Disfunção familiar em nonagenários e centenários: importância das condições de saúde e suporte social

Family dysfunction in nonagenarians and centenarians: the importance of health conditions and social support

Ilva Inês Rigo Ângelo José Gonçalves Bós Sobre os autores

Resumo

O presente estudo tem como objetivo avaliar os fatores relacionados à disfunção familiar (DF) entre 227 nonagenários e centenários identificados e avaliados no domicílio, aleatoriamente selecionados, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. A DF foi avaliada pelo instrumento “APGAR da família”, sendo considerado, no presente estudo, de zero a seis com DF e de sete a dez sem DF. Foram avaliados, entre abril e novembro de 2016, dados sociodemográficos, econômicos, funcionalidade física, autopercepção de saúde, comorbidades, sintomas depressivos, função cognitiva, suporte e interação social. A média do APGAR foi de 9,05±1,81, a DF ocorreu em 9,69% dos participantes. Foram relacionados à DF a autopercepção de saúde (p=0,0003), número de sintomas depressivos (p<0,0001), ter ajuda em caso de doença (p=0,0090) e necessidade de ajuda para administrar medicamentos (p=0,0602). Na análise ajustada, foram independentemente associados à DF em nonagenários e centenários a autopercepção de saúde, a presença de sintomas depressivos e a necessidade de ajuda para administrar medicamentos. Conclui-se que esses fatores parecem interferir na satisfação do nonagenário ou centenário com suas relações familiares.

Palavras-chave
Relações familiares; Idoso de 80 anos ou mais; Autopercepção de saúde; Sintomas depressivos

Abstract

The scope of this study is to evaluate factors related to family dysfunction (FD) among 227 randomly selected nonagenarians and centenarians in Porto Alegre, State of Rio Grande do Sul, who were visited and assessed in their homes. FD was evaluated by the “Family APGAR score,” being considered with FD from 0 to 6, and without FD from 7 to 10 in this study. Sociodemographic and economic data, physical functionality, health self-perception, comorbidities, depressive symptoms, cognitive function, social support and interaction were evaluated. The mean APGAR score was 9.05±1.81, and FD occurred in 9.69% of the participants. Among the health conditions, the self-perception of health (p=0.0003), the number of depressive symptoms (p<0.0001), receiving visits (p=0.0994), having recourse to help in case of illness (p=0.0090), and the need for help to administer medication (p=0.0602), were significantly related to FD. In the adjusted analysis, self-perception of health, the presence of depressive symptoms and the need for help in administering medication were associated with FD among nonagenarians and centenarians. These factors may influence the satisfaction of nonagenarians and centenarians with their family relationships.

Key words
Family relationships; Elderly individuals of 80 years old or more; Self-perception of health; Depressive symptoms

Introdução

O envelhecimento é um processo multifatorial que ocorre ao longo de toda a vida. Do ponto de vista legal, o Estatuto do Idoso define como sendo idosa a pessoa com 60 anos ou mais de idade no Brasil11 Brasil. Estatuto do Idoso. 3ª ed. 2ª reimpr. Brasília: Ministério da Saúde; 2013..

O processo de envelhecimento demográfico vem ocorrendo de forma muito rápida nos países em desenvolvimento. Entre os idosos, a faixa populacional dos com 80 anos ou mais, também chamados de longevos, é a que mais cresce22 Camacho NCA, Morche KR, Muller AL, Bós AJG. Por que nonagenários não se tornam centenários no Brasil? AMRIGS 2018; 62(1):55-59.. Estima-se que, em 2050, essa faixa da população será de 13,3 milhões, representando 6,5% da população brasileira e 19,6% da idosa33 Camarano AA, Kanso S. Envelhecimento da população brasileira: uma contribuição demográfica. In: Freitas EV, Py L. Tratado de geriatria e gerontologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2016. p.141-164.. Paschoal44 Paschoal SMP. Qualidade de vida na velhice. In: Freitas EV, Py L. Tratado de geriatria e gerontologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2016. p. 184-194. lembra que pessoas com idade acima da expectativa de vida apresentam maior chance de adoecimento e declínio da autonomia e da independência. Nas situações de perda da autonomia e da independência, o longevo necessita mobilizar fontes de auxílio.

