Taquete SR, Borges L. Pesquisa qualitativa para todos. Petrópolis: Vozes; 2020.

Wilza Vieira Villela Sobre o autor
2020

Inspiradas por Cora Coralina, que num dado poema diz que não faz versos ou poesia, apenas conta velhas histórias de um modo diferente11 Coralina C. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. São Paulo: Global Editora; 1984., as autoras apresentam o volume Pesquisa qualitativa para todos anunciando a sua intenção: não fazer um tratado denso nem um manual de pesquisa qualitativa. Pretendem sim contar o que aprenderam sobre o tema ao longo dos vários anos como pesquisadoras e docentes em cursos de Pós-Graduação na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

A busca por um caminho alternativo entre um tratado formal e um manual se justifica por duas razoes. A primeira considera a sua utilidade: estudantes da área de saúde, especialmente da área médica, nem sempre estão familiarizados com a leitura de textos teóricos ancorados nas ciências sociais e na filosofia que constituem a maioria dos tratados sobre o método. Ao mesmo tempo, a simplificação dos manuais por vezes incorre em reducionismos, comprometendo a densidade teórica necessária para que os resultados de uma investigação qualitativa não se confundam com conhecimentos produzidos pelo senso comum22 Denzin NK, Lincoln YS, editores. The Sage handbook of qualitative research. Thousand Oaks: Sage Publications; 2011.. No afã de sintetizar os fundamentos teóricos do método qualitativo por vezes os manuais deixam de apresentar, na sua extensão e complexidade, as potencialidades do uso desta abordagem22 Denzin NK, Lincoln YS, editores. The Sage handbook of qualitative research. Thousand Oaks: Sage Publications; 2011.. Perdem, assim a sua operacionalidade, pois nem sempre é simples seguir os passos descritos no manual, e muitas vezes a tentativa não resulta na produção de um conhecimento útil e inovador.

A segunda razão diz respeito ao posicionamento das autoras em relação ao diálogo e às trocas intersubjetivas. Inclusive é este posicionamento que determina a sua opção por uma abordagem que tem como um dos seus pressupostos a importância dos afetos, crenças e valores na produção de sentidos e significados das experiências para os sujeitos33 Becker HS. Segredos e truques da pesquisa. Rio de Janeiro: Zahar; 2007..

Assim, escrever um livro sobre pesquisa qualitativa é, para as autoras, um meio de compartilhar sua experiência, incluindo escolhas e valores. Representa também um posicionamento de diálogo e troca, como leitor.

Nesta troca, as autoras buscam apresentar de forma simples e acessível, diferentes aspectos da investigação qualitativa. Dimensões teóricas, filosóficas e epistemológicas são discutidas e norteiam a exposição das dimensões mais técnicas e operacionais da utilização do método.

Contando “velhas histórias de um modo diferente” as autoras iniciam a conversa brindando o leitor com narrativas históricas sobre os modos de entender e interpretar o mundo, que mesmo baseados em lógicas bem distintas das que usamos hoje para explicar a vida, garantiram a sobrevivência e evolução da espécie44 Harari YN. Sapiens: A brief history of humankind. Park Imperial: Random House; 2014.. Este percurso chega até a idade moderna, quando o conhecimento produzido pelo método científico se torna sinônimo de verdade. Entretanto, há vários pontos de parada, em teorias filosóficas ou das ciências sociais que buscam explicar as relações entre individuo e sociedade, a produção de subjetividades e sua objetivação. Sem pretender que seja um ponto de chegada, a narrativa compreende até reflexões mais práticas e atuais sobre o uso de softwares na pesquisa qualitativa.

Num primeiro momento, o jeito diferente de contar a velha história não é óbvio. Do mesmo modo que na pesquisa qualitativa, é preciso forçar um estranhamento para não tomar o discurso do outro como um já sabido.

No entanto, conforme se avança na leitura dos onze capítulos compõem o livro (e que podem ser lidos de forma independente, já que cada capítulo aborda um conteúdo específico) este jeito diferente de contar a velha história vai se desvelando. Os temas abordados são amplos e visam abarcar polos teóricos e técnicos, e os capítulos são encadeados de modo a evidenciar a indissociabilidade entre ambos; os conteúdos explorados em cada tema/capítulo também são amplos, juntando referencias tradicionais no campo a outras mais contemporâneas, locais e contextuais e, principalmente, reiterando a articular teoria e prática.

No decorrer da leitura vai se vislumbrando com mais nitidez as professoras frente aos seus alunos e as pesquisadoras frente aos seus interlocutores de pesquisa. Comprometidas com o aprendizado, a compreensão do outro e o compartilhamento das suas experiências, atentas a cada dúvida ou questionamento.

A escolha de apresentar os caminhos que conferiram sentido e significado à pesquisa qualitativa para as autoras captura o leitor. Não há uma oferta de soluções ou dicas para uso. As narrativas, reflexões, e sugestões esclarecem o leitor e instigam a sua curiosidade no sentido de aprofundar as referencias que dão suporte à abordagem qualitativa como estratégia válida para investigação científica na área da saúde.

