O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional: dinâmica de atuação e agenda (2006-2016)

Verena Duarte de Moraes Cristiani Vieira Machado Rosana Magalhães Sobre os autores

Resumo

A insegurança alimentar é um problema mundial de saúde pública. No Brasil, a configuração de uma política de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) ganhou centralidade na agenda governamental a partir de 1980. Destaca-se a criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) visando à articulação entre setores e à participação social. Este artigo examina a atuação do CONSEA na coordenação da política de SAN no Brasil de 2006 a 2016. A pesquisa baseou-se na abordagem do institucionalismo histórico e utilizou a dinâmica de atuação e a agenda do CONSEA como eixos de análise. As estratégias metodológicas realizadas foram: revisão bibliográfica, análise documental e entrevistas semiestruturadas. Observou-se que O CONSEA foi marcado por expressiva atuação da sociedade civil e participação variável dos representantes do poder público. Em relação à agenda, temas conflitivos foram muito debatidos, mas tiveram pouca repercussão na adoção de medidas legais e normativas. Conclui-se que o fortalecimento do CONSEA aliado ao enfrentamento dos interesses econômicos, o financiamento adequado e a atuação do Estado na proteção social são essenciais para a superação dos desafios, a efetivação da política de SAN e promoção da saúde da população.

Palavras-chave:
Segurança Alimentar e Nutricional; Políticas Públicas; Coordenação Intersetorial e Participação Social

Introdução

A insegurança alimentar afeta desigualmente a população e tem relação com problemas de saúde como desnutrição, sobrepeso, obesidade e doenças crônicas não transmissíveis11 World Health Organization (WHO). Guideline: sugars intake for adults and children. Geneva: WHO; 2015.. O tema tem se destacado nas áreas da saúde, nutrição e ciências sociais e ocupado a agenda das políticas públicas de diversos países22 Pereira RA, Santos LMP. A dimensão da insegurança alimentar. Rev Nutr 2008; 21(Supl.):7-13..

No Brasil, as políticas de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) apresentaram uma trajetória fragmentada33 Gomes MM. Segurança Alimentar e Nutricional: perspectivas, aprendizados e desafios para as políticas públicas. Rocha C, Burlandy L, Magalhães R. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2013. 225 p [resenha]. Cad Saude Publica 2014; 30(11):2478-2479.. No contexto da redemocratização, a I Conferência Nacional de Alimentação e Nutrição, em 1986, mobilizou muitas organizações da sociedade, incluindo acadêmicos e profissionais. Nas décadas seguintes, sob novo marco constitucional legal, houve mudanças nas políticas de Alimentação e Nutrição, ressaltando a configuração do conceito de SAN, o consenso em torno do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), a criação de conselho nacional suprassetorial e a valorização da intersetorialidade44 Burlandy L. A atuação da sociedade civil na construção do campo da Alimentação e Nutrição no Brasil: elementos para reflexão. Cien Saude Colet 2011; 16(1):63-72..

A intersetorialidade é essencial nas políticas de SAN, que abrangem diversos setores da economia e diferentes atores sociais, compreendendo a produção, o abastecimento, a comercialização, o acesso e o consumo de alimentos. Diante dessa complexidade, mecanismos institucionais de coordenação entre áreas foram construídos para assegurar a implementação de políticas55 Burlandy L. A construção da política de segurança alimentar e nutricional no Brasil: estratégias e desafios para a promoção da intersetorialidade no âmbito federal de governo. Cien Saude Colet 2009; 14(3):851-860..

Destaque-se a criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) em 1993, como órgão consultivo vinculado à Presidência da República, constituindo um espaço de articulação intersetorial e de negociação entre Estado e sociedade civil na construção de políticas na área66 Menezes F. Participação Social no Fome Zero: A experiência do Consea. In: Silva JGDA, Del Grossi ME, França CGDE, organizadores. Fome Zero: a experiência brasileira. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário; 2010. p. 247-264.. Nesse primeiro momento, o CONSEA promoveu a aproximação entre setores de governo e sociedade, conjugando pactuação política e controle social55 Burlandy L. A construção da política de segurança alimentar e nutricional no Brasil: estratégias e desafios para a promoção da intersetorialidade no âmbito federal de governo. Cien Saude Colet 2009; 14(3):851-860.. No entanto, enfrentou constrangimentos e limites para a efetiva atuação, em grande parte devido ao panorama restritivo de gastos públicos, culminando com sua revogação pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em 199577 Maluf RS, REIS MC. Conceitos e princípios de Segurança Alimentar e Nutricional. In: Rocha C, Burlandy L, Magalhães R, organizadores. Segurança alimentar e nutricional: perspectivas, aprendizados e desafios para as políticas públicas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013. p. 15-42.. Posteriormente, em 2003 e no âmbito do primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, o CONSEA foi recriado, mantendo as mesmas características, com participação majoritária da sociedade civil e representação de diversos ministérios88 Siqueira RLDE, Fonseca DA, Viana MN, Junqueira TS, Ribeiro RCL, Cotta RMM. Conselho de segurança alimentar e nutricional: análise do controle social sobre a política estadual de segurança alimentar e nutricional no Estado do Espírito Santo. Saude Soc 2011; 20(2):470-482..