A família é o espaço natural de cuidado aos indivíduos que a compõe. Com o idoso não é diferente55 Lemos ND, Medeiros SL. Suporte social ao idoso dependente. In: Freitas EV, Py L. Tratado de geriatria e gerontologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2016. p.2211-2218.. Entretanto, o peso desse processo de envelhecimento para as famílias, principalmente de países em desenvolvimento, tem sido muito grande. A família e outras instituições sociais informais assumem integralmente esse papel com pouco ou nenhum apoio do Estado. Sabe-se que famílias multigeracionais e com corresidência têm mais chance de prover cuidados, principalmente quando se trata de auxílio instrumental, nas atividades do dia a dia. Mas somente residir com alguém não implica em ser bem cuidado66 Debert GG, Simões JA. Envelhecimento e velhice na família contemporânea. In: Freitas EV, Py L. Tratado de geriatria e gerontologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2016. p.1571-1579.. A funcionalidade familiar pode ser um fator relacionado a melhor qualidade de vida e saúde de longevos, pois espera-se que famílias funcionais sejam capazes de responder positivamente a situações críticas, como perda da funcionalidade e da autonomia do nonagenário e centenário77 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica (MS/SAS/DAB). Envelhecimento e saúde da pessoa idosa. Brasília: MS/SAS/DAB; 2006.. Entretanto, pouco se tem estudado sobre a funcionalidade familiar nessa população, mesmo sendo os longevos o estrato populacional que mais cresce e que mais necessita de cuidado.

Um dos grupos que realiza o acompanhamento de longevos é o projeto Atenção Multiprofissional ao Longevo (AMPAL). O grupo realiza desde 2016 o acompanhamento domiciliar de pessoas com idade maior ou igual a 90 anos em diversos bairros de Porto Alegre88 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Projeto Longevidade [Internet]. [acessado 2017 out 11]. Disponível em: http://longevidade.pucrs.br/quem-somos/
http://longevidade.pucrs.br/quem-somos/...
. A avaliação do AMPAL é baseada nas recomendações do Caderno de Atenção básica nº 19, intitulado Envelhecimento e Saúde da Pessoa Idoso77 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica (MS/SAS/DAB). Envelhecimento e saúde da pessoa idosa. Brasília: MS/SAS/DAB; 2006., que inclui a avaliação da funcionalidade familiar. Assim, o presente trabalho aborda os fatores relacionados com a disfunção familiar (DF) entre nonagenários e centenários do AMPAL.

Método

Trata-se de um estudo transversal analítico, com os dados coletados pelo AMPAL entre abril e novembro de 2016, com recursos do Fundo Municipal do Idoso de Porto Alegre. Os participantes incluídos foram nonagenários e centenários moradores de Porto Alegre identificados nas 17 regiões do Orçamento Participativo (OP) da cidade. O censo demográfico do IBGE de 2010 identificou 4.832 nonagenários e centenários residentes em Porto Alegre. O projeto AMPAL procurou, desta forma, identificar e avaliar 10% dessa população, ou seja em torno de 480 indivíduos. Utilizando a distribuição observada no censo, calculou-se o número de nonagenários e centenários a serem avaliados em cada OP, estabelecendo-se o número mínimo de 12 participantes em cada região. A partir dessa distribuição, foi sorteado um setor censitário para cada 12 nonagenários e centenários a serem avaliados em cada OP. Os setores censitários sorteados foram marcados em um mapa. Se em algum setor não pudesse ser identificado os 12 longevos, os setores dispostos ao redor deste seriam visitados, no sentido horário, a partir do primeiro setor à direita. Como o projeto foi afetado pela dificuldade da manutenção dos repasses do Fundo Municipal do Idoso, este logrou identificar e avaliar 245 nonagenários e centenários. A avaliação foi feita no domicílio do participante por uma dupla de profissionais da equipe, através de instrumento próprio, baseado nas recomendações do Caderno de Atenção Básica nº19, tema Envelhecimento e Saúde da Pessoa Idosa77 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica (MS/SAS/DAB). Envelhecimento e saúde da pessoa idosa. Brasília: MS/SAS/DAB; 2006.. Os dados referentes ao Mini Exame do Estado Mental (MEEM), autopercepção de saúde, escala de depressão geriátrica e APGAR da família foram respondidos somente pelo nonagenário ou centenário. As demais questões puderam ser respondidas pelo cuidador. Entre os avaliados, 227 nonagenários e centenários tinham capacidade cognitiva para responder ao Apgar da Família. Nos casos em que o participante não tinha condições de responder, o entrevistador preencheu a opção “não interage com as pessoas” no questionário.

