Resumo
O artigo aborda estratégias usadas na implementação da Rede Cegonha (RC), considerando sua finalidade de contribuir para uma mudança de modelo de atenção ao parto e nascimento nos serviços do SUS. Contextualiza a RC como projeto firmado interinstâncias gestoras do SUS e a importância de estratégias de sua execução junto aos serviços. Nesse sentido aponta dois eixos essenciais na sustentação da RC, considerados estratégicos para promover a análise-intervenção na atenção obstétrico-neonatal: o apoio institucional (AI) e a formação para o trabalho em equipe. O AI possibilita que a RC se efetive como uma construção coletiva assumida pelas equipes nos seus espaços de ação; é apontado como inovação no modo de implementar projetos de saúde. A metodologia da formação-intervenção inova no modo de formar para intervir no trabalho. Essas experiências são afirmadas como potencializadoras da RC na criação de condições para mudar a lógica tecnocrática de gestão e atenção ao parto e nascimento.
Palavras-chave
Rede Cegonha; Sistemas de saúde; Formação profissional; Apoio institucional
Rede Cegonha como dispositivo de mudança de modelo de cuidado
A Rede Cegonha (RC) ampliou os investimentos que o Ministério da Saúde (MS) vinha fazendo na melhoria da atenção ao parto e nascimento. Surgiu em 2011, uma das redes temáticas do SUS, para garantir atenção humanizada no pré-natal, parto, puerpério e atenção infantil até 24 meses, além da atenção ao planejamento sexual, reprodutivo e ao abortamento. O seu conjunto de recursos é direcionado para mudança de modelo de atenção obstetriconeonatal, desafio assumido pelo MS, fazendo coro com vozes que vêm alertando sobre as lacunas do modelo predominante, hospitalocêntrico e medicocentrado, com práticas invasivas e não humanizadas e altas taxas de morbimortalidade materna e neonatal11 Leal MC, Gama SGN. Nascer no Brasil. Cad Saude Publica 2014; 30(1):5.,22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Humanização do Parto e Nascimento (Cadernos HumanizaSUS). Brasília: MS; 2014..
Nesse artigo, a RC é abordada como um dispositivo, partindo dos referenciais utilizados na Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão no SUS/PNH33 Brasil. Ministério da Saúde (MS). HumanizaSUS: documento base para gestores e trabalhadores do SUS. Brasília: MS; 2008., em que se reconhece as potencialidades de intervenção nos sistemas e processos instituídos para gerar mudanças institucionais. É nesse sentido que compreendemos a RC à luz de nossos estudos e apoio aos serviços de saúde, observando-se que ela passou a ser operada no contexto do SUS sem se restringir aos instrumentos típicos de execução de projetos por meio de prescrições e metas a cumprir. Para além disso, a RC incorporou uma metodologia de lida com seu objeto/serviços, buscando o que a PNH valoriza como um modo de fazer, nele contempladas estratégias de integração interfederativa e envolvimento efetivo das equipes de saúde na corresponsabilização com mudanças.
Suas diretrizes22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Humanização do Parto e Nascimento (Cadernos HumanizaSUS). Brasília: MS; 2014. portam os atributos desejados de um novo modelo de cuidado: vinculação territorial da gestante para atendimento em rede, evitando a peregrinação da mulher e da criança; mecanismos de acolhimento, com classificação de risco e vulnerabilidade; direito a acompanhante nos momentos de internação e procedimentos; adoção do conjunto de boas práticas a partir de evidências científicas; incorporação de enfermeiros obstétricos na atenção ao parto de risco habitual, fomentando o seu protagonismo no cuidado e na autonomia de agir em equipe; atenção humanizada às situações de abortamento e acesso ao aborto legal; oferta de ações de planejamento reprodutivo pós-abortamento; atenção às situações de violência sexual, com garantia de todos os critérios de privacidade e acolhida; e adequação dos espaços físicos de trabalho, criando condições favoráveis aos vínculos sociais e subjetivos de cuidado. Além dessas diretrizes, outras têm foco na gestão, organização e qualificação dos processos de trabalho, destacando: a cogestão como incentivo à participação ativa de gestores, trabalhadores e usuários, ampliando graus de autonomia e corresponsabilização; o trabalho integrado em equipe multiprofissional como referência para o cuidado; a mobilização social, voltando-se aos temas da sexualidade e da reprodução; e a integração ensino-serviço, fomentando a qualificação do trabalho/equipes da rede.
