Aplicabilidade e potencialidades no uso de ferramentas de Business Intelligence na Atenção Primária em Saúde

Douglas Rodrigues Torres Gisela Cordeiro Pereira Cardoso Dolores Maria Franco de Abreu Daniel Ricardo Soranz Egléubia Andrade de Oliveira Sobre os autores

Resumo

As ferramentas de gestão de dados, denominadas Business Intelligence (BI), podem ser importantes para fornecer informações completas e personalizáveis para as demandas da gestão em saúde. O objetivo é apresentar a avaliação da aplicabilidade e potencialidade do uso de uma ferramenta de BI no planejamento das ações de gestão da Atenção Primária em Saúde. Estudo exploratório, de abordagem quantitativa, tendo as dimensões de eficiência e otimização como atributos da qualidade. Seleção de uma Clínica da Família, da cidade do Rio de Janeiro, sendo inseridos no BI dados do território, do cadastro do Programa Bolsa Família e de linhas de cuidado, para explorar as possibilidades de combinação e de geração de indicadores. Neste artigo, apresentamos a Ficha A e a Linha de cuidado da gestante. Como resultados a ampliação de indicadores detalhados em relação à um tabulador comum e otimização na obtenção de listas e do monitoramento por parte das equipes e do gestor. Quanto à eficiência, seu baixo custo e fácil manuseio reduz custos de criação e de profissionais necessários. Conclui-se que a ferramenta viabiliza uma maior organização e planejamento, facilitando a gestão da Clínica da Família, sobretudo no monitoramento dos indicadores e processos avaliativos.

Palavras-chave
Business Intelligence; Gestão da Informação; Atenção Primária em Saúde; Gestão em Saúde; Saúde da Família

Introdução

A gestão de uma unidade de saúde envolve o manejo de vários dados, sejam de natureza epidemiológica, financeira, de condições socioeconômicas, de acesso aos serviços de saúde e da qualidade prestada. As ferramentas de gestão, denominadas de Business Intelligence (BI), podem ser facilitadoras da organização desse processo, ao combinar dados armazenados em inúmeros bancos e fornecer informações mais completas e personalizáveis para as demandas da gestão em saúde. O Business Intelligence (BI) é definido por Salimon e Macedo11 Salimon CC, Macedo MCS. Aplicações de Business Intelligence na Saúde: Revisão de Literatura. J Health Inform 2017; 9(1):31-35. como:

(...) um conjunto de metodologias, processos e tecnologias que são empregadas para coletar, integrar, analisar e disponibilizar dados transformando-os em informações significativas e úteis para permitir “insights estratégicos, táticos e operacionais” mais eficazes e tomada de decisão.11 Salimon CC, Macedo MCS. Aplicações de Business Intelligence na Saúde: Revisão de Literatura. J Health Inform 2017; 9(1):31-35.(p.32).

Apesar da disponibilidade das ferramentas de gestão do tipo BI, a baixa qualidade dos dados e os arquivos de papel, ainda são uma realidade em vários municípios brasileiros. Alguns locais ainda utilizam registros físicos da informação o que retarda e dificulta os processos de trabalho envolvidos. Observa-se nesses casos pouca interação entre os gestores e a burocratização desses processos22 Littike D, Sodré F. A arte do improviso: o processo de trabalho dos gestores de um Hospital Universitário Federal. Cien Saude Colet 2015; 20(10):3051-3062.. A revisão bibliográfica realizada por Salimon e Macedo11 Salimon CC, Macedo MCS. Aplicações de Business Intelligence na Saúde: Revisão de Literatura. J Health Inform 2017; 9(1):31-35. identificou vários artigos retratando a dificuldade de se obter dados confiáveis, devido primordialmente à natureza das fontes. Boland et al.33 Boland GW, Thrall JH, Duszak R. Business intelligence, data mining, and future trends. J Am Coll Radiol 2015; 12(1):9-11. também relatam dificuldades em se obter dados confiáveis e de formar novos conhecimentos a partir do observado. Schaeffer et al.44 Schaeffer C, Booton L, Halleck J, Studeny J, Coustasse A. Big Data Management in US Hospitals: Benefits and Barriers. Health Care Manag (Frederick) 2017; 36(1):87-95. retratam por outro lado a vantagem no uso de tecnologias para reduzir custos em saúde, eventos adversos e reinternações, otimizando assim todo o processo de funcionamento de um hospital. A questão do registro dos dados, portanto, torna-se uma questão fundamental55 Cavalini LT, Oliveira Ahiadzro NCL, Cook TW. Os Registros Eletrônicos em Saúde e seus Potenciais Impactos no Campo da Saúde Pública. J Bras Tele 2013; 2(4):168-177..