A funcionalidade familiar, no AMPAL, foi avaliada por meio do instrumento “Apgar da família”, desenvolvido por Smilkstein99 Smilkstein G. The Family APGAR: A proposal for family function test and its use by physicians. J fam pract 1978; 6(6):1231-1239. e validado no Brasil por Duarte1010 Duarte YAO. Família: rede de suporte ou fator estressor. A ótica de idosos e cuidadores familiares [tese]. São Paulo (SP): Universidade de São Paulo; 2001.. Esse instrumento foi o acrônimo das palavras “adaptability”, “partnership”, “growth”, “affection” e “resolve”, e avalia essas cinco dimensões da funcionalidade familiar, gerando um escore de 0 a 10. Esse escore foi estratificado em boa funcionalidade (7 a 10), moderada disfunção (5 e 6) e elevada disfunção (0 a 4). Para o presente estudo consideramos dois grupos: Apgar de 0 a 6, com DF; Apgar de 7 a 10, sem DF. Foram incluídos na análise todos os nonagenários e centenários do AMPAL, que responderam ao questionário do Apgar da Família.

Também foram avaliados, como variáveis independentes, dados sociodemográficos, como escolaridade (saber ler e escrever e anos de estudo), situação domiciliar, estado conjugal, renda mensal (número de salários mínimos). A interação social foi descrita pela média de dias por mês que saiu de casa nos últimos seis meses, frequência que recebe visitas por semana, frequência que participa de atividades sociais por semana. O suporte social foi avaliado questionando ao idoso se alguém poderia ajudá-lo caso fique doente ou incapacitado, seguindo a orientação do Caderno de Atenção Básica nº 19, do Ministério da Saúde88 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Projeto Longevidade [Internet]. [acessado 2017 out 11]. Disponível em: http://longevidade.pucrs.br/quem-somos/
http://longevidade.pucrs.br/quem-somos/...
. A autopercepção de saúde (APS) foi respondida pelo próprio longevo, por meio de escolha simples das questões: ótima, boa, regular, má, péssima ou não soube responder, no caso do longevo não ter condições para tal. A mensuração da condição cognitiva foi realizada por meio do MEEM, criado por Folstein et al.1111 Folstein MF, Folstein SE, McHugh PR. Mini-mental state: a practical method for grading the cognitive state of patients for the clinician. J Psychiatr Res 1975; 12(3):189-198. e validado no Brasil por Bertolucci et al.1212 Bertolucci PH, Brucki SM, Campacci SR, Juliano Y.O Mini Exame do Estado Mental em uma população geral: impacto da escolaridade. Arq Neuropsiquiatr 1994; 52(1):1-7.

A funcionalidade física foi avaliada através de sete atividades cotidianas: caminhar 400 metros ou quatro quadras, subir 10 degraus ou um lance de escadas, levantar ou carregar objetos de cinco quilos, levantar-se da cadeira sem usar as mãos, agachar-se e levantar-se para pegar um objeto no chão, levantar os braços acima da cabeça, agarrar objetos firmemente com as mãos; e cinco atividades básicas da vida diária: transferir-se para uma cama ou cadeira, tomar banho sozinho, se vestir sozinho, alimentar-se sozinho e usar o banheiro, conforme a abordagem de Morsch et al.1313 Morsch P, Pereira G N, Navarro JHDN, Trevisan MD, Lopes DGC, Bós AJG. Características clínicas e sociais determinantes para o idoso sair de casa. Cad Saude Publica 2015; 31(5):1025-1034.. As atividades foram classificadas pelo participante por grau de dificuldade (fácil, mais ou menos fácil, difícil, não consegue). As atividades foram pontuadas de acordo com o desempenho: fácil (5 pontos), mais ou menos fácil (3 pontos), difícil (1 ponto) e não consegue, zero, totalizando, no máximo 35 pontos para atividades cotidianas e 25 para básicas. O percentual de funcionalidade física foi obtido considerando-se o percentual de capacidade executiva sobre a pontuação total das atividades cotidianas e básicas. Um nonagenário ou centenário totalmente funcional seria classificado com 100% de desempenho funcional e básico. A funcionalidade física foi classificada de acordo com o percentual de desempenho nas duas atividades. A triagem para depressão geriátrica foi realizada com a Geriatric Depression Scale de cinco itens (GDS-5), validada por Almeida1414 Almeida MSC. Efetividade da escala de depressão geriátrica de cinco itens em população idosa da comunidade [tese]. Porto Alegre: PUCRS; 2010.. Conforme a autora, a suspeita de depressão ocorre quando houver pontuação igual ou maior a 2.