No que concerne à Política Nacional de SAN, a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, instituída de forma participativa em 2006, representou a consagração de uma concepção abrangente e intersetorial da política, bem como dos princípios que a orientam: universalidade, autonomia e respeito à dignidade humana; participação social e transparência99 Burlandy L, Magalhães R, Frozi DS. Políticas Públicas de Segurança Alimentar e Nutricional. In: Rocha C, Burlandy L, Magalhães R, organizadores. Segurança alimentar e nutricional: perspectivas, aprendizados e desafios para as políticas públicas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013. p. 89-107.. A Lei instituiu a Política Nacional de SAN e o Sistema Nacional de SAN, integrado pelo CONSEA, Conferências, Câmara Intersetorial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN), instituições privadas e um conjunto de órgãos e entidades de diferentes setores em todos os níveis de governo. Definiu também atribuições para a atuação do CONSEA na formulação, monitoramento e avaliação de políticas, de acordo com as Conferências Nacionais de SAN, incluindo a proposição à CAISAN de diretrizes para o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PLANSAN)1010 Brasil. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - SISAN com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Diário Oficial da União 2006; 15 set.. Nesse sentido, expressou a preocupação com a institucionalização e continuidade das políticas na agenda governamental44 Burlandy L. A atuação da sociedade civil na construção do campo da Alimentação e Nutrição no Brasil: elementos para reflexão. Cien Saude Colet 2011; 16(1):63-72..

A extinção do CONSEA em 2019, após a mudança do governo federal, suscitou reação imediata de organizações e entidades de diferentes áreas, inclusive internacionais, que manifestaram o risco de fragilização das políticas de SAN1111 Castro IRR. A extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e a agenda de alimentação e nutrição. Cad Saude Publica 2019; 35(2):e00009919..

Este artigo tem como objetivo analisar a atuação do CONSEA de 2006 a 2016, visando explorar sua dinâmica e agenda no período, de forma a contribuir para a compreensão de sua relevância na coordenação intersetorial e na garantia da participação social na política de SAN.

Metodologia

A pesquisa se baseou no referencial teórico do institucionalismo histórico, com destaque para os estudos desenvolvidos por Thelen et al.1212 Thelen K, Steinmo S, Longstreth F, organizadores. Structuring Politics: historical institutionalism en comparative analysis. Cambridge: Cambridge University Press; 1992., enfocando a atuação do CONSEA como uma das instâncias de coordenação da Política Nacional de SAN, de janeiro de 2006 a maio de 2016. O ano inicial é o de promulgação da Lei Orgânica que conferiu nova institucionalidade para a atuação do CONSEA. Estudos anteriores abordaram a recriação e a atuação do Conselho até 20061313 Freitas GDDE. Da Fome a Segurança Alimentar e Nutricional: análise da (re)criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) no primeiro Governo Lula [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2017.,1414 Garcia DDOV. A Construção de Arranjos Intersetoriais no Governo Federal [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense; 2014., havendo lacunas de conhecimento sobre a atuação dessa instância a partir desse ano. O encerramento do estudo em 2016 se deve à reestruturação ministerial consequente à mudança de governo relacionada ao impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, que alterou o contexto e as relações entre órgãos e atores envolvidos na política. Os anos de 2017 e 2018 não foram analisados, pois as profundas mudanças político-institucionais no país exigiriam estudos específicos, incluindo a análise do processo que levou à extinção do CONSEA em 2019.

As técnicas de pesquisa envolveram revisão bibliográfica sobre políticas de SAN, análise documental (leis, decretos, normas, publicações oficiais e documentos do CONSEA e da CAISAN) e análise de conteúdo de 17 entrevistas semiestruturadas realizadas com atores que participaram do Conselho no período, como representantes do governo (8) ou da sociedade civil (9).

Quanto à análise documental, destacaram-se como fontes: 58 pautas e 55 atas de reuniões, 103 recomendações e 116 exposições de motivos emitidas pelo CONSEA. Os documentos indisponíveis na página oficial do Conselho foram solicitados através do Sistema Eletrônico do Serviço de Informação ao Cidadão do Governo Federal.

Para a organização, sistematização e análise dos dados foram privilegiados dois eixos: estrutura e dinâmica de atuação; e agenda do CONSEA. O primeiro eixo se relaciona à descrição da estrutura, organização interna, composição (órgãos do governo e entidades da sociedade civil) e dinâmica de funcionamento, incluindo a participação de representantes nas reuniões. O segundo eixo concerne à análise de conteúdo dos temas pautados nas reuniões e documentos de encaminhamentos pelo CONSEA (exposições de motivos e recomendações).

