Resumo
Este estudo objetivou estimar a prevalência de Transtornos Mentais Comuns (TMC) em estudantes universitários, analisando a correlação com o uso de internet e com a utilização de estratégias de enfrentamento ante ao isolamento social na pandemia de COVID-19. Trata-se de um estudo transversal, quantitativo, com amostra não probabilística, constituída por 275 estudantes. A coleta de dados foi realizada online, por meio dos instrumentos Self Report Questionnaire-20, Escala de Uso Problemático de Internet e Inventário de Estratégias de Enfrentamento. A análise de dados foi descritiva e inferencial, sendo também realizada uma análise de regressão linear múltipla. A população pesquisada apresentou uma prevalência de TMC de 58,5%, que correlacionou-se positivamente com a frequência de uso de internet, e com a utilização de estratégias de enfrentamento evitativas, baseadas no confronto, orientadas para a busca de suporte social e aceitação de responsabilidade (p<0,05). A presença de TMC e a utilização de estratégias de enfretamento baseadas no confronto foram as variáveis que melhor explicaram o uso problemático de internet (R2=0,33%; p<0,00). A intensa sociabilidade digital deve ser levada em consideração nas ações de cuidado em saúde mental direcionadas aos universitários no contexto da COVID-19.
Palavras-chave
Saúde mental; Internet; Enfrentamento; Estudantes; COVID-19
Introdução
A acelerada e global disseminação do novo tipo de pneumonia – Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) – levou a Organização Mundial de Saúde a declarar situação de pandemia em 11 de março de 2020, bem como a incentivar os países à adoção de diversas medidas para conter a propagação do vírus, entre elas, o isolamento social das populações11 World Health Organization (WHO). Coronavirus disease 2020 (Covid-19). Situation Report - 67. Geneva: WHO; 2020.. Embora tais medidas de isolamento social sejam largamente recomendadas pelas comunidades científicas, revisões sistemáticas e ensaios teórico-reflexivos atuais têm concomitante destacado os seus potenciais impactos negativos na saúde mental22 Stankovska G, Memedi I, Dimitrovski D. Coronavirus COVID-19 Disease, mental Health and Psychosocial Support. Soc Register 2020; 4(2):33-48.,33 Vindegaard N, Benros ME. COVID-19 pandemic and mental health consequences: Systematic review of the current evidence. Brain Behav Immun 2020; 89:531-542.. Nessa direção, também tem sido salientado pelos pesquisadores que os efeitos indiretos da pandemia na saúde mental das populações se tornarão motivo de crescente preocupação, ainda que as insidiosas implicações psicológicas e psiquiátricas, secundárias ao fenômeno, tendam a ser negligenciadas33 Vindegaard N, Benros ME. COVID-19 pandemic and mental health consequences: Systematic review of the current evidence. Brain Behav Immun 2020; 89:531-542.,44 Ornell F, Schuch JB, Sordi AO, Kessler FHP. "Pandemic fear" and COVID-19: mental health burden and strategies. Braz J Psychiatry 2020; 42(3):232-235.. Estas implicações podem ser ainda mais intensas para parcelas populacionais que já apresentavam vulnerabilidades em saúde mental33 Vindegaard N, Benros ME. COVID-19 pandemic and mental health consequences: Systematic review of the current evidence. Brain Behav Immun 2020; 89:531-542.,55 Lancet. Redefining vulnerability in the era of COVID-19. Lancet 2020; 395:1089..
Estudos brasileiros realizados com estudantes universitários, anteriormente a COVID-19, já apontavam que as prevalências de Transtornos Mentais Comuns nesta população, os quais são caracterizados por quadros sintomáticos mistos de ansiedade e depressão, associados a intenso sofrimento psíquico66 Goldberg D, Huxley P. Common Mental Disorders-A bio-social model. Tavistock: Routledge; 1993., foram superiores às prevalências encontradas na população geral77 Gomes CFM, Pereira Júnior RJ, Cardoso JV, Silva DA. Transtornos mentais comuns em estudantes universitários: abordagem epidemiológica sobre vulnerabilidades. SMAD 2020; 16(1):1-8.,88 Graner KM, Cerqueira ATAR. Revisão integrativa: sofrimento psíquico em estudantes universitários e fatores associados. Cien Saude Colet 2019; 24(4):1327-1346.. Estudos recentes realizados com universitários situados no sudeste da China sugeriram a importância da construção de ações em saúde mental voltadas para os universitários ante a pandemia, haja vista os estressores econômicos, efeitos na vida cotidiana e atrasos acadêmicos, que podem atuar impactando ainda mais as necessidades em saúde mental destes estudantes99 Cao W, Fang Z, Hou G, Han M, Xu X, Dong J, Zheng J. The psychological impact of the COVID-19 epidemic on college students in China. Psychiatry Res 2020; 287:112934.,1010 Chang J, Yuan Y, Wang D. Mental health status and its influencing factors among college students during the epidemic of COVID-19. Nan Fang Yi Ke Da Xue Xue Bao 2020; 40(2):171-176..
Tendo em vista que esta é a primeira pandemia que se vive no tempo on-line1111 Ribeiro GL. Medo Global. Boletim n. 5. Cientistas sociais e o coronavírus [Internet]. Anpocs [acessado 2020 jun 19]. Disponível em: http://www.anpocs.com/index.php/ciencias-sociais/destaques/2311-boletim-n-3.
http://www.anpocs.com/index.php/ciencias... , outro aspecto a se considerar se refere às implicações do isolamento social devido à COVID-19 para o uso intensivo da internet1212 Deslandes SF, Coutinho T. O uso intensivo da internet por crianças e adolescentes no contexto da COVID-19 e os riscos para violências autoinflingidas. Cien Saude Colet 2020; 25(Supl. 1):2479-2486.. Embora a sociabilidade digital, prática crescente a partir das medidas de isolamento social, tenha uma função considerada importante para amenizar a falta da sociabilidade presencial, o uso excessivo da internet pode fomentar, concomitantemente, um potencial ansiogênico e a reprodução de um “medo global”, associados a exposição maciça e ao aumento da circulação e da interação nos ambientes digitais1111 Ribeiro GL. Medo Global. Boletim n. 5. Cientistas sociais e o coronavírus [Internet]. Anpocs [acessado 2020 jun 19]. Disponível em: http://www.anpocs.com/index.php/ciencias-sociais/destaques/2311-boletim-n-3.