Os registros eletrônicos em saúde

Cavalini et al.55 Cavalini LT, Oliveira Ahiadzro NCL, Cook TW. Os Registros Eletrônicos em Saúde e seus Potenciais Impactos no Campo da Saúde Pública. J Bras Tele 2013; 2(4):168-177., definem o registro eletrônico como uma “coleção longitudinal em saúde no formato eletrônico”. Para Araújo et al.66 Araujo TV, Pires SR, Bandiera-Paiva P. Adoção de padrões para Registro Eletrônico em Saúde no Brasil. RECIIS 2014; 8(4):554-566. é um “conjunto de informações de saúde e assistência de um paciente durante toda a sua vida”. Esses dados têm uma legalidade que envolve sigilo profissional e institucional e sua guarda é de responsabilidade da instituição, com a corresponsabilidade do médico responsável técnico e também do médico assistente, quando da posse e uso do mesmo. O registro eletrônico em saúde (RES) agiliza o atendimento, promovendo um diagnóstico facilitado e um tratamento rápido, eficiente e econômico77 Leal RM. O prontuário sob a ótica da defesa médica [Internet]. LHML [acessado 2019 mar 26]. Disponível em: http://crmpr.org.br/publicacoes/cientificas/index.php/arquivos/article/viewFile/699/683.
http://crmpr.org.br/publicacoes/cientifi...
. O RES, evolutivamente, torna a proteção da informação facilitada, em se tratando de espaço físico para guarda do documento, mas também representa um desafio para o processo de segurança que envolve o trinômio criação, uso e produção final88 Jatene DA, Consoni FL, Bernardes RC. Avaliação da Implementação do Prontuário Eletrônico do Paciente e Impactos na Gestão dos Serviços Hospitalares: a experiência do InCor - Instituto do Coração. XXXVI Encontro da ANPAD; 2012.,99 Patrício CM, Maia MM, Machiavelli JL, Navaes MA. O prontuário eletrônico do paciente no sistema de saúde brasileiro: uma realidade para os médicos? Scientia Med 2011; 21(3):121-131..

Dentre os sistemas de RES encontra-se o Prontuário Eletrônico do Paciente (PEP) e o Prontuário Eletrônico do Cidadão (PEC), instrumentos que agregam todas as funções e componentes que se utilizam em um serviço de saúde. Em sua maioria, são sistemas que integram os componentes necessários para o RES, e através de críticas ao funcionamento do sistema, os mesmos são ajustados de acordo com a demanda solicitada pelo setor saúde1010 Kawakami TT, Lunardelli RA, Vechiato FL. O prontuário eletrônico do paciente na perspectiva das recomendações de usabilidade: proposta de organização da informação. Inf Inf 2017; 22(3):456-483.. Autores diferenciam o RES do PEP, sendo o RES uma experiência mais ampla em relação ao registro, e o PEP, um sistema mais específico, com dados individuais de pacientes e seus atendimentos66 Araujo TV, Pires SR, Bandiera-Paiva P. Adoção de padrões para Registro Eletrônico em Saúde no Brasil. RECIIS 2014; 8(4):554-566.,1111 Costa JFR, Portela MC. Percepções de gestores, profissionais e usuários acerca do registro eletrônico de saúde e de aspectos facilitadores e barreiras para a sua implementação. Cad Saude Publica 2018; 34(1):e00187916..

O RES tem um potencial de prover diagnóstico e evolução terapêutica, bem como a capacidade de organizar o fluxo e os processos de trabalho, facilitando também a realização de estudos de natureza científica. Um outro potencial do RES é avaliar os processos e a qualidade dos serviços de saúde, apoiando as tomadas de decisão. Nos dias atuais, ferramentas tais como a Business Intelligence (BI), possibilitam a combinação de bancos de dados e de fornecimento de informações completas e personalizáveis, sendo um potente instrumento na gestão de uma unidade de saúde.

Na Atenção Primária em Saúde (APS), especificamente na Estratégia de Saúde da Família (ESF), a sequência de coleta de dados, codificação, decodificação e posterior elaboração do plano de ação baseado em evidências, é primordial para que esse ciclo contínuo seja útil e adequado às necessidades identificadas. Por exemplo, na redução de internações hospitalares por condição sensível à APS, onde o desempenho de serviços da APS é determinante1212 Ferreira VRS, Najberg E, Ferreira CB, Barbosa NB, Borges C. Inovação em serviços de saúde no Brasil: análise dos casos premiados no Concurso de Inovação na Administração Pública Federal. Rev Adm Publica 2014; 48(5):1207-1227..