Resultados

Estrutura e dinâmica de atuação do CONSEA

O CONSEA em 2007 era composto por um terço de representantes governamentais, compreendendo ministros de Estado e secretários especiais, e dois terços de representantes da sociedade civil escolhidos a partir de critérios aprovados na Conferência Nacional de SAN1515 Maluf RS. O Consea na construção do sistema e da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. In: Silva JGDA, Del Grossi ME, França CGDE, organizadores. Fome Zero: a experiência brasileira. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário; 2010. p. 265-287..

A sua estrutura organizacional era formada por uma Secretaria Geral e uma Secretaria Executiva; a Mesa Diretiva; as Comissões Permanentes; os Grupos de Trabalho e a Comissão de Presidentes de Conselhos Estaduais e do Distrito Federal de SAN1616 planalto.gov [Internet]. Brasília: Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; 2019 [acessado 2019 fev 12]. Disponível em: http://www4.planalto.gov.br/consea/..

Segundo as entrevistas, a Mesa Diretiva era uma instância decisiva na construção da agenda, estabelecendo um processo democrático para a seleção dos temas das plenárias. Os temas eram debatidos previamente pelas Comissões Permanentes ou grupos de trabalho, que elaboravam propostas para apreciação na plenária. As Comissões Permanentes foram reconhecidas como um espaço relevante de diálogo entre áreas de atuação do governo e da sociedade civil, de aprofundamento de debates e de preparação de documentos e temas para a discussão nas plenárias. Entretanto, dois presidentes do Conselho entrevistados identificaram limitações de articulação entre tais instâncias.

As decisões colegiadas eram encaminhadas à Presidência da República e a órgãos do governo, por meio das recomendações, exposições de motivos e resoluções. As recomendações contêm proposições dirigidas a um determinado órgão público. As exposições de motivos são documentos analíticos com proposições encaminhadas à Presidência da República. As resoluções tratam de deliberações sobre a organização e funcionamento interno do CONSEA1616 planalto.gov [Internet]. Brasília: Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; 2019 [acessado 2019 fev 12]. Disponível em: http://www4.planalto.gov.br/consea/..

A representação governamental no CONSEA, correspondente a um terço dos membros, compreendia 21 órgãos em 2016. O Quadro 1 sistematiza as alterações na composição governamental ao longo do tempo.

Quadro 1
Representação Governamental do CONSEA e os decretos que determinaram alterações na sua composição de 2007 a 2016.

Em dezembro de 2016 foi publicado outro decreto, atualizando os nomes dos ministérios que compunham o CONSEA a partir da reforma ministerial que transformou Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) em Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário. Observaram-se preocupações sobre as atribuições dos membros e a dinâmica de funcionamento do Conselho perante tais mudanças.No que concerne à composição das entidades civis, observou-se também variação ao longo do período analisado.

O Quadro 2 mostra que as entidades civis componentes do CONSEA em 2016 eram representantes de diferentes setores e áreas da política. Destacam-se na composição do CONSEA como representantes da sociedade civil as redes e fóruns nacionais temáticos (10 vagas), formadas por organizações criadas, em sua maioria, no final dos anos 1980. Ressalte-se a relevância da atuação dos integrantes do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), dos quais três foram presidentes do Conselho.

Quadro 2
Listas das entidades civis classificadas por setor/tema em 2016.

A partir da análise das atas e das listas de presenças, explorou-se a participação dos órgãos governamentais nas reuniões no período do estudo, conforme ilustrado no Gráfico 1.

Gráfico 1
Participação dos representantes governamentais nas reuniões do CONSEA de 2006 a 2016.

O MDS esteve presente em todas as reuniões, em geral com mais de um representante. Os ministros do MDS que exerceram o cargo no período estiveram presentes em mais da metade das plenárias. O Ministério da Saúde também contou na maior parte das reuniões com a presença de mais de um representante, destacando-se a baixa rotatividade dos membros desse órgão.

A participação do Ministério da Educação foi significativa, especialmente se considerada a presença de representantes do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Houve reuniões com representação simultânea do ministério e do FNDE (nesse caso, sem rotatividade). Destaca-se que os membros do Ministério da Educação se identificavam não só pelo órgão, mas também mencionavam o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), sugerindo a importância desse programa nos debates dessa área junto ao CONSEA.

No que concerne ao Ministério das Relações Exteriores, destaca-se a alta frequência e pouca alternância do seu representante, cuja participação foi elogiada nas atas e entrevistas, ocasionando ainda a emissão de uma nota de desagravo pela sua exoneração em 2016.

Em relação ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) ressalte-se sua baixa participação e a presença da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) (empresa pública vinculada ao MAPA) em mais da metade das reuniões, representada, em geral, pelo mesmo membro.

Destaca-se que os órgãos com atuação expressiva no CONSEA, especialmente o MDS e o Ministério da Saúde, tiveram participação significativa na CAISAN, contando com os mesmos representantes nas duas instâncias. Segundo uma entrevistada isso foi importante para que a discussão do Conselho fosse encaminhada para a Câmara de uma maneira mais qualificada.