http://www.anpocs.com/index.php/ciencias... ,1212 Deslandes SF, Coutinho T. O uso intensivo da internet por crianças e adolescentes no contexto da COVID-19 e os riscos para violências autoinflingidas. Cien Saude Colet 2020; 25(Supl. 1):2479-2486.. Nesse sentido, diversos trabalhos realizados na China tem atentado para a correlação entre sofrimento psíquico e a maior exposição às mídias sociais online durante a pandemia, seja considerando a população de universitários1010 Chang J, Yuan Y, Wang D. Mental health status and its influencing factors among college students during the epidemic of COVID-19. Nan Fang Yi Ke Da Xue Xue Bao 2020; 40(2):171-176. e também englobando a população geral e os profissionais de saúde1313 Gao J, Zheng P, Jia Y, Chen H, Mao Y, Chen S, Wang Y, Fu H, Dai J. Mental health problems and social media exposure during COVID-19 outbreak. PloS One 2020; 15(4):e0231924.,1414 Ni MY, Yang L, Leung CM, Li N, Yao XI, Wang Y, Leung GM, Cowling BJ, Liao Q. Mental health, risk factors, and social media use during the COVID-19 epidemic and cordon sanitaire among the community and health professionals in Wuhan, China: Cross-sectional survey. JMIR Ment Health 2020; 7(5):e19009.. No que se refere especificamente à população de universitários, trabalhos realizados anteriormente à pandemia na Índia1515 Gupta A, Khan AM,Rajoura OP, Srivastava S. Internet Addiction and Its Mental Health Correlates Among Undergraduate College Students of a University in North India. J Family Med Prim Care 2018; 7(4):721-727. e nos Estados Unidos1616 Younes F, Halawi G, Jabbour H, Osta NE, Karam L, Hajj A, Khabbaz LR. Internet Addiction and Relationships with Insomnia, Anxiety, Depression, Stress and Self-Esteem in University Students: A Cross-Sectional Designed Study. PLoS One 2016; 11(9):e0161126. constataram uma forte correlação entre problemas de saúde mental e uso intensivo de internet, gerando uma interferência prejudicial na realização de atividades cotidianas.
No atual cenário pandêmico, é possível também que a frequência e a forma como a interação digital está sendo utilizada esteja associada às estratégias de enfrentamento (coping) empregadas pelos universitários. Indo de encontro a patologização individualizante, a perspectiva contextualista no estudo das estratégias de enfrentamento tem buscado compreender a forma como lidamos com uma situação estressante tendo em vista que este é um processo dinâmico, influenciado pelas características do meio em que o indivíduo se insere e pelos recursos que possui, bem como pela capacidade de controle e previsibilidade envolvidas na situação1717 Folkman S, Moskowitz JT. Positive affect and the other side of coping. Am Psychol 2000; 55:647-654.. Uma vez que as distintas estratégias de enfrentamento, tais como o coping focado no problema (exemplificado pela construção de um plano de ação), o coping focado na emoção (orientado para a expressão de emoções), coping de evitamento (baseado em estratégias de fuga e esquiva) e o coping de confronto (como a expressão de hostilidade) dependem do contexto, visando promover a adaptação do sujeito em relação ao seu ambiente1717 Folkman S, Moskowitz JT. Positive affect and the other side of coping. Am Psychol 2000; 55:647-654., precisamos melhor compreender a interação destas estratégias com este cenário contemporâneo de intensa sociabilidade digital.
Estudos que tenham avaliado estes fenômenos – saúde mental, uso de internet e estratégias de enfrentamento –, e suas possíveis associações, são ainda inéditos no contexto brasileiro. Estudá-los, tendo como enfoque os estudantes universitários, torna-se fundamental, haja vista a necessidade de desenvolvimento de ações promocionais, preventivas e assistenciais em saúde mental, visando ao incremento coletivo do processo de enfrentamento das nossas atuais adversidades. Nessa direção, este estudo objetivou estimar a prevalência de Transtornos Mentais Comuns em estudantes universitários, analisando a correlação com o uso de internet e com a utilização de estratégias de enfrentamento ante ao isolamento social na pandemia de COVID-19.
Método
Participantes
O presente estudo foi realizado em um Centro Universitário da cidade de Juiz de Fora, município brasileiro de médio porte, situado no estado de Minas Gerais, considerado como polo macrorregional. A amostra foi não probabilística, por conveniência, constituída de 275 estudantes com idade acima de 17 anos, de ambos os sexos.
Foram convidados à participação todos os universitários da referida instituição. A maior parte dos universitários participantes, 52,7% do total, cursava Psicologia, e a pesquisa também contou com a participação de universitários da Engenharia Elétrica (13,5%), Arquitetura (12%), Filosofia (7,6%), Ciências Biológicas (5,5%), Engenharia de Software (2,9%), Sistema de Informação (2,2%), Administração (1,8%) e Marketing (1,8%). Quanto a distribuição por turno, 52,4% eram de cursos noturnos, 39,6% de cursos matutinos e 8% eram de cursos integrais. Houve maior participação de universitários do primeiro período, os quais totalizaram 16,7% da amostra, sendo que 6,9% eram do segundo período, 11,6% do terceiro, 8,7% do quarto, 8,7% do quinto, 9,8% do sexto, 9,8% do sétimo, 8% do oitavo, 9,8% do nono, e 9,8% do décimo período.
