Resumo
Trata-se de uma revisão sistemática acerca da produção do campo da saúde sobre o sexting entre 2009 e 2019. Buscou-se analisar a produção científica com relação ao seu contexto de produção (gênero da primeira autoria, ano da publicação e país de realização), tipo de publicação, área do conhecimento, temas e sujeitos abordados e qual concepção apresentam sobre o sexting. Foram analisadas, durante o segundo semestre de 2019, as 147 publicações disponíveis no PubMed, que tinham o sexting como tema central. A busca foi feita pelo termo sexting. Foi realizada análise de estatística descritiva que envolveu um cunho interpretativo, de modo a avaliar a abordagem do risco, da violência e de gênero nessas publicações. A maioria delas tem mulheres como primeiras autoras, foi produzida nos Estados Unidos entre 2017 e 2019 e realizou abordagem quantitativa (aproximadamente 65%). Cerca de metade das produções teve como tema central a prevalência do sexting ou o comportamento de risco entre adolescentes. A grande maioria atribuiu de algum modo ao sexting um comportamento de risco, e do qual se deduz violência (70%). Uma pequena parte das publicações apresentou uma abordagem de gênero (menos de 15%). Ao não distinguir práticas saudáveis de violentas, as produções do campo da saúde têm realizado análises insuficientes do sexting.
Palavras-chave:
Sexualidade; Internet; Jovens; Saúde; Gênero
Introdução
O termo sexting foi cunhado na junção das palavras em inglês sex (sexo) e texting (mensagem) e trata do compartilhamento de mídia digital erótica entre pares, cujo conteúdo diz respeito à pessoa remetente. Afirma-se que o termo surgiu na imprensa estadunidense em 2007 e, em 2009, foi finalista do concurso “Palavra do Ano” do Dicionário Americano de Oxford11 Judge A. "Sexting" Among U.S. Adolescents: Psychological and Legal Perspectives. Harv Rev Psychiatry 2012; 20(2):86-96..
Embora o termo ainda não esteja totalmente difundido - ainda não integra os Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) e o Medical Subject Headings (MeSH) -, trata-se de um comportamento disseminado pelo mundo, por se relacionar à vivência da sexualidade em interface com a internet. Nesse sentido, compreende-se sua temporalidade, que tem início e se desenvolve juntamente com a expansão do acesso à internet e, sobretudo, do smartphone, que estabelece a possibilidade de um instrumento de comunicação digital portátil.
O que tem sido mais retratado pela mídia são os casos de vazamento de imagens íntimas, seja quando envolvem pessoas famosas ou quando acarretam no suicídio ou violência sexual de jovens meninas, experiências já relatadas em diversos países22 Varella G, Soprana P. Pornografia de vingança: crime rápido, trauma permanente [Internet]. Época; 2016 [acessado 2020 mar 03]. Disponível em: https://epoca.globo.com/vida/experiencias-digitais/noticia/2016/02/pornografia-de-vinganca-crime-rapido-trauma-permanentee.html.
https://epoca.globo.com/vida/experiencia... . Tais ocorrências têm gerado impactos nos âmbitos judiciário e legislativo. No Brasil, foi sancionada, em 2018, a Lei Federal nº 13.71833 Brasil. Lei nº 13.718, de 24 de setembro de 2018. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para tipificar os crimes de importunação sexual e de divulgação de cena de estupro, tornar pública incondicionada a natureza da ação penal dos crimes contra a liberdade sexual e dos crimes sexuais contra vulnerável, estabelecer causas de aumento de pena para esses crimes e definir como causas de aumento de pena o estupro coletivo e o estupro corretivo; e revoga dispositivo do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais). Diário Oficial da União 2018; 25 set., que torna crime a divulgação sem consentimento de foto ou vídeo com cena de nudez, sexo ou pornografia.
Entretanto, no Brasil, nota-se uma produção acadêmica incipiente sobre a questão, comprometendo a disponibilidades de informações para a atuação profissional no campo da saúde, confrontada cotidianamente com os danos decorrentes das práticas violentas.
É no sentido de compreender esse comportamento e suas implicações para a vivência da sexualidade e para a saúde que este trabalho se insere. É preciso pensar de que modo o campo acadêmico-científico está contribuindo para o desenvolvimento de políticas públicas, sobretudo de educação em saúde, e, especificamente, em sexualidade juvenil.
Este trabalho apresenta uma revisão sistemática de cunho interpretativo, que objetivou compreender o que tem sido produzido no campo da saúde com relação ao sexting, mas, sobretudo, analisar criticamente as perspectivas adotadas e identificar lacunas a serem exploradas. A discussão aqui apresentada está centrada na análise crítica das perspectivas sobre o conceito de risco, da diferenciação de comportamentos violentos e da necessidade de uma abordagem de gênero para a compreensão do sexting.
Método
Para empreender a revisão sistemática, foi utilizado o banco de dados PubMed, devido a sua extensão no que tange à indexação de periódicos do campo da saúde. O período de coleta de dados se deu durante o segundo semestre de 2019, sendo analisadas todas as publicações disponíveis na base até o final desse ano, desde 2009, ano da primeira publicação sobre o tema.
