Produção do cuidado na atenção psicossocial: visita domiciliar como tecnologia de intervenção no território

Ana Patrícia Pereira Morais José Maria Ximenes Guimarães Lana Valéria Clemente Alves Ana Ruth Macedo Monteiro Sobre os autores

Resumo

A visita domiciliar na atenção à saúde mental constitui tecnologia de abordagem ao sujeito em sofrimento psíquico e à sua família. Pretende-se analisar os saberes e as práticas dos profissionais relacionadas à visita domiciliar, tomando como referencial analítico as dimensões da Reforma Psiquiátrica: teórico-conceitual, tecnoassistencial, jurídico-política e sociocultural. Trata-se de um estudo de caso com abordagem qualitativa, realizado num Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de Fortaleza, Ceará, Brasil. Realizaram-se entrevistas semiestruturadas com profissionais, além de observação livre, analisadas com base na hermenêutica crítica. Os resultados apontam o reconhecimento do território como espaço social da experiência-sofrimento e de produção do cuidado. A visita domiciliar induz a reorganização do processo de trabalho e o desenvolvimento de estratégias de desinstitucionalização, que potencializam a construção de autonomia e de poder contratual do usuário. Contudo, enfrenta desafios relacionados ao serviço, como equipe mínima e ausência de veículo. Além destes, o risco de violência no território e dificuldades no agir para a mudança cultural nos modos de lidar com a loucura. A visita domiciliar é imprescindível no CAPS, como estratégia de ruptura com o aparato manicomial.

Palavras-chave
Saúde Mental; Visita Domiciliar; Centros de Atenção Psicossocial

Introdução

A implementação do modelo de atenção psicossocial de base territorial, decorrente das reivindicações do Movimento Brasileiro de Reforma Psiquiátrica, configura inovação na produção do cuidado à pessoa com sofrimento psíquico, dada à proposta de ruptura ético-política, estética e técnica com a lógica tradicional de tratamento, centrada no uso do aparato manicomial como paradigma dominante11 Bosi MLM, Carvalho LB, Ximenes VM, Melo AKS, Godoy MGC. Inovação em saúde mental sob a ótica de usuários de um movimento comunitário no nordeste do Brasil. Cien Saude Colet 2012; 17(3):643-651.. Tal lógica, reduzia o sujeito a uma categoria nosológica, desconsiderando as demais dimensões da existência humana – política, econômica, psicossocial, cultural, espiritual, entre outras.

Destarte, no modelo de atenção psicossocial a produção do cuidado baseia-se em intervenções terapêuticas no território, considerando a ampliação do conceito de saúde, a construção histórica do sujeito e das práticas de cuidado integral e humanizado. Reconhece-se, portanto, a complexidade do processo saúde-doença e o território como cenário de práticas de saúde22 Nunes JMS, Guimarães JMX, Sampaio JJC. A produção do cuidado em saúde mental: avanços e desafios à implantação do modelo de atenção psicossocial territorial. Physis 2016; 26(4):1213-1232.. Desse modo, inaugura-se o compromisso com a produção de saberes e de intervenções políticas, socioculturais e jurídicas em relação ao sujeito em sofrimento psíquico e à loucura33 Oliveira EC, Medeiros AT, Trajano FMP, Chaves Neto G, Almeida SA, Almeida LR. O cuidado em saúde mental no território: concepções de profissionais da atenção básica. Esc Anna Nery 2017; 21(3):e20160040.,44 Guimarães JMX, Sampaio JJC. Inovação na gestão em saúde mental: incorporação de tecnologias e (re)invenção nos centros de atenção psicossocial. Fortaleza: EdUECE; 2016..

A produção de cuidado nos espaços comunitários, requer ações capazes de atender à multidimensionalidade das pessoas e à complexidade dos processos de cuidar. Torna-se necessário o desenvolvimento de estratégias e tecnologias inovadoras de intervenção que potencializem a articulação dos serviços de saúde mental com os distintos equipamentos sociais e de saúde existentes no território, com vistas a ampliar os espaços de circulação das pessoas com sofrimento psíquico, permitindo sua participação na dinâmica social44 Guimarães JMX, Sampaio JJC. Inovação na gestão em saúde mental: incorporação de tecnologias e (re)invenção nos centros de atenção psicossocial. Fortaleza: EdUECE; 2016.,55 Ferreira TPS, Sampaio J, Souza ACN, Oliveira DL, Gomes LB. Produção do cuidado em Saúde Mental: desafios para além dos muros institucionais. Interface (Botucatu) 2017; 21(61):373-384..

A concretização desse modelo de atenção é viabilizada por meio da construção da rede de cuidados em saúde mental, com articulação intersetorial. Para tanto, o Ministério da Saúde tem induzido a implantação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), na qual os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são dispositivos estratégicos na reorientação das práticas e na desinstitucionalização do cuidado em saúde mental55 Ferreira TPS, Sampaio J, Souza ACN, Oliveira DL, Gomes LB. Produção do cuidado em Saúde Mental: desafios para além dos muros institucionais. Interface (Botucatu) 2017; 21(61):373-384..

Com efeito, seu caráter estratégico lhes confere posição central na articulação dos pontos de atenção da RAPS, sobretudo com a atenção básica por meio do apoio matricial e compartilhamento de ações no território com equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF); na integração com outros setores envolvidos na produção de saúde; no direcionamento de políticas e programas de saúde mental; na execução de intervenções terapêuticas comprometidas com o desenvolvimento da contratualidade social do usuário; e, na reflexão acerca dos modelos de atenção e da clínica na saúde mental22 Nunes JMS, Guimarães JMX, Sampaio JJC. A produção do cuidado em saúde mental: avanços e desafios à implantação do modelo de atenção psicossocial territorial. Physis 2016; 26(4):1213-1232.,44 Guimarães JMX, Sampaio JJC. Inovação na gestão em saúde mental: incorporação de tecnologias e (re)invenção nos centros de atenção psicossocial. Fortaleza: EdUECE; 2016..