Instrumentos
Além do questionário sociodemográfico, a pesquisa foi composta por cinco seções, as quais avaliaram: (1) Saúde mental; (2) Uso de internet; (3) Estratégias de enfrentamento; (4) Uso de serviços e percepção de necessidade de ajuda para lidar com problemas de saúde mental; (5) Indicadores de complexidade social. Todas as cinco seções foram direcionadas para os últimos 30 dias ou se referiram ao período de isolamento social durante a pandemia, que na ocasião da coleta de dados estava em seu segundo mês, completando cerca de 40 a 60 dias. Os instrumentos e questionários utilizados foram descritos a seguir.
O instrumento para avaliar a saúde mental foi o Self Report Questionnaire-20 (SRQ-20), que destina-se ao rastreamento de transtornos do humor, de ansiedade e de somatização, conhecidos como Transtornos Mentais Comuns (TMC)1818 Gonçalves DM. Self-Reporting Questionnaire (SRQ). In: Gorenstein C, Wang YP, Hungerbühler I, organizadores. Instrumentos de avaliação em saúde mental. Porto Alegre: Artmed; 2016. p. 202-210. e caracterizados pela presença de sintomas como insônia, fadiga, irritabilidade, esquecimento, dificuldade de concentração e queixas somáticas66 Goldberg D, Huxley P. Common Mental Disorders-A bio-social model. Tavistock: Routledge; 1993.. Validado no contexto brasileiro, é um instrumento de autorresposta, de fácil compreensão, de muito baixo custo e com alto poder discriminante, ou seja, com boa capacidade de diferenciar corretamente casos de não casos. Possui 20 itens com respostas do tipo sim/não, referindo-se aos últimos 30 dias. Cada resposta afirmativa pontua com o valor 1 para compor o escore final por meio do somatório destes valores. Os escores obtidos estão relacionados com a probabilidade de presença de TMC, sendo que variam de 0 (nenhuma) a 20 (extrema probabilidade). Considera-se o escore de 8 ou mais como possível caso de TMC, e de 7 ou menos como um caso não suspeito1818 Gonçalves DM. Self-Reporting Questionnaire (SRQ). In: Gorenstein C, Wang YP, Hungerbühler I, organizadores. Instrumentos de avaliação em saúde mental. Porto Alegre: Artmed; 2016. p. 202-210..
Construída originalmente no idioma espanhol e validada no Brasil por Fonsêca et al.1919 Fonsêca PN, Couto TN, Melo CCV, Machado MOS, Filho JSF. Escala de uso problemático da internet em estudantes universitários: evidências de validade e precisão. Cien Psicol 2020; 12(2):223-230., a segunda seção utilizou a Escala de Uso Problemático de Internet, que é uma medida de rastreamento que avalia a intensidade do uso de internet nos últimos 30 dias. É composta por 8 itens, que podem ser respondidos em uma escala tipo Likert com cinco opções de respostas, variando de 0 “discordo totalmente” a 4 “concordo totalmente”. A escala apresenta estrutura unifatorial, e a interpretação de seus resultados é realizada com base no fator geral, que pode ser utilizado para comparar grupos e/ou relacionar com outros construtos1919 Fonsêca PN, Couto TN, Melo CCV, Machado MOS, Filho JSF. Escala de uso problemático da internet em estudantes universitários: evidências de validade e precisão. Cien Psicol 2020; 12(2):223-230..
Criado por Lazarus e Folkman2020 Lazarus R, Folkman S. Stress appraisal and coping. Nova York: Springer; 1984. em 1984, na terceira seção foi utilizado o Inventário de Estratégias de Enfrentamento, que avalia pensamentos e ações que as pessoas utilizam para lidar com demandas internas ou externas de um evento estressante específico. No presente estudo, o inventário foi direcionado aos participantes para perguntá-los acerca de suas estratégias para lidar com o isolamento social em decorrência à pandemia do novo coronavírus. O Inventário de Estratégias de Enfrentamento é composto por 66 itens que incluem pensamentos e ações, e cuja intensidade é medida por meio de uma escala que varia de 0 (não utiliza) a 3 pontos (utiliza em grande quantidade). Após a verificação da confiabilidade e validade à realidade brasileira, Savóia et al.2121 Savóia MG, Santana PR, Mejias NP. Adaptação do inventário de Estratégias de Coping de Folkman e Lazarus para o português. Psicol USP 1996; 7(1-2):183-201. reorganizaram os itens que compõem o inventário em oito fatores, sendo eles: (1) confronto, (2) afastamento, (3) autocontrole, (4) suporte social, (5) aceitação de responsabilidade, (6) fuga e esquiva, (7) resolução de problemas e (8) reavaliação positiva. Para avaliar as respostas ao inventário, os escores relativos descrevem a proporção de esforços representados pelos diferentes tipos de estratégia e são expressos em porcentagem de 0 a 100. Um escore alto significa que a pessoa utilizou mais dessa estratégia do que as outras. Para o escore bruto, são somados os itens de cada fator que corresponde a um determinado tipo de estratégia, obtendo-se um sumário das respostas dos sujeitos a cada tipo de estratégia utilizada2222 Savoia MG. Inventário de Estratégias de Coping. In: Gorenstein C, Wang YP, Hungerbühler I, organizadores. Instrumentos de avaliação em saúde mental. Porto Alegre: Artmed; 2016. p. 978-986..
Para a quarta seção uma questão foi extraída do Composite International Diagnostic Interview (CIDI), instrumento criado pela Organização de Mundial de Saúde2323 Viana MC. Composite International Diagnostic Interview (CIDI). In: Gorenstein C, Wang YP, Hungerbühler I, organizadores. Instrumentos de avaliação em saúde mental. Porto Alegre: Artmed; 2016. p. 161-176., na qual os participantes foram indagados se sentiram necessidade de ajuda para lidar com suas emoções nos últimos 30 dias.