A busca foi realizada pelo termo sexting, que embora não figure, ainda, como um descritor, possibilitou encontrar as publicações que continham o termo se não no título, nas palavras-chave ou no resumo. Como o termo ainda é novo, não possui tradução para o português ou demais línguas de modo difundido. Não foi utilizado nenhum critério inicial de exclusão dos textos. Essa escolha se deu justamente para analisar os diversos discursos produzidos sobre o sexting nas diferentes produções acadêmicas, para além de artigos e relatórios de pesquisa, mas também em editorias e cartas de periódicos, produzidos nos diversos países.
Embora o interesse central da pesquisa fosse com relação à vivência da sexualidade entre jovens em interface com o uso de mídias digitais, também foram analisadas publicações que abordaram pessoas adultas não jovens, de modo a avaliar se comportamentos atribuídos a jovens estariam restritos apenas a essa faixa etária.
Das 180 publicações encontradas, 23 não tratavam do sexting (tratavam de assuntos como acidentes automobilísticos por uso de celular, por exemplo), nove estavam indisponíveis e uma estava em língua germânica, totalizando 33 exclusões e totalizando 147 produções analisadas, todas em língua inglesa, ainda que esse não tenha sido um critério de inclusão.
As variáveis selecionadas buscaram compreender o contexto das produções, suas abordagens e perspectivas sobre o sexting. Para a análise do contexto, foram utilizadas as variáveis gênero da primeira autoria, ano de publicação e país da produção.
Para a análise das abordagens das produções, foram utilizadas as variáveis área do conhecimento de que partiram, tipo de publicação, tema central abordado e sujeitos analisados nos trabalhos.
Para a análise das perspectivas sobre o sexting, foram utilizadas as variáveis sobre o modo como foram abordadas as questões do risco, da violência e de gênero, a partir da leitura interpretativa dos textos (já que não se tratam de informações explícitas nas publicações como as demais variáveis). As três variáveis de cunho interpretativo que embasaram este trabalho foram escolhidas a partir de uma rápida constatação de que, com frequência, as publicações associavam o sexting a um comportamento de risco a priori, não associavam os comportamentos e as práticas violentas a padrões de gênero e não levavam em conta se o compartilhamento de mídias ocorria de modo autorizado, não diferenciando práticas violentas.
Variáveis sobre o contexto das produções
O gênero da primeira autoria foi atribuído a partir de pesquisas na internet sobre a identidade das autoras e dos autores das publicações, sendo categorizado em feminino e masculino.
O país da produção foi considerado como o país em que foi realizado o trabalho ou a pesquisa nos casos em que houve coleta de dados primários, sendo que, em alguns casos, houve coleta de dados em mais de um país.
Variáveis sobre a abordagem das produções
A área do conhecimento foi deduzida do periódico em que a produção foi publicada, já que o interesse era refletir sobre o campo específico com que dialogava. Nos casos em que o periódico era multidisciplinar, como aqueles voltados para temas amplos como adolescência e sexualidade, a informação foi deduzida do campo de trabalho da primeira autoria.
O tipo de publicação foi categorizado em “estudo de prevalência ou abordagem quantitativa”, “publicação de caráter ensaístico” (incluindo editoriais e cartas), “artigo de revisão” e “pesquisa qualitativa”.
A variável “tema central abordado” foi categorizada em “prevalência do sexting”; “relação com comportamento de risco”; “relação com situações de violência” (incluindo abuso sexual e o compartilhamento de mídias de forma não autorizada); “problemas e cuidados relativos ao sexting” (de modo geral de caráter instrucional); “saúde mental”; “percepção de jovens”; e “demais temas” (temas que apareceram com baixa frequência). Para cada produção, foi atribuído apenas um tema, aquele abordado centralmente.
Os sujeitos analisados nas publicações foram categorizados com base nas definições e classificações de faixa etária do Estatuto da Criança e do Adolescente44 Brasil. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 16 jul. e do Estatuto da Juventude55 Brasil. Lei nº 12.852, de 5 de agosto de 2013. Institui o Estatuto da Juventude e dispõe sobre os direitos dos jovens, os princípios e diretrizes das políticas públicas de juventude e o Sistema Nacional de Juventude - SINAJUVE. Diário Oficial da União 2013; 6 ago.. As categorias criadas foram: crianças e pré-adolescentes (menores de 12 anos), adolescentes (entre 12 e 18 anos), jovens não adolescentes (entre 19 e 29 anos) e pessoas adultas não jovens (a partir de 30 anos). As produções poderiam abranger mais de uma categoria, portanto.
Variáveis sobre a perspectiva do sexting
Com respeito à abordagem sobre o risco, as produções foram categorizadas entre as que atribuem ao sexting um comportamento de risco; as que relacionam o sexting a fragilidades emocionais (como baixa consciência e impulsividade) e a questões da ordem da saúde mental (como ansiedade e depressão) - em ambos os casos levando à prática do sexting e em menor frequência como consequências dessa prática; e as que não relacionam o sexting a comportamentos de risco.
No que tange à questão da violência, as publicações foram categorizadas com base no debate proposto por Krieger66 Krieger MA. Unpacking "Sexting": A Systematic Review of Nonconsensual Sexting in Legal, Educational, and Psychological Literatures. Trauma Violence Abuse 2016; 18(5):593-601. (trabalho esse que também integrou a revisão), quanto à associação entre sexting e comportamentos violentos, sobretudo o compartilhamento não autorizado de mídias. As produções foram avaliadas considerando a definição que apresentaram sobre sexting e se deduziam dele comportamentos violentos, se eram ambíguas, ou não deduziam comportamentos violentos.