Os CAPS ao implementarem o cuidado territorializado devem transcender seus muros institucionais55 Ferreira TPS, Sampaio J, Souza ACN, Oliveira DL, Gomes LB. Produção do cuidado em Saúde Mental: desafios para além dos muros institucionais. Interface (Botucatu) 2017; 21(61):373-384., bem como a compreensão de território como abrangência geográfica, incorporando a noção de território vivo, que se constitui como processo e produto das relações sociais, que se realiza enquanto uma instância social66 Santos M. O retorno do Território. In: Santos M, Souza MAA, Silveira ML, organizadores. Território: Globalização e Fragmentação. 4ª ed. São Paulo: Hucitec, Anpur; 1998b. p. 15-20., lugar de experiências e subjetivações. Nesse cenário, a visita domiciliar (VD) apresenta-se como tecnologia capaz de promover a articulação da equipe com o usuário, a família e o território. Configura, portanto, tecnologia de intervenção que induz a interação entre sujeitos, favorecendo o reconhecimento da realidade de vida da população, além de potencializar a construção de vínculos e a compreensão da estrutura e dinâmica familiar77 Albuquerque ABB, Bosi MLM. Visita domiciliar no âmbito da Estratégia Saúde da Família: percepções de usuários no Município de Fortaleza, Ceará, Brasil. Cad Saude Publica 2009; 25(5):1103-1112..

Assim, cabe problematizar o papel e o alcance da VD na reorientação do modelo de atenção, sobretudo na materialização de ações desinstitucionalizantes ante o reconhecimento dos desafios que se interpõem à efetivação da atenção psicossocial largamente explorados na literatura22 Nunes JMS, Guimarães JMX, Sampaio JJC. A produção do cuidado em saúde mental: avanços e desafios à implantação do modelo de atenção psicossocial territorial. Physis 2016; 26(4):1213-1232.,44 Guimarães JMX, Sampaio JJC. Inovação na gestão em saúde mental: incorporação de tecnologias e (re)invenção nos centros de atenção psicossocial. Fortaleza: EdUECE; 2016.,88 Paes LG, Schimith MD, Barbosa TM, Righi LB. Rede de atenção em saúde mental na perspectiva dos coordenadores de serviços de saúde. Trabalho Educ Saúde 2013; 11(2):395-409., a exemplo do risco de reprodução de práticas asilares, a precarização do trabalho, a insuficiência da infraestrutura e de recursos materiais e ausência de educação permanente, entre outras.

Diante do exposto, o objetivo do estudo foi analisar os saberes e as práticas desenvolvidas pela equipe do CAPS no âmbito da VD, com base nas dimensões da Reforma Psiquiátrica (RP).

Referencial teórico-metodológico

Estudo orientado pela tradição qualitativa de pesquisa social em saúde, com desenho geral de estudo de caso único99 Yin RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. 5ª ed. Porto Alegre: Bookman; 2015. e aporte teórico nas dimensões da RP, demarcadas por Amarante1010 Amarante P. Saúde mental e atenção Psicossocial. 4ª ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2015., quais sejam: teórico-conceitual, técnico-assistencial, jurídico-política e sociocultural. Essas ofertam subsídios à construção de novas práticas de atenção à saúde mental, além do potencial de balizar reflexões críticas acerca dos modos de organização do trabalho e de produção do cuidado na atenção psicossocial.

A dimensão teórico-conceitual comporta a ressignificação dos conceitos subjacentes ao saber/fazer da Psiquiatria. Para tanto, requer uma atitude epistêmica implicada com outras formas de produção de conhecimento, pautada na possibilidade de novos contatos empíricos com o fenômeno – a experiência vivida pelos sujeitos. A técnico-assistencial diz respeito ao modelo de atenção, à organização da rede de atenção à saúde e às intervenções propostas como resposta às demandas de saúde mental da população. A jurídico-política põe em relevo o debate sobre a cidadania e os direitos civis, sociais e humanos. Porquanto, propõe a revisão do arcabouço legislativo e a criação de normas legais específicas que assegurem o exercício da cidadania. Por último, a sociocultural é apontada como estratégica na reconfiguração da relação da sociedade com a loucura, mediada pela produção de novas formas de sociabilidade, o que requer escuta, respeito, diálogo e compromisso ético-político com a construção de espaços de convivência com a diferença, considerando-se a autonomia dos sujeitos.

Consoante a abordagem qualitativa, adotou-se uma postura crítico-reflexiva. Desse modo, buscou-se observar o fenômeno na sua singularidade, com ele interagir e analisar as interpretações dos sujeitos sobre sua realidade no âmbito da visita domiciliar. Para tanto, empreendeu-se o esforço interpretativo voltado à articulação da dimensão intersubjetiva à materialidade a que se vincula no âmbito das práticas de saúde mental.

O cenário do estudo foi um CAPS, modalidade geral, de Fortaleza-CE, cujos critérios de seleção foram: estar entre os três primeiros CAPS inaugurados, contar com servidores públicos efetivos na composição da equipe de visita domiciliar e receber alunos no internato de Enfermagem em Saúde Mental da Universidade a qual os autores se vinculam.

A amostra qualitativa da pesquisa foi composta por informantes-chave, representados por quatro profissionais do CAPS, sendo duas enfermeiras e duas assistentes sociais. Para tanto, considerou-se o acúmulo subjetivo das participantes ante a experiência de realização da visita domiciliar.

A apreensão dos dados se deu por meio de entrevistas semiestruturadas em espaço privativo, previamente agendadas, audiogravadas e transcritas na íntegra, além de observação livre, esta autorizada pela equipe e pela instituição. Foram observadas nove VD, em média três por semana que, juntamente com a inserção no CAPS, somaram 40 horas de observação, em dias e horários distintos.