As ferramentas de gestão e o município do Rio de Janeiro

O município do Rio de Janeiro foi dividido em dez Áreas Programáticas ou Áreas de Planejamento (AP) que são coordenações que cuidam da APS em cada região e são responsáveis pelo planejamento, execução e avaliação das ações. O Observatório de Tecnologias de Informação e Comunicação em Sistemas e Serviços de Saúde (OTICS-RIO), implantado em 2010, foi uma ferramenta importante com foco na comunicação e divulgação de informações, sendo descontinuado pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS) no ano de 20171313 Pinto LF, Rocha CMF. Inovações na Atenção Primária em Saúde: o uso de ferramentas de tecnologia de comunicação e informação para apoio à gestão local. Cien Saude Colet 2016; 21(5):1433-1448..

O OTICS-RIO tinha como preceito a divulgação de informações em tempo real, interatividade, inovação, foco em resultado, entre outros, e seus espaços, divididos entre as 10 AP da cidade, se organizavam em uma rede colaborativa em parceria com as unidades de saúde, CAPs e a Subsecretaria de Atenção Primária, Vigilância e promoção de Saúde (SUBPAV). As potencialidades dessa rede e seus objetivos foram descritos por Pinto e Rocha1313 Pinto LF, Rocha CMF. Inovações na Atenção Primária em Saúde: o uso de ferramentas de tecnologia de comunicação e informação para apoio à gestão local. Cien Saude Colet 2016; 21(5):1433-1448. como apoio a formação dos trabalhadores do SUS, apoio a disseminação de dados e comunicação em saúde e suporte à qualificação e gestão da informação na Atenção Primária à Saúde1313 Pinto LF, Rocha CMF. Inovações na Atenção Primária em Saúde: o uso de ferramentas de tecnologia de comunicação e informação para apoio à gestão local. Cien Saude Colet 2016; 21(5):1433-1448.. De acordo com o acesso aos blogs das unidades, os autores observaram uma ramificação e distribuição das informações tendo em vista os quase sete milhões de acessos aos blogs das unidades da cidade do Rio de Janeiro.

Ainda, falando em ferramentas, a SUBPAV possui painel concentrador de dados de indicadores próprio (http://www.subpav.org), que auxilia na gestão. O mesmo funciona como concentrador de dados de várias fontes oficiais, facilitando o acesso à informação pelas equipes.

Na gestão local das Áreas de Planejamento ainda se utilizam ferramentas básicas, cálculos manuais, planilhas e fontes extraídas de diversos bancos. As formas de cálculo dos indicadores e a extração desses elementos é realizada manualmente, sendo assim, passível de falhas. A Figura 1 demonstra o fluxo das informações na APS com a intermediação de plataformas de BI.

Figura 1
Fluxograma do ciclo de dados nas CAP com BI.

No Município do Rio de Janeiro, em meados de 2011 a maioria das unidades de atenção primária já possuía o PEP instalado e em funcionamento. O software utilizado foi modelado para atender as necessidades de gestão das unidades, e em 2012 já era possível analisar indicadores de forma integrada, avaliar custos de material, RH, volume de pacientes e procedimentos executados1414 Soranz D, Pinto LF, Camacho LAB. Análise dos atributos dos cuidados primários em saúde utilizando os prontuários eletrônicos na cidade do Rio de Janeiro. Cien Saude Colet 2017; 22(3):819-830.. Esses indicadores, extraídos de várias fontes, combinados através de uma plataforma de BI, pode apresentar uma informação de forma a otimizar os recursos e atingir os objetivos de forma mais efetiva e ágil.

Dentre as diversas plataformas de BI disponíveis, existe a Qlik Sense (http://www.qlikcloud.com), que funciona em duas modalidades de conta, a gratuita e a paga. Há pequenas diferenças entre elas, como por exemplo, o número de colaboradores e de acessos disponíveis, mas a capacidade de processamento é igual. O Qlik, como outras plataformas, tem versão que requer um software para instalação, podendo-se trabalhar em um computador desconectado da internet. Porém, para esse estudo, utilizamos a versão online.

Este artigo visa avaliar a aplicabilidade e a potencialidade do uso do Qlik Sense Cloud (http://www.qlikcloud.com) no processo de criação, utilização e extração de dados e sua versatilidade nos processos de gestão de uma unidade de saúde da ESF no município do Rio de Janeiro, empregando duas variáveis de gerenciamento das ações na APS como ilustração, a saber a Ficha A e a linha de cuidado da Gestante.