Em geral, houve um envolvimento tímido dos ministros com o CONSEA, com exceção dos representantes do MDS. A participação de outros ministros ocorreu diante do destaque de temas do escopo do seu órgão. Dos 21 ministérios que compõem o Conselho, 8 áreas contaram com a presença desses atores: Desenvolvimento Social e Combate à Fome (em 29 reuniões); Desenvolvimento Agrário (4); Pesca e Aquicultura (2); Saúde (1); Agricultura, Pecuária e Abastecimento (1); Cidades (1); Políticas de Promoção da Igualdade Racial (1); e Políticas para as Mulheres (1).

Em diversas ocasiões, representantes da sociedade civil mencionaram como um dos desafios do CONSEA o reforço da participação dos ministros e a diminuição da rotatividade dos representantes governamentais nas reuniões. Relatou-se também que os representantes do governo muitas vezes não possuíam poder de decisão, o que enfraqueceria as deliberações das plenárias. Entretanto, tais gestores apresentavam diferentes possibilidades de contribuição, nos níveis técnicos e operacionais do cotidiano da política.

Em relação às entidades civis, houve mudança de conselheiros e inversão de posição entre titulares e suplentes. No entanto, algumas entidades da sociedade civil mantiveram o mesmo representante durante todo o período analisado, como: Articulação Nacional de Agroecologia; Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional; Especialista/pesquisador para o setor de enfoques sócio-políticos; Federação Nacional das Associações de Celíacos do Brasil; Comitê de Entidades no Combate à Fome e pela Vida; Ação da Cidadania; Rede Evangélica Nacional de Ação Social e Articulação no Semiárido Brasileiro.

De acordo com os atores entrevistados a participação dos representantes dos povos e comunidades tradicionais, do Fórum Brasileiro e da Articulação Nacional de Agroecologia foi expressiva nas reuniões. As organizações que vocalizavam as temáticas étnicas, raciais e do DHAA tiveram impacto importante na institucionalidade governamental e contribuíam para a constituição de comissões específicas. As entrevistas revelaram ainda o fortalecimento do debate em torno de questões étnicas e raciais a partir da representação da população negra e comunidades tradicionais na agenda do CONSEA.

Destaca-se a baixa participação das entidades empresariais relacionadas à indústria de alimentos e ao agronegócio. No período pesquisado, apenas a Associação Brasileira de Indústria de Alimentos, a Associação Brasileira de Supermercados e a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil mantiveram a interface com o CONSEA. Membros do Conselho também indicaram a ausência de outros setores da iniciativa privada e de movimentos sociais.

No entanto, a composição majoritária de representantes da sociedade civil e a ocupação da presidência por membro desse segmento conferia ao CONSEA uma peculiaridade como possível espaço de contestação, além de formulação de propostas e monitoramento da política. A sociedade civil valorizava tal arena pela sua visibilidade e certo grau de incidência na ação governamental. Entretanto, a eficácia da sua participação dependia da permeabilidade do governo. Como o CONSEA era capaz de dar voz a segmentos vulneráveis, alguns setores do governo eventualmente se sentiam ameaçados. Nesse sentido, observaram-se enfrentamentos e alianças entre governo e sociedade civil.

Temas e debates: a agenda do CONSEA

A agenda do CONSEA incluiu questões prioritárias para a sociedade civil e para o governo, envolvendo uma diversidade de temas, expressos nas pautas, nas recomendações e nas exposições de motivos. Observou-se grande amplitude da política de SAN, com a participação de vários órgãos e atores. Segundo uma ex-presidente do Conselho, havia interesse em trabalhar diversos temas potencialmente capazes de serem traduzidos em políticas e programas abrangentes. De acordo com a análise documental realizada no âmbito da pesquisa, os temas mais frequentes estão indicados no Quadro 3.

Quadro 3
Temas mais frequentes nas pautas, recomendações e exposições de motivo do CONSEA de 2006 a 2016.

O tema Planejamento/Gestão do CONSEA foi frequente nas pautas, o que pode estar relacionado ao esforço de institucionalização e fortalecimento dessa instância. Destacaram-se também, no planejamento da política, as discussões sobre o PLANSAN (2012-2015), o Plano Plurianual (PPA) e o Plano Intersetorial de Prevenção e Controle da Obesidade.

O PLANSAN, instrumento que materializa a política, foi bastante debatido no CONSEA e nos comitês técnicos e plenárias da CAISAN quanto à sua metodologia de elaboração, desafios de implantação e monitoramento. Nas entrevistas, o Plano foi destacado como estratégia importante de conexão entre os setores e promoção da intersetorialidade, considerando os diversos temas e estratégias abarcados.

O PPA também esteve presente na agenda, com ênfase na metodologia de construção do programa temático intersetorial de SAN. A elaboração desse programa envolveu a participação da sociedade civil em fóruns de discussão em todo o país. Os entrevistados destacaram o desafio de construção de um programa intersetorial, estratégico e com metas robustas para alcançar os propósitos da área, o que teria representado uma conquista para o CONSEA.