A quinta seção, que envolveu uma avaliação de indicadores de complexidade social, foi composta por duas perguntas. Uma delas foi relacionada a vivência de necessidades socioeconômicas durante a pandemia (tais como desemprego, perda de moradia) e outra relacionada ao sofrimento de maus-tratos por alguém importante nos últimos 30 dias, abrangendo violência física, sexual, patrimonial e psicológica.
Procedimentos
Todo o processo de coleta de dados da presente pesquisa foi realizado online. Após obtenção de aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa, iniciou-se um estudo piloto, a fim de avaliar a viabilidade da pesquisa e a interface dos instrumentos utilizados na plataforma Google Forms, o qual contou com 24 participantes. Tendo-se averiguado a viabilidade da pesquisa mediante o estudo piloto, iniciou-se a coleta de dados em 27 de abril de 2020, finalizando em 15 de maio de 2020. Uma vez que no Brasil as medidas de isolamento social começaram a ser implementadas por diversos estados a partir da segunda quinzena de março de 2020, o presente estudo abarcou o segundo mês de isolamento social no país, o qual atingiu índice máximo de isolamento de 54,4%2424 In Loco. Mapa brasileiro da COVID-19. Índice de isolamento social [Internet]. [acessado 2020 jun 19]. Disponível em: https://mapabrasileirodacovid.inloco.com.br/pt/?hsCtaTracking=68943485-8e65-4d6f-8ac0-af7c3ce710a2%7C45448575-c1a6-42c8-86d9c68a42fa3fcc.
https://mapabrasileirodacovid.inloco.com... .
A coleta de dados ocorreu por meio da divulgação do endereço eletrônico da pesquisa entre professores e coordenadores dos cursos do Centro Universitário participante. Os professores e coordenadores dos cursos foram orientados pela equipe de pesquisa a solicitarem a participação dos alunos durante as webconferências realizadas no período da pandemia, garantindo a confidencialidade e o sigilo das respostas, bem como a voluntariedade da participação dos estudantes universitários. O tempo médio de resposta à pesquisa foi de 16 minutos, incluindo a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, também disponibilizado online.
Esse estudo teve natureza descritiva e quantitativa, com delineamento do tipo correlacional. As respostas aos instrumentos e questionários utilizados foram levantadas e tabuladas em banco de dados. A análise de dados descritiva envolveu frequências absolutas e relativas, bem como medidas de tendência central e propriedades da distribuição para as variáveis de interesse. A análise inferencial envolveu medidas correlacionais entre as variáveis, buscando associações entre TMC e uso de internet, e também entre TMC e estratégias de enfrentamento. A comparação entre grupos ocorreu por meio de teste de diferença de média para amostras independentes. Além disso, foi realizada uma análise de regressão linear múltipla (stepwise) com o objetivo de verificar quais variáveis melhor explicariam a variação do escore de uso problemático de internet para a presente amostra. A maior probabilidade de presença de TMC e os oito fatores da escala de estratégia de enfrentamento foram incluídos como variáveis independentes para a variação do escore uso problemático de internet (variável dependente). Todas as análises foram conduzidas no programa SPSS for Windows (Versão 20.0).
Resultados
A Tabela 1 apresenta o perfil sociodemográfico da amostra, em que se destaca uma majoritária participação de universitárias do sexo feminino, com idade até 21 anos, de cor branca, solteira, com renda familiar superior a R$ 3.000,00 e que residem com a família.
No segundo mês de isolamento social em decorrência à COVID-19, momento em que esta pesquisa foi realizada, 58,5% dos estudantes universitários participantes deste estudo apresentaram intenso sofrimento psíquico, proporção que indica uma alta taxa de prevalência de TMC na referida amostra, segundo o instrumento utilizado. As respostas afirmativas por grupos de sintomas rastreados no SRQ-20 são apresentadas na Tabela 2.
Prevalência de Transtornos Mentais Comuns e proporções de respostas afirmativas das questões do Self Report Questionnaire-20 dos estudantes universitários no segundo mês de isolamento social.
Como indicado na Tabela 3, há uma diferença estatisticamente significativa entre os estudantes universitários com possível ausência de TMC e com possível presença de TMC quanto à média do escore obtido na escala que avaliou uso problemático de internet. Evidenciou-se que aqueles universitários com possível presença de TMC relataram um uso mais intensivo de internet. Deste modo, na comparação entre os dois grupos, os universitários com maior sofrimento psíquico afirmaram vivenciar maior declínio educacional, laboral, diminuição do sono e da qualidade das relações interpessoais, associados a forma com que usam a internet.
Associação entre Transtornos Mentais Comuns e uso problemático de internet em universitários no segundo mês de isolamento social.
Com relação as formas de enfrentamento para lidar com o isolamento social, os escores relativos revelaram que a estratégia de fuga e esquiva foi a mais utilizada por toda a amostra de universitários participantes, pois 34,5% deles denotaram utilização em grande quantidade desta estratégia. Ainda considerando todos os universitários participantes, outras estratégias de enfrentamento bastante utilizadas foram as de autocontrole (35,6%), de suporte social (32,7%) e de afastamento (31,5%). Deste modo, com exceção da estratégia de suporte social, que denota uma partilha do significado emocional do evento estressor com outras pessoas, as demais estratégias de enfretamento, predominantemente utilizadas pelos universitários, foram voltadas para se criar uma distância emocional da situação, sendo caracterizadas por um estilo evitativo. No que se refere a associação entre o grau de sofrimento psíquico dos universitários participantes e as estratégias de enfrentamento por eles utilizadas, diferenças estatisticamente significativas foram observadas ao serem comparadas as médias do escore bruto obtidas para os universitários com possível ausência/presença de TMC (Tabela 4). Os universitários com possível ausência de TMC utilizaram mais frequentemente as estratégias de enfrentamento baseadas na reavaliação positiva e na resolução de problemas, buscando extrair significado de suas experiências pessoais, novas aprendizagens, bem como a mobilização de recursos para maior adaptação, sendo orientados para a construção de um plano de ação ou propósito a ser realizado. Os universitários com sofrimento psíquico mais intenso utilizaram mais frequentemente as estratégias de enfrentamento evitativas, tais como fuga e esquiva e afastamento. Além disso, recorreram mais frequentemente à expressão de hostilidade, com uso de enfrentamento baseado no confronto; buscaram maior partilha das emoções vivenciadas, haja vista o enfretamento baseado no suporte social; bem como a aceitação de responsabilidade, denotando certa submissão à situação.