A análise foi realizada através do programa EpiInfo versão 7. Foi comparada a distribuição dos fatores sociodemográficos e clínicos com a funcionalidade familiar (com e sem DF). As médias da idade, renda mensal familiar, número de doenças crônicas (comorbidades), sintomas depressivos, pontuação no MEEM, frequência semanal de participação em atividades sociais e número de dias mensais que sai de casa foram calculados para cada nível de DF e as diferenças testadas pelo T de Student. A distribuição dos demais fatores foram calculados para cada nível de DF e testadas pelo Qui-Quadrado, considerado o nível de significância estatística de 5% (p<0,05). As variáveis com estatisticamente significativas nas análises descritivas foram incluídas em um modelo de regressão logística, para as chances de ter DF, inicialmente simples e após ajustada entre si. Em cada variável incluída no modelo uma categoria foi selecionada como referência. A regressão logística atribui o valor de 1 para essa categoria. As com maiores chances de ter DF apresentam razões de chance maiores que 1, e as com menor chance, valores menores do que 1. Variáveis não significativas no modelo ajustado inicial foram excluídas no modelo final, restando somente os fatores significativos.

Aspectos éticos

O Projeto AMPAL foi aprovado pelo Comitê de Ética em pesquisa da PUC-RS. Todos os participantes já assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido autorizando a realização da pesquisa e o contato telefônico.

Resultados

A Tabela 1 mostra a distribuição das características sociodemográficas dos nonagenários e centenários do projeto AMPAL de acordo com a presença ou não de DF, ou seja, Apgar da família menor ou igual a 6. Foram incluídos na análise 227 nonagenários e centenários, dos quais, 22 (9,69%) apresentaram DF. A média do Apgar da família foi de 9,05±1,81, sendo significativa a diferença entre os participantes com e sem DF (p<0,0001). Observa-se que a média etária dos participantes foi de 92,27 anos (DP±3,51), sendo semelhante entre os grupos com e sem DF (p=0,5273). A participante mais longeva tinha 108 anos na data da entrevista. Com relação ao sexo, 73% dos participantes era do sexo feminino, a cor da pele autodeclarada com mais frequência foi a branca (82%), 67% eram viúvos, 89% sabiam ler e escrever e, destes, o tempo médio de estudo foi de 6 anos, a renda mensal foi de 5,8±10,69 salários mínimos, 76% residiam com familiar. Não houve diferenças e associações significativas entre as características sociodemográficas e a disfunção familiar. Apesar disso, apresentaram maior frequência de DF os homens, brancos, solteiros, alfabetizados, com mais anos de estudo, menor renda e que residiam com o cuidador formal (não familiar).

Tabela 1
Características sociodemográficas dos nonagenários com e sem DF, n=227 nonagenários e centenários, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 2016.

A Tabela 2 se refere às condições de saúde dos nonagenários do AMPAL com e sem DF. A APS mais frequente foi ótima ou boa (63%) e a DF ocorreu mais entre os nonagenários que consideravam sua saúde má ou péssima (31,58%); sendo a associação entre níveis de APS e DF estatisticamente significativa (p=0,0003). Quanto à presença de sintomas depressivos, os nonagenários relataram em média 1,49±1,13 sintomas. Os participantes com DF relataram em média 2,50±1,22 sintomas, enquanto os sem disfunção, 1,38±1,06 sintomas, sendo essa diferença estatisticamente significativa (p<0,0001). Referente aos escores no MEEM, a pontuação geral foi de 21,01±6,23. A pontuação foi bastante semelhante entre os grupos com e sem DF (20,18±7,21 e 21,10±6,13, respectivamente; p=0,5115. O número de comorbidades foi em média de 4,48±2,22, bastante semelhante entre os grupos com e sem DF (4,68±3,15 e 4,46±2,10, respectivamente) (p=0,9052). A maior parte (86,78%) dos participantes relatou ter recebido algum atendimento de saúde nos últimos 6 meses. A frequência de DF foi semelhante entre os grupos que receberam ou não atendimento (p=1,00).

Tabela 2
Condições de saúde dos nonagenários com e sem DF, n=227 nonagenários e centenários, Porto Alegre/RS, 2016.

No que se refere à participação e interação social, a Tabela 3 mostra que 78,41% recebiam visitas. Entre os nonagenários que não recebiam, 16,33% relataram DF, enquanto que 7,87% dos que recebiam visitas referiram DF. Essa diferença foi indicativa de significância (p=0,0994). Quando questionados sobre a participação em atividades sociais, como grupos de idosos, a participação foi de 0,45±1,18 dias por semana. No geral, 81,06% disseram não participar dessas atividades. A presença de DF foi mais comum entre os que não participavam de atividades sociais (10,87%) do que entre os que participavam (4,65%; p=0,2660). Em relação a sair de casa, os nonagenários do AMPAL relataram sair em média 10,37±11,15 dias por mês nos últimos 6 meses (p=0,6571). Quase todos (99,12%) os sujeitos de pesquisa afirmaram ter com quem contar em caso de doença. Somente dois nonagenários relataram não ter ajuda e justamente estes tiveram escore de Apgar da família compatível com DF. A diferença dos participantes com ou sem apoio em caso de doença foi significativa entre os grupos com e sem DF (p=0,0090).