Método

Trata-se de estudo de caso, de natureza exploratória, utilizando dados referentes ao período de junho de 2018 a setembro de 2019.

Inicialmente realizou-se a modelização da intervenção com a construção do Modelo Lógico da aplicabilidade do BI Qlik Sense na APS, o que possibilitou a compreensão de sua racionalidade e a relação entre os recursos necessários, as atividades planejadas e os efeitos previstos para sua operacionalização1515 Chen H. Practical program evaluation: assessing and improving planning, implementation, and effectiveness. Thousand Oaks: Sage; 2005.. A modelização também pode contribuir para o monitoramento da intervenção ao fornecer um plano claro de acompanhamento, de forma que os sucessos possam ser reproduzidos e os problemas evitados.

Para a avaliação da ferramenta Qlik Sense foram utilizadas planilhas de dados extraídos de prontuário eletrônico, do SISREG e de uma plataforma oficial de dados de programas assistenciais de complementação de renda federal e municipal (SUBPAV/BF/CFC) de uma Clínica da Família (CF) da CAP 5.2. Bases adicionais foram construídas pelos autores e outras obtidas em formato digital através do Sistema de Informação Ambulatorial (SIA), do TABNET Municipal.

Previamente às análises, alguns dados constantes nas planilhas foram criptografados e substituídos por letras e números, de modo à não identificar locais ou pacientes. A avaliação da ferramenta se deu desde a sua construção, personalização e manuseio, em um conjunto de 10 aplicativos que utilizam planilhas únicas ou combinação de planilhas de dados oriundas de diversos sistemas de informação.

A apreciação normativa foi a estratégia de avaliação da aplicabilidade da ferramenta de BI. A interpretação dos resultados foi individualizada por variável, verificando a qualidade através das dimensões eficiência e otimização, consideradas por Donabedian1616 Donabedian A. The seven pillars of quality. Arch Pathol Lab Med 1990; 114(11):1115-1118. dois dos sete atributos de qualidade1616 Donabedian A. The seven pillars of quality. Arch Pathol Lab Med 1990; 114(11):1115-1118.,1717 Conill EM. Avaliação em saúde: bases conceituais e operacionais. Cad Saude Publica 2011; 27(1):195.. A eficiência, dada como a relação entre os recursos utilizados e os resultados obtidos, refere-se ao alcance do efeito esperado do serviço ou tecnologia em saúde pelo menor custo possível. A otimização é definida pelo balanceamento mais eficiente entre as melhorias obtidas e o custo empregado1818 Frias PG, Costa JMB da S, Figueiró AC, Mendes MFM, Vidal SA. Atributos da Qualidade em Saúde. In: Samico I, Felisberto E, Figueiró AC, Frias PG, organizadores. Avaliação em Saúde: Bases Conceituais e Operacionais. Rio de Janeiro: MedBook; 2010..

A análise não considerou o tempo de construção de cada aplicativo, tendo utilizado somente o tempo do processo e a quantidade de “cliques” do usuário para se chegar ao resultado almejado. A quantidade foi medida através do número de cliques e de modificações necessárias nas planilhas para se chegar à informação.

A análise dos dados foi norteada por variáveis para o gerenciamento das ações na APS: da Gestão (cadastros duplicados entre unidades, dados de devolvidos do SISREG e SIA); do Território (dados da Ficha cadastral do usuário preenchida pelo Agente Comunitário de Saúde (ACS) - Ficha A, dados do Bolsa Família e Cartão Família Carioca); e de Linhas de Cuidado (crianças de 0 a 1 ano, crianças de 1 a 2 anos, diabetes, gestantes, e tuberculose). Este artigo priorizou uma dimensão do Território, a Ficha A, e uma Linha de Cuidado, a de Gestantes.

Campo de Estudo

O município do Rio de Janeiro possuía, pelo último censo do IBGE em 2010, 6.320.446 milhões de pessoas sendo desses, 438.419 pessoas nos territórios de Campo Grande e Guaratiba, área de abrangência da CAP 5.2. Utilizando os dados de cadastrados de setembro de 2019, a mesma área possui 635.140 pessoas cadastradas em unidades de APS com território adscrito. Essa discrepância se dá principalmente pela defasagem do último censo do IBGE. O estudo lançou mão de dados de uma CF desta área programática que conta com 15.146 pessoas cadastradas.

Como o território da AP 5.2 possui áreas descobertas de ESF, deveria ter um maior número populacional em relação aos cadastrados. Após trabalhar o banco de cadastros, foram excluídas 13.073 duplicações entre unidades combinando nome, CPF e CNS para obtenção de um número mais preciso, sabendo que existem pessoas que são cadastradas em mais de uma unidade, pela dificuldade de comunicação entre os prontuários.

