Bobbio M. Medicina demais! O uso excessivo pode ser nocivo à saúde. (trad. Mônica Gonçalves). Barueri: Manole; 2020. 208p.

Maria Mônica Freitas Ribeiro Sobre o autor
2020

Marco Bobbio é um cardiologista italiano, integrante do Slow Medicine, movimento que se define como filosofia e prática médica que tem como premissa utilizar as melhores evidências científicas com foco no paciente e em seus valores11 Slow Medicine BR. Quem somos. [Internet]. [acessado 2020 maio 04]. Disponível em: https://www.slowmedicine.com.br/quem-somos/
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, resgatando entre outros princípios o tempo dedicado ao paciente, sua individualização, autonomia e autocuidado e o uso parcimonioso da tecnologia22 Slow Medicine BR. Princípios. [Internet]. [acessado 2020 maio 04]. Disponível em: https://www.slowmedicine.com.br/principios/
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. O movimento nasceu na Itália em 2002 e se disseminou pelo mundo, tendo chegado ao Brasil em 2014 com o lançamento do livro “O doente imaginado: os riscos de uma medicina sem limites” do mesmo autor33 Bobbio M. O doente imaginado. São Paulo: Bamboo Editorial; 2014..

O livro “Medicina Demais! O uso excessivo pode ser nocivo à saúde”, ora em análise, coloca em discussão os excessos da medicina atual tanto com relação ao uso abusivo da tecnologia quanto ao excesso de medicalização e suas consequências para o indivíduo e a saúde pública. O autor, cardiologista na área de transplantes, desde a década de 90 do século passado tem publicado sobre a incerteza, os riscos da falta de limites em medicina e a interferência da indústria de medicamentos e equipamentos médicos na prática em saúde, seja ela individual ou coletiva44 Marco Bobbio. Il paradosso della cura. [entrevista]. [acessado 2020 maio 04]. Disponível em: https://altreconomia.it/paradosso-cura-bobbio/
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Dividido em introdução e oito capítulos, já na introdução o autor chama atenção para a transformação de pessoas saudáveis em doentes pelo uso excessivo de tecnologia. Com a falsa premissa de que tudo pode ser evitado, uma excessiva busca por novos exames ou tratamentos é iniciada após pequenas alterações em exames complementares, sem levar em conta o indivíduo e o fato de que muitas vezes a diferença entre o normal e o patológico é muito sutil, como já alertava Canguilhem em 196655 Canguilhem G. O Normal e o Patológico. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1995., gerando no mínimo ansiedade para a pessoa. Nesse sentido questiona se fazer mais é sempre melhor.

No capítulo 1 discute a necessidade de certeza de gozo de plena saúde e de diagnóstico precoce pelos médicos e pacientes e a crença de que exames complementares se prestariam a esse fim. Alerta para o fato de que os exames não oferecem esta resposta por não serem valores absolutos, sofrerem influências diversas inclusive na definição de seus valores de referência, não serem isentos de riscos e gerarem iatrogenias, tanto por eles mesmos quanto pelo excesso propedêutico e terapêutico deles decorrentes. Encerra alertando para a necessidade de os profissionais aprenderem a conviver com a incerteza e compartilhá-la com seus pacientes, na busca pela conduta mais adequada para cada pessoa.

No capítulo 2 trata de expectativas irreais de médicos e pacientes frente à tecnologia médica, ignorando a multicausalidade das doenças e a imprevisibilidade da vida humana. Salienta a tendência de supervalorização de resultados positivos de intervenções, sem no entanto considerar seus riscos. Ignoram-se também os custos individuais para a realização de exames, mas sobretudo o custo para o sistema de saúde, seja ele público ou privado. Para o autor, a indicação de um exame desnecessário pode gerar dificuldades de acesso para pessoas que realmente necessitam fazê-lo, e há excesso de resultados normais. No Brasil, alguns trabalhos evidenciam este último ponto. Cerca de 80% dos exames laboratoriais solicitados em um hospital universitário nas áreas de cardiologia e endocrinologia apresentaram resultados normais66 Gomes AFMM, Nunes AA. Avaliação da solicitação de exames laboratoriais em um hospital universitário: consequências para a clínica e a gestão. Cad Saude Colet 2019; 2(4):412-419.. É importante ressaltar também a repetição de exames em pequenos intervalos de tempo, em pacientes saudáveis ou com doenças crônicas controladas, o que reflete a falta de um sistema de informações integrado que reduziria custos econômicos e individuais.

Com o título “Tratar ou não tratar”, o capítulo 3 aborda a incerteza da escolha diante de alternativas quando a diferença entre elas é, às vezes, irrelevante. Salienta a dificuldade que os médicos têm de ter uma posição neutra e atuar como mediadores emocionais da decisão do paciente em um momento angustiante de lidar com uma doença. Alerta, ainda, para os riscos de transformar a potência da medicina nos dias atuais em onipotência, quando não se colocam limites que visem o bem do paciente e levem em conta seus desejos.

No capítulo 4, o foco são os exames de rastreamento e os check-ups. Considera, com base em literatura que os check-ups são inúteis e que, embora a lógica dos rastreamentos seja atraente, em muitas situações seus riscos são maiores que os benefícios. Mesmo rastreamentos consagrados na prática médica são colocados em discussão, quando a análise leva em conta a redução de mortalidade ou morbidade e não o número de diagnósticos feitos.