A análise do material empírico foi realizada com base nos pressupostos da hermenêutica crítica1111 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14ª ed. São Paulo: Hucitec; 2014.,1212 Gadamer H-G. Verdade e Método. Petrópolis: Vozes; 1997., entendida como arte da compreensão de textos e, sobretudo, da comunicação humana, incluindo-se os sentidos ocultos e as contradições que emergem dos sujeitos e seus contextos. Sempre mediada pela linguagem, como modo de participar do mundo vivido, possibilita a composição de um sentido diferente, original. Porquanto, o sentindo de um texto não se esgota no dito pelo informante, uma vez que o entendimento alcançado é sempre incompleto, constituindo-se um processo infinito, em que sempre surgem novas fontes de compreensão1111 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14ª ed. São Paulo: Hucitec; 2014.. Nestes termos, a organização do corpus de informações, procedentes da transcrição das entrevistas e das observações, permitiu a estruturação das categorias temáticas que subsidiou o desenvolvimento da rede interpretativa (Figura 1).

Figura 1
Fluxograma rede interpretativa da visita domiciliar na atenção psicossocial, segundo as dimensões da Reforma Psiquiátrica. Fortaleza (2019).

Em observância aos preceitos éticos da pesquisa envolvendo seres humanos, o estudo foi submetido à apreciação do Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Estadual do Ceará.

Resultados e discussão

O território como espaço de produção do cuidado na atenção psicossocial

A compreensão do território como espaço para intervenções psicossociais permeia o plano discursivo dos trabalhadores do CAPS, que realizam a VD, sob múltiplas perspectivas, aqui analisadas com enfoque nas dimensões da RP.

Na dimensão epistemológica, cuja essência é a reconstrução dos saberes subjacentes às práticas de saúde mental, defende-se o argumento de que na atenção psicossocial o espaço privilegiado de cuidado se desloca do hospital psiquiátrico para o território, entendido para além de sua dimensão física, considerando a dinâmica política e social:

O território é a área de abrangência. [...] a área que a gente convive (E1).

[...] não só a delimitação de área geográfica, mas também onde o próprio usuário tem direito de ser atendido. [...] A gente tem que trabalhar exatamente a questão das potencialidades que existe no território (E4).

Demarcado geograficamente, o território constitui responsabilidade sanitária da equipe, uma vez que é de sua competência a articulação de políticas e serviços, bem como a atenção à saúde da população, ao se determinar a área de abrangência do CAPS22 Nunes JMS, Guimarães JMX, Sampaio JJC. A produção do cuidado em saúde mental: avanços e desafios à implantação do modelo de atenção psicossocial territorial. Physis 2016; 26(4):1213-1232.,44 Guimarães JMX, Sampaio JJC. Inovação na gestão em saúde mental: incorporação de tecnologias e (re)invenção nos centros de atenção psicossocial. Fortaleza: EdUECE; 2016.. Assim, é seu papel estimular a convivência nos distintos espaços, com vistas a materializar a reinserção social e novos modos de cidadania. Mostra-se relevante à compreensão do território como espaço de produção de cuidado, o que implica reconstituir as bases teóricas e práticas no desenvolvimento dos projetos terapêuticos e na reorientação do modelo de atenção à saúde mental11 Bosi MLM, Carvalho LB, Ximenes VM, Melo AKS, Godoy MGC. Inovação em saúde mental sob a ótica de usuários de um movimento comunitário no nordeste do Brasil. Cien Saude Colet 2012; 17(3):643-651.,1313 Barros S, Oliveira MAF, Silva ALA. Práticas inovadoras para o cuidado em saúde. Rev Esc Enferm USP 2007; 41(esp.):815-819.. Desse modo, quando a equipe conhece os recursos existentes no território tem maior possibilidade de utilizá-los nas práticas de cuidado, subvertendo a lógica da exclusão, ao desenvolver propostas desinstitucionalizantes.

A demarcação do limite espacial de atuação do CAPS denota a divisão político-administrativa e jurídica incorporada pelo sistema de saúde, em que o conceito de território pode ficar reduzido a uma unidade geográfica, o que implica a necessidade de ampliação dessa compreensão para dentro do campo da Saúde Coletiva1414 Santos MRP, Nunes MO. Território e saúde mental: um estudo sobre a experiência de usuários de um Centro de Atenção Psicossocial, Salvador, Bahia, Brasil. Interface (Botucatu) 2011; 15(38):715-726. e, particularmente, da Saúde Mental. Isto aponta a necessidade de se reconhecer o território como espaço de circulação de pessoas, de convivência social.

Apesar da aparente centralidade na compreensão da dimensão político-administrativa e operacional do território na sua extensão geográfica, os profissionais sinalizam o entendimento de que este é o espaço onde ocorre a interação dos usuários com o CAPS:

Quando o usuário conhece esse território, eu entendo que fica mais fácil para ele. Como aqui no CAPS, eu entendo que é importante ter a assistência que ele (o usuário) precisa, no próprio território (E1).

Dessa maneira, ao se ampliar o acesso dos usuários a bens e serviços no próprio território, há que se considerarem as singularidades da dinâmica social da população, expressa em problemas, conflitos e necessidades que podem configurar demanda nos serviços de saúde e de proteção social. Ademais, cada território comporta um perfil demográfico, epidemiológico, administrativo, tecnológico, político, social e cultural, que o caracteriza como um território em permanente construção, um espaço vivo em constante processo de mudança66 Santos M. O retorno do Território. In: Santos M, Souza MAA, Silveira ML, organizadores. Território: Globalização e Fragmentação. 4ª ed. São Paulo: Hucitec, Anpur; 1998b. p. 15-20.. Por conseguinte, a concepção de território se desloca da ênfase no político-administrativo para o sociocultural, isto é, das fronteiras entre os povos aos limites do corpo e do afeto entre as pessoas1515 Pessoa VM, Rigotto RM, Carneiro FF, Teixeira ACA. Sentidos e métodos de territorialização na atenção primária à saúde. Cien Saude Colet 2013; 18(8):2253-2262..