Por fim, as publicações foram categorizadas entre as que fizeram uma abordagem de gênero, as que fizeram uma abordagem parcial e as que não fizeram qualquer abordagem, ainda que tivessem gênero como categoria de análise, mas ignorando o debate dos estudos de gênero na discussão dos resultados.
O banco de dados para análise estatística descritiva das variáveis foi elaborado no programa PSPP (GNU Project). Para avaliar a correlação entre as variáveis independentes (gênero da primeira autoria, ano de publicação, país da produção, área do conhecimento e tipo de publicação) e dependentes (variáveis relacionadas à perspectiva apresentada sobre o sexting) foi utilizado o teste Spearman, considerando o nível de significância de 0,05.
Resultados
Características gerais das publicações
Das 147 publicações analisadas, aproximadamente 60% tiveram mulheres como primeiras autoras. Apenas duas não tinham autoria específica, foram assinadas por comitês. Um pesquisador representou aproximadamente 5% das publicações como primeiro autor, tendo sido o restante distribuído entre diversas autorias.
Considerando o número de publicações por ano, observou-se um aumento gradual desde o primeiro ano de publicação (2009), à exceção do ano de 2015, e aumento expressivo em 2019. Até 2013, foram identificadas menos de 10 publicações por ano e, em 2019, elas chegaram apenas a 43.
Com relação ao país da produção, as estadunidenses corresponderam a mais da metade. As australianas corresponderam a, aproximadamente, 10% e as produções da Espanha, Bélgica, Canadá e Inglaterra corresponderam a, aproximadamente, 5% cada uma. Às produções da América do Norte se soma uma do México. As publicações europeias corresponderam a, aproximadamente, 30%, sendo que entre essas, três produções abrangeram mais de um país. Nigéria, Etiópia e Uganda somaram três publicações africanas e foi analisada também uma publicação da China. A América do Sul foi representada por duas produções, uma do Peru e uma do Chile, não havendo nenhuma publicação do Brasil.
Com respeito à área específica do conhecimento de que partiram as publicações, aproximadamente 35% eram da psicologia. A pediatria correspondeu a, aproximadamente, 15% das publicações e a saúde pública a 10%, seguida da psiquiatria com 7%. A enfermagem representou, aproximadamente, 5% das produções. Demais áreas médicas e da saúde corresponderam a pouco mais de 15% das produções, e as das ciências humanas e sociais a pouco mais de 10%.
No que tange ao tipo de publicação, os estudos de prevalência e quantitativos corresponderam a mais de 65%. As produções de caráter ensaístico, os artigos de revisão e as pesquisas qualitativas totalizaram, aproximadamente, 20%, 7% e 5%, respectivamente, das publicações. Entre os artigos de revisão, um deles era de abordagem qualitativa66 Krieger MA. Unpacking "Sexting": A Systematic Review of Nonconsensual Sexting in Legal, Educational, and Psychological Literatures. Trauma Violence Abuse 2016; 18(5):593-601..
Não foram identificadas correlações estatisticamente significativas (p>0,05) entre as variáveis gênero da primeira autoria, ano de publicação, país da produção, área do conhecimento e tipo de publicação e as variáveis relacionadas à perspectiva apresentada sobre o sexting.
Temas abordados e questões negligenciadas
Na análise do tema central abordado, observou-se que o mais explorado foi a prevalência do sexting, representando, aproximadamente, 25% do total, seguido de relação com comportamentos de risco, com pouco mais de 20%. Outros temas abordados foram: relação com situações de violência (cerca de 15%); problemas e cuidados relativos ao sexting (de modo geral de caráter instrucional), aproximadamente, 10% e saúde mental e percepção de jovens sobre o sexting (cerca de 10% das publicações cada). Ainda como tema central abordado, mas representando 2% ou menos das publicações, foram identificados: questões da legalidade, questões metodológicas, consumo de pornografia, percepção de famílias, religiosidade e relação entre sexting e produção de selfies.
Dentre os sujeitos analisados nas publicações, a categoria mais abordada foi adolescentes, representando em torno de 70% do total, seguida de jovens não adolescentes (aproximadamente 40%). Pré-adolescentes e crianças e pessoas adultas não jovens foram categorias menos abordadas, representadas em cerca de 10% das publicações, cada. Dentre as pessoas adultas não jovens, três publicações abrangeram também pessoas idosas. Diversas produções abrangeram mais de uma categoria.
Não foram identificadas correlações estatisticamente significativas (p>0,05) entre as variáveis “tema central abordado” e “sujeitos abrangidos nas produções” e as variáveis relacionadas à perspectiva apresentada sobre o sexting.
Com respeito à relação entre sexting e comportamento de risco, aproximadamente 20% das publicações apresentaram essa associação de forma direta. Aproximadamente metade das produções relacionou o sexting a questões de fragilidade emocional.
Com respeito à abordagem sobre violência, em pouco mais de 30% das publicações, a definição de sexting foi associada a práticas violentas. Em aproximadamente 40% essa definição se apresentou ambígua, somando 70% de publicações que deduziram do sexting práticas violentas de alguma maneira. Nas demais publicações (30%), a definição foi feita de forma a diferenciar a prática em si de situações de violência.
Por fim, com respeito à abordagem de gênero, na grande maioria das publicações (aproximadamente 80%) estiveram ausentes análises que considerassem desigualdades ou padrões de gênero. Aproximadamente 7% das publicações apresentaram abordagem parcial, e menos de 15% abordou o sexting como uma prática atravessada por questões de gênero.