Em relação ao orçamento, os debates expressaram a insatisfação de conselheiros com o baixo aporte de recursos destinado à área da SAN e a limitada capacidade do Conselho interferir no financiamento de programas sob gestão dos ministérios. Ressalte-se que essa temática apareceu nas exposições de motivos de forma frequente de 2006 a 2012 e em 2016. A maioria das exposições solicitavam suplementação orçamentária para diversos programas e ações. De acordo com as entrevistas o orçamento foi destacado como elemento de disputa, bem como os desafios postos pelas restrições orçamentárias e pela distribuição desigual dos recursos entre programas repercutindo em fortes limitações para a efetivação da política de SAN. Entretanto, alguns representantes governamentais apontaram o orçamento como um mecanismo importante para efetivar a intersetorialidade, especialmente a partir da construção do PLANSAN e do programa temático de SAN no PPA. Esses dois documentos tiveram destaque na agenda na CAISAN, órgão composto por diferentes setores do governo, tornando-se uma instância essencial na coordenação intersetorial das políticas de SAN. Destaca-se que as principais temáticas incluídas na CAISAN eram originadas dos debates realizados no CONSEA, o que demonstra a similaridade das discussões e a possibilidade da Câmara articular soluções e construir respostas junto aos ministérios. Segundo os entrevistados, a possibilidade do diálogo direto entre atores governamentais nas duas instâncias - no CONSEA e na CAISAN - colaborou para a execução das proposições emanadas pelo CONSEA.

Quanto a temas específicos, o Plano Intersetorial de Prevenção e Controle da Obesidade teve destaque nas agendas do CONSEA e da CAISAN entre os anos de 2011 e 2014, pela participação frequente nessas instâncias dos representantes do Ministério da Saúde, que ressaltavam o aumento do sobrepeso e obesidade na população brasileira. Em 2014, 52,2% da população brasileira apresentava excesso de peso1717 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Vigitel Brasil 2014: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico: estimativas sobre frequência e distribuição sociodemográfica de fatores de risco e proteção para doenças crônicas nas capitais dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal em 2014. Brasília: MS; 2015.. O Plano buscou organizar as orientações de forma articulada e intersetorial para o enfrentamento do sobrepeso e obesidade e seus determinantes no país, o que exigia o envolvimento de diversos ministérios e da sociedade civil. Nesse contexto, o Guia Alimentar para a População Brasileira também ganhou notoriedade nos debates.

Destacaram-se ainda na agenda o PNAE e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). O debate sobre o projeto de Lei do PNAE foi intenso desde 2006 até sua publicação oficial em 2009. Os entrevistados ressaltaram a disputa congressual e a demora para a aprovação da lei, mas enfatizaram a reconstrução do PNAE como uma conquista do Conselho. Um dos entrevistados destacou que a reformulação do PNAE pelo CONSEA foi facilitada pela centralidade da SAN na agenda federal durante o governo Lula. A criação do PAA também foi destacada como desdobramento de uma proposta do CONSEA, tornando-se um exemplo de construção intersetorial.

Apesar do protagonismo do CONSEA na discussão e reformulação destes programas, repercutindo em avanços, algumas recomendações e exposição de motivos referentes ao PNAE sugeriram novas medidas para o seu o aprimoramento e a consolidação do acesso dos produtos da agricultura familiar, para os povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e mercados institucionais. Já o PAA, segundo entrevistados, sofreu esvaziamento ao longo do tempo, com mudanças de orientação política e redução de recursos.

Houve também protagonismo do CONSEA na construção de consenso sobre o direito à alimentação. O debate sobre DHAA, além de transversal a outros temas, abrangeu propostas para a aprovação da Emenda Constitucional (PEC 47/2003), que incluiu tal direito na Constituição Federal.

O tema da agricultura familiar esteve relacionado ao Plano Safra da Agricultura Familiar e articulou o debate sobre comercialização, relação com os programas nacionais de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), de Alimentação Escolar e reforma agrária. Apesar da reforma agrária não ser um tema frequente nas pautas do Conselho, sempre esteve presente nos debates, assim como o uso de agrotóxicos e a questão dos riscos ligados à comercialização e consumo de alimentos transgênicos.

A discussão sobre povos e comunidades tradicionais abrangeu a política nacional para esse segmento e os desafios da incorporação da dimensão étnica na pauta ligada ao desenvolvimento econômico e social. A temática dos povos indígenas foi frequente, associada aos desafios da reforma agrária, direitos territoriais e patrimoniais. A partir de 2011, o tema esteve presente em muitas recomendações ao Poder Legislativo, assim como em exposições de motivos, com destaque para solicitação de brevidade ou priorização de processos que garantissem a titulação de terras ocupadas por povos indígenas. Uma entrevistada destacou a frequência do tema, mas, também, a dificuldade em lograr avanços. O processo histórico de invasões das terras dos povos indígenas no Brasil aponta a importância dessa temática e a relevância sobre o papel do Estado na construção de políticas públicas direcionadas a esses povos1818 Kabad JF, Pontes ALM, Monteiro S. Relações entre produção cientifica e políticas públicas: o caso da área da saúde dos povos indígenas no campo da saúde coletiva. Cien Saude Colet 2020; 25(5):1653-1666..