Com efeito, a clínica nos CAPS se configura como um modo de cuidar que resulta da relação do serviço com a cidade e com a experiência do usuário, numa articulação complexa que incorpora as noções de redes de produção de saúde e de território em sua dimensão política, sociocultural e afetiva.

No concernente à dimensão tecnoassistencial, o território emerge nas falas dos profissionais articulado ao acesso, à organização da rede de atenção à saúde e ao planejamento das práticas de cuidado:

Acredito que tem facilidade de acesso. Tudo que o usuário precisa está no território (E-2).

Ele pode acessar todas as instituições da rede, [...] desde a atenção básica até a atenção especializada (E-4).

Evidencia-se, assim, o reconhecimento do território como espaço de desenvolvimento de novas interações e de práticas de cuidado em rede, no qual o usuário tem garantia de acesso aos serviços de saúde. Nesse sentido, vislumbra-se o cumprimento da legislação, segundo a qual as pessoas em sofrimento psíquico, devem ter acesso ao tratamento consentâneo às suas necessidades, preferencialmente em serviços comunitários de saúde mental1616 Brasil. Lei 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União 2001; 9 de abril..

Entende-se que o acesso está relacionado à disponibilidade de serviços, acessibilidade, organização dos serviços, acolhimento, necessidades e aceitação da população em busca da resolubilidade da atenção em todos os níveis de complexidade do sistema de saúde. Todos estes aspectos expressam a dimensão político-social do acesso que devem permear a formulação e a execução das políticas de saúde1717 Assis MMA, Jesus WLA. Acesso aos serviços de saúde: abordagens, conceitos, políticas e modelo de análise. Cien Saude Colet 2012; 17(11):2865-2875., incluindo-se aqui a implantação da RAPS.

A organização da RAPS concretiza a articulação e integração dos serviços no território. Em seu escopo, cabe ao CAPS construir projetos terapêuticos, orientados à construção da integralidade do cuidado, de modo articulado com a ESF e demais equipamentos sociais, conforme necessidade do usuário. Contudo, estudo realizado com usuários aponta dificuldades de acesso, decorrentes de aspectos estruturais e organizativos dos CAPS, além de baixa capacidade de articulação intersetorial1818 Oliveira RF, Andrade LOM, Goya N. Acesso e integralidade: a compreensão dos usuários de uma rede de saúde mental. Cien Saude Colet 2012; 17(11):3069-3078.. Os gestores e profissionais, por sua vez, apontam dificuldades na organização da RAPS, expressos na desarticulação entre distintos serviços e na incapacidade de acolher todos os usuários, gerando fila de espera e demanda reprimida44 Guimarães JMX, Sampaio JJC. Inovação na gestão em saúde mental: incorporação de tecnologias e (re)invenção nos centros de atenção psicossocial. Fortaleza: EdUECE; 2016.,88 Paes LG, Schimith MD, Barbosa TM, Righi LB. Rede de atenção em saúde mental na perspectiva dos coordenadores de serviços de saúde. Trabalho Educ Saúde 2013; 11(2):395-409..

Não obstante, reconhece-se que a RP induziu a reorientação da oferta serviços de saúde mental, o que requisita o desenvolvimento de estratégias de cuidado e de recursos, além da assunção de responsabilidade sobre a demanda do território1919 Barbosa VFB, Caponi SNC, Verdi, MIM. Cuidado em saúde mental, risco e território: transversalidades no contexto da sociedade de segurança. Interface (Botucatu) 2016; 20(59):917-928., aspectos evidenciados na fala dos profissionais do CAPS:

[...] a gente deve conhecer o território, as suas potencialidades e as instituições, para usar como aliado nas práticas terapêuticas (E-4).

A apropriação do território, com suas diversas instituições, pela equipe do CAPS, permite sua adoção como aliado no estabelecimento de projetos terapêuticos. Nesse sentido, a equipe parece fundamentar a produção do cuidado por uma diretriz ético-política voltada à permanente reinvenção de modos de se organizar e de se articular com a cidade44 Guimarães JMX, Sampaio JJC. Inovação na gestão em saúde mental: incorporação de tecnologias e (re)invenção nos centros de atenção psicossocial. Fortaleza: EdUECE; 2016.. Assim, o cuidado se desloca do corpo biológico para o corpo social, do espaço institucional para espaço comunitário. Por conseguinte, requisita novos modos de acolher e de intervir junto à experiência do sofrimento-existência, incorporando a dimensão das relações sociais estabelecidas no tempo e espaço urbano, por meio da construção de propostas terapêuticas em rede, que em conjunto compõem o cuidado territorial1919 Barbosa VFB, Caponi SNC, Verdi, MIM. Cuidado em saúde mental, risco e território: transversalidades no contexto da sociedade de segurança. Interface (Botucatu) 2016; 20(59):917-928..

Desse modo, o planejamento das ações requisita o uso de ferramentas de mapeamento dos recursos e potencialidades do território a serem incorporadas nos processos de cuidado. Com efeito, é por meio da “territorialização que a gente vai conhecer a rede como um todo. É através do conhecimento dessa rede que a gente vai fazer todo o planejamento das nossas atividades” (E-4).