Até o final de 2008 a cobertura da ESF era de 3,5% atingindo 70,9% no município no final de 20161919 Soranz D, Pinto LF, Penna GO. Eixos e a Reforma dos Cuidados em Atenção Primária em Saúde (RCAPS) na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Cien Saude Colet 2016; 21(5):1327-1338.. Isto resultou na implantação do prontuário eletrônico do paciente, utilizado a partir de 2009 na maioria das unidades de APS do município, constituindo a principal fonte de dados. Com a mudança de gestão em 2017 houve uma diminuição dessa cobertura, passando a 64,9% em 2018, com redução no número de profissionais na ponta, representando um decréscimo de aproximadamente 1.700 profissionais2020 O'Dwyer G, Graever L, Britto FA, Menezes T, Konder MT. A crise financeira e a saúde: o caso do município do Rio de Janeiro, Brasil. Cien Saude Colet 2019; 24(12):4555-4568..

Roteiro

Foi elaborado um roteiro de avaliação, obedecendo em cada aplicativo, itens de relevância cientifica e epidemiológica no planejamento e gestão das unidades de APS, seguindo todos os passos propostos anteriormente, desde a elaboração do mesmo até a obtenção dos dados finais. A seguir, encontram-se descritos o que foi priorizado na análise das duas variáveis de gestão selecionadas, uma para o Território (Ficha A) e outra para uma Linha de Cuidado (Gestante).

Ficha A

A incompletude no preenchimento das fichas pessoais do prontuário do paciente não só dificultam a leitura de individualização dos dados, como também não atende às determinações recentes que instituem o Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) como documento único do cidadão em todo território nacional2121 Brasil. Decreto no 9.723, de 11 de março de 2019. Altera o Decreto no 9.094, de 17 de julho de 2017, o Decreto no 8.936, de 19 de dezembro de 2016, e o Decreto no 9.492, de 5 setembro de 2018, para instituir o Cadastro de Pessoas Físicas - CPF como instrumento suficiente e substitutivo da apresentação de outros documentos do cidadão no exercício de obrigações e direitos ou na obtenção de benefícios e regulamentar dispositivos da Lei no 13.460, de 26 de junho de 2017. Diário Oficial da União; 2019.. O uso do CPF como identificador permite a interseção entre entes públicos e privados, como por exemplo, o ressarcimento ao SUS pelas operadoras privadas no atendimento de um segurado (Artigo 38 da Lei 9.656, de 1998)2222 Brasil. Lei no 9.656, de 3 de junho de 1998. Dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde. Diário Oficial da União; 1998..

Foram avaliados os cadastros registrados em Ficha A com número de CPF ausente ou incorreto e que tenham registro de planos de saúde. Dessa forma, foi verificada tanto a ausência do dado, quanto a inconsistência do mesmo, como por exemplo, números incompletos.

Gestantes

A existência de intercorrências durante o pré-natal, com consequências para o parto, pode ocorrer pela presença de problemas anteriores à gestação, por exemplo, àqueles relacionados à saúde bucal. Muitos destes problemas podem ser identificados em uma avaliação durante a gestação. Questões relacionadas à orientação à gestante para realização de uma avaliação em saúde bucal e a baixa adesão verificada podem acarretar intercorrências evitáveis no momento do parto2323 Torres DR, Lopes MGM. Saúde bucal no pré-natal: Integralidade sem restrições. In: Dias PRV, Rendeiro MMP, Costa MH, organizadores. Intervenções possíveis no território: práticas em saúde da família no SUS. Rio de Janeiro: Editora UERJ; 2015. p. 167-179..

Na lista de gestantes analisada no período buscou-se identificar as que estavam sem registro de avaliação em saúde bucal, após pelo menos duas consultas de pré-natal. Dessa forma, foi possível verificar sua realização ou não.

O estudo foi submetido e aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) da ENSP/Fiocruz e da SMS do Rio de Janeiro, e atendeu aos preceitos éticos e legais da Resolução n°466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.

Resultados e discussão

Como primeira etapa da avaliação, elaborou-se o Modelo Lógico da aplicabilidade do BI na APS, descrito na Figura 2.

Figura 2
Modelo Lógico de Aplicabilidade do BI na APS.