Não foi identificada correlação estatisticamente significativa (p<0,001) entre as variáveis relacionadas à perspectiva apresentada sobre o sexting. Dentre as publicações que associaram sexting a risco e dentre aquelas que não fizeram abordagem de gênero, aproximadamente 80% não diferenciaram a prática de situações de violência. Com respeito à relação entre as abordagens de risco, dentre as que fizeram associação direta a risco, mais de 75% não realizou abordagem de gênero.
Discussão
Os dados sobre as características gerais das publicações demonstram que a produção sobre o sexting ainda é recente, o que já era esperado. Observou-se, quanto ao gênero da primeira autoria, maioria discreta de mulheres, entretanto, a grande maioria das produções possui autoria coletiva. Quanto à área do conhecimento de que partem as produções, chama a atenção a presença da enfermagem, provavelmente devido ao papel que desempenha, nos Estados Unidos e na Europa, quanto à educação sexual na saúde pública e nas escolas77 Bradbury-Jones C, Bradshaw S, Clark M, Lewis A. "I keep hearing reports on the news that it's a real problem at the moment": Public health nurses' understandings of sexting practices among young people. Health Soc Care Community 2019; 27(4):1063-1073. (no Brasil, por exemplo, não há atribuição específica para essa função).
Observou-se que os próprios temas centrais e sujeitos abordados já apontam para uma preocupação com relação à prática do sexting especificamente entre adolescentes e jovens, com ênfase nos riscos relativos ao comportamento sexual, a comportamentos violentos e à saúde mental.
Englander88 Englander E. What Do We Know About Sexting, and When Did We Know It? J Adolesc Health 2019; 65(5):577-578. afirma que as produções sobre o sexting podem ser classificadas em três fases. A primeira é caracterizada pela grande preocupação com a prática e com a associação direta ao risco de consequências graves, como exposição, assédio, suicídio, crime. A partir da segunda fase, deu-se início um processo de compreensão das consequências negativas como menos frequentes, relativas ao compartilhamento não autorizado de mídias, assim como a práticas coercitivas. Na terceira e atual fase, começa-se a reconhecer resultados positivos da prática, relacionadas à vivência saudável da sexualidade. Os resultados desta pesquisa apontam para as produções ainda estarem fortemente centradas no debate sobre risco, pois, mesmo em 2019, aproximadamente 70% das publicações relacionaram o sexting a comportamentos de risco. Mas, sobretudo, o que se problematiza neste trabalho é que nenhuma das fases propostas por Englander88 Englander E. What Do We Know About Sexting, and When Did We Know It? J Adolesc Health 2019; 65(5):577-578. apresentou abordagem que levasse em conta as questões de gênero que permeiam essas experiências. Esse é o debate que será apresentado mais adiante.
Sobre risco
Antes de refletir sobre o número de publicações que associaram sexting a comportamento de risco, é preciso levar em conta o viés dos próprios periódicos que privilegiam produções que têm como resultados correlações estatisticamente significativas99 Van Ouytsel J, Michel Walrave, Koen Ponnet, Wannes Heirman. The Association Between Adolescent Sexting, Psychosocial Difficulties, and Risk Behavior: Integrative Review. J Sch Nurs 2014; 3(1):54-69.. Além disso, a grande maioria delas trata de estudos transversais (até 2018 apenas uma publicação apresentou estudo longitudinal), não sendo possível, portanto, discutir causalidade.
Dentre as acepções do conceito de risco presentes nas publicações analisadas, tem se considerado o sexting como comportamento de risco e que pode ser associado a outros comportamentos de risco. Algumas acepções chegaram, inclusive, a atribuir, a determinadas populações, a identidade de “grupo de risco”. Contudo, a crítica à ideia de comportamento de risco relativa à culpabilização de indivíduos por se exporem a determinados desfechos, conforme debate proposto por Ayres et al.1010 Ayres JRCM, Calazans GJ, Saletti Filho HC, França-Júnior I. O risco, vulnerabilidade e práticas de prevenção e promoção da saúde [Internet]. [acessado 2020 mar 03]. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/347426/mod_resource/content/1/risco_vulnearabilidade%20Ayres%20e%20cols.pdf.
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.p... , parece bastante pertinente nesta análise. A ideia de que adolescentes precisam se responsabilizar por seus atos quando praticam sexting esteve presente de forma mais ou menos explícita nessas produções, e com cobranças específicas direcionadas às meninas, manifestando um viés implícito de gênero.
Foram feitas diversas associações entre o sexting e questões relativas à sexualidade (tanto as produções que se basearam em pesquisas com análise de dados primários ou secundários como as de caráter ensaístico). Nas publicações, esteve presente o debate sobre o sexting conduzir à iniciação sexual ou ser praticado entre jovens que já têm vida sexual ativa1111 Handschuh C, Cross AL, Smaldone A. Is Sexting Associated with Sexual Behaviors During Adolescence? A Systematic Literature Review and Meta-Analysis. J Midwifery Womens Health 2019; 64(1):88-97.. Algumas publicações chegaram a defender que o sexting não deveria ser desestimulado, pois é mais seguro que o sexo1212 Ybarra ML, Mitchell KJ. "Sexting" and Its Relation to Sexual Activity and Sexual Risk Behavior in a National Survey of Adolescents. J Adolesc Health 2014; 55(6):757-764., ou que seriam necessários investimentos em prol da redução da prática para reduzir o sexo de risco, já que estariam associados1313 Temple JR, Choi H. Longitudinal Association Between Teen Sexting and Sexual Behavior. Pediatrics 2014; 134(5):e1287-e1292.. O sexting também foi relacionado ao aumento da transmissão de infecções sexualmente transmissíveis (IST) e gravidez a partir da comparação da prevalência desses eventos1414 American College of Obstetricians and Gynecologists' Committee on Adolescent Health Care. Committee Opinion No. 653: Concerns Regarding Social Media and Health Issues in Adolescents and Young Adults. Obstet Gynecol 2016; 127(2):414..