Com esses horizontes constata-se o desafio instituinte da RC, dispondo-se ao tensionamento dos modos estabelecidos de operacionalização da gestão, dos processos e das práticas de atenção. Portanto, dispositivo de intervenção no trabalho.
Estudos avaliativos das redes temáticas no SUS mostram os rumos de implementação e as limitações em suas configurações e impactos44 Viana ALA, Ferreira MP, Cutrim MAB, Fusaro ER, Souza MR, Mourão L, Chancharulo AP, Mota PHS. Política de regionalização do SUS em debate: avanços e impasses da implementação das regiões e redes no Brasil. Novos Caminhos [Nota Técnica]. 2017 [acessado 2019 Dez 14]; (15):[cerca de 47 p.]. Disponível em: http://www.resbr.net.br/novos-caminhos
http://www.resbr.net.br/novos-caminhos... . São contribuições essenciais para avançar nos ajustes necessários ao alcance da população em suas demandas de integralidade e na organização e funcionamento das redes. No contexto atual de várias mudanças estruturais do SUS, incluindo as restrições de recursos, ampliam-se esses desafios. Em termos da RC, as avaliações trazidas neste suplemento da Ciência e Saúde Coletiva (C&SC) apontam impactos inquestionáveis, mas também lacunas ainda a serem superadas. Em meio a essas perspectivas analíticas, nosso foco de abordagem da RC centra-se em dois eixos que dizem de seu modo de implementação, demarcando nosso interesse em certas aprendizagens institucionais, valorizando caminhos que se mostraram potentes nos modos de fazer – eixo do apoio institucional55 Santos Filho SB. Apoio institucional e análise do trabalho em saúde: dimensões avaliativas e experiências no SUS. Interface (Botucatu) 2014; 18(1):1013-1025.
6 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Guia para apoio institucional à implementação da Rede Cegonha. Brasília: MS; 2013.-77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Relatório de pesquisa: análise do apoio institucional na Rede Cegonha na perspectiva da atuação dos apoiadores institucionais. Brasília: MS; 2014. e estratégias essenciais para a sustentação do objetivo de transformação de modelo – eixo da formação para o trabalho em equipe88 Souza KV, Santos Filho SB. Educação profissional em saúde: metodologia e experiências de formação-intervenção-avaliação. Porto Alegre: Moriá; 2020..
Humanização como método na implementação da RC
A RC incorporou a Política Nacional de Humanização (PNH) como uma de suas bases estruturantes, adotando seu marco teórico-político num aporte sistemático de princípios e modos de operar. Essas aproximações referenciais foram demarcadas em documentos institucionais do Ministério da Saúde e num Caderno especial do HumanizaSUS focando a humanização do parto e nascimento22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Humanização do Parto e Nascimento (Cadernos HumanizaSUS). Brasília: MS; 2014.. Em publicação recente, Pasche99 Pasche D. Prefácio. In: Souza KV, Santos Filho SB. Educação profissional em saúde: metodologia e experiências de formação-intervenção-avaliação. Porto Alegre: Moriá; 2020. p. 19-27., um dos atores-chave na articulação da PNH e da RC nos seus momentos de estruturação no MS, afirma que uma das investidas mais relevantes da PNH ocorreu no campo da RC. Pasche99 Pasche D. Prefácio. In: Souza KV, Santos Filho SB. Educação profissional em saúde: metodologia e experiências de formação-intervenção-avaliação. Porto Alegre: Moriá; 2020. p. 19-27. refere essa aproximação da RC à PNH, alertando que a RC não só vinha com a pretensão de organização em busca de eficácia na atenção e gestão, visando mudar seus rumos, mas instaurando certo modo de fazer política e intervenção no campo, tomando a PNH como bastião ético e referência metodológica para o processo de mudança que passa a patrocinar. Tal referencial teria especial relevância na RC, pelas suas potencialidades em colocar em análise o complexo cenário da atenção obstetriconeonatal, extrapolando seu âmbito técnico e trazendo à tona os elementos eticopolíticos que o perpassam. Assim a humanização comparece como base para análise e intervenção, como princípio e método, cujo pilar principal é a busca de inclusão dos diferentes atores, o respeito e a valorização do contraditório e, como enfatiza Pasche99 Pasche D. Prefácio. In: Souza KV, Santos Filho SB. Educação profissional em saúde: metodologia e experiências de formação-intervenção-avaliação. Porto Alegre: Moriá; 2020. p. 19-27., operando com a confrontação generosa entre sujeitos e suas diferenças para a reinvenção protagonista e corresponsável de novos fazeres.