A construção do Modelo Lógico toma por base a descrição clara da intervenção e de que maneira cada componente contribui para que o processo seja conduzido e seu efeito finalístico alcançado. Em alguns pontos os componentes são complementares, em outros essenciais. Dentre as vantagens da elaboração e visualização do modelo, a principal é a vinculação entre a intervenção em si e seus efeitos, dando a percepção visual dos passos entre a elaboração e os objetivos finalísticos. Nesse sentido, elaborou-se um modelo representativo da intervenção, que nesse estudo é o Modelo Lógico operacional da aplicabilidade do BI para os processos de gestão2424 Champagne F, Brousselle A, Hartz Z, Contandriopoulos A-P. Modelizar as Intervenções. In: Brousselle A, Champagne F, Contandripoulos A-P, organizadores. Avaliação: Conceitos e Métodos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2011.. Esta representação visual permitiu identificar os diferentes componentes da ferramenta de BI, desde os recursos necessários ao seu funcionamento, as principais atividades, e os efeitos de curto, médio e longo prazo2424 Champagne F, Brousselle A, Hartz Z, Contandriopoulos A-P. Modelizar as Intervenções. In: Brousselle A, Champagne F, Contandripoulos A-P, organizadores. Avaliação: Conceitos e Métodos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2011..

O modelo foi validado com atores participantes da intervenção, sendo realizadas adaptações a partir das contribuições de cada um, de forma a aprimorar a compreensão e os objetivos da intervenção, em um processo de elaboração colaborativo2525 Cardoso GCP, Oliveira EA, Casanova AO, Toledo PPS, Santos EM. Participação dos atores na avaliação do Projeto QualiSUS-Rede: reflexões sobre uma experiência de abordagem colaborativa. Saude Debate 2019; 43(120):54-68.. No processo de validação pactuou-se que o principal efeito finalístico do uso da ferramenta de BI seria a melhoria na capacidade de planejamento, monitoramento e avaliação da gestão.

A segunda etapa do estudo compreendeu a utilização da Ferramenta de BI Qlik Sense Cloud. Sua escolha, dentre outras existentes, foi por sua disponibilidade e acessibilidade online, sem necessidade de instalação de softwares ou servidores, e também pela possibilidade de uso da conta gratuita com todas as funcionalidades necessárias.

Em um primeiro acesso, a ferramenta se demonstrou ser bem intuitiva. Ao acessar o endereço da página pode-se escolher o idioma. O português é uma das línguas disponíveis, facilitando as solicitações, embora a maioria das codificações da plataforma seja em inglês, linguagem predominante em tecnologia de informação2626 Sawaya MR. Dicionário de Informática e Internet. São Paulo: Nobel; 1999..

Território/Ficha A

A Head up Display (HUD), a tela principal, como chamada em linguagem de informática, desse aplicativo é um pouco mais complexa, justamente por englobar variáveis do território que compõem a Ficha A. Essas informações são de importância epidemiológica e auxiliam no planejamento das ações. Um exemplo é o fato de uma região específica ainda ter seu esgoto a céu aberto e água não encanada. Nesse sentido, a plataforma possibilita ao clicar nesse filtro específico, identificar as equipes e microáreas com maior quantidade de famílias com esse tipo de problema relacionado ao abastecimento de água e esgoto, sinalizando a necessidade de uma atenção ampliada a esse território, com uma possível prevalência maior de síndromes diarreicas. Esse é só um dos exemplos de visualização do aplicativo de Ficha A. A HUD foi preparada com as seguintes informações: equipe, microárea, plano de saúde, sexo, raça/cor, renda familiar, água, esgoto, lixo, CPF, DNV, CNS, vulnerabilidade, bolsa família, atualização de Ficha A e lista de pacientes.

Linha de Cuidado/Gestantes

A HUD para gestantes segue a mesma lógica: o acesso facilitado a informações relevantes à atenção à gestante, seguindo parâmetros importantes ao seu acompanhamento. A maioria dos parâmetros são determinantes de um bom acompanhamento das mulheres gestantes, reduzindo a probabilidade de complicações materno-infantis. Presentes nos protocolos, os gráficos acompanham a lógica de fácil visualização das informações e listagem de pacientes.

Foi identificada uma pequena lista de pacientes que não foram avaliadas pela Equipe de Saúde Bucal (ESB), após consultas de pré-natal regulares. Isto poderia dever-se a falta de orientação ou ainda pela existência de mitos relativos à esse período específico da vida da mulher2323 Torres DR, Lopes MGM. Saúde bucal no pré-natal: Integralidade sem restrições. In: Dias PRV, Rendeiro MMP, Costa MH, organizadores. Intervenções possíveis no território: práticas em saúde da família no SUS. Rio de Janeiro: Editora UERJ; 2015. p. 167-179..