A efetivação do papel do CAPS impõe a materialização de intervenções capazes de tensionar os seus processos de gestão e de produção do cuidado. Portanto, é necessária a identificação de recursos – materiais e subjetivos – disponíveis no território que possam ser mobilizados na construção dos projetos terapêuticos dos usuários33 Oliveira EC, Medeiros AT, Trajano FMP, Chaves Neto G, Almeida SA, Almeida LR. O cuidado em saúde mental no território: concepções de profissionais da atenção básica. Esc Anna Nery 2017; 21(3):e20160040.. Nesse contexto, a territorialização é uma ação fundamental na caracterização da população sob a responsabilidade sanitária da equipe, considerando os seus problemas de saúde e as redes de apoio no território, pois subsidia a análise da situação de saúde, o planejamento local e a implementação de ações estratégicas que assegurem a resolubilidade. Assim, não deve ser restrita a construção de mapas em que se identificam riscos, problemas sanitários e/ou recursos existentes, tampouco mera estratégia organizativa e gerencial do CAPS, mas uma ferramenta que mobilize a população e promova participação social1515 Pessoa VM, Rigotto RM, Carneiro FF, Teixeira ACA. Sentidos e métodos de territorialização na atenção primária à saúde. Cien Saude Colet 2013; 18(8):2253-2262., constituindo-se modo de exercício da cidadania e de estabelecimento de poder contratual dos sujeitos, fomentando a corresponsabilização e a intersetorialidade.

Sob enfoque da dimensão jurídico-política, os entrevistados demarcam o território como espaço das ações de reabilitação, as quais têm caráter social, político e jurídico33 Oliveira EC, Medeiros AT, Trajano FMP, Chaves Neto G, Almeida SA, Almeida LR. O cuidado em saúde mental no território: concepções de profissionais da atenção básica. Esc Anna Nery 2017; 21(3):e20160040., forjadas no estabelecimento de novos modos de exercer a cidadania, na luta pela efetivação de direitos, como balizadoras das práticas de cuidado:

Muitas vezes ele (usuário) está em busca de uma qualificação, então a gente faz articulação com o CRAS (Centro de Referência em Assistência Social), porque lá tem cursos profissionalizantes. Se está precisando da Previdência Social, a gente encaminha para a agência da Previdência Social. Se estiver precisando de documentação, articulamos com a casa do cidadão. Quando é questão que diz respeito à justiça, encaminhamos para um fórum, para a Procuradoria (E-4).

De modo complementar, foi observado, no CAPS, o fato de que os profissionais, particularmente do serviço social, criam condições de possibilidades para que os usuários e seus familiares circulem no território em busca de seus direitos, dando-lhes instruções, realizando agendamentos nas demais instituições e designando profissional da equipe para acompanhá-los com vistas a assegurar o atendimento à sua demanda, respeitando-se às suas necessidades. Dessa forma, são considerados os desejos e modos de andar a vida dos usuários2020 Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: CEPESC, UERJ/IMS, Abrasco; 2009., o que expressa a materialidade do deslocamento do modelo asilar para o modelo psicossocial, com respeito ao sujeito e seus modos de subjetivação22 Nunes JMS, Guimarães JMX, Sampaio JJC. A produção do cuidado em saúde mental: avanços e desafios à implantação do modelo de atenção psicossocial territorial. Physis 2016; 26(4):1213-1232.,44 Guimarães JMX, Sampaio JJC. Inovação na gestão em saúde mental: incorporação de tecnologias e (re)invenção nos centros de atenção psicossocial. Fortaleza: EdUECE; 2016., mediando-se os projetos de felicidade dos usuários2020 Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: CEPESC, UERJ/IMS, Abrasco; 2009., possibilitando a ressignificação das experiências difíceis do sujeito.

Com efeito, a proposta de cuidado territorial orientada pela integralidade e intersetorialidade33 Oliveira EC, Medeiros AT, Trajano FMP, Chaves Neto G, Almeida SA, Almeida LR. O cuidado em saúde mental no território: concepções de profissionais da atenção básica. Esc Anna Nery 2017; 21(3):e20160040. potencializa a reabilitação psicossocial, com tomada de responsabilidade, estabelecimento de novas relações sociais e institucionais. Nesse contexto, o território configura-se como lugar de vida, no qual se estabelece as distintas relações de trocas, onde o cuidar ocorre por meio de um processo de retomada do poder contratual do sujeito, com vista a ampliação de sua autonomia11 Bosi MLM, Carvalho LB, Ximenes VM, Melo AKS, Godoy MGC. Inovação em saúde mental sob a ótica de usuários de um movimento comunitário no nordeste do Brasil. Cien Saude Colet 2012; 17(3):643-651.,1313 Barros S, Oliveira MAF, Silva ALA. Práticas inovadoras para o cuidado em saúde. Rev Esc Enferm USP 2007; 41(esp.):815-819. e a construção de projetos de vida significativos1313 Barros S, Oliveira MAF, Silva ALA. Práticas inovadoras para o cuidado em saúde. Rev Esc Enferm USP 2007; 41(esp.):815-819..

Consoante a dimensão sociocultural, os entrevistados definiram o território como o lugar social do sujeito em sofrimento psíquico, que reconhecido como sujeito social, integra os diferentes espaços como estratégia de superação do estigma e das práticas tradicionais de institucionalização da experiência de adoecimento mental. Nesse sentido, o território pode constituir-se dispositivo para concretizar a inclusão social:

[...] possibilidade da efetivação da inclusão social, a possibilidade da realização do ser social (E-3).

Onde ele mora, onde ele frequenta o lazer, onde ele frequenta escola e posto de saúde. Isso faz parte desse território onde ele está interagindo (E-2).

Denota-se que a criação de possibilidades para a permanência do sujeito em sua experiência-sofrimento no território é determinante na desconstrução do aparato manicomial1010 Amarante P. Saúde mental e atenção Psicossocial. 4ª ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2015. e do desejo de manicômios ainda presentes na sociedade2121 Alverga AR, Dimenstein M. A reforma psiquiátrica e os desafios na desinstitucionalização da loucura. Interface (Botucatu) 2006; 10(20):299-316.. Para tanto, é preciso avançar do plano discursivo para o desenvolvimento de políticas e estratégias de ação intersetoriais voltadas à superação do estigma e à efetivação da inclusão social, como condição para o desenvolvimento de novos modos de a sociedade lidar com a loucura, em que seu olhar incida não sobre a doença, mas sobre o sujeito social nas suas múltiplas dimensões e possibilidades de relações sociais.