Associação entre Transtornos Mentais Comuns e estratégias de enfrentamento dos universitários no segundo mês de isolamento social.
Além desses resultados, a análise de regressão linear múltipla (stepwise) possibilitou verificar quais variáveis, dentre aquelas que foram incluídas no presente estudo, melhor explicariam o uso problemático de internet (Tabela 5). Constatou-se que a maior probabilidade da presença de TMC e a maior utilização estratégias de enfrentamento baseadas no confronto foram as variáveis que melhor explicaram a avaliação de uso problemático de internet para os participantes desta pesquisa. Percebeu-se ainda que a associação entre essas variáveis e o uso problemático de internet (variável dependente) foi moderada (R múltiplo =0,57). Juntas, a maior probabilidade de TMC e a maior utilização de estratégias de enfretamento baseadas no confronto, explicaram 33% da variância total da avaliação de uso problemático de internet na amostra pesquisada.
Análise de regressão linear múltipla com as variáveis com maior poder explicativo para o escore de uso problemático de internet.
Quanto ao uso de serviços para lidar com a saúde mental nos últimos 30 dias, destacou-se que relevante parcela dos estudantes universitários sentiu necessidade de ajuda profissional para lidar com suas emoções, mas não procurou por tal ajuda. Esta lacuna assistencial entre a necessidade percebida e a utilização de serviços foi maior com relação aos serviços de saúde mental (39,6%), serviços disponibilizados via internet (19,6%), suporte em instituições religiosas (18,9%), suporte via contato telefônico (17,5%) e em hospitais gerais (10,9%).
No que se refere a complexidade social, 30,9% dos participantes relataram ter vivido alguma necessidade socioeconômica nos últimos 30 dias. Já com relação a vivência de situação de violência, 11,3% relataram ter vivido violência psicológica, como ameaças, humilhações, chantagem, cobranças de comportamento, discriminação, exploração, crítica pelo desempenho sexual. Constatou-se que entre as mulheres universitárias, 14% da amostra relatou ter vivenciado violência psicológica, enquanto que entre os homens esta frequência foi consideravelmente menor (5%).
Discussão
Baseado em um método de pesquisa quantitativo, do tipo descritivo e correlacional, este estudo realizou um levantamento acerca das condições de saúde mental, uso de internet e estratégias de enfrentamento utilizadas por estudantes universitários para lidarem com o isolamento social em decorrência à pandemia de COVID-19. A análise dos resultados constatou uma alta prevalência de TMC na população pesquisada, a qual se apresentou correlacionada à maior frequência de uso de internet. Além disso, houve diferenças significativas na utilização das estratégias de enfrentamento de acordo com o grau de sofrimento psíquico vivenciado pelos universitários.
No que concerne à prevalência de TMC em estudantes universitários, a fim de viabilizar a comparabilidade dos achados é importante considerarmos os resultados obtidos em outras pesquisas que, assim como este estudo, também utilizaram o SRQ-20 como instrumento de avaliação. Revisão integrativa da literatura realizada por Graner e Cerqueira88 Graner KM, Cerqueira ATAR. Revisão integrativa: sofrimento psíquico em estudantes universitários e fatores associados. Cien Saude Colet 2019; 24(4):1327-1346. indicou uma variação de prevalência de TMC em estudantes universitários de 33,7% a 49,1%. Especificamente quanto as pesquisas com universitários brasileiros, as mesmas autoras constataram uma variação de 33,7% a 44,9% de prevalência. Estes achados evidenciam que a prevalência encontrada no presente estudo (58,5%) é superior às estimativas relatadas na literatura, segundo referido estudo de revisão88 Graner KM, Cerqueira ATAR. Revisão integrativa: sofrimento psíquico em estudantes universitários e fatores associados. Cien Saude Colet 2019; 24(4):1327-1346.. No Brasil, prevalência de sofrimento psíquico próxima a este índice foi recentemente encontrada em estudo que enfocou acadêmicos de enfermagem na fase final e profissionalizante de formação (55,3%)2525 Oliveira EB, Zeitoune RC, Gallasch CH, Pérez Júnior EF, Silva AV, Souza TC. Transtornos mentais comuns em acadêmicos de enfermagem do ciclo profissionalizante. Rev Bras Enferm 2020; 73(1):e20180154.. Em outro estudo brasileiro realizado com acadêmicos de medicina foi ainda possível constatar que a prevalência de TMC variou de 35,8% a 51,5% entre o início e o final do semestre sendo, portanto, suscetível de mitigação em um curto intervalo de tempo2626 Ferreira CMG, Kluthcovsky ACGC, Cordeiro TMG. Prevalência de Transtornos Mentais Comuns e Fatores Associados em Estudantes de Medicina: um Estudo Comparativo. Rev Bras Educ Med 2016; 40(2):268-277..