Esse é o cenário que nos interessa explorar na RC, tomando como foco o trabalho em sua concepção de atividade concreta1010 Schwartz Y, Durrive L. Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niterói: EdUFF; 2007., isto é, os modos que os coletivos se articulam e se reinventam no cotidiano para garantirem o real das instituições e suas metas.
É nesse espaço concreto de relações que vigoram as práticas tradicionais de atenção, gestão e formação, mas é também onde se operam as (re)invenções de tais práticas, sempre na tensão instituído-instituinte, tensionamento que cria condições para transformações. Ainda valendo-se de um caro princípio da PNH, tomamos a RC como um caso emblemático no qual se demonstra a premissa de que política pública é aquela que se faz nos coletivos1111 Barros RB, Passos E. A humanização como dimensão pública das políticas de saúde. Cien Saude Colet 2005; 10(3):561-571., isto é, que não se viabiliza apenas pela prescrição oriunda da máquina pública, mas que opera com a movimentação de atores, disputando e misturando seus (diferentes) interesses e rearticulando-os na produção de um comum. Assim é que se deslancha a RC e seus complexos desafios associados a suas frentes de ações e metas.
Destacando eixos estruturantes da RC
É nesse cenário – de desafio de novos fazeres – que compreendemos dois eixos como essenciais na sustentação da RC. Trata-se do apoio institucional (AI), como estratégia essencial no modo de implementação, e da formação para o trabalho em equipe, como estratégia de sustentação das mudanças desejadas. Enfatizamos as perspectivas metodológicas do apoio institucional55 Santos Filho SB. Apoio institucional e análise do trabalho em saúde: dimensões avaliativas e experiências no SUS. Interface (Botucatu) 2014; 18(1):1013-1025.,66 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Guia para apoio institucional à implementação da Rede Cegonha. Brasília: MS; 2013. e dos processos formativos88 Souza KV, Santos Filho SB. Educação profissional em saúde: metodologia e experiências de formação-intervenção-avaliação. Porto Alegre: Moriá; 2020., à luz de nossas experiências em tais campos de saberes e práticas. É preciso salientar que a RC abre caminho para, como propõe a PNH, afirmar como indissociáveis três campos de trabalho: atenção, gestão e formação. Esse princípio orienta a reorganização dos serviços indicando que a transformação do cuidado ao parto e nascimento exige alteração, simultânea, dos modelos de atenção, de gestão e de formação para o trabalho. Se isso é uma premissa, aqui focamos o AI como caminho para subsidiar transformações nos modos de gestão nos serviços do SUS1212 Campos GWS. Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec; 2003. e a formação-intervenção88 Souza KV, Santos Filho SB. Educação profissional em saúde: metodologia e experiências de formação-intervenção-avaliação. Porto Alegre: Moriá; 2020.,1313 Heckert ALC, Neves CAB. Modos de formar e modos de intervir: quando a formação se faz potência de produção de coletivo. In: Pinheiro R, Mattos RA, Barros MEB. Trabalho em equipe sob o eixo da integralidade. Rio de Janeiro: IMS/UERJ; 2007. p. 145-160. como perspectiva formativa que traz o trabalho e seus desafios ao centro dos processos educativos para o agir em equipe.
Apoio Institucional como inovação na RC
Campos1212 Campos GWS. Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec; 2003. propõe o AI como um modo de fazer perseguindo a criação de grupalidade, montando redes de coletivos organizados para a produção de saúde. Com o AI almeja-se reformular o modo tradicional de fazer gestão, ampliando a participação de gestores, trabalhadores e usuários na tomada de decisões.
Na RC, a função apoio passa pela mediação do projeto pactuado intergestores, possibilitando que ele se torne um objeto-pauta dos trabalhadores, efetivando-se como uma construção coletiva assumida pelos sujeitos que fazem o serviço funcionar. Nesse rumo, institui-se superando a tradição do MS do papel centrado na formulação de projetos e fornecimento de recursos para serem apenas executados pelas outras instâncias. O AI é essencialmente um suporte metodológico a ocupar o espaço entre a portaria firmada entre as instâncias gestoras (macroesfera da gestão) e a ação propriamente dos serviços, ajudando a colocar o projeto em funcionamento66 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Guia para apoio institucional à implementação da Rede Cegonha. Brasília: MS; 2013.. O principal vetor de finalidade do AI na RC é a criação de condições para ajudar a mudar a lógica tecnocrática de gestão e atenção na saúde materno-infantil.