Foi preparada a HUD com as seguintes informações: Equipe e microáreas, realização dos testes rápidos, periodicidade das visitas domiciliares, avaliação de risco no prontuário, consultas médicas e de enfermagem, início do pré-natal em período ideal, avaliação em saúde bucal, além da listagem dos pacientes.

Como os outros, é possível filtrar nos gráficos a informação desejada e todo o conjunto se modifica de acordo com o filtro clicado. Este recurso é importante para busca ativa focada nas necessidades do serviço.

Análise das potencialidades

Apesar da facilidade no manuseio da ferramenta, algumas informações podem ser retiradas diretamente das planilhas, lançando mão dos filtros nos softwares de tabulação. Dependendo do grau de complexidade das mesmas, pode-se obter de forma simplificada, por exemplo, as listas por áreas e microáreas específicas, apenas aplicando-se o filtro correspondente. Partindo desse modus operandi simplificado e seguindo para obtenção de informações mais complexas, exemplificando, uma listagem por microárea de usuários com atualização cadastral deficitária, os filtros a serem aplicados no tabulador se tornam tão complexos ou praticamente inviáveis de serem aplicados no cotidiano, tornando o uso da ferramenta vantajoso.

Todos os aplicativos têm uma análise de tempo e intervenções necessárias, realizados comparativamente para demonstrar a potencialidade do uso da ferramenta, enquanto auxiliar na gestão. As informações obtidas podem ser melhor visualizadas no Quadro 1.

Quadro 1
Construção dos aplicativos Ficha A e Gestantes.

Inicialmente, avaliados por grandes grupos, foi verificada a obtenção das informações indicadas no roteiro de pesquisa. Através dessa medida foi observada a velocidade na obtenção dos valores que se busca.

Em outros casos, como a aplicação dos filtros entre combinações de tabelas seria bastante avançada, tornou-se necessário um profissional com curso ou domínio técnico avançado no tabulador, inviabilizando a aplicação prática do gestor em saúde para trabalhar com os dados. Nesse caso também, a ferramenta se mostrou eficaz para obtenção das informações, não sendo necessários grandes conhecimentos em informática para o manejo da mesma.

A construção dos aplicativos não foi considerada como tempo de análise, pois o mesmo é realizado uma única vez, sendo necessário apenas a carga de dados para obtenção de informações. Esse processo, apesar de não ser levado em consideração nesse estudo está demonstrado nos Quadros 1 e 2.

Quadro 2
Ensaio comparativo entre as plataformas para Ficha A e Gestantes.

Alguns aplicativos levaram mais tempo que os outros, seja pela complexidade das fórmulas ou pela inexperiência do operador, como foi o caso do aplicativo de gestantes, o primeiro a ser realizado. Os demais, foram mais rápidos, pois, várias fórmulas construídas no primeiro, são reaproveitadas e adaptadas, o que acelera todo o processo.

Os tempos utilizados são médias consideradas, pois nessa etapa não foi coletado o tempo exato da construção, e sim, atribuído em horas, os valores diários. Após a primeira construção, os HUD são adaptados de acordo com as necessidades, com inclusões e exclusões de fórmulas, personalizando as informações.

Também em parte dos roteiros foi possível perceber a potência da plataforma de BI, mesmo não sendo utilizada por um profissional de TI, isso é, sem atingir toda sua capacidade.

A correlação dos métodos tradicionais, com o uso de tabuladores e a plataforma de BI, para a Ficha A e Gestantes pode ser vista no Quadro 2. Alguns ensaios não puderam ser realizados, seja pelo grande volume de dados processados, inviável em um computador comum, ou pelo excesso de combinações. O tabulador utilizado no ensaio foi o Microsoft Excel.

Conforme foram realizados os ensaios, pode-se perceber a potência da plataforma, sendo mais rápido e com menos cliques até se chegar ao objetivo da filtragem. Não foram comparados os resultados para verificação da fidelidade entre os mesmos, por não ser objetivo do estudo, porém em uma rápida visualização, os resultados da plataforma foram mais completos.

Apenas em um ensaio os valores foram aproximados, porém 110% maiores no tabulador do que na plataforma de BI. Outros foram bastante discrepantes como o caso do indicador de Ficha A, fornecendo uma diferença de 1516%, expressando a vantagem de utilização da plataforma de BI.

Quanto ao número de cliques, o resultado é semelhante. Em linhas gerais, os que demandam mais tempo, também necessitam de mais “cliques”, isto é, oferecem dificuldade no uso do tabulador para obtenção das listas.

Dentre os casos limítrofes, destaca-se o da Ficha A, com uma diferença de 2800% de cliques no tabulador em relação aos utilizados na plataforma de BI para se obter o mesmo resultado.