É possível que os nossos achados de prevalência de TMC tenham sido influenciados pelo período em que a pesquisa foi conduzida, o qual abrangeu o segundo mês de isolamento social no Brasil. Nessa direção, os resultados encontrados podem ter retratado um período da pandemia em que as emoções negativas haviam atingido um platô para aqueles estudantes que vivenciavam maior sofrimento psíquico e dificuldades de adaptação2727 Chi X, Becker B, Yu Q, Willeit P, Jiao C, Huang L, Hossain MM, Grabovac I, Yeung A, Lin J, Veronese N, Wang J, Zhou X, Doig SR, Liu X, Carvalho AF, Yang L, Xiao T, Zou L, Fusar-Poli P, Solmi M. Prevalence and Psychosocial Correlates of Mental Health Outcomes Among Chinese College Students During the Corona-virus Disease (COVID19) Pandemic. Front Psychiatry 2020; 11:803.. Tendências semelhantes foram relatadas por Chi et al.2727 Chi X, Becker B, Yu Q, Willeit P, Jiao C, Huang L, Hossain MM, Grabovac I, Yeung A, Lin J, Veronese N, Wang J, Zhou X, Doig SR, Liu X, Carvalho AF, Yang L, Xiao T, Zou L, Fusar-Poli P, Solmi M. Prevalence and Psychosocial Correlates of Mental Health Outcomes Among Chinese College Students During the Corona-virus Disease (COVID19) Pandemic. Front Psychiatry 2020; 11:803., que realizaram um levantamento nacional acerca das condições de saúde mental de universitários chineses também no segundo mês de isolamento social do país. Os impactos psicológicos da pandemia de COVID-19 na população de estudantes universitários têm sido consideráveis, sobretudo no que se refere aos agravos na sintomatologia de ansiedade e depressão, como evidenciaram estudos realizados na China99 Cao W, Fang Z, Hou G, Han M, Xu X, Dong J, Zheng J. The psychological impact of the COVID-19 epidemic on college students in China. Psychiatry Res 2020; 287:112934.,1010 Chang J, Yuan Y, Wang D. Mental health status and its influencing factors among college students during the epidemic of COVID-19. Nan Fang Yi Ke Da Xue Xue Bao 2020; 40(2):171-176.,2727 Chi X, Becker B, Yu Q, Willeit P, Jiao C, Huang L, Hossain MM, Grabovac I, Yeung A, Lin J, Veronese N, Wang J, Zhou X, Doig SR, Liu X, Carvalho AF, Yang L, Xiao T, Zou L, Fusar-Poli P, Solmi M. Prevalence and Psychosocial Correlates of Mental Health Outcomes Among Chinese College Students During the Corona-virus Disease (COVID19) Pandemic. Front Psychiatry 2020; 11:803.,2828 Li HY, Cao H, Leung DYP, Mak YW. The Psychological Impacts of a COVID-19 Outbreak on College Students in China: A Longitudinal Study. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(11):3933., Estados Unidos2929 Son C, Hegde S, Smith A, Wang X, Sasangohar F. Effects of COVID-19 on College Students' Mental Health in the United States: Interview Survey Study. J Med Internet Res 2020; 22(9):e21279.,3030 Wang X, Hegde S, Son C, Keller B, Smith A, Sasangohar F. Investigating Mental Health of US College Students During the COVID-19 Pandemic: Cross-Sectional Survey Study. J Med Internet Res 2020; 22(9):e22817., Etiópia3131 Aylie NS, Mekonen MA, Mekuria RM. The psychological impacts of COVID-19 pandemic among university students in Bench-Sheko Zone, South-west Ethiopia: a community-based cross-sectional study. Psychol Res Behav Manag 2020; 13:813-821. e Polônia3232 Debowska A, Horeczy B, Boduszek, Dolinski D. A repeated cross-sectional survey assessing university students' stress, depression, anxiety, and suicidality in the early stages of the COVID-19 pandemic in Poland. Psychol Med 2020; 1-4..
É importante ressaltar que o sofrimento psíquico de maior intensidade pode se constituir como a expressão de um processo de recuperação do sujeito, sintomatologia vivenciada na tentativa de se reestabelecer e instaurar uma nova normatividade ante aos eventos adversos da vida3333 Canguilhem G. O normal e o patológico. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009.. A conceituação de TMC, enquanto constructo biopsicossocial, reflete a maneira pela qual os eventos de vida podem desencadear episódios de maior sofrimento psíquico, enfatizando a determinação dos fatores ambientais, que influenciarão não somente a vulnerabilidade dos sujeitos como também o seu processo de recuperação66 Goldberg D, Huxley P. Common Mental Disorders-A bio-social model. Tavistock: Routledge; 1993.. Ao avaliar a associação entre TMC e uso de internet em tempos de pandemia de COVID-19, este estudo considerou a influência do ambiente virtual na saúde mental, do ciberespaço, para além dos fatores ambientais em geral, visto que a sociabilidade digital via internet se tornou amplamente necessária para lidar com o distanciamento físico, seja para desempenhar atividades de educação, trabalho ou lazer.
A questão pujante, assinalada por este estudo, é que ante a correlação positiva entre TMC e a intensidade de uso de internet pelos universitários, a frequência com que a sociabilidade digital tem sido praticada, bem como a sua função na vida destes estudantes, podem atuar como fatores que contribuem para a manutenção do sofrimento psíquico, concorrendo com o processo de recuperação destes sujeitos. É ainda necessária maior especificação na literatura quanto as diversas funcionalidades da internet e sua associação com o sofrimento psíquico, em determinadas atividades online, e não com seu uso generalizado3434 Fernandes B, Maia BR, Pontes HM. Adição à internet ou uso problemático da internet? Qual dos termos usar? Psicol USP 2019; 30:190020., embora se destaque a correlação entre uso problemático e as redes sociais3535 Kircaburun K, Alhabash S, Tosuntas SB, Griffiths MD. Uses and gratifications of problematic social media use among university students: A simultaneous examination of the Big Five of personality traits, social media platforms, and social media use motives. Int J Mental Health Addiction 2020; 18:525-547., sobretudo para atividades de lazer3636 Gao L, Gan Y, Whittal A, Lippke S. Problematic Internet Use and Perceived Quality of Life: Findings from a Cross-Sectional Study Investigating Work-Time and Leisure-Time Internet Use. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(11):4056.. Contudo, a Escala de Uso Problemático de Internet, empregada nesta pesquisa, ainda que possibilite identificar a preferência pela interação online em detrimento às interações sociais usuais e outras atividades da vida diária, não viabiliza completa especificação acerca de quais atividades realizadas online geram prejuízos à vida do sujeito respondente.