Visita domiciliar como tecnologia de intervenção na atenção psicossocial

Operada como estratégia de cuidado na atenção psicossocial, a VD tem potencial de promover a interação entre o CAPS, o território e o domicílio do sujeito em sofrimento psíquico.

Sob o enfoque da dimensão epistemológica da RP, no esteio da recomposição de saberes e práticas, a VD é demarcada como tecnologia indutora da reorganização do processo de trabalho e das estratégias de atenção psicossocial, favorecendo a intervenção no território, sobretudo na mediação de processos de reinserção social:

A visita é uma estratégia de intervenção que amplia a possibilidade de atuação do CAPS no território (E-3).

É uma visita da equipe, feita interdisciplinarmente (E-4).

Segundo as falas, a concepção de VD articula as noções de cuidado territorial, trabalho em equipe e interdisciplinaridade como diretrizes norteadoras da organização do processo de trabalho, em que se torna necessário o compartilhamento de ações com equipe multiprofissional. Assim, a VD amplia as possibilidades de atuação junto aos usuários, considerando a complexidade do processo saúde-doença mental e do objeto de intervenção – o sujeito que sofre e não foi expropriado de suas relações político-sociais.

A abordagem da estrutura e da dinâmica familiar é viabilizada pela VD, constituindo-se objeto de intervenção da equipe, o que permite melhor compreensão dos modos como estas interferem na vida dos usuários:

A casa é um território, é um espaço onde muitas relações se originam, onde se promovem muitas limitações e muitas relações necessitam ser trabalhadas. Às vezes a família constitui o primeiro espaço de exclusão. É fundamental a gente trabalhar a dinâmica familiar, porque senão a gente faz atenção psicossocial, a gente vai estar dentro de um CAPS fazendo um trabalho manicomial (E-3).

Quando você se aproxima do núcleo familiar, você faz com que a família tenha uma corresponsabilidade no acompanhamento (E-4).

A consolidação do modelo de atenção psicossocial decorre não somente da implantação de novos serviços, mas, sobretudo, da incorporação de tecnologias de cuidado que viabilizem a interação do CAPS com os distintos espaços de convivência do usuário, principalmente o familiar.

A inclusão da família nos projetos de cuidado é uma diretriz da proposta de desinstitucionalização estabelecida pela RP. Assim, o retorno do usuário ao âmbito familiar é condição fundamental para sua reintegração na sociedade2222 Vicente JB, Mariano PP, Buriola AA, Paiano M, Waidman MAP, Marcon SS. Aceitação da pessoa com transtorno mental na perspectiva dos familiares. Rev Gaucha Enferm 2013; 34(2):54-61.. Nesse sentido, há consenso sobre a relevância da família no processo terapêutico tanto como cuidadora, compartilhando responsabilidades com a equipe, quanto como objeto de cuidado.

Porquanto, o CAPS poderá desenvolver ações voltadas às famílias2323 Bielemann VLM, Kantorski LP, Borges LR, Chiavagatti FG, Willrich JQ, Souza AS, Heck RM. A inserção da família nos centros de atenção psicossocial sob a ótica de seus atores sociais. Texto Contexto Enferm 2009; 18(1):131-139., com os seguintes objetivos: contribuir para uma convivência saudável do sujeito no contexto familiar e social; apoiar e orientar sujeitos em sofrimento psíquico e seus familiares nas suas dificuldades, com vistas à compreensão do processo saúde-doença e dos modos de cuidar, considerando suas necessidades e a oferta de cuidado na rede de atenção; e fortalecer os vínculos familiares e comunitários, potencializando a aceitação do sofrimento-experiência e do próprio sujeito em seu modo de andar a vida2121 Alverga AR, Dimenstein M. A reforma psiquiátrica e os desafios na desinstitucionalização da loucura. Interface (Botucatu) 2006; 10(20):299-316.,2222 Vicente JB, Mariano PP, Buriola AA, Paiano M, Waidman MAP, Marcon SS. Aceitação da pessoa com transtorno mental na perspectiva dos familiares. Rev Gaucha Enferm 2013; 34(2):54-61..

No âmbito da dimensão tecnoassistencial, a VD é uma atividade do CAPS cuja execução é determinada por dimensões relacionadas à clínica e à organização do serviço, com base em critérios de eleição de usuários a receberem a equipe nos seus domicílios:

Por prioridades de risco, necessidade de intervenção mais urgente, [...] demanda do profissional de referência, demanda familiar ou do usuário (E-3).

[...] outros é uma busca ativa de usuários distantes, ausentes muito tempo (E-2).

Nesses termos, a VD é realizada nas situações em que o usuário necessita de atendimento, mas está impossibilitado de se deslocar até o CAPS em decorrência de comportamentos que dificultam o convívio social, mobilidade reduzida, comorbidade clínica e situações de crise – estas consideradas como prioridade entre as indicações clínicas. Por isso, a equipe leva em consideração a necessidade de saúde do usuário, executando procedimentos, incluindo-se ações de enfermagem, com base na avaliação clínica, psicossocial e familiar:

Acompanhamos visitas programadas e com objetivos definidos. Certo dia na visita, a abordagem centrou-se no comportamento do usuário e na dinâmica familiar, além da escuta às queixas apresentadas. Outros dias, a visita é exclusivamente para administrar medicação intramuscular, por impossibilidade de deslocamento do paciente (Diário de Campo).

Nesse contexto, a execução da VD se caracteriza como modalidade de atendimento que assegura o acesso ao cuidado, na perspectiva da integralidade e humanização11 Bosi MLM, Carvalho LB, Ximenes VM, Melo AKS, Godoy MGC. Inovação em saúde mental sob a ótica de usuários de um movimento comunitário no nordeste do Brasil. Cien Saude Colet 2012; 17(3):643-651.. Para tanto, a equipe do CAPS procura definir mensalmente uma programação, com base no planejamento local, considerando as demandas dos usuários:

[...] a gente trabalha numa equipe multidisciplinar, então tem que fazer o planejamento dos dias que essas visitas vão acontecer (E-4).

