Arretche M, Marques E, Faria CAP, organizadores. As políticas da política: desigualdades e inclusão nos governos PSDB e PT. São Paulo: Editora Unesp; 2019. 487p.

Nilson do Rosário Costa Sobre o autor
2019

A coletânea As Políticas da Política: desigualdade e inclusão nos Governos do PSDB e do PT1, organizada por Marta Arretche, Eduardo Marques e Carlos Aurélio P. de Faria, oferece um marco referencial para a compreensão das políticas públicas federais produzidas e implementadas desde a Constituição de 1988 (CF 1988). Além das instigantes seções de introdução e de considerações finais, a coletânea traz 16 capítulos autores vinculados à Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) e à Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP). A política de saúde recebe grande destaque na publicação, tornando-a de interesse para os estudantes, profissionais e pesquisadores da saúde coletiva.

A publicação promove um desafio não trivial às abordagens dominantes a respeito da atuação do Executivo Federal das décadas de 1990 e 2000 na área social e de saúde. Especialmente nas publicações do campo da saúde coletiva, é bastante difundida a tese da polarização entre as agendas das gestões FHC e Lula para a política de saúde. O quase consenso no campo de que a afirmação da ação do Executivo Federal no governo FHC esteve completamente subordinada ao imperativo da política de estabilização econômica e contenção de gastos em saúde, não favorecendo a redistribuição de recursos a favor da redução das desigualdades22 Viana ALD, Lima LD, Oliveira RG. Descentralização e federalismo: a política de saúde em novo contexto - lições do caso brasileiro. Cien Saude Colet 2002; 7(3):493-507.. A emergência do governo Lula, por outro lado, teria rompido de modo substantivo esta orientação, inaugurando um ciclo inovador e singular em razão das políticas públicas de inclusão social e da atuação sobre os condicionantes da saúde33 Menicucci TMG. A política de saúde no governo Lula. Saude Soc 2011; 20(2):522-532..

Estas teses não deixam de ser um subproduto da impiedosa competição eleitoral entre o PSDB e o PT, que afetou as narrativas do campo das Ciências Sociais e da Saúde Coletiva sobre as políticas governamentais. Em contraposição, os autores defendem que a trajetória de redução das desigualdades sociais se inicia com CF 1988, como resultado da transição democrática inclusiva na Nova República (1985-1990). Assim, a trajetória da redução da desigualdade foi resultado direto dos dois governos presidenciais do PSDB e das quatro gestões do PT. A partir de 2016, sob o governo Temer, políticas públicas com o objetivo de promover uma sociedade mais inclusiva passaram a ser negligenciadas. Ao focalizar a análise das iniciativas do Executivo Federal entre os anos 1995-2015, os autores identificam dois períodos de exercício pelo PSDB e pelo PT do que denominam como “autoridade política durável” - que resultaram das vitórias eleitorais, do controle de cargos do Executivo federal e da imposição bem sucedida da narrativa sobre a legitimidade da agenda dos seus respectivos governos.

O primeiro período (1995-2002) ocorreu sob a presidência do PSDB, quando a agenda do Executivo federal foi centrada no controle da inflação e na estabilização da moeda. Apesar disso, as reformas das políticas herdadas do regime militar e a implantação do pacto social preconizado pela CF 1988 foram também priorizadas, mesmo que com menor intensidade em algumas áreas.

O segundo período, das administrações do PT (2003-2015), trouxe para o centro da agenda o combate à pobreza e à desigualdade, assim como à expansão da provisão de bens e serviços para os mais pobres. Ainda assim, as diretrizes da estabilização macroeconômica não foram abandonadas nos dois primeiros mandatos do Lula. Porém, segundo os autores, no governo Dilma Rousseff a pauta da estabilidade fiscal foi progressivamente atropelada por tentativas continuadas de estender, via gasto público, o período de crescimento econômico vivido nas gestões de Lula (2003-2010).

Nesse contexto, os autores afirmam que ao chegar ao governo federal, o PT recebeu como legado as políticas construídas sob os governos do PSDB. As divergências partidárias em relação ao PSDB autorizariam esperar uma revisão completa das políticas anteriores. Entretanto, o PT adotou estratégias incrementais e imitativas como forma de produzir mudanças e expandir políticas. A despeito das divergências programáticas, as estratégias adotadas pelo PT não consistiram em rupturas radicais em relação ao legado de políticas anteriores, em particular aquelas adotadas sob os governos do PSDB. As estratégias de implantação dos governos do PT envolveram mudanças endógenas pela incorporação de novas camadas de legislação aos sistemas preexistentes, pela replicação de características institucionais de um sistema de pactuação federativa bem-sucedida e pela promoção de “vitrines” para os assuntos prioritários da agenda governamental. Para os autores, as montagens de sistemas nacionais de saúde e educação caracterizariam os governos do PSDB na área social. Já o adensamento das ambições de resgate da dívida social por meio de intervenções incrementais, emulativas e de promoção de visibilidade institucional deram configuração aos governos do PT.