Em razão da correlação positiva entre TMC e determinadas estratégias de enfrentamento para lidar com a pandemia, no presente estudo, o uso intensivo de internet pode ter cumprido a função de promover um certo “escapismo”3737 Wan C, Chiou W. Psychological motives and online games addiction: a test of flow theory and humanistic needs theory for Taiwanese adolescents. CyberPsychol Behav 2006; 9(3):317-324., refletido nas estratégias de enfrentamento de fuga e esquiva; de tentativa de autorregulação do humor3838 Caplan SE. Theory and measurement of generalized problematic internet use: a two-step approach. Computers Human Behav 2010; 26(5):1089-1097., indicado pelas estratégias de confronto; além de se configurar como busca de suporte social3939 Tokunaga RS. Perspectives on internet addiction, problematic internet use, and deficient self-regulation: contributions of communication research. Annals Int Communication Assoc 2015; 39(1):131-161., para lidar com o isolamento. Embora estas estratégias de enfrentamento não sejam necessariamente patológicas, uma vez potencializadas pelo intenso uso de internet – forma de sociabilidade crescente e altamente difundida para se lidar com a pandemia de COVID-19 –, tais hábitos podem se tornar, insidiosamente, difíceis de quebrar e, em um ciclo vicioso, contribuir para a manutenção do sofrimento psíquico, sobretudo em sujeitos que estejam vulneráveis.
Durante o período de isolamento social em decorrência à COVID-19, houve um aumento acentuado do uso de internet para interação em mídias sociais, acesso a jogos e pornografia4040 Dubey MJ, Ghosh R, Chatterjee S, Biswas P, Chatter-gee S, Dubey S. COVID19 and addiction. Diabetes Metab Syndr 2020; 14(5):817-823.,4141 Király O, Potenza MN, Stein DJ, King DL, Hodgins DC, Saunders JB, Griffiths MD, Gjoneska B, Billieux J, Brand M, Abbott MW, Chamberlain SR, Corazza O, Burkauskas J, Sales CMD, Montag C, Lochner C, Grünblatt E, Wegmann E, Martinotti G, Lee HK, Rumpf H-J, Castro-Calvo J, Rahimi-Movaghar A, Higuchi S, Menchon JM, Zohar J, Pellegrini L, Walitza S, Fineberg NA, Demetrovics Z. Preventing problematic internet use during the COVID-19 pandemic: Consensus guidance. Compr Psychiatry 2020; 100:152180.. Especialistas têm endossado que o envolvimento excessivo em tais atividades online durante a pandemia pode se tornar difícil de controlar e gradativamente adquirir centralidade na vida daquelas pessoas que estejam vulneráveis, desenvolvendo a sintomatologia de comportamentos aditivos4040 Dubey MJ, Ghosh R, Chatterjee S, Biswas P, Chatter-gee S, Dubey S. COVID19 and addiction. Diabetes Metab Syndr 2020; 14(5):817-823.
41 Király O, Potenza MN, Stein DJ, King DL, Hodgins DC, Saunders JB, Griffiths MD, Gjoneska B, Billieux J, Brand M, Abbott MW, Chamberlain SR, Corazza O, Burkauskas J, Sales CMD, Montag C, Lochner C, Grünblatt E, Wegmann E, Martinotti G, Lee HK, Rumpf H-J, Castro-Calvo J, Rahimi-Movaghar A, Higuchi S, Menchon JM, Zohar J, Pellegrini L, Walitza S, Fineberg NA, Demetrovics Z. Preventing problematic internet use during the COVID-19 pandemic: Consensus guidance. Compr Psychiatry 2020; 100:152180.
42 Fineberg NA, Demetrovics Z, Stein DJ, Ioannidis K, Potenza MN, Grünblatt E, Brand M, Billieux J, Carmi L, King DL, Grant JE, Yücel M, Dell'Osso B, Rumpf HJ, Hall N, Hollander E, Goudriaan A, Menchon J, Zohar J, Burkauskas J, Martinotti G, Van Ameringen M, Corazza O, Pallanti S, COST Action Network, Chamberlain SR. Manifesto for a European research network into problematic usage of the internet. Eur Neuropsychopharmacol 2018; 28(11):1232-1246.-4343 Peeters M, Koning I, Lemmens J, Eijnden, R. Normative, passionate, or problematic? Identification of adolescent gamer subtypes over time. J Behav Addict 2019; 8(3):574-585.. Para além dos efeitos do uso intensivo de internet na saúde mental e na perda de qualidade de vida, amplamente reportados3636 Gao L, Gan Y, Whittal A, Lippke S. Problematic Internet Use and Perceived Quality of Life: Findings from a Cross-Sectional Study Investigating Work-Time and Leisure-Time Internet Use. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(11):4056.,4444 Balhara YPS, Ðoric A, Stevanovic D, Knez R, Singh S, Chowdhury MRR, Kafali HY, Sharma P, Vally Z, Vu TV, Arya S, Mahendru A, Ransing R, Erzin G, Le H. Correlates of problematic internet use among college and university students in eight countries: An international cross-sectional study. Asian J Psychiatr 2019; 45:113-120.,4545 Poorolajal J, Ahmadpoor J, Mohammadi Y, Soltanian AR, Asghari SZ, Mazloumi E. Prevalence of problematic internet use disorder and associated risk factors and complications among Iranian university students: a national survey. Health Promot Perspect 2019; 9(3):207-213., há ainda de se considerar os impactos na diminuição das atividades físicas e mudanças prejudiciais nos hábitos alimentares, que consequentemente contribuem para agravar condições de saúde como obesidade e diabetes4646 Dubey S, Biswas P, Ghosh R, Chatterjee S, Dubey MJ, Chatterjee S, Lahiri D, Lavie CJ. Psychosocial impact of COVID-19. Diabetes Metab Syndr 2020; 14(5):779-788.,4747 Ghosh R, Dubey MJ, Chatterjee S, Dubey S. Impact of COVID-19 on children: special focus on psychosocial aspect. Minerva Pediatr 2020; 72(3):226-235..