Partindo das normativas para o seu desenvolvimento66 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Guia para apoio institucional à implementação da Rede Cegonha. Brasília: MS; 2013., o MS encomendou uma pesquisa avaliativa do AI na RC77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Relatório de pesquisa: análise do apoio institucional na Rede Cegonha na perspectiva da atuação dos apoiadores institucionais. Brasília: MS; 2014., que atestou sinais predominantemente positivos nos campos de interferência dos apoiadores: gestão colaborativa, qualificação da atenção e gestão e na articulação de planejamento, monitoramento e avaliação. Nesses âmbitos destacam-se: fortalecimento da integração interfederativa, desenho da RC e articulação com as demais redes-SUS, constituição de dispositivos de cogestão, alinhamentos considerando os atores e suas relações de poder, oferta de tecnologias e metodologias para análise e revisão dos processos de trabalho, implantação das boas práticas e protocolos, atividades de formação-intervenção e qualificação das equipes, e ampliação da capacidade institucional de planejamento, monitoramento e avaliação.
Não obstante a potência do AI e seu reconhecimento pelos apoiados, trata-se de uma prática em permanente conflito em meio à disputa de modelos de atenção (entre o instituído e o que se deseja instituir). Nesse sentido deve ser valorizado como inovação num modo de implementar projetos, especialmente por se estar na intermediação de uma política pública, no desafio de fazê-la efetivamente pública porque construída nos coletivos, como indica a PNH1111 Barros RB, Passos E. A humanização como dimensão pública das políticas de saúde. Cien Saude Colet 2005; 10(3):561-571.. Isso faz convergir os objetivos da RC e do AI na defesa radical de uma atenção humanizada ao parto e nascimento, para isso expondo-se às disputas de interesses que se cruzam no trabalho.
Em meio às disputas, o apoio ajuda a superar situações antes consideradas imutáveis, sendo um desafio permanente e uma prática instigante que seguramente contribui para os resultados alcançados com a RC.
A formação profissional é um dos componentes da RC, entendido como agenda estratégica para a mudança de paradigmas. Em nossas experiências partimos da premissa de trazer o trabalho ao centro dos processos educativos e tomamos o trabalho na acepção de espaços onde diferentes sujeitos encontram-se em permanente debate de normas, regras, transitando entre práticas tradicionais e o desafio de suas reinvenções. Essa é a concepção de trabalho como atividade e como encontro1010 Schwartz Y, Durrive L. Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niterói: EdUFF; 2007., que no SUS se materializa especialmente nas conexões ou encontros entre as situações e os sujeitos da produção: trabalhadores, gestores e usuários. Seguindo a humanização como política33 Brasil. Ministério da Saúde (MS). HumanizaSUS: documento base para gestores e trabalhadores do SUS. Brasília: MS; 2008.,1111 Barros RB, Passos E. A humanização como dimensão pública das políticas de saúde. Cien Saude Colet 2005; 10(3):561-571. a proposta é ampliar a interação entre tais sujeitos, para isso tomando por base o conceito de transversalidade1414 Guattari F. Psicanálise e transversalidade. Aparecida: Ideias e Letras; 2004., em busca de uma maior abertura na relação comunicacional entre eles. Essa concepção põe a necessidade de participação ativa e inventiva dos sujeitos, em compartilhamento, corresponsabilização e construção de projetos comuns. Na medida em que se aumenta o grau de transversalidade, com tensionamento das fronteiras dos saberes e atitudes, aumenta-se o poder de agir dos coletivos de trabalhadores66 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Guia para apoio institucional à implementação da Rede Cegonha. Brasília: MS; 2013.,1414 Guattari F. Psicanálise e transversalidade. Aparecida: Ideias e Letras; 2004..