Nesse sentido, o livro demonstra que as duas presidências do PSDB deram os primeiros passos para a conversão das disposições da CF 1988 em políticas concretas ao instituir o Sistema Único de Saúde (SUS) e os incentivos para a adesão dos entes subnacionais à descentralização dos serviços de saúde sob comando do Ministério da Saúde. Essa argumentação convida para o resgate do esforço de construção institucional das políticas setoriais da saúde, como saúde mental e a produção local de medicamentos, usualmente atribuídas à pressão da sociedade civil.

As duas gestões do PSDB criaram também os sistemas nacionais de avaliação das políticas de educação, bem como políticas para a universalização da educação fundamental. Foram resultados dos governos do PSDB a Lei Orgânica da Assistência Social e o Estatuto da Cidade, além dos programas de transferência condicionada de renda, que deram origem ao Bolsa Família e determinaram o abandono pelo PT do Programa Fome Zero44 Costa NR. A proteção social no Brasil: universalismo e focalização nos governos FHC e Lula. Cien Saude Colet 2009; 14(3):693-706..

O livro aborda a criação pelo PT do Programa Bolsa Família, que promoveu a massificação e unificação dos programas fragmentados criados sob FHC. Segundo os autores, o PT ampliou o escopo das ações de promoção do acesso a medicamentos e expandiu as intervenções federais prioritárias na política educacional para além do Ensino Fundamental, abarcando os ensinos Infantil, Médio, Técnico e Superior. A criação do Ministério das Cidades pelo PT foi também uma tentativa de ampliação de escopo e escala das políticas urbanas e habitacionais.

A publicação chama a atenção para a expansão, pelos governos do PT, das políticas assistenciais, que contemplou uma estratégia abrangente para a oferta de serviços para populações vulneráveis complementar à transferência de renda. São marcos também importantes, abordados na coletânea, a criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e a Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial, ligadas à Presidência da República na gestão do PT. As iniciativas de ampliação da intervenção do Executivo federal em áreas estratégicas foram acompanhadas do fortalecimento da participação da sociedade civil em arenas extraparlamentares federais (Conselhos e Congressos).

O livro contempla ainda o leitor com textos bem desenvolvidos sobre a agenda dos dois partidos em relação à competição eleitoral, ideologia e proteção social, redistribuição de renda, política tributária, orçamento federal e organização da administração pública. Como é uma publicação de comunidade epistêmica, é compreensível que as áreas previdência social e saneamento básico não tenham sido abordadas por não constarem na agenda dos pesquisadores. Do mesmo modo, a coletânea não trata de modo extensivo da política de transferência de renda para idosos e pessoas com deficiência em condição de extrema pobreza no âmbito do Benefício de Prestação Continuada. Além disso, para um leitor não familiarizado com as clivagens e as coalizões das forças partidárias na cena nacional, é também difícil compreender a causa da ausência de cooperação do PSDB e o PT no exercício do governo federal apesar das convergências em políticas substantivas apontadas nos estudos. São questões que podem merecer tratamento específico numa possível e desejável futura edição. Não há dúvida, entretanto, que a publicação identifica e analisa com rigor as principais questões das políticas públicas subordinadas à discricionaridade decisória do Executivo Federal brasileiro até o impeachment de 2016. Ao lança luz sobre a atuação convergente do PT e do PSDB, os autores alertam sobre a capacidade do sistema partidário em promover ou vetar as decisões de ampliação de políticas públicas e redução da desigualdade.

A intensidade do desmoronamento da previdência social, das leis de proteção ao trabalho e do pacto federativo na saúde promovido pela gestão no Executivo Federal de Michel Temer (2016-2018) - e mantido e aprofundado pela ascensão do governo Bolsonaro em 2019 - certamente influenciou a percepção dos autores sobre a polarização mitigada entre os governos do PSDB e do PT no desenvolvimento das políticas de alcance nacional. O formato objetivo e conciso dos capítulos torna a leitura sobre assuntos muitas vezes áridos - e de aparente interesse apenas para especialistas - extremamente agradável. Considero a publicação uma leitura imprescindível para leitores da saúde coletiva interessados no desenvolvimento das políticas públicas de redução da desigualdade social na experiência democrática brasileira.

Referências

  • 1
    Arretche M, Marques E, Faria CAP. As Políticas da Política: desigualdade e inclusão nos governos do PSDB e do PT. São Paulo: Editora Unesp; 2019.
  • 2
    Viana ALD, Lima LD, Oliveira RG. Descentralização e federalismo: a política de saúde em novo contexto - lições do caso brasileiro. Cien Saude Colet 2002; 7(3):493-507.
  • 3
    Menicucci TMG. A política de saúde no governo Lula. Saude Soc 2011; 20(2):522-532.
  • 4
    Costa NR. A proteção social no Brasil: universalismo e focalização nos governos FHC e Lula. Cien Saude Colet 2009; 14(3):693-706.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Jun 2021
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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