Introdução
O projeto Exemplares em Saúde Global (Exemplars in Global Health - EGH)11 Exemplars in Global Health [internet]. [cited 2020 Ago 7]. Available from: https://www.exemplars.health/
https://www.exemplars.health/... estuda os casos que se sobressaíram positivamente na superação de grandes desafios de saúde pública, destacando-se entre seus pares econômicos pela obtenção de melhores resultados em saúde. O objetivo do projeto é identificar experiências que trazem aprendizados, com potencial de serem traduzidas e aplicadas em outros contextos. Fruto de uma parceria entre pesquisadores acadêmicos, gestores e doadores, o EGH investigou uma série de tópicos, o que inclui mortalidade de crianças menores de 5 anos, desnutrição e agentes comunitários de saúde (ACS). Para cada tópico, o EGH identificou exemplos bem-sucedidos, desenvolveu estudos de casos dos países e sintetizou os principais aprendizados derivados de cada experiência. A intenção do EGH é instrumentalizar os tomadores de decisão com a sistematização de experiências exitosas e seus aprendizados, para que possam ser adaptados aos diferentes contextos.
Metodologia: Agentes Comunitários de Saúde
O EGH fez uma parceria com a organização Last Mile Health (LMH) para investigar os elementos-chave envolvidos na expansão de programas de ACS em alguns países. Um painel consultivo composto de especialistas em saúde comunitária, com colaboradores de todas as regiões do mundo, identificou quatro países com programas de ACS exemplares, com base nos seguintes critérios: escala/dimensão do programa, impacto sobre a cobertura de ações de saúde e sobre os resultados de saúde em nível populacional, gestão e supervisão governamental, grau de integração no sistema de saúde e diversificação na representação por região global e status econômico. Os quatro países selecionados foram Bangladesh, Brasil, Etiópia e Libéria. Em colaboração com parcerias locais em cada país, o EGH estudou como esses países conseguiram estabelecer e sustentar programas de ACS com bom desempenho, revisou a literatura e a documentação disponíveis e conduziu entrevistas em profundidade, in loco, com pessoas envolvidas com a experiência em estudo.
Os pesquisadores usaram a estrutura da ExpandNet da Organização Mundial de Saúde (OMS), para organizar o estudo do processo de expansão do programa de ACS de cada país, e aquela da Iniciativa de Desempenho da Atenção Primária à Saúde (Primary Health Care Performance Initiative - PHCPI) para sistematizar a avaliação da governança e liderança do sistema de saúde, da força de trabalho em saúde, do financiamento, da infraestrutura das instalações e da prestação de serviços. Fatores políticos, sociais e econômicos que influenciam na expansão do programa de ACS também foram considerados por meio de revisão da literatura e das entrevistas in loco.
Brasil: metodologia e resultados
Para o estudo de caso do Brasil, abrangendo desde as experiências iniciais do Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS) em 1988, até 2017, a LMH analisou mais de 100 documentos, identificados em parceria com a Fiocruz e outros colaboradores acadêmicos: artigos de periódicos revisados por pares, relatórios publicados, avaliações de impacto, publicações do governo e de organizações não-governamentais (ONGs), apresentações de reuniões, entre outros. Essa revisão serviu de base para os roteiros de entrevistas semiestruturadas e abordou o início do programa, sua evolução, fatores de sucesso, desafios e futuro. Entre os entrevistados estavam membros do Ministério da Saúde, de associações profissionais, de instituições de ensino e pesquisa, de ONGs e de instituições multilaterais e bilaterais. A equipe de pesquisa da LMH visitou três localidades no Brasil (Ceará, Rio de Janeiro e Brasília), para conhecer experiências in loco e entrevistar os informantes-chave.
O estudo de caso do EGH Brasil detalha como o programa foi organizado e sua evolução até 2017, identificando seus pontos fortes, com destaque para a larga escala e o foco em conectar membros da comunidade com serviços públicos variados, da saúde e outros setores, para abordar os determinantes sociais da saúde. Salienta características particulares, notadamente a integração dos ACS com o sistema formal de saúde, por meio da estrutura da Estratégia Saúde da Família (ESF) e da sua centralidade no Sistema Único de Saúde (SUS), o papel dos ACS no trabalho intersetorial, a provisão proativa de cuidados em um contexto de crescente prevalência de doenças crônicas, e os sistemas de apoio desenhados para os ACS, envolvendo diretrizes, formação e supervisão.