Tabela 3
Interação e suporte social dos nonagenários com e sem DF, n=227 nonagenários e centenários, Porto Alegre/RS, 2016.

Ao abordarmos a funcionalidade física, na Tabela 4, vemos que os participantes mantinham um bom desempenho em atividades básicas, como tomar banho, vestir-se, alimentar-se, usar o banheiro, de 79,03±28,42%. O desempenho básico dos nonagenários sem DF foi maior (79,53±27,85) que os com DF (74,36±33,69; p=0,4189). Em relação ao desempenho funcional, como caminhar 400 metros, subir um lance de escada, carregar 5 quilos, levantar da cadeira sem usar as mãos, os participantes mantinham 58,65±26,14% dessas capacidades. O desempenho básico foi menor entre os nonagenários com DF (53,78±26,63; p=0,4189). Ao questionarmos sobre a capacidade de sair da cama sozinho, a maior parte (85,02%) era capaz. A DF foi mais frequente entre os incapazes de sair da cama sozinho (11,76%; p=0,7519). Quando foram abordadas atividades mais complexas, como fazer compras e preparar refeições, verificamos um aumento da incapacidade se comparadas com atividades mais simples, já que 53,30% afirmaram não conseguir fazer compras e 36,12% não eram capazes de preparar refeições. Os grupos com e sem DF foram semelhantes, tanto para fazer compras (p=0,9022), como preparar refeições (0,9803), embora a frequência de DF tenha sido maior nos com menor desempenho. Mais da metade (53,74) dos nonagenários relataram não necessitar de ajuda para controlar e administrar seus medicamentos. A DF foi mais frequente entre os que não necessitavam de ajuda com seus medicamentos (13,11%) ao comparada com os que necessitavam de ajuda (5,71), essa diferença foi indicativa de significância (p=0,0602).

Tabela 4
Funcionalidade física dos participantes com e sem DF, n=227 nonagenários e centenários, Porto Alegre/RS, 2016.

A Tabela 5 mostra a regressão logística simples e ajustada para as variáveis que foram significativas ou indicativas de significância: APS, presença de sintomas depressivos, receber ou não visitas, ajuda para administrar medicamentos e para o caso de adoecimento agudo. A variável relacionada à ajuda em caso de doença não pode ser incluída pois apenas dois participantes relataram não ter ajuda e ambos com DF, tornando a regressão logística inválida. Na análise simples, a APS ótima ou boa mostrou ser um fator de proteção para a DF, em relação aos nonagenários e centenários com pior APS, a razão de chance calculada pela regressão logística foi de 0,11, representando 89% menos chance de ter DF (1-0,11), sendo esta associação significativa (p=0,0005). Ajustando para as demais variáveis, a significância estatística diminui (p=0,0259). Observamos que a presença de um sintoma depressivo a mais aumentava em 129% a chance de ter DF (p<0,0001). Esse fator seguiu significativo após o ajuste pelas demais variáveis (p=0,0005). Receber visitas, que era indicativo de significância na análise simples (p=0,0827), na análise ajustada deixa de ser significativo (p=0,2284). A necessidade de ajuda com medicamentos que era indicativo de significância na análise simples (p=0,0673), passou a ser significativo na ajustada (p=0,0146).

Tabela 5
Regressão logística simples e ajustada dos fatores relacionados com a DF entre nonagenários do Projeto AMPAL, n=227 nonagenários e centenários, Porto Alegre/RS, 2016.

Discussão

No presente trabalho, a boa funcionalidade familiar foi apresentada pela maior parte dos nonagenários e centenários entrevistados, semelhante ao que ocorreu no estudo de Vera et al.1515 Vera I, Lucchese R, Nakatani AYK, Pagotto V, Montefusco SRA, Sadoyama G. Funcionalidade familiar em longevos residentes em domicílio. Rev Bras Enferm 2015; 68(1):68-75. com longevos de 80 anos ou mais da comunidade. À exceção deste estudo, o nível do Apgar dos participantes do AMPAL foi melhor que em outros estudos, inclusive realizados com idosos mais jovens, com 60 anos ou mais1616 Lu C, Yuan L, Lin W, Zhou Y, Pan S. Depression and resilience mediates the effect of family function on quality of life of the elderly. Arch Gerontol Geriatr 2017; 71:34-42.