As recomendações referentes aos transgênicos expressaram as divergências dos membros do CONSEA sobre a natureza, os impactos e os possíveis efeitos nocivos para a saúde da população. Tais reivindicações deviam ser destinadas a um órgão público, entretanto a maioria foi dirigida ao Presidente da República. Em grande parte, as exposições de motivos relativas aos transgênicos tinham como objetivo encaminhar ao Presidente as mesmas recomendações emitidas pelo CONSEA a outros órgãos.

Destaque-se que a sociedade civil, bem como a maioria dos ministérios presentes no Conselho, com exceção do MAPA, se posicionava contra a liberação dos transgênicos. Pelas respostas contrárias do governo às solicitações do Conselho, alguns entrevistados se mostravam céticos quanto à efetividade do controle do processo de comercialização de alimentos transgênicos. A partir das entrevistas, constatou-se que o modelo de produção vigente no país baseado no agronegócio tinha o apoio do governo federal, o que conferia força política e econômica ao MAPA. De acordo com os depoimentos, o órgão era o principal opositor às medidas de controle e restrição na comercialização de alimentos transgênicos.

As recomendações relativas à regulação da rotulagem e publicidade dos alimentos apareceram nos anos de 2012, 2013 e 2014 e foram enviadas em geral ao Poder Legislativo. Neste período, as recomendações objetivaram garantir aprovações ou priorizações na tramitação de projetos de leis, alguns dos quais estavam há anos no Congresso.

Por fim, identificou-se a preocupação do CONSEA em melhorar a interlocução com o Governo e monitorar os encaminhamentos, visto que muitas recomendações e exposições de motivos não tiveram repercussão substantiva.

Discussão

A análise dos resultados da pesquisa permitiu identificar no período estudado a constituição de espaços internos ao CONSEA voltados à articulação de setores e atores da política, como as Comissões Permanentes e a Mesa Diretiva que contribuíram para a intersetorialidade e o diálogo entre Estado e sociedade civil, corroborando as evidências do estudo realizado por Nascimento1919 Nascimento RCDO. O papel do CONSEA na construção da Política e do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro; 2012.. A articulação entre diferentes Comissões mostrou-se importante para a ampliação do escopo dos debates e para a comunicação entre representações da sociedade civil e o governo.

Quanto à participação dos representantes governamentais, observou-se o engajamento expressivo de algumas áreas e atores no CONSEA. Ressalte-se o protagonismo do MDS, como o principal órgão responsável pelas políticas de SAN no país. Outro estudo havia apontado a baixa prioridade política da área pelo MDS como uma dificuldade identificada por conselheiros2020 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). O Conselho Nacional na visão dos seus conselheiros. Brasília: IPEA; 2012.. Nesta pesquisa foi possível perceber a atuação significativa e assídua do MDS no âmbito do CONSEA durante o recorte temporal analisado, inclusive com participação expressiva dos ministros em mais da metade das plenárias. O MDS também teve atuação relevante como dirigente da CAISAN, a instância colegiada e intersetorial do governo federal para a operacionalização das políticas na área. A existência do Conselho contribuiu para reforçar o espaço da política de SAN dentro do MDS, no governo federal e, também, entre as políticas nacionais. Apesar do predomínio de relações de diálogo, colaboração e complementação entre CONSEA e CAISAN, em certas ocasiões ocorriam tensões, caso os representantes da sociedade civil no CONSEA e nas Conferências considerassem que a Câmara estaria dando respostas insuficientes para as demandas. Além disso, podem prevalecer diferentes concepções, prioridades e estratégias em uma instância formada apenas por atores governamentais e em outra majoritariamente não governamental.

Além da relevância do MDS para a área, a pesquisa revelou a presença ativa e frequente nas plenárias de quatro ministérios: Saúde, Meio Ambiente, Educação e Relações Exteriores, com baixa rotatividade dos representantes, sugerindo a implicação dessas áreas com a política de SAN. Outro estudo realizado, em um CONSEA estadual no período de 2003 a 2007, também destacou o engajamento de áreas como Saúde e Educação2121 Costa MCODA. O Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional do Estado do Ceará (CONSEA/CE): um estudo de caso [tese]. Rio de Janeiro: Universidade do estado do Rio de Janeiro; 2008.. A baixa presença de alguns órgãos governamentais, como o MAPS, e a alta rotatividade entre os representantes de outras áreas do governo foram apontadas como limites à atuação do Conselho por vários entrevistados.

Estudos anteriores haviam sinalizado que a participação mais expressiva no CONSEA tende a ser a dos representantes da sociedade civil, enquanto a participação dos representantes do poder público em geral é mais oscilante e limitada2222 Moura JTVDE. A Representação Política de Organizações da Sociedade Civil nos Conselhos de Segurança Alimentar e Nutricional e a Busca pele Legitimidade [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2009.. Apesar da existência de conflitos em face da heterogeneidade do Conselho, observou-se no cotidiano dessa instância um processo de trabalho conjunto e contínuo entre sociedade e governo, pois os representantes governamentais no Conselho, em geral, são pessoas que atuam na agenda da SAN há muito tempo.