Uma perspectiva protecionista foi observada diretamente no uso, nos títulos das publicações, de termos alarmistas como perigos1515 Sadhu JM. Sexting: The Impact of a Cultural Phenomenon on Psychiatric Practice. Acad Psychiatry 2012; 36(1):76-81. e bad romance (romance ruim)1616 Bianchi D, Morelli M, Nappa MR, Baiocco R, Chirumbolo A. A Bad Romance: Sexting Motivations and Teen Dating Violence. J Interpers Violence 2018; 0886260518817037.. A defesa do monitoramento pela família do uso de redes sociais por adolescentes1717 Tomić I, Burić J, Štulhofer A. Associations Between Croatian Adolescents’ Use of Sexually Explicit Material and Sexual Behavior: Does Parental Monitoring Play a Role? Arch Sex Behav 2018; 47(6):1881-1893. ou mesmo de orientações diretivas, de modo geral, demonstraram a ausência de perspectivas voltadas para a construção da autonomia de jovens, se não de uma completa descrença de que são capazes de fazer ponderações e escolhas conscientes relativas à vivência de sua sexualidade e prazer. Além disso, como afirmou Krieger66 Krieger MA. Unpacking "Sexting": A Systematic Review of Nonconsensual Sexting in Legal, Educational, and Psychological Literatures. Trauma Violence Abuse 2016; 18(5):593-601., muitas vezes as orientações trazem um sentido de preservação da reputação, cuja responsabilidade recai sobre as mulheres, como a menção explícita da necessidade de aconselhar adolescentes e mulheres jovens1111 Handschuh C, Cross AL, Smaldone A. Is Sexting Associated with Sexual Behaviors During Adolescence? A Systematic Literature Review and Meta-Analysis. J Midwifery Womens Health 2019; 64(1):88-97..
Ainda quanto a campanhas de cunho protecionista, como bem afirmou Walker et al.1818 Walker S, Sanci L, Meredith Temple-Smith. Sexting: Young Women's and Men's Views on Its Nature and Origins. J Adolesc Health 2013; 52(6):697-701., é preciso considerar que jovens não desconhecem riscos e que têm interesse em se envolver nas práticas mesmo levando-os em conta. Chama a atenção o fato de que nenhum trabalho indagou sobre a possibilidade de jovens se valerem de determinados procedimentos para se protegerem no sexting, como se sabe, por exemplo, da prática de omitir o rosto ou outras formas de identificação1919 Johansen KBH, Pedersen BM, Tjørnhøj-Thomsen T. Visual gossiping: non-consensual 'nude' sharing among young people in Denmark. Cult Health Sex 2019; 21(9):1029-1044.,2020 Petrosillo IR. Esse nu tem endereço - o caráter humilhante da nudez e da sexualidade feminina em duas escolas públicas [dissertação]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2016.. O debate em torno do que seria um sexting seguro, de modo similar ao proposto para o sexo seguro, fez-se presente apenas de forma diretiva, como a sugestão de que os sexts devem envolver apenas fotos sugestivas, mas não nudez explícita2121 Patchin JW, Hinduja S. It is Time to Teach Safe Sexting. J Adolesc Health 2019; 66(2):140-143..
As associações entre o sexting e as questões de saúde mental foram feitas em duas vias, tanto considerando que fragilidades emocionais conduzem à prática do sexting, tanto considerando-as como consequências dele2222 Barrense-Dias Y, Surís J-C, Akre C. "When It Deviates It Becomes Harassment, Doesn't It?" A Qualitative Study on the Definition of Sexting According to Adolescents and Young Adults, Parents, and Teachers. Arch Sex Behav 2019; 48(8):2357-2366.. O envio de mídias eróticas foi tomado como uma atividade impulsiva por parte de adolescentes, relacionado ao baixo nível de consciência2323 Gámez-Guadix M, Santisteban P. "Sex Pics?": Longitudinal Predictors of Sexting Among Adolescents. J Adolesc Health 2018; 63(5):608-614., e até mesmo ao subdesenvolvimento do córtex pré-frontal11 Judge A. "Sexting" Among U.S. Adolescents: Psychological and Legal Perspectives. Harv Rev Psychiatry 2012; 20(2):86-96., desconsiderando que pode ser feito de forma planejada e que também é praticado entre pessoas adultas. O sexting também foi relacionado ao consumo de álcool e outras drogas e à violência sexual contra mulheres2424 Dir AL, Riley EN, Cyders MA, Smith GT. Problematic alcohol use and sexting as risk factors for sexual assault among college women. J Am Coll Health 2018; 66(7):553-560.,2525 Titchen KE, Maslyanskaya S, Silver EJ, Coupey SM. Sexting and Young Adolescents: Associations with Sexual Abuse and Intimate Partner Violence. J Pediatr Adolesc Gynecol 2019; 32(5):481-486..