17 Oliveira SC, Pavarini SCI, Orlandi FS, Mendiondo MSZ. Family functionality: a study of Brazilian institutionalized elderly individuals. Arch Gerontol Geriatr 2014; 58(1):170-176.

18 Almeida Souza R, Costa GD, Yamashita CH, Amendola F, Gaspar JC, Martins Alvarenga MR, Oliveira MAC. Funcionalidade familiar de idosos com sintomas depressivos. Rev Esc Enferm USP 2014; 48(3):469-476.

19 Takeda S, Sasagawa Y, Mori M. Personal characteristics associated with individual degree of family function in residents of Rumoi City, Hokkaido. J Gen Fam Med 2017; 18(6):372-377.

20 Martins R, Neto M, Andrade A, Albuquerque C. Abuse and maltreatment in the elderly. Atención Primaria 2014; 46:206-209.
-2121 Hai S, Wang H, Cao L, Liu P, Zhou J, Yang Y, Dong B. Association between sarcopenia with lifestyle and family function among community-dwelling Chinese aged 60 years and older. BMC geriatrics 2017; 17(187):1-7.. A média do Apgar foi também maior que a de um estudo chinês (6,9±2,3) realizado, igualmente, com nonagenários e centenários2222 Wang B, He P, Dong B. Association between family functioning and cognitive impairment among Chinese nonagenarians/centenarians. Geriatr Gerontol Int 2015; 15:1135-1142., em que prevaleceu a DF (52,2%). É possível verificar que a frequência de DF entre os participantes do AMPAL foi menor que a apresentada em diversos estudos, tanto com longevos quanto com idosos.

Quando consideradas as variáveis sociodemográficas, não ocorreu diferença significativa entre os grupos com e sem DF. Destaca-se na literatura, o sexo feminino como protetor para DF, como apresentado por De Oliveira et al.1717 Oliveira SC, Pavarini SCI, Orlandi FS, Mendiondo MSZ. Family functionality: a study of Brazilian institutionalized elderly individuals. Arch Gerontol Geriatr 2014; 58(1):170-176., em estudo com idosos institucionalizados, o mesmo observado no presente estudo, onde homens tinham maior frequência de DF. Por outro lado, um estudo realizado com adultos portugueses, que teve média etária de 52 anos, associou o sexo feminino à DF2323 Prazeres F, Santiago L. Relationship between health-related quality of life, perceived family support and unmet health needs in adult patients with multimorbidity attending primary care in Portugal: a multicentre cross-sectional study. Health Qual Life Outcomes 2016; 14:1-12.. Esses diferentes achados podem ser explicados pelas faixas etárias diferentes nos artigos. De acordo com o papel social e familiar da mulher, como mãe e provedora de cuidados ao longo da vida, espera-se que ela tenha melhor apoio familiar e consequente menor frequência de DF que entre os homens.

Em relação ao estado civil e a renda, Prazeres e Santiago2323 Prazeres F, Santiago L. Relationship between health-related quality of life, perceived family support and unmet health needs in adult patients with multimorbidity attending primary care in Portugal: a multicentre cross-sectional study. Health Qual Life Outcomes 2016; 14:1-12. observaram, em pessoas idosas portuguesas, similaridades com o presente estudo, usando o Apgar como instrumento. A maior frequência de DF também ocorreu entre os idosos portugueses não casados e com baixa renda. Porém, os autores observaram maior frequência de DF entre os que moravam sós, oposto do que o apresentado nos participantes do AMPAL, em que a DF foi mais frequente nos que residiam com cuidador ou com familiar. Ao avaliarmos a escolaridade, observamos que os participantes do AMPAL com maior instrução tinham maior frequência de DF, sendo esse um relato não observado na literatura estudada. Acreditamos que isso se deva por terem maior crítica de sua situação familiar em relação aos com menor escolaridade.