Identificou-se que, entre 2006 e 2016, algumas entidades da sociedade civil foram representadas pelos mesmos atores. Outro estudo apontou que a baixa rotatividade dos representantes indica uma dificuldade de renovação e construção de novas lideranças2222 Moura JTVDE. A Representação Política de Organizações da Sociedade Civil nos Conselhos de Segurança Alimentar e Nutricional e a Busca pele Legitimidade [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2009.. Entretanto, observou-se na pesquisa que as organizações com pouca rotatividade assumiram lugar estratégico de participação na política e na implementação de programas.

O estudo revelou que entidades empresariais da indústria de alimentos e do agronegócio tiveram baixa participação no CONSEA, resultado encontrado também por outros autores55 Burlandy L. A construção da política de segurança alimentar e nutricional no Brasil: estratégias e desafios para a promoção da intersetorialidade no âmbito federal de governo. Cien Saude Colet 2009; 14(3):851-860.,1515 Maluf RS. O Consea na construção do sistema e da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. In: Silva JGDA, Del Grossi ME, França CGDE, organizadores. Fome Zero: a experiência brasileira. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário; 2010. p. 265-287.. O afastamento destes setores pode ser explicado pela ampliação das discussões e propostas no Conselho relativas a mudanças estruturais no modelo de desenvolvimento econômico, que teriam repercussões negativas para o setor privado44 Burlandy L. A atuação da sociedade civil na construção do campo da Alimentação e Nutrição no Brasil: elementos para reflexão. Cien Saude Colet 2011; 16(1):63-72.. Além disso, considera-se que os canais de pressão e disputa de interesses destes atores podem não incluir o CONSEA.

De forma geral, no período analisado, o CONSEA foi uma instância importante de participação da sociedade civil e de articulação intersetorial em torno da política de SAN. O CONSEA foi inovador pela participação diversificada (incluindo atores tradicionalmente alijados de espaços decisórios) e majoritária da sociedade civil e por ser presidido por um ator desse segmento. A inclusão de redes, organizações da sociedade civil, atores estatais e de representantes do mercado e, portanto, de múltiplas vozes e narrativas, favorece a democracia e a construção coletiva da política pública de SAN. O Conselho também foi favorecido pela prioridade da temática na agenda presidencial nos dois mandatos do Presidente Lula, com forte projeção internacional. Por essas características, o CONSEA pode ser considerado um espaço exitoso de construção da participação social em torno da SAN no país.

A extinção do CONSEA por medida provisória no início de 2019 foi apontada como um retrocesso e uma afronta à democracia por diversos atores, organizações e movimentos sociais, que reagiram em defesa da garantia do DHAA e da agenda de SAN1111 Castro IRR. A extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e a agenda de alimentação e nutrição. Cad Saude Publica 2019; 35(2):e00009919.. O Congresso Nacional acolheu a proposta de ajuste no projeto de lei sobre a estrutura federal para a recriação do CONSEA, demonstrando a relevância da sociedade civil no monitoramento e controle social da política. Entretanto, em junho do mesmo ano o Presidente Bolsonaro vetou a recriação do CONSEA. O parlamento e sociedade civil permaneceram engajados na luta para a recriação desse importante espaço que é estratégico para a participação social e intersetorialidade na formulação e implementação das políticas de SAN.

Em relação à agenda do CONSEA, a inclusão de programas que não se relacionavam somente ao acesso à alimentação foi apontada por outro estudo como uma importante reconfiguração institucional44 Burlandy L. A atuação da sociedade civil na construção do campo da Alimentação e Nutrição no Brasil: elementos para reflexão. Cien Saude Colet 2011; 16(1):63-72.. Nesta direção, esta pesquisa também revelou a diversificação da agenda do CONSEA ao longo do tempo. Embora inicialmente a ênfase tenha sido dada a programas específicos, posteriormente, o Conselho passou a abordar temas mais amplos e intersetoriais.

A elaboração do PLANSAN, por exemplo, representou uma conquista intersetorial. O presente estudo identificou que os comitês técnicos, especialmente no âmbito da CAISAN, contribuíram na construção intersetorial do PLANSAN, em interlocução com o CONSEA. A participação da sociedade civil foi relevante na elaboração desse instrumento, definindo suas prioridades mediante a realização das Conferências Nacionais de SAN.

A análise dos temas debatidos revelou que a SAN é uma agenda complexa e permeada por conflitos de interesses. Quando o governo não dialoga, não participa ou se opõe, o Conselho é fragilizado e apresenta limitada capacidade de atuação. Os assuntos debatidos pelo CONSEA e identificados pela pesquisa como os mais conflitivos e desafiadores para a política foram: orçamento, povos e comunidades tradicionais, transgênicos e regulação da rotulagem e publicidades de alimentos.