Embora o estudo forneça uma visão detalhada de algumas das características técnicas que contribuíram para o impacto dos ACS no Brasil, o foco está em como o país conseguiu estabelecer, escalar e sustentar o programa de ACS. Dessa forma, conta uma narrativa histórica sobre o desenvolvimento e o crescimento do programa, extraindo lições-chave. As raízes históricas do programa no movimento de redemocratização do país e na reforma sanitária dos anos 80 reuniram a vontade política necessária e colocaram em evidência a importância do pertencimento da comunidade e da equidade, argumenta o estudo. Desde o início, o programa usou dados para focalizar os serviços, priorizando o alcance das comunidades mais vulneráveis. As ações multisetoriais desenvolvidas pelos ACS conectam os usuários aos serviços de saúde, bem como a outros serviços sociais, como o programa Bolsa Família. Finalmente, o estudo faz menção aos arranjos inovadores de financiamento que o Brasil estabeleceu, incluindo os limites mínimos para o financiamento estadual e municipal de saúde, incentivos financeiros aos municípios com maior vulnerabilidade e financiamento baseado em desempenho.
Apesar do enfoque do EGH em destacar histórias de sucesso, a publicação não ignora os desafios contínuos da atenção primária à saúde (APS) no Brasil. O estudo observa a falha em alcançar uma cobertura de saúde efetivamente universal, e as persistentes desigualdades de acesso, apesar dos êxitos da ESF. Além disso, sobressaem-se as lacunas na qualidade dos serviços, ligadas à gestão descentralizada e às disparidades municipais em termos de formação, supervisão e outros meios de suporte aos ACS. A escassez de profissionais, especialmente médicos, atuando na APS, que afeta desproporcionalmente as áreas rurais e remotas, deixa muitas equipes da ESF desfalcadas, comprometendo a qualidade dos serviços. Além disso, os desafios de assegurar financiamento continuado e de longo prazo diante das graves medidas de austeridade instituídas em 2016 já foram notados, embora o estudo de caso do EGH não cubra as significativas mudanças políticas dos últimos anos.
Como os “Exemplares” podem ser úteis?
O caso dos ACS no Brasil vem sendo reconhecido internacionalmente há muitos anos, estudado e difundido por meio de artigos científicos e documentos publicados por agências oficiais, como a OMS22 Bhutta ZA, Lassi ZS, Pariyo G, Huicho L. Global experience of community health workers for delivery of health related millennium development goals: a systematic review, country case studies, and recommendations for integration into national health systems. Karachi: WHO; 2010.. No entanto, nenhuma das publicações foi tão explícita como o EGH no foco de sistematizar aprendizados de forma transversal, visando a sua tradução para outros contextos, na superação de desafios semelhantes. Além disso, o projeto EGH oferece uma plataforma virtual interativa, com possibilidade de acesso a uma grande rede de contatos, incluindo grupos de especialistas, para que o público interessado possa fazer perguntas, esclarecer dúvidas e buscar suporte para seus desafios específicos.(1 )A plataforma EGH está disponível em inglês, o que é uma limitação, mas o estudo de caso dos ACS no Brasil foi traduzido e disponibilizado em português, o que permite ampla difusão e apropriação no cenário nacional.
Além de poder ser usado como aprendizado em outros países, o estudo de caso dos ACS no Brasil é uma ferramenta importante para impulsionar a atuação desses profissionais no nosso próprio país, uma vez que é uma categoria profissional que tem sido menos valorizada nacionalmente, apesar de alguns importantes avanços nos últimos anos, e que envolve, por exemplo, a questão salarial e as formas de contratação. O grande reconhecimento internacional dos ACS no Brasil não condiz com o cenário atual, marcado pela exaltação das suas vulnerabilidades (insegurança, riscos, condições de trabalho inadequadas, baixos salários) e falta de apoio em termos de formação e supervisão. Embora algumas localidades estejam compartilhando experiências positivas, criativas e inovadoras, na maioria dos lugares, o cenário é de precariedade, com falta de equipamentos de proteção individual (EPIs), resultado da absoluta falta de coordenação das ações pela autoridade de saúde no nível nacional no contexto da pandemia por Covid-19, exacerbando as já marcadas desigualdades entre os municípios33 Lotta G, Wenham C, Nunes J, Pimenta DN. Community health workers reveal COVID-19 disaster in Brazil. The Lancet 2020; 369: 365-366.. A experiência exitosa, para que continue viva, recebendo os devidos investimentos, não deve esconder essas fragilidades. Nesse sentido, os Exemplares em Saúde Global podem ajudar a superar os atuais desafios, trazer a sistematização das iniciativas que mostraram bons resultados e reforçar a base para a valorização dessas experiências, como é o caso dos ACS no Brasil, que merecem mais reconhecimento e investimento no seu próprio país.
Referências
- 1Exemplars in Global Health [internet]. [cited 2020 Ago 7]. Available from: https://www.exemplars.health/
» https://www.exemplars.health/ - 2Bhutta ZA, Lassi ZS, Pariyo G, Huicho L. Global experience of community health workers for delivery of health related millennium development goals: a systematic review, country case studies, and recommendations for integration into national health systems. Karachi: WHO; 2010.
- 3Lotta G, Wenham C, Nunes J, Pimenta DN. Community health workers reveal COVID-19 disaster in Brazil. The Lancet 2020; 369: 365-366.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
28 Maio 2021 - Data do Fascículo
Maio 2021