Ao provocar a reflexão sobre o trabalho na obstetrícia e neonatologia, destacamos a complexidade do campo mais amplo do cuidado ao parto e nascimento88 Souza KV, Santos Filho SB. Educação profissional em saúde: metodologia e experiências de formação-intervenção-avaliação. Porto Alegre: Moriá; 2020.. Campo onde se cruzam múltiplos sujeitos de interesse e múltiplos valores perpassando o âmbito científico: envolve mulheres, família, categorias profissionais, os serviços, os movimentos sociais, de gênero, a igreja e seus dogmas, o estado e seus princípios e outros. Por outro lado, como em todo o setor saúde, a prática obstetriconeonatal acontece em meio à intensificação de tecnologias, medicalização e padronizações procedimentais, enrijecendo a relação assistencial, com perda de autonomia dos trabalhadores e isolamento na tarefa. Isso exige cada vez mais o aumento da capacidade de análise e de intervenção dos coletivos para se corresponsabilizarem no enfrentamento dessas tendências.
O cuidado ao parto passa por articulações de saberes e histórias diversas, inclusive da própria mulher, e pelo desafio de se fazer como um encontro na ética de defesa da vida e da alteridade. Se as necessidades dos sujeitos da produção da saúde extrapolam as dimensões objetivas e tecnopráticas, isso requer a articulação de saberes não como um somatório de profissionais, mas especialmente no sentido de uma interlocução de disciplinas para se dar conta da complexidade do cuidado. Em contrapartida, a interlocução de saberes e profissionais está associada à tradição de como se estabelecem as relações nos serviços de saúde, na divisão técnica e social do trabalho. Nessa tradição observa-se acentuada assimetria de poderes entre as diferentes categorias, entre os profissionais e suas chefias e entre todos esses e os usuários. Para sua superação não basta a justaposição profissional e qualificação para o agir individualizado; há que equilibrar autonomias individual e coletiva1515 Zarifian P. Valor, organização e competência na produção de serviço - esboço de um modelo de produção de serviço. In: Salerno MS. Relação de serviço: produção e avaliação. São Paulo: Senac; 2001. p. 95-149.. Assim contextualizado, não é pelo campo da assistência isoladamente (esfera das habilidades e competências técnicas) que serão transformados os serviços; é pelo campo da gestão que se pode colocar em análise tanto os modos de cuidar como os de gerir, em interrelação com os de formar. Isso é base importante do trabalho em equipe, superando-se a hierarquização vertical das relações de saberes-poderes e avançando para uma organização lateralizada, na ótica da transversalidade.
A concepção de formação-intervenção vem no sentido de aumentar a potência de agir no trabalho. Valoriza a formação para o trabalho em equipe pela construção de projetos comuns que atendam aos interesses dos usuários, dos (diferentes) trabalhadores e da instituição. Forma-se para ampliar a qualificação para análise-intervenção na organização e gestão dos processos de trabalho, condição necessária para dar conta do objetivo de mudança de modelo. Nossas experiências em projetos de qualificação no campo obstetriconeonatal88 Souza KV, Santos Filho SB. Educação profissional em saúde: metodologia e experiências de formação-intervenção-avaliação. Porto Alegre: Moriá; 2020. estão orientadas nesses princípios, alinhando-se aos horizontes ético-estético-políticos da humanização à luz da transversalidade e pontes interprofissionais. Tal formação para lidar com as realidades do SUS exige que o real da organização do trabalho seja tomado como pauta. Entretanto, na tradição da educação em geral, isso é negligenciado ou subestimado, centrando-se em competências restritas que só garantem uma qualificação pontual. As realidades singulares trazem necessidades que não se resolveriam somente com as prescrições ou normas antecedentes para o trabalho se fazer. O princípio de formação como intervenção propõe interferência no trabalho, nele e com ele articulando produção de conhecimento, práticas de atenção e gestão, produção de saúde e de sujeitos de modo indissociável. É a experiência concreta de trabalho e sua análise que apontam as necessidades de qualificação, de recriação da prática e do conhecimento, possibilitando a aplicabilidade dos saberes e tecnologias. Isso se faz com (re)invenção permanente de normas e num debate coletivo de valores em direção a um fazer comum.
Concluindo
A RC compõe as estratégias do MS, trazendo a marca desafiadora de mudar um modelo de práticas, com isso reverberando no SUS como um todo, especialmente no campo da gestão22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Humanização do Parto e Nascimento (Cadernos HumanizaSUS). Brasília: MS; 2014.. Nesse contexto os eixos destacados como estratégicos em sua implementação trazem a marca desafiadora de novos modos de qualificação do trabalho em sua organização e relações institucionais e subjetivas, junto com o desafio de uma formação para sustentar mudanças. Esses desafios estendem-se na perspectiva mais ampliada de redes em produção de articulações em vários âmbitos, passando pelos recursos e conexões que asseguram integralidade como também pela quebra de tradicionais fronteiras de saberes e poderes que obstaculizam o agir em conjunto e corresponsável, âmbito que instigamos ser enfrentado com a noção de transversalidade.