Conforme os resultados comparativos foram se revelando, pode-se então perceber as vantagens do uso da plataforma de BI, não só na visualização das informações como gráficos, mas também na extração das listas para direcionar o trabalho das equipes de saúde da família. Essa dupla visualização permite ao gestor, monitorar os processos de evolução de indicadores.

Considerações finais

As ferramentas de gestão de dados existem como facilitadoras dos processos de trabalho. Com o desenvolvimento da informática e do processamento de dados essas ferramentas estão cada vez mais ao alcance das instituições. Importante ressaltar que o uso de ferramentas de BI otimiza o processo de evolução das práticas através de importantes evidências. A análise da ferramenta de BI utilizada no estudo foi determinante para ilustrar a potência de seu uso sistematizado no âmbito da saúde, principalmente na APS. De acordo com autores, estas evidências podem advir do próprio cotidiano ou da academia, ou ainda mesclando as experiências a fim de obter o melhor resultado possível1212 Ferreira VRS, Najberg E, Ferreira CB, Barbosa NB, Borges C. Inovação em serviços de saúde no Brasil: análise dos casos premiados no Concurso de Inovação na Administração Pública Federal. Rev Adm Publica 2014; 48(5):1207-1227.,1313 Pinto LF, Rocha CMF. Inovações na Atenção Primária em Saúde: o uso de ferramentas de tecnologia de comunicação e informação para apoio à gestão local. Cien Saude Colet 2016; 21(5):1433-1448.,2727 Brum TC. Oportunidades da Aplicação de Ferramentas de gestão na Avaliação de Políticas Públicas: O Caso da Política Nacional de resíduos Sólidos para a Construção Civil [monografia]. Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora; 2013.,2828 Rolim EC. Uso de ferramentas de gestão clínica e de segurança do paciente em uma unidade básica de saúde no distrito federal. CCS 2018; 29(1):79-83..

A aplicação adequada da ferramenta permite a otimização do monitoramento e da gestão de indicadores na APS, tornando-se um facilitador para a geração de informações de qualidade para orientar decisões eficientes pelos gestores, sejam locais ou municipais.

Embora a ferramenta possua fragilidades descritas e analisadas no processo, possui potencialidades, tornando-a viável de acordo com as dimensões de qualidade adotadas. Eficiência, enquanto ferramenta de BI de baixo custo atinge os objetivos traçados para seu uso em relação aos resultados esperados. Além disso, após codificada e com treinamento simples, a ferramenta pode ser manipulada por qualquer pessoa, reduzindo custos de criação e o número profissionais necessários para seu manejo.

Quanto à otimização apresenta versatilidade na sua modelização de acordo com as necessidades do serviço e da gestão e permite a incorporação de novas funcionalidades em versões futuras. Ou seja, apresenta condições apropriadas para a melhoria dos procedimentos e processos de trabalho envolvidos fornecendo informações que sejam responsivas às demandas do território. O estudo apresenta, então, um aspecto pouco explorado na APS do Brasil que é o uso da plataforma de BI para a gestão e aborda a questão da interoperabilidade dos Sistemas de Informação em Saúde (SIS). Contribui ainda para a ampliação dos usos dos sistemas de monitoramento e avaliação na APS. A agilidade em se obter as informações se demonstra peça-chave ao otimizar o tempo dos gestores e dos profissionais da saúde na condução dos processos de trabalho na APS.

A gestão tem espaço para inovações sistematizadas, informadas em evidências científicas possibilitando a expansão do uso da tecnologia no âmbito da saúde. Permite a realização de estudos em profundidade, objetivando análises de dados complexas, que não envolvem grandes servidores de dados ou a exigência de profissionais com expertise em TI.

Para a área de planejamento 5.2, o estudo pode demonstrar o ganho que a Divisão de Informações, controle e avaliação teria, caso utilizasse a plataforma de BI para processamento de dados. O ganho de velocidade de processamento se traduziria em ações mais eficazes no território, com maior facilidade em atingir os objetivos de uma unidade de Atenção Primária. Como o estudo não aplicou a ferramenta para uso direto, isso não pode ser avaliado nesse momento.

Finalizando, ao permitir que se acelere os processos de obtenção de resultados para planejamento, recomenda-se também um estudo longitudinal para verificar a efetividade da intervenção em médio e longo prazo, em conjunto com a estimulação das equipes com as extrações de informações da plataforma.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Jun 2021

Histórico

  • Recebido
    23 Out 2020
  • Aceito
    22 Fev 2021
  • Publicado
    24 Fev 2021
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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