Este trabalho reafirma a crítica de Naezer2626 Naezer M. From risky behaviour to sexy adventures: reconceptualising young people's online sexual activities. Cult Health Sex 2018; 20(6):715-729. ao conceito de risco. A autora problematiza se determinadas atividades são mesmo de risco e questiona a falta de abertura a oportunidades nas pesquisas que possam culminar em resultados positivos com relação à prática do sexting. Naezer2626 Naezer M. From risky behaviour to sexy adventures: reconceptualising young people's online sexual activities. Cult Health Sex 2018; 20(6):715-729. defende que o risco precisa ser compreendido levando-se em conta aspectos subjetivos, assim como as normas socioculturais do contexto em que está inserido. Como exemplo, a autora utiliza o dado de seu trabalho etnográfico na Holanda, de que jovens apontaram riscos diferentes daqueles previstos nas pesquisas. A autora propõe como alternativa o uso do termo aventura, o que também pode ser problematizado quanto ao real sentido atribuído por jovens a suas ações.
Bosi2727 Bosi MLM. Problematizando o conceito de risco em diretrizes éticas para pesquisas em ciências humanas e sociais na Saúde Coletiva. Cien Saude Colet 2015; 20:2675-2682., em resgate da literatura crítica sobre o conceito de risco, propõe o uso do termo nocividade, sob a justificativa de que esse não traz em si o caráter quantificável como o termo risco, sendo mais apropriado ao campo da pesquisa qualitativa e das Ciências Humanas e Sociais no âmbito da Saúde Coletiva. De fato, a problematização realizada neste trabalho defende a necessidade da abordagem qualitativa no estudo sobre o sexting para que até mesmo as tentativas de quantificar comportamentos regulares possam ser capazes de alcançar as variáveis pertinentes. Ao buscar correlações entre o sexting e comportamentos sexuais e características da saúde mental, considerando a priori suas conexões, grande parte dos estudos deixaram de abordar o sentido da prática atribuído por jovens, não captando de modo satisfatório seus aspectos positivos, mas nem mesmo os negativos.
Por fim, notou-se que, ao centrarem-se nos riscos relativos à prática do sexting, as produções deixaram, de modo geral, de considerar as dimensões positivas dela, sem distinguir o que seriam práticas violentas, e o modo como se relacionam às desigualdades de gênero, como será discutido adiante.
Sobre violência
O trabalho de Krieger66 Krieger MA. Unpacking "Sexting": A Systematic Review of Nonconsensual Sexting in Legal, Educational, and Psychological Literatures. Trauma Violence Abuse 2016; 18(5):593-601. abordou a relação entre a associação do sexting ao risco e a não distinção das práticas violentas, que, ao desprezar as questões de gênero nelas imbrincadas, acabam por levar à responsabilização da mulher. A condenação moral de meninas que praticam sexting impede que, em casos de compartilhamento não autorizado, elas sejam consideradas vítimas, mas apenas nos casos em que o conteúdo foi roubado - a culpabilização da vítima, inclusive pela polícia, também é discutida em outro trabalho2828 Patchin JW, Hinduja S. The Nature and Extent of Sexting Among a National Sample of Middle and High School Students in the U.S. Arch Sex Behav 2019; 48(8):2333-2343..
A autora66 Krieger MA. Unpacking "Sexting": A Systematic Review of Nonconsensual Sexting in Legal, Educational, and Psychological Literatures. Trauma Violence Abuse 2016; 18(5):593-601. investigou a distinção entre o sexting e o compartilhamento não autorizado de mídias em publicações do campo da psicologia, educação e direito. Em quase 30% das publicações analisadas, não houve diferenciação entre as duas práticas e, em torno de 20%, a definição do sexting foi ambígua, confundida com o compartilhamento não autorizado. Os resultados deste trabalho mostraram que para o campo da saúde (no qual se inclui também a psicologia) a não distinção e as definições ambíguas foram ainda mais frequentes. A autora criou quatro tipologias para as formas como o compartilhamento não autorizado foi caracterizado. A primeira e mais frequente é marcada pela culpabilização da vítima (mais frequente na psicologia e na educação); seguida da minimização da responsabilidade (mais frequente no direito); além de bullying; e violência contra a mulher. Para além da culpabilização das vítimas e desresponsabilização dos agressores, Krieger ainda chama a atenção para a gravidade, no campo do direito, da ausência de distinção entre o sexting e a prática violenta, já que, em casos que envolvem menores, as vítimas também podem ser responsabilizadas.
De fato, como demonstraram alguns estudos2222 Barrense-Dias Y, Surís J-C, Akre C. "When It Deviates It Becomes Harassment, Doesn't It?" A Qualitative Study on the Definition of Sexting According to Adolescents and Young Adults, Parents, and Teachers. Arch Sex Behav 2019; 48(8):2357-2366.,2929 Yeung TH, Horyniak DR, Vella AM, Hellard ME, Lim MSC. Prevalence, correlates and attitudes towards sexting among young people in Melbourne, Australia. Sex Health 2014; 11(4):332-339., a diferenciação entre sexting e práticas violentas, embora não seja feita nas publicações, é feita por jovens. O compartilhamento não autorizado de mídias ocorre com frequência muito menor que o sexting3030 De Graaf H, Verbeek M, Van den Borne M, Meijer S. Offline and Online Sexual Risk Behavior among Youth in the Netherlands: Findings from "Sex under the Age of 25". Front Public Health 2018; 6:72. e a publicização dos conteúdos é a experiência negativa mais comum manifestada por jovens2424 Dir AL, Riley EN, Cyders MA, Smith GT. Problematic alcohol use and sexting as risk factors for sexual assault among college women. J Am Coll Health 2018; 66(7):553-560..