O sujeito humano, alvo das práticas em saúde, se constitui como tal a partir da sua singularidade, formada por afetos, emoções, crenças e valores. Para conhecê-lo são necessárias formas de objetivar sua subjetividade, o que é possível por meio das trocas intersubjetivas mediadas pelo uso da linguagem. Mas essas trocas precisam ser situadas e decodificas, para que a fala do sujeito se transforme na reverberação das falas/discursos dos vários sujeitos que habitam seu espaço social. As várias técnicas de produção e análise dos dados qualitativos, apresentadas pelas autoras correspondem à pluralidade de teorias apresentadas anteriormente, e à posição das autoras em oferecer um leque grande de possibilidades para que o leitor/pesquisador encontre a que lhe parece fazer mais sentido a cada momento/objeto de pesquisa.

Na área da saúde a delicada relação entre objetividade e subjetividade exige, mais que nunca, o uso de ferramentas conceituais e técnicas precisas para operar a transformação da fala de um sujeito num dado científico. A descrição objetiva do corpo humano e mensuração de cada aspecto do seu funcionamento é um requisito para as práticas terapêuticas. Nela se baseiam as intervenções clínicas. Entretanto, intervenções em saúde se dirigem a doenças- lesões ou disfunções, que ocorrem num sujeito, portador de uma história e de um universo afetivo singular. Mesmo a doença mais bem descrita nos tratados médicos adquire características particulares para cada sujeito que a vivência.

Ter ferramentas para compreender as dinâmicas subjetivas que delineiam processos de produção de saúde e de adoecimento amplia o escopo do trabalho e da pesquisa em saúde. Talvez por esta razão as autoras tenham sido tão criteriosas ao apresentar a perspectiva compreensiva da investigação qualitativa e a importância da subjetividade inerente ao humano, em qualquer processo de produção de conhecimento e no trabalho em saúde.

Lembretes simples, como o lugar da ciência no conjunto de saberes que orientam as decisões e práticas cotidianas dos sujeitos, ajudam a delimitar as potencialidades do uso do método. Explicações claras sobre as características do método o científico, demonstrando que sua especificidade não é a produção de verdades, e sim de consensos provisórios, contribuem para afirmar a cientificidade do método qualitativo e deixar o leitor com vontade de prosseguir a leitura. A apresentação de diferentes teorias oriundas das ciências sociais para fundamentar a escolha pela pesquisa qualitativa também é um recurso para ilustrar as várias possibilidades interpretativas de um mesmo evento, mais uma vez desfazendo a ideia de que a ciência produz verdades. E este arcabouço geral situa as orientações sobre as dimensões práticas da pesquisa. Ancorado numa perspectiva teórico-conceitual consistente, o passo a passo da pesquisa – definição e recorte do objeto, definição de referencial teórico e estratégias de produção e análise de dados, elaboração do projeto e escrita de relatório e artigos de divulgação dos resultados – não se transforma em receita para uso comum.

Do mesmo modo, a apresentação de estratégias de validação da pesquisa e seus resultados e a discussão sobre aspectos éticos da pesquisa qualitativa, não são um repertório de condutas a serem seguidos. Ao contrário, são reflexões e sugestões para que o leitor entre em diálogo a partir dos seus próprios valores e interesses e como pesquisador.

Um último ponto deve ser ressaltado, com respeito à persistência, principalmente entre aqueles que estão iniciando no mundo da pesquisa, de um suposto confronto entre métodos quantitativos e qualitativos. Trata-se de estratégias distintas, com finalidades diversas e, portanto, não passíveis de comparação. As autoras acertam em reconhecer que existe este tipo de querela, e acertam uma segunda vez em não entra nesta polêmica. A investigação qualitativa não pretende produzir verdades ou certezas, e sim desvendar a trama de sentidos que confere intelegibilidade às experiências ao sujeito situado histórica e culturalmente. A proposta de Taquette e Borges é fornecer elementos para aqueles que pretendem se aventurar nestes caminhos.

Ao apresentar múltiplas superfícies da investigação qualitativa as autoras dão valiosos subsídios para a compreensão e o uso dessa estratégia de produção de conhecimento. Mesmo que a mola propulsora para o livro tenha sido a experiência das autoras com estudantes e pós-graduandos da área da saúde o livro pode ser útil e interessante para qualquer pesquisador que queira ter uma visão ampla sobre a investigação qualitativa. Daí a feliz escolha do título: Pesquisa Qualitativa PARA TODOS.

Referências

  • 1
    Coralina C. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais São Paulo: Global Editora; 1984.
  • 2
    Denzin NK, Lincoln YS, editores. The Sage handbook of qualitative research Thousand Oaks: Sage Publications; 2011.
  • 3
    Becker HS. Segredos e truques da pesquisa Rio de Janeiro: Zahar; 2007.
  • 4
    Harari YN. Sapiens: A brief history of humankind Park Imperial: Random House; 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    Abr 2021
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