Confirmando as tendências apontadas por pesquisadores4848 Karmakar S, Sanchari D. Evaluating the impact of covid-19 on cyberbullying through bayesian trend analysis. In: Proceedings of the European Interdisciplinary Cybersecurity Conference (EICC). Nova York: EICC; 2020., estudo realizado com universitários indianos constatou um aumento significativo na suscetibilidade ao cyberbullying durante a pandemia de COVID-19, o qual se mostrou associado ao aumento do uso de mídias sociais e de atividades de jogos online4949 Jain O, Gupta M, Satam S, Panda S. Has the COVID-19 pandemic affected the susceptibility to cyberbullying in India? Comput Human Behav 2020; 2:10029.. Uma vez que no presente estudo a análise de regressão linear múltipla evidenciou o sofrimento psíquico e as estratégias de enfretamento baseadas no confronto enquanto variáveis com maior poder explicativo acerca do uso problemático de internet, questiona-se se tal associação atuaria fomentando a expressão de hostilidade nos ambientes de interação digital, como forma de escape e regulação do humor para lidar com o estresse envolvido na atual crise sanitária, aumentando a probabilidade de ocorrência do cyberbullying.
Neste cenário adverso que a todos atravessa, o presente estudo também revelou que os estudantes universitários com possível ausência de TMC e com uso menos frequente de internet apresentaram maior engajamento em estratégias de enfrentamento orientadas para a reavaliação positiva e para a resolução de problemas. Tais achados denotam que, a fim de lidar com o isolamento social ante à COVID-19, estes estudantes buscaram, de forma mais pronunciada, a atribuição de um significado pessoal e construtivo para a experiência vivenciada, associada a um senso de direção e intencionalidade sobre como poderiam agir. A percepção de uma vida significativa, permeada de sentido e propósito, tem sido reportada por estudos atuais como fator que promove bem-estar subjetivo e saúde mental em face ao enfrentamento da pandemia de COVID-19, como evidenciado por pesquisa realizada com universitárias na Turquia5050 Arslan G, Yildirim M, Karatas Z, Kabasakal Z, Kilinç M. Meaningful Living to Promote Complete Mental Health Among University Students in the Context of the COVID-19 Pandemic. Int J Ment Health Addict 2020; 1-13. e também com população geral na Alemanha e na Áustria5151 Schnell T, Krampe H. Meaning in Life and Self-Control Buffer Stress in Times of COVID-19: Moderating and Mediating Effects With Regard to Mental Distress. Front Psychiatry 2020; 11:582352.. É ainda necessário melhor compreender como a fragilização de significado existencial pode ser acentuada pelo uso exacerbado de internet ou se tal uso, quando feito de forma intensiva, emerge como um mecanismo de escape para aqueles que já vivenciavam uma perda de sentido de vida, contribuindo para o sofrimento psíquico.
Finalmente, a pandemia de COVID-19 coexiste com uma época em que a forma de interação social vem passando por mudanças sem precedentes na história, pois além de se tornar predominantemente online é atravessada pelo modus operandi imposto pelas mídias sociais, afetando sobretudo a subjetividade de adolescentes e adultos jovens. A despeito das novas potencialidades de interconexão mediadas pela internet, tais como as mídias participativas e as práticas colaborativas online, impera a dominação das empresas e a lógica de mercado, facilitada pela acumulação de dados sobre os internautas e guiada pela busca do máximo ganho publicitário5252 Dadot P, Lawal C. Comum: Ensaio sobre a revolução no século XXI. São Paulo: Boitempo; 2017.. Se a lógica de mercado propagada na internet impacta a esfera cultural, educacional, afetiva, cognitiva e relacional5252 Dadot P, Lawal C. Comum: Ensaio sobre a revolução no século XXI. São Paulo: Boitempo; 2017., é possível pressupor que ela tem implicações também para a subjetividade e para a saúde mental dos internautas, posto que as pessoas são estimuladas a cada vez mais se tornarem “empresas de si mesmo” no ambiente virtual, valorizando a competição em detrimento à cooperação.
Os resultados deste estudo devem ser considerados de forma circunstanciada, haja vista suas limitações. Primeiramente, trata-se de uma pesquisa transversal, não sendo possível realizar inferências causais acerca do quanto a prevalência de TMC encontrada na população pesquisada foi influenciada pela crise da pandemia de COVID-19. Em segundo, talvez os estudantes mais afetados pela pandemia do ponto de vista psicossocial não tenham participado da pesquisa, em razão de estarem ausentes nas atividades educativas online, gerando viés nos resultados. Em terceiro, os resultados se restringiram ao universo amostral pesquisado e não são generalizáveis. Em quarto, há fatores relevantes que podem ter atuado como variáveis mediadoras na correlação entre sofrimento psíquico, uso de internet e estratégias de enfrentamento, os quais não foram investigados, tais como qualidade do sono e da vida sexual, frequência de exercícios físicos, diminuição da interação com a natureza, entre outros. A realização de pesquisas qualitativas pode contribuir para a compreensão da experiência singularmente vivenciada pelos estudantes ante ao isolamento social na COVID-19, afinal, cada pessoa é um universo próprio.
Agradecimentos
Agradecemos à Adriana Ventura pela sua atuação na difusão da pesquisa, apoio fundamental para a realização deste estudo, além de sua contribuição para promover, cotidianamente, reflexões que perpassam este artigo. Somos gratos também a todos os professores que contribuíram na coleta dos dados. Agradecemos especialmente aos universitários participantes, por dedicarem seu tempo para responderem a esta pesquisa.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
02 Jul 2021 - Data do Fascículo
Jun 2021
Histórico
- Recebido
30 Jun 2020 - Aceito
01 Mar 2021 - Publicado
03 Mar 2021