No que diz respeito especificamente às práticas violentas, Patchin e Hinduja2828 Patchin JW, Hinduja S. The Nature and Extent of Sexting Among a National Sample of Middle and High School Students in the U.S. Arch Sex Behav 2019; 48(8):2333-2343. explicam que o compartilhamento não autorizado de mídias eróticas pode envolver pornografia de vingança e sextorsão (extorsão sexual). A primeira ocorre de modo público, com a exposição das mídias após o rompimento da relação, e a segunda também pode se dar por vingança, mas ocorre de modo privado. Essas práticas violentas também são referidas como digital date abuse (DDA), ou abuso sexual por meio digital3131 Reed LA, Tolman RM, Ward LM. Snooping and Sexting: Digital Media as a Context for Dating Aggression and Abuse Among College Students. Violence Against Women 2016; 22(13):1556-1576. e mais recentemente no Brasil como abuso digital no relacionamento3232 Cavalcanti JG, Coutinho MPL. Abuso digital nos relacionamentos amorosos: uma revisão sobre prevalência, instrumentos de avaliação e fatores de risco. Avances Psicol Lat-am 2019; 37(2):235-254.,3333 Flach RMD, Deslandes SF. Abuso digital nos relacionamentos afetivo-sexuais: uma análise bibliográfica. Cad Saude Publica 2017; 33(7):e00138516..
Este trabalho defende, portanto, o uso do termo divulgação não autorizada da intimidade como forma de diferenciá-lo da prática do sexting, que não presume violência por si só. Além disso, a definição de sexting deve incluir não apenas os casos em que a mídia compartilhada pertence à pessoa remetente, mas também casos que ocorrem entre pares, como casais, colegas da mesma faixa etária, pessoas em relação de amizade, excluindo-se, portanto, casos que envolvem a relação entre menores de idade e pessoas adultas (pornografia infantil) e até mesmo diferentes posições sociais que denotam hierarquia, por exemplo, no ambiente de trabalho, que podem configurar assédio.
A importância desse debate se relaciona à centralidade do enfrentamento à violência na promoção da saúde. Minayo3434 Minayo MCS. Contextualização do Debate sobre Violência contra Crianças e Adolescentes. In: Violência faz mal à saúde. Brasília: MS; 2006. discute a prevenção às violências na promoção da saúde no contexto da proteção integral de crianças e adolescentes. Trata-se, pois, de condição para que esses sujeitos desenvolvam e cresçam de forma saudável, contribuindo para a sua cidadania plena.
Sobre gênero
A variável gênero esteve presente em grande parte dos estudos de prevalência, sem, contudo, que os resultados tenham sido discutidos à luz da abordagem de gênero na maioria deles.
A perspectiva que se defende neste trabalho é que, independentemente dos resultados a que se chegam, por exemplo, se mais ou menos mulheres praticam sexting em relação aos homens, não é possível analisá-los sem levar em conta as dinâmicas de gênero do contexto específico no qual se pesquisa. Se meninas enviam menos mídias eróticas próprias e experienciam menos resultados negativos, isso pode se dar pelo próprio fato de elas serem mais condenadas socialmente por isso3030 De Graaf H, Verbeek M, Van den Borne M, Meijer S. Offline and Online Sexual Risk Behavior among Youth in the Netherlands: Findings from "Sex under the Age of 25". Front Public Health 2018; 6:72., o que gera maior cautela. Isso não significa, por exemplo, que não sentem o desejo pela prática, do contrário pode representar um sentimento de repressão, que exigiria, por exemplo, uma abordagem mais voltada para a compreensão do desejo dessas jovens. Do mesmo modo, se homens mais adeptos a padrões de masculinidade tendem a receber mais sexts que enviar conteúdos próprios3535 Davis MJ, Powell A, Gordon D, Kershaw T. I Want Your Sext: Sexting and Sexual Risk in Emerging Adult Minority Men. AIDS Educ Prev 2016; 28(2):138-152., isso se dá claramente pela correspondência a padrões de gênero que objetificam o corpo feminino, de modo geral, mas não o masculino.
Tais diferenças representam desigualdades de gênero na medida em que criam normas (conflitantes) e moralidade para a prática sexual, sobretudo para as meninas, e envolvem formas de coerção e violência direcionadas a elas1919 Johansen KBH, Pedersen BM, Tjørnhøj-Thomsen T. Visual gossiping: non-consensual 'nude' sharing among young people in Denmark. Cult Health Sex 2019; 21(9):1029-1044.. Ressalta-se que, assim como na maioria dos casos de violência contra as mulheres em espaços físicos, as práticas em espaços digitais também são perpetradas por homens que fazem parte do ciclo social das vítimas2828 Patchin JW, Hinduja S. The Nature and Extent of Sexting Among a National Sample of Middle and High School Students in the U.S. Arch Sex Behav 2019; 48(8):2333-2343.,3636 Wolak J, Finkelhor D, Walsh W, Treitman L. Sextortion of Minors: Characteristics and Dynamics. J Adolesc Health 2018; 62(1):72-79..