Nós temos um livro, onde se registra as solicitações dos usuários, ou quando a equipe percebe que o usuário tá precisando (E-1).

Identifica-se, assim, o esforço da equipe em organizar o serviço e desenvolver as VD com base em levantamento das demandas que emergem dos projetos terapêuticos, respeitando a disponibilidade do serviço. No entanto, observou-se que as situações de crise dos usuários escapam ao controle e ao planejamento do CAPS. Ademais, não é possível adotar um modelo pautado em etapas e instrumentos estruturados de abordagem ao usuário no domicílio:

(...) não existe um roteiro padronizado para a visita domiciliar. Tem casos que a gente faz a visita e leva para a discussão da equipe (E-4).

Com efeito, a clínica em saúde mental contribui para que a VD escape aos modelos previamente estabelecidos. Dessa forma, a equipe lida sempre com a imprevisibilidade própria dos processos de produção subjetiva do sujeito em sofrimento psíquico. Destarte, a equipe poderá se deparar com duas possibilidades: a primeira, diz respeito a um cenário de encontros e desencontros, com situações de difícil manejo, que demandam habilidade profissional para que possam ser contornadas; a segunda, relaciona-se às situações que requerem intervenção, mas que é impossível no momento, desdobrando-se em ação a posteriori. Sendo assim, não há um manual de visitação, intervenção e cuidado em saúde mental2424 Oliveira RMP, Loyola CMD. Pintando novos caminhos: a visita domiciliar em saúde mental como dispositivo de cuidado de enfermagem. Esc Anna Nery 2006; 10(4):645-651., o que requisita do trabalhador o exercício de sua capacidade criativa e de acolher o sujeito em sua singularidade, respeitando-se a diferença.

Do ponto de vista operacional, a equipe do CAPS aponta obstáculos à realização da VD, relacionados à organização do serviço e à dinâmica da vida no território, dentre os quais se destacam a indisponibilidade de recursos materiais e humanos, a violência e a aceitação da comunidade:

[...] não ter segurança pra ir. Às vezes não tem carro. E, mesmo que tenha o carro, nós vamos sozinhos, aí já tem aquele medo. É perigoso! Às vezes precisamos levar psiquiatra, mas não temos disponível no momento (E-2).

Pra fazer visita é preciso ter aceitação do usuário, da comunidade. Muitas vezes, tem dificuldade de aceitação da comunidade (E-4).

A organização do trabalho da equipe é atravessada por aspectos internos e externos ao CAPS. Em relação ao veículo, observa-se a indisponibilidade em alguns horários, além de atrasos, uma vez que é compartilhado com outros serviços. Esse achado mostra-se semelhante a estudo realizado em município do Rio Grande do Sul, em que ocorre a escassez de recursos materiais, incluindo o veículo para conduzir a equipe ao domicílio dos usuários2525 Fernandes M, Duarte MLC, Schmalfuss JM. Facilidades e dificuldades na realização de visitas domiciliares em um centro de atenção psicossocial. Cogitare Enferm 2014; 19(3):451-458..

A inserção do CAPS no território, sobretudo nos grandes centros urbanos, acaba por expor as equipes ao risco de violência urbana. Além disso, o modo como o usuário e sua família receberá a equipe é imprevisível, sobretudo em situações de crise, o que expõe o profissional ao risco de agressão. Neste estudo, a equipe aponta a necessidade de profissional da segurança no serviço, por reconhecer que é perigoso circular no território. Esses resultados são consistentes com estudos realizados em Fortaleza e em outros estados brasileiros, ao apontarem que os trabalhadores dos CAPS estão continuamente expostos ao risco de violência, o que pode gerar sensações de medo, de impotência e de constante ameaça à integridade física44 Guimarães JMX, Sampaio JJC. Inovação na gestão em saúde mental: incorporação de tecnologias e (re)invenção nos centros de atenção psicossocial. Fortaleza: EdUECE; 2016.,2525 Fernandes M, Duarte MLC, Schmalfuss JM. Facilidades e dificuldades na realização de visitas domiciliares em um centro de atenção psicossocial. Cogitare Enferm 2014; 19(3):451-458.,2626 Souza FM, Valencia E, Dahl C, Cavalcanti MT. A violência urbana e suas consequências em um Centro de Atenção Psicossocial na zona norte do município do Rio de Janeiro. Saude Soc 2011; 20(2):121-130..

Na realização da VD, os profissionais podem se deparar com a inaceitação da sua presença no domicílio ou na comunidade. Isso pode resultar da situação de crise do usuário, do horário de realização da VD inadequado à família ou do não reconhecimento da necessidade desta intervenção, dentre outros. Nesses casos, a VD significa intromissão do setor saúde na vida das pessoas, interferindo em sua liberdade2727 Mandú ENT, Gaíva MAM, Silva MA, Silva AMN. Visita domiciliária sob o olhar de usuários do programa saúde da família. Texto Contexto Enferm 2008; 17(1):131-140..

Na dimensão jurídico-política, observa-se que, na VD, os profissionais estimulam a construção de cidadania, o desenvolvimento da compreensão do território e das instituições nele existentes. Nesses termos, contribuem para a tomada de consciência sobre os direitos por parte dos usuários:

Mesmo a gente realizando visitas, ainda existe usuários que não têm conhecimento que no território tem CREAS, CRAS, postos de saúde [...]. Então, a gente vai trabalhar com esses usuários os esclarecimentos a respeito de direitos e dos serviços que podem buscar (E-4).