Defendemos que AI e formação-intervenção se interpenetram como eixos estruturantes na RC por serem canais de desenvolvimento da Rede, no sentido de um fazer coletivo e em um caminho de permanente compartilhamento entre os atores envolvidos, e assim direcionando a formação de profissionais em novas bases eticopolíticas para novos modos de agir em saúde. São eixos estruturantes porque conseguem manter atualizados os modos de discutir o trabalho (e formando para o trabalho), pela via de sua análise coletiva, fazendo emergir o que nele existe de tradição e de potencial transformativo. Assim acreditamos que contribuem para a sustentabilidade das práticas que se vão transformando ou que a produção de autonomia dos coletivos contribui para a sustentabilidade da RC como política pública. Por tudo isso, afirmamos: o AI e a formação para o trabalho em equipe ajudam a produzir os resultados almejados na RC, disso decorrendo a importância de inovações em redes de cuidado e formativas.
Referências
- 1Leal MC, Gama SGN. Nascer no Brasil. Cad Saude Publica 2014; 30(1):5.
- 2Brasil. Ministério da Saúde (MS). Humanização do Parto e Nascimento (Cadernos HumanizaSUS). Brasília: MS; 2014.
- 3Brasil. Ministério da Saúde (MS). HumanizaSUS: documento base para gestores e trabalhadores do SUS. Brasília: MS; 2008.
- 4Viana ALA, Ferreira MP, Cutrim MAB, Fusaro ER, Souza MR, Mourão L, Chancharulo AP, Mota PHS. Política de regionalização do SUS em debate: avanços e impasses da implementação das regiões e redes no Brasil. Novos Caminhos [Nota Técnica]. 2017 [acessado 2019 Dez 14]; (15):[cerca de 47 p.]. Disponível em: http://www.resbr.net.br/novos-caminhos
» http://www.resbr.net.br/novos-caminhos - 5Santos Filho SB. Apoio institucional e análise do trabalho em saúde: dimensões avaliativas e experiências no SUS. Interface (Botucatu) 2014; 18(1):1013-1025.
- 6Brasil. Ministério da Saúde (MS). Guia para apoio institucional à implementação da Rede Cegonha. Brasília: MS; 2013.
- 7Brasil. Ministério da Saúde (MS). Relatório de pesquisa: análise do apoio institucional na Rede Cegonha na perspectiva da atuação dos apoiadores institucionais. Brasília: MS; 2014.
- 8Souza KV, Santos Filho SB. Educação profissional em saúde: metodologia e experiências de formação-intervenção-avaliação. Porto Alegre: Moriá; 2020.
- 9Pasche D. Prefácio. In: Souza KV, Santos Filho SB. Educação profissional em saúde: metodologia e experiências de formação-intervenção-avaliação. Porto Alegre: Moriá; 2020. p. 19-27.
- 10Schwartz Y, Durrive L. Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niterói: EdUFF; 2007.
- 11Barros RB, Passos E. A humanização como dimensão pública das políticas de saúde. Cien Saude Colet 2005; 10(3):561-571.
- 12Campos GWS. Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec; 2003.
- 13Heckert ALC, Neves CAB. Modos de formar e modos de intervir: quando a formação se faz potência de produção de coletivo. In: Pinheiro R, Mattos RA, Barros MEB. Trabalho em equipe sob o eixo da integralidade. Rio de Janeiro: IMS/UERJ; 2007. p. 145-160.
- 14Guattari F. Psicanálise e transversalidade. Aparecida: Ideias e Letras; 2004.
- 15Zarifian P. Valor, organização e competência na produção de serviço - esboço de um modelo de produção de serviço. In: Salerno MS. Relação de serviço: produção e avaliação. São Paulo: Senac; 2001. p. 95-149.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
15 Mar 2021 - Data do Fascículo
Mar 2021
Histórico
- Recebido
12 Mar 2020 - Aceito
25 Jun 2020 - Publicado
27 Jun 2020