Ao levarmos em consideração as condições de saúde dos nonagenários e centenários de nossa pesquisa, observamos que a APS, predominou a ótima ou, semelhante ao que ocorreu em outro estudo com idosos jovens usuários de restaurantes populares2424 Gomes MFS, Pereira SCL, Abreu MNS. Fatores associados à autopercepção de saúde dos idosos usuários dos restaurantes populares de Belo Horizonte. Cien Saude Colet 2018; 23(11):4007-4019.. No presente estudo, a APS parece estar intimamente relacionada com a funcionalidade familiar. Os participantes com APS ruim ou péssima relataram maior frequência de DF. Esse achado corrobora com outros estudos como o de Takeda, Sasagawa & Mori1919 Takeda S, Sasagawa Y, Mori M. Personal characteristics associated with individual degree of family function in residents of Rumoi City, Hokkaido. J Gen Fam Med 2017; 18(6):372-377. em japoneses e Vera et al.1515 Vera I, Lucchese R, Nakatani AYK, Pagotto V, Montefusco SRA, Sadoyama G. Funcionalidade familiar em longevos residentes em domicílio. Rev Bras Enferm 2015; 68(1):68-75. em brasileiros. A APS parece estar relacionada com a percepção de DF entre os participantes. Da mesma forma, os sintomas depressivos também parecem influenciar a funcionalidade familiar. Em nosso estudo, essa variável foi significativamente maior entre os nonagenários e centenários com DF. O mesmo ocorreu em outros estudos nacionais e internacionais1717 Oliveira SC, Pavarini SCI, Orlandi FS, Mendiondo MSZ. Family functionality: a study of Brazilian institutionalized elderly individuals. Arch Gerontol Geriatr 2014; 58(1):170-176.

18 Almeida Souza R, Costa GD, Yamashita CH, Amendola F, Gaspar JC, Martins Alvarenga MR, Oliveira MAC. Funcionalidade familiar de idosos com sintomas depressivos. Rev Esc Enferm USP 2014; 48(3):469-476.
-1919 Takeda S, Sasagawa Y, Mori M. Personal characteristics associated with individual degree of family function in residents of Rumoi City, Hokkaido. J Gen Fam Med 2017; 18(6):372-377.. Como não foram encontrados estudos que utilizassem a GDS 5, não foi possível comparar a média de sintomas depressivos com outros estudos.

O número de comorbidades, o acesso a serviços de saúde e o desempenho no MEEM não foram relacionados significativamente com a DF em nossa amostra, sendo bastante semelhantes entre os grupos. A média MEEM dos sujeitos do AMPAL foi maior que de outros estudos com nonagenários e centenários chineses2222 Wang B, He P, Dong B. Association between family functioning and cognitive impairment among Chinese nonagenarians/centenarians. Geriatr Gerontol Int 2015; 15:1135-1142.,2525 Deng J, Hu J, Wu W, Dong B, Wu H. Subjective well-being, social support, and age-related functioning among the very old in China. Int J Geriatr Psychiatry 2010; 25(7):697-703.. De Oliveira et al.1717 Oliveira SC, Pavarini SCI, Orlandi FS, Mendiondo MSZ. Family functionality: a study of Brazilian institutionalized elderly individuals. Arch Gerontol Geriatr 2014; 58(1):170-176. e Vera et al.1515 Vera I, Lucchese R, Nakatani AYK, Pagotto V, Montefusco SRA, Sadoyama G. Funcionalidade familiar em longevos residentes em domicílio. Rev Bras Enferm 2015; 68(1):68-75. também não verificaram relação da saúde cognitiva com a funcionalidade familiar. Com relação ao número de comorbidades, Vera et al.1515 Vera I, Lucchese R, Nakatani AYK, Pagotto V, Montefusco SRA, Sadoyama G. Funcionalidade familiar em longevos residentes em domicílio. Rev Bras Enferm 2015; 68(1):68-75. não realizaram a contabilização do total por participante, mas relacionaram a funcionalidade familiar com osteoporose, dado incomum na literatura, enquanto que as demais patologias não tiveram associação significativa. Nosso estudo não verificou relação entre o número de comorbidades e a DF. Parece ser mais importante o julgamento que o nonagenário/centenário faz de sua saúde que o número de doenças diagnosticadas. A busca por serviços de saúde nos últimos seis meses também não diferiu entre os grupos com e sem DF. Vera et al.1515 Vera I, Lucchese R, Nakatani AYK, Pagotto V, Montefusco SRA, Sadoyama G. Funcionalidade familiar em longevos residentes em domicílio. Rev Bras Enferm 2015; 68(1):68-75. verificaram essa diferença, mas essa variável não se manteve significativa na regressão logística daquele estudo, observado a sua dependência a outros fatores. Prazeres e Santiago2323 Prazeres F, Santiago L. Relationship between health-related quality of life, perceived family support and unmet health needs in adult patients with multimorbidity attending primary care in Portugal: a multicentre cross-sectional study. Health Qual Life Outcomes 2016; 14:1-12., com sujeitos adultos maiores de 18 anos, estabeleceram uma relação com o maior número de comorbidades (embora não estatisticamente significativa) e de necessidades de saúde não atendidas com a DF. É possível que a melhor funcionalidade familiar facilite também o acesso e o atendimento às necessidades de saúde.