Desenvolvem, portanto, uma ação política voltada à apropriação do território social e ao empoderamento dos usuários como dimensão do cuidado. Desse modo, as ações realizadas durante a VD estão comprometidas com superação da histórica de negação de direitos das pessoas com sofrimento psíquico, na busca de reconstruir as relações com a sociedade e com as instituições. Busca-se concretizar um dos objetivos do modelo de atenção psicossocial, qual seja a integralidade do cuidado, dando-se ênfase aos aspectos políticos e biopsicossocioculturais como determinantes do processo saúde-doença mental. Enfatiza-se, porquanto, uma concepção de cuidado territorializado, com inclusão das esferas familiar e comunitária, expressando valorização da dimensão jurídico-política2828 Nunes M, Torrenté M, Ottoni V, Moraes Neto V, Santana M. A dinâmica do cuidado em saúde mental: signos, significados e práticas de profissionais em um Centro de Assistência Psicossocial em Salvador, Bahia, Brasil. Cad Saude Publica 2008; 24(1):188-196..

No escopo da dimensão sociocultural, percebe-se que, durante a VD, os profissionais se deparam com situações que limitam as possibilidades de reinserção social, como consequência do estigma e da noção de periculosidade vinculada à doença mental que ainda subsiste nos dias atuais:

O usuário, às vezes a família não quer sair com ele, põe dificuldade. [...] porque ele pode causar dano ao profissional, ao outro usuário, à sociedade (E-3).

Denota-se, portanto, a reprodução de um comportamento que historicamente determinou a redução das possibilidades de circulação de sujeitos em sofrimento psíquico no território, por dificuldade de lidar com a diferença. Observa-se, ainda, que a circulação dessas pessoas continua como preocupação relevante nas pautas sociais e nos serviços de saúde, determinando modos de garantir a segurança, prevenindo-se os danos e transtornos à sociedade. Pois, ainda se efetiva tal garantia pelo papel de controle exercido pela família ou, ainda, pelo controle dos comportamentos indesejáveis com o uso de psicofármacos1919 Barbosa VFB, Caponi SNC, Verdi, MIM. Cuidado em saúde mental, risco e território: transversalidades no contexto da sociedade de segurança. Interface (Botucatu) 2016; 20(59):917-928..

Ante o imperativo ético de construção de um novo lugar social para o sujeito em sofrimento psíquico e de novos modos de lidar com a loucura, os profissionais buscam os equipamentos sociais do território “quando ele está precisando ser inserido em atividades de lazer, se faz articulação com o SESC” (E-4). Outrossim, foi possível observar durante uma VD a equipe desenvolver ações voltadas a este fim:

Naquele dia, entramos na residência, após o consentimento da moradora que vivia sozinha. Fomos convidadas a sentar. Na ocasião, aquela senhora foi estimulada a participar das atividades de lazer que aconteciam na praça próxima à sua residência, além de maior interação com os vizinhos (Diário de Campo).

Nesse contexto, a equipe implementa diretrizes das Políticas de Saúde Mental que estabelecem o resgate das dimensões processual e relacional do território, com vistas à criação de novas vias de circulação para as pessoas em sofrimento psíquico, respeitando-se as singularidades políticas e socioculturais1919 Barbosa VFB, Caponi SNC, Verdi, MIM. Cuidado em saúde mental, risco e território: transversalidades no contexto da sociedade de segurança. Interface (Botucatu) 2016; 20(59):917-928..

Por fim, reconhece-se o desenvolvimento de ações ante o desafio do CAPS de articular famílias e sociedade no desenvolvimento de ações inclusivas, que permitam a ampliação da participação efetiva dos sujeitos na cidade e na construção de uma nova cultura, pautada em valores civilizatórios, que permitam a convivência respeitosa, acolhedora e solidária aos sujeitos em sofrimento psíquico.

Considerações finais

No exercício de análise da realização da VD no CAPS, sob perspectiva das dimensões da RP, percebeu-se que está em curso um processo de recomposição do saber/fazer em saúde mental. Nesse sentido, os participantes da pesquisa expressam compromisso ético-político e técnico com o desenvolvimento de práticas de cuidado direcionadas à transformação social do lugar da loucura na sociedade, as quais estimulam a reinserção social, a autonomia e maior poder contratual do sujeito em sofrimento psíquico.

Na tessitura da atenção psicossocial, o território significa mais que espaço geográfico, constitui cenário de produção do cuidado, onde se promove maior circulação e participação das pessoas em sua experiência-sofrimento, considerando seus modos singulares de existir e de andar a vida. Nesse contexto, a VD permite estabelecer mediações entre o CAPS, o território e o sujeito, na construção de uma clínica orientada à construção da integralidade e da intersetorialidade, com vistas à produção de novos modos de exercer a cidadania, por meio de estratégias que promovam a emancipação e o empoderamento das pessoas na condução de seus projetos de vida.

Assim, a VD contribui para efetivação de estratégias de desinstitucionalização, quando operada com base nas necessidades de saúde do sujeito e da comunidade, sendo instrumentalizada por ferramentas da clínica e da gestão de serviço, indutoras da reorganização dos processos de trabalho da equipe. Nesses termos, apresenta potencialidades na abordagem ao sujeito e sua família, em sua articulação com a vida no território. Não obstante, apresenta limites e desafios interpostos pela estrutura e funcionamento do CAPS, decorrentes do dimensionamento insuficiente de recursos materiais e de pessoal, além daqueles intrínsecos ao exercício da clínica psicossocial, expressos na dificuldade da equipe de ampliar articulação intersetorial e de promover maior circulação das pessoas na cidade.

Com efeito, é imprescindível que a VD se torne prática permanente no cotidiano de trabalho do CAPS, como tecnologia para abordagem do sujeito e de sua experiência de vida, incluindo o contexto familiar, radicalizando a ruptura com o aparato manicomial e com toda forma de exclusão e estigma em torno da loucura. Assim, oportuniza a reinvenção de saberes profissionais e tensiona mudanças na cultura local, com vistas à construção de novas relações da sociedade com a loucura, fundadas no acolhimento e respeito à diferença.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    29 Out 2018
  • Aceito
    04 Jun 2019
  • Publicado
    06 Jun 2019
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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