med Biol 2017; 1031:221-231.,3434 Goetghebeur MM, Wagner M, Khoury H, Rindress D, Gregoire JP, Deal C. Combining multicriteria decision analysis, ethics and health technology assessment: applying the EVIDEM decision-making framework to growth hormone for Turner syndrome patients. Cost Eff Resour Alloc 2010;(8):4.. Tal mecanismo, ao mesmo tempo em que aborda o impacto da raridade em todas as considerações, leva a um equilíbrio entre as diferentes partes interessadas quando existem informações conflitantes, vagas e mesmo incompletas durante o processo de decisão. O seu emprego, segundo Campolina et al., permite considerar, de modo explícito, os critérios que influenciam a decisão; facilita o acompanhamento e visualização das etapas do processo; permite avaliar a contribuição de cada critério de modo isolado e agregado para o resultado da decisão e facilita a discussão de perspectivas divergentes dos grupos de interesse ao mesmo tempo que aumenta a compreensão das recomendações elaboradas3535 Campolina AG, Soárez PC, Amaral FV, Abe JM. Análise de decisão multicritério para alocação de recursos e avaliação de tecnologias em saúde: tão longe e tão perto? Cad Saude Publica 2017; 33(10):e00045517..

A transparência do processo de avaliação, a clareza dos critérios e parâmetros adotados - incluindo os critérios qualitativos e o gerenciamento explícito das incertezas - são condições fundamentais para que as agências e as instituições de saúde tenham a confiança e legitimidade na sociedade3636 Leite SN, Calnan. Pharmaceutical Policy as a right and a service: reflections on population trust. Bras Farm Hosp Serv Saude 2018;(3):e093.001.. O desenvolvimento e aplicação de mecanismos que possam minimizar o impacto das incertezas e dos conflitos de interesses no processo de avaliação de tecnologias deve estar na agenda de prioridades das agências reguladoras.

Por fim, considera-se ressaltar algumas limitações relacionadas a esse estudo. Uma delas é o fato que todas as análises foram realizadas com base em fontes secundárias disponíveis publicamente no website das agências, não contemplando o acesso aos documentos originais. A segunda limitação, acontece pelo fato da ausência de participação nas reuniões públicas da CONITEC ou do NICE durante a avaliação dos respectivos medicamentos, o que poderia melhorar a compreensão sobre o fenômeno e a posição das diferentes partes interessadas no tema. Outra limitação a ser considerada refere-se a amostra aqui analisada. Por ser ainda recente, os acordos de compartilhamento de risco, incorporação condicionada ou entrada gerenciada foram aplicados a pequeno número de incorporações no Brasil e novas análises devem ser realizadas para acompanhar o impacto desses mecanismos sobre os processos de incorporação.

Considerações finais

Os resultados sugerem que as agências de ATS (CONITEC e NICE) operam em um contexto de incerteza na avaliação de medicamentos para doenças raras, que fica expresso na ausência de elementos importantes nos relatórios para incorporação de medicamentos por acordos de compartilhamento de risco ou de incorporação condicionada. Isso acontece devido aos desafios clínicos, regulatórios, econômicos e sociais da avaliação desses medicamentos em diferentes pontos do seu ciclo de vida. No caso do NICE, a agência demonstrou maior concordância com o modelo de construção das avaliações proposto. Possivelmente, o fato pode estar relacionado ao compartilhamento de informações em rede e a criação de um programa específico que considera valores mais amplos na avaliação de medicamentos para doenças raras. A CONITEC demonstrou maior número de elementos de domínios classificados em parcialmente descritos e não descritos, especialmente em elementos dos aspectos organizacionais e de manejo dos medicamentos dentro do sistema de saúde. Para a geração de dados de vida real confiáveis e isentos, capazes de subsidiar a avaliação dos resultados dos possíveis benefícios dos tratamentos, é fundamental que os relatórios de recomendação de incorporação tragam destaque para estes elementos e indiquem os investimentos necessários também nos serviços, e não apenas em medicamentos. Da mesma forma, atualmente no Brasil, não há nenhuma tramitação em pauta para criação de novos programas integrados à ATS para a avaliação de medicamentos emergentes para doenças raras. Novos programas de ATS podem melhorar o processo de tomada de decisão a respeito desses medicamentos, assegurando o potencial de incertezas assimétrico. Tais programas e modelos alternativos garantiriam uma abordagem mais ampla contrapondo à exclusiva de abordagem de custo-efetividade, que não consegue garantir a assimetria em todas avaliações. No entanto, ainda a questão que surge é se esses novos programas e estruturas de tomada de decisão serão bem-sucedidos na prática e qual o limite de incerteza aceito para configurar um acordo com a indústria farmacêutica em um cenário de preços cada vez mais exorbitantes. É importante questionar se as incorporações baseadas em acordos comerciais condicionais podem, por fim, legitimar e normatizar as incertezas e a falta de evidências científicas neste processo.

Um novo cenário para atendimento integral a esses pacientes é necessário permitindo uma tomada de decisão defensável, ao mesmo tempo que possibilite preservar a legitimidade da avaliação dos medicamentos para doenças raras e o acesso equitativo a medicamentos inovadores.

Agradecimentos

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    Nov 2021

Histórico

  • Recebido
    12 Maio 2020
  • Aceito
    28 Fev 2021
  • Publicado
    02 Mar 2021
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br