Em “Informações condicionadas”, capítulo 5, descreve, através de vários exemplos, os conflitos de interesse enraizados no sistema de saúde em todos os seus níveis. Esses existem desde a concepção das pesquisas, a manipulação de suas conclusões, divulgação predominante de mensagens favoráveis e indução de utilização de exames e terapias sem evidências científicas de benefícios aos pacientes. O conflito de interesses na indústria farmacêutica e de equipamentos médicos é um problema bioético bastante conhecido e que vem sendo denunciado já há algum tempo77 Souza RP, Rapoport A, Dedivits RA, Cernea CR, Brandão LG. Conflitos de interesses na pesquisa médico-farmacológica. Rev Bioet 2013; 21(2):237-240.. Esses múltiplos conflitos de interesse impactam na independência da avaliação médica e na autonomia dos pacientes em relação a sua condição e aos cuidados em saúde.

No capítulo 6, “Como se defender dos exames e das denúncias”, aborda a medicina defensiva e seus efeitos nocivos. Discorre sobre a reponsabilidade civil e penal do médico na Itália. Aqui faz falta um adendo na tradução que considere a legislação brasileira sobre o tema, inclusive o que dispõem o Código de Ética Médica e o Código de Processo Ético-Profissional brasileiros88 Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.145/2016. [acessado 2020 maio 06]. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2016/2145
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. Salienta o sensacionalismo da imprensa que condena sem julgar, favorecendo a medicina defensiva. Alerta que a melhor forma de proteção para médicos e pacientes seria uma comunicação efetiva e adequada entre eles.

O capítulo 7complementa a discussão iniciada no capítulo 2, ao abordar os desperdícios resultantes do abuso de novas tecnologias e de medicalização excessiva, gerando grande desgaste para os pacientes e custo elevado e desnecessário para os sistemas de saúde. Destaca a necessidade de evitar os desperdícios, com análise de custo-efetividade adequada e sem conflitos de interesses das novas tecnologias e medicações. Conclui afirmando que tal conduta poderia gerar resultados positivos no investimento em saúde, com distribuição mais equânime de recursos.

“Fazer mais não significa fazer melhor”, é o mote do último capítulo, que reafirma a importância de usar a tecnologia de forma racional e científica visando ao melhor cuidado do doente. A aplicação de protocolos e diretrizes é boa se levar em conta o indivíduo, não sendo possível desconsiderar a complexidade do ser humano e suas necessidades, desejos e expectativas. Neste ponto o autor enfatiza sua preocupação com a formação dos profissionais para realizar o acolhimento, compreender os sintomas, o contexto de vida do paciente, estabelecer uma relação de confiança com o paciente e a família, e ainda, ter expectativas realistas sobre as inovações. Encerra o livro com um tópico sobre o movimento Slow Medicine, que propõe ter o paciente e suas necessidades como centro da relação entre o médico e o paciente.

O livro é muito instigante, trata de tema atual e capaz de gerar bastante controvérsia. O custo da medicina atual e os reais benefícios para o indivíduo e para a sociedade são tratados com base em extensa revisão da literatura. A busca de certeza, nem sempre apoiada em evidências científicas, a contaminação das evidências pela extensão dos conflitos de interesse e a transitoriedade da ciência são elementos colocados em cena para reflexão. O retorno da centralidade no paciente, com respeito a sua autonomia e a continuidade do cuidado, princípios também presentes na Medicina Centrada na Pessoa9 são colocados como fundamentais para o exercício de uma medicina menos invasiva e com maiores benefícios para médicos e pacientes.

É um livro que deve ser lido por profissionais e estudantes da área de saúde, incluindo gestores. Muitos dos exemplos citados no livro estão relacionados com o planejamento de ações em saúde, inclusive com sua avaliação. De leitura fácil e agradável, é acessível também a leitores leigos. Ao questionar a onipotência da medicina, o autor convida a todos a considerar a complexidade do ser humano, o que só é possível quando se exerce a arte do encontro que acontece na interação entre os seres humanos.

Referências

  • 1
    Slow Medicine BR. Quem somos. [Internet]. [acessado 2020 maio 04]. Disponível em: https://www.slowmedicine.com.br/quem-somos/
    » https://www.slowmedicine.com.br/quem-somos
  • 2
    Slow Medicine BR. Princípios. [Internet]. [acessado 2020 maio 04]. Disponível em: https://www.slowmedicine.com.br/principios/
    » https://www.slowmedicine.com.br/principios
  • 3
    Bobbio M. O doente imaginado. São Paulo: Bamboo Editorial; 2014.
  • 4
    Marco Bobbio. Il paradosso della cura. [entrevista]. [acessado 2020 maio 04]. Disponível em: https://altreconomia.it/paradosso-cura-bobbio/
    » https://altreconomia.it/paradosso-cura-bobbio
  • 5
    Canguilhem G. O Normal e o Patológico. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1995.
  • 6
    Gomes AFMM, Nunes AA. Avaliação da solicitação de exames laboratoriais em um hospital universitário: consequências para a clínica e a gestão. Cad Saude Colet 2019; 2(4):412-419.
  • 7
    Souza RP, Rapoport A, Dedivits RA, Cernea CR, Brandão LG. Conflitos de interesses na pesquisa médico-farmacológica. Rev Bioet 2013; 21(2):237-240.
  • 8
    Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.145/2016. [acessado 2020 maio 06]. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2016/2145
    » https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2016/2145
  • 9
    Stewart M, Brown JB, Weston WW, McWhinney IR, McWilliam CL, Freeman TR. Medicina Centrada na Pessoa. Transformando o Método Clínico. 2ª ed. Porto Alegre: Armed; 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Jul 2021
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