Ao avaliarmos a interação e o apoio social, receber visitas foi indicativo de significância, com maior frequência de DF entre os que não recebiam visitas. Ter com que contar em caso de doença foi significativo, sendo os sujeitos que não tinham essa disponibilidade os que apresentaram DF. A falta de apoio social talvez repercuta na percepção da DF, embora no presente estudo, ter com quem contar em caso de adoecimento não tenha significância estatística após o controle por outras variáveis. Lambotte et al.2626 Lambotte D, De Donder L, Van Regenmortel S, Fret B, Dury S, Smetcoren AS, Dierckx E, De Witte N, Verté D, Kardol MJM, D-SCOPE Consortium. Frailty differences in older adults' use of informal and formal care. Arch Gerontol Geriatr 2018; 79: 69-77. corroboram com essa afirmação, já que o cuidado informal, oferecido por familiares, amigos e vizinhos, foi o mais frequentemente acessado pelos idosos. Esses achados se assemelham a um estudo japonês, em que o pior índice de interação social foi associado com baixo índice de funcionalidade familiar (RC=2,80; p<0,001), mesmo após ajuste por outras variáveis1919 Takeda S, Sasagawa Y, Mori M. Personal characteristics associated with individual degree of family function in residents of Rumoi City, Hokkaido. J Gen Fam Med 2017; 18(6):372-377.. Martins et al.2020 Martins R, Neto M, Andrade A, Albuquerque C. Abuse and maltreatment in the elderly. Atención Primaria 2014; 46:206-209. observaram maior frequência de abuso e maus-tratos entre idosos que sentiam solidão. Outro estudo, da Turquia, relacionou o suporte social com melhor qualidade de vida2727 Unalan D, Gocer S, Basturk M, Baydur H, Ozturk A. Coincidence of low social support and high depressive score on quality of life in elderly. Eur Geriatr Med 2015; 6(4):319-324..

A funcionalidade física não diferiu entre os sujeitos do AMPAL com e sem DF. Verificamos maior desempenho em atividades simples, como transferir-se da cama para uma cadeira e pior nas que exigem mais habilidades cognitivas, como preparar refeições e fazer compras. A dificuldade nestas atividades ocorreu apesar do bom desempenho no MEEM da nossa amostra. Somente a questão de necessitar de ajuda para controlar e tomar seus medicamentos teve diferença significativa, especificamente os participantes que não necessitavam de ajuda relataram mais frequentemente DF. Isso pode ser possível por que a percepção de necessidade de ajuda do nonagenário/centenário deve equilibrar os momentos em que não está satisfeito com sua família. Talvez o idoso acabe se submetendo a situações que lhe desagradam devido a essa necessidade de cuidado da família. Essa relação de dependência foi demonstrada por Sun et al.2828 Sun, Y, Wang M, Zhou Y, Wang L, Zhang H, Lv Y, Li G. The mediating effect of family function and medication adherence between symptoms and mental disability among Chinese patients with schizophrenia: a cross-sectional study. Psychol Health Med 2018:1-11., que verificaram melhor adesão ao tratamento medicamentos entre pacientes esquizofrênicos com melhor funcionalidade familiar. Não foram encontrados outros estudos que demonstrassem a relação entre dependência para o uso de medicamentos e funcionalidade familiar. Em nosso estudo, essa variável se manteve significativa na regressão logística, mesmo após o ajuste pelas demais, demonstrando ser um fator independente.

Conclusão

A análise ajustada demonstrou relação significativa entre funcionalidade familiar e APS, presença de sintomas depressivos e necessidade de ajuda para o uso de medicamentos, mesmo após o controle por outras variáveis.

Concluímos que a APS, a presença de sintomas depressivos e a dependência para administrar medicamentos parecem interferir na satisfação do nonagenário ou centenário com suas relações familiares. Novamente, sendo a família a principal fonte de cuidados ao longo da vida, em especial no final dela, faz-se necessário estimular o cultivo de relações saudáveis, tanto para quem cuida, quanto para quem é cuidado. Fatores sociodemográficos, desempenho funcional e apoio social não foram preditores significativos de funcionalidade familiar.

  • Financiamento
    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES), código de financiamento 001. Bolsa de Mestrado concedida a Ilva Inês Rigo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    03 Jan 2019
  • Recebido
    27 Ago 2019
  • Aceito
    29 Ago 2019
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