Em relação ao orçamento, outro estudo já havia argumentado que a área de SAN não possui um fundo, como por exemplo o Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS). O orçamento da SAN encontra-se disperso em vários ministérios, o que foi identificado como um desafio para os entrevistados1919 Nascimento RCDO. O papel do CONSEA na construção da Política e do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro; 2012.. A presente pesquisa identificou também restrições financeiras, e baixa execução orçamentária de programas ao longo do tempo. Pode-se dizer que a limitada capacidade do Conselho interferir no financiamento de programas sob gestão dos ministérios é ainda mais afetada pela insuficiente liberação de recursos pelo governo em relação ao sugerido pelo CONSEA.

Os temas relacionados aos povos e comunidades tradicionais, aos transgênicos e à regulação e publicidade de alimentos destacaram-se por muitas recomendações direcionadas ao Poder Legislativo. No entanto, tais temas, assim como a questão dos agrotóxicos e da reforma agrária, tiveram pouca repercussão junto ao Congresso Nacional, não havendo mudanças legais substantivas no período estudado. A histórica dificuldade de modificação na estrutura fundiária no Brasil pode explicar a dificuldade enfrentada pelo CONSEA para avançar efetivamente nessa área2323 Brandão A, Jorge AL. Comunidades quilombolas, acesso a programas sociais e segurança alimentar e nutricional. In: Rocha C, Burlandy L, Magalhães R, organizadores. Segurança alimentar e nutricional: perspectivas, aprendizados e desafios para as políticas públicas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013. p. 213-225.. Diante disso, o estudo indicou como uma limitação do CONSEA a pouca articulação com o Legislativo, sendo necessário fortalecer as estratégias de atuação junto a esse Poder.

Na verdade, assim como a interface com o Poder Legislativo tem sido frágil, o enfrentamento dos interesses econômicos das corporações privadas tem sido pouco efetivo. Mesmo no governo Lula, que se mostrava mais permeável à agenda da SAN, o Conselho teve limitada influência sobre questões consideradas estruturantes, como por exemplo, a regulação dos agrotóxicos.

De forma geral, as recomendações e exposições de motivos não obtiveram muitas respostas do Congresso Nacional, dos órgãos do governo federal e da Presidência, o que sugere baixa capacidade do Conselho influenciar decisões políticas em áreas críticas. O estudo identificou que, das 103 recomendações analisadas, 21 não continham a informação sobre o órgão de destino, o que também indicou fragilidade desse instrumento para orientar a ação do Estado sobretudo no que se refere a questões envolvendo disputas de interesses mais amplos.

Conclusão

A pesquisa mostrou que o CONSEA foi um espaço importante de formulação de políticas na área de SAN no período analisado, favorecendo o diálogo e a articulação entre diferentes órgãos governamentais e entidades da sociedade civil. A atuação do Conselho se mostrou relevante para a afirmação do direito à alimentação e a formulação de políticas de SAN voltadas a diversos segmentos populacionais, especialmente os mais vulneráveis, indicando sua importância para a proteção social.

No entanto, o enfrentamento de questões estruturantes foi dificultado por limites na efetividade de atuação do Conselho no que concerne à repercussão de suas recomendações junto ao Poder Legislativo e às instâncias do Executivo de maior poder decisório, principalmente em temas que mobilizam fortes interesses econômicos, como a regulação do uso de agrotóxicos e da indústria de alimentos.

Consideram-se limitações do estudo: o formato resumido das atas, que não permitiu um maior detalhamento das reuniões, a impossibilidade de acompanhamento das plenárias do CONSEA e o período de análise não compreender os anos de 2017 e 2018, dadas as profundas mudanças político-institucionais no período, que culminaram na extinção do CONSEA. Ainda que aspectos teóricos não tenham sido aprofundados neste artigo, os resultados do estudo empírico trazem contribuições para a reflexão da complexidade da intersetorialidade e da participação social na implementação de políticas públicas.

A priorização do tema da SAN na agenda federal seria fundamental para assegurar avanços, dada a necessidade de enfrentamento de interesses econômicos nesse âmbito que às vezes colidem com os objetivos sanitários. A garantia de financiamento adequado e o fortalecimento de instâncias colegiadas e participativas são críticos para a sustentabilidade e a efetividade de políticas nessa complexa área.

Em meio ao cenário de instabilidade e de crise política e econômica no país agravado a partir de 2015, a extinção do CONSEA em 2019 representou o desmonte de um espaço que favorecia a participação social e a intersetorialidade na construção de uma política estratégica. Outros estudos são necessários para acompanhar a atuação do Conselho de 2017 a 2018 e os efeitos da sua extinção a partir de 2019, uma vez que a articulação entre Estado e sociedade civil e o fortalecimento da coordenação intersetorial são fundamentais, em contextos democráticos, para a garantia de políticas públicas que promovam o bem-estar social e a melhoria das condições de saúde da população.

Agradecimentos

Essa pesquisa foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), por meio de bolsa de doutorado, e dos recursos do PROEX do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública. A autora CV Machado é bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Dez 2021

Histórico

  • Recebido
    06 Jun 2020
  • Aceito
    19 Out 2020
  • Publicado
    21 Out 2020
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