As práticas da sexualidade, de modo geral, envolvem situações de conflito, assim como envolvem relações de prazer, não sendo diferente com a prática do sexting3737 Liong M, Cheng GH-L. Objectifying or Liberating? Investigation of the Effects of Sexting on Body Image. J Sex Res 2019; 56(3):337-344.,3838 Currin JM, Hubach HD, Sanders C, Hammer TR. Sexting Leads to "Risky" Sex? An Analysis of Sexting Behaviors in a Nonuniversity-Based, Older Adult Population. J Sex Marital Ther 2016; 43(7):689-702.. As contradições na vivência da sexualidade se acentuam para as mulheres no que diz respeito ao que se espera de seu comportamento1919 Johansen KBH, Pedersen BM, Tjørnhøj-Thomsen T. Visual gossiping: non-consensual 'nude' sharing among young people in Denmark. Cult Health Sex 2019; 21(9):1029-1044.. O debate sobre pornografia traz importantes contribuições para pensar a questão da objetificação das mulheres e sua autonomia. As divergências nas teorias feministas se dão em torno da perspectiva do enfrentamento à representação de subordinação da mulher, contra aquela que defende a pornografia, ou se posiciona contra a proibição dela, a partir da crítica a seu protecionismo, do risco de recair no essencialismo quanto ao papel da mulher, além da violação da autonomia de representar-se a si. Nesse sentido, defende-se que nem sempre há coação ao comportamento das mulheres, e é preciso saber distingui-la da violência3939 Biroli F. O debate sobre pornografia. In: Miguel LF, Biroli F. Feminismo e Política: uma introdução. São Paulo: Boitempo Editorial; 2014. p. 84-87., como tem sido defendido neste trabalho.
O debate sobre o corpo na cultura digital, mediado pela tecnologia, dá sequência ao da pornografia. Se, por um lado, atribui-se ao corpo uma possibilidade libertadora, de ocupar um novo espaço, também se concebe essa experiência de modo ambíguo, em que se amplia a disputa entre a instrumentalização tradicional do corpo e suas transgressões. A pornografia seria a melhor demonstração de que esse corpo segue marcado por condições de desigualdade4040 Manso AG, Diaz PM, Allende JS. El Eros Cyborg: La Cibercultura del cuerpo [Internet]. In: II Congreso Online 2004. Barcelona; 2004 [acessado 2020 jan 31]. Disponível em: https://www.dropbox.com/preview/Grupo%20de%20Estudos%20de%20Feminismo%20e%20G%C3%AAnero/Demais%20textos%20interessantes/Manso%20-%20El%20Eros%20Cyborg%3A%20La%20Cibercultura%20del%20cuerpo.pdf?role=personal.
https://www.dropbox.com/preview/Grupo%20... .
Por fim, propõe-se que, no campo da sexualidade, vivenciada sob múltiplos aspectos, cabe-nos focar naquilo que é público e político, como são as desigualdades e violências de gênero, especialmente contra jovens. Nesse sentido, o campo da saúde coletiva, seja na produção de cuidado ou na educação em saúde, precisa não perder de vista a complexidade que subjaz a promoção tanto da igualdade quanto da autonomia, de modo a não incorrer em práticas paternalistas e antidemocráticas, partindo-se do protagonismo das mulheres.
Considerações finais
A principal limitação deste trabalho está relacionada à fonte de busca das publicações. Embora o PubMed tenha sido escolhido por sua centralidade e abrangência, certamente gerou vieses quanto aos países de realização das publicações e quanto aos tipos de estudos analisados. O fato de terem sido consultadas apenas publicações em língua inglesa restringiu os países representados nesta análise, limitando com isso a diversidade de perspectivas culturais. O mesmo ocorreu quanto ao tipo de abordagem dos estudos, em sua maioria de caráter quantitativo - mais comum entre os periódicos indexados na base, restringindo, também, as perspectivas analíticas sobre a prática do sexting.
A análise empreendida neste trabalho evidenciou, entretanto, a demanda de um olhar do campo da saúde com relação ao sexting e à vivência da sexualidade juvenil que seja capaz de considerar as ambiguidades experienciadas nas vivências entre jovens. É preciso não tomar o risco como um pressuposto, de modo a considerar e explorar também as relações de prazer, de autonomia, mas, sobretudo, as questões concernentes às desigualdades, em que nesse contexto, ressaltam-se as relativas às questões de gênero.
Esta revisão aponta para a necessidade de trabalhos futuros apresentarem abordagens qualitativas, sobretudo aquelas que possibilitam maior tempo de imersão no campo analisado, explorando as relações entre os contextos digital e físico. Para além de ouvir as perspectivas de jovens, é preciso explorar seus contextos de sociabilidade, como escola e família, a fim de melhor compreender os sentidos atribuídos às experiências relativas ao sexting, assim como os conflitos e desafios relativos à sexualidade e à saúde de modo geral que delas derivam.
Por fim, é preciso não perder de vista o compromisso da saúde coletiva com a saúde integral de jovens, o que inclui a vivência da sexualidade de forma saudável e não violenta e desigual. Ainda que o atual contexto político cerceie o debate, e em especial a educação em torno a questões fundamentais ligadas à sexualidade e ao gênero, sobretudo na juventude, a ciência crítica se afirma ainda mais fortemente como uma importante ferramenta para a construção de uma sociedade mais saudável e democrática.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
02 Jul 2021 - Data do Fascículo
Jul 2021
Histórico
- Recebido
15 Abr 2020 - Aceito
01 Abr 2021 - Publicado
03 Abr 2021