Resumo
A autonomia é um processo que nos capacita a compreender e agir sobre nós mesmos e sobre o ambiente. Na adolescência, transformações resultam no desenvolvimento da autonomia. Adolescentes com Síndrome de Down (ASD) têm limitações percepto-cognitivas e poucas oportunidades para aquisição de autonomia. Analisamos o desenvolvimento da autonomia em um grupo terapêutico de Terapia Ocupacional, com díades de ASD e seus principais cuidadores. A análise dos materiais documentais produzidos no processo terapêutico apontou quatro categorias de análise: autopercepção, percepção do outro, vivência compartilhada e mudança de atitude. Os resultados mostram relações simbióticas entre a díade, que dificultam o processo de individuação e limitam as oportunidades para realização das atividades de modo independente. O processo terapêutico baseado na pedagogia freiriana mobilizou de uma consciência ingênua para crítica, acarretando mudanças nas atitudes dos cuidadores em relação à identificação de potenciais e aceitação de limitações próprias e do ASD cuidado. Essa simbiose dificulta o processo de individuação e o acesso a experiências necessárias para o desenvolvimento de autonomia. O processo terapêutico pode modificar as atitudes dos cuidadores e propiciar continuidade do desenvolvimento e autonomia.
Key words:
Down syndrome; Adolescent; Autonomy; Caregivers; Occupational therapy
Abstract
Autonomy is a process that enables us to understand and act on the environment and on ourselves. During adolescence, transformations result in the development of autonomy. Adolescents with Down syndrome (ADS) have perceptual-cognitive limitations and few opportunities to acquire autonomy. The development of autonomy in an occupational therapy group, with dyads of ADS and their main caregivers was analyzed. The evaluation of the materials produced in the therapeutic process pointed to four categories of analysis: self-perception, perception of the other, shared experience and change of attitude. The results show symbiotic relationships between the dyad, which hamper the individuation process and limit the opportunities to carry out activities independently. The therapeutic process based on Paulo Freire’s pedagogy raised the level from an ingenuous to a critical awareness, resulting in changes in the attitudes of caregivers in relation to the identification of potential and acceptance of their own limitations and the ADS under care. This symbiosis complicates the individuation process and the access to experiences necessary for the development of autonomy. The therapeutic process can modify the attitudes of caregivers and foster continuity in development and autonomy.
Key words:
Down syndrome; Adolescent; Autonomy; Caregivers; Occupational therapy
Introdução
A adolescência é um período do desenvolvimento humano de transformações físicas, cognitivas, emocionais e sociais que resultam na aquisição de competências que contribuem para o desenvolvimento da autonomia11 Gaete V. Desarrollo psicosocial del adolescente. Rev Chil Pediatria 2015; 86(6):436-443.,22 Papalia DE, Feldman RD. Desenvolvimento Humano. Porto Alegre: Artmed;2013.. O desenvolvimento da autonomia é um processo que permite à pessoa compreender e agir sobre si mesmo e sobre o ambiente, importante para formação da identidade pessoal e transição para a vida adulta33 Caroni MM, Bastos OM. Adolescence and autonomy: concepts, definitions and challenges, Revista de Pediatria SOPERJ 2015; 15(1):29-34..
Além dos fatores pessoais e ambientais, as relações interpessoais também influenciam o desenvolvimento humano44 Bronfrenbrenner U. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas;1996.. Evidências apontam diferenças nas relações entre crianças com deficiências e suas mães quando comparadas com a relação entre mães e crianças com desenvolvimento típico, caracterizando as mães da primeira díade como mais diretivas e controladoras devido às dificuldades no desenvolvimento de seus filhos e filhas55 Gilmore L, Cuskelly M, Jobling A, Hayes A. Maternal support for autonomy: Relationships with persistence for children with Down syndrome and typically developing children. Research in Developmental Disabilities 2009; 30(5):1023-1033.,66 Sterling A, Warren SF. Maternal responsivity in mothers of young children with Down syndrome. Develop Neurorehabilitation 2014, 17(5):306-317..
Esse comportamento controlador e diretivo, associado às características de pessoas com síndrome de Down (SD), mais passivas e menos motivadas para se manterem persistentes do que os seus pares de desenvolvimento típico, pode acarretar em dificuldade para agir de forma independente em suas atividades, especialmente as de maior demanda, levando assim a um prejuízo na motivação no desenvolvimento da autonomia55 Gilmore L, Cuskelly M, Jobling A, Hayes A. Maternal support for autonomy: Relationships with persistence for children with Down syndrome and typically developing children. Research in Developmental Disabilities 2009; 30(5):1023-1033.,66 Sterling A, Warren SF. Maternal responsivity in mothers of young children with Down syndrome. Develop Neurorehabilitation 2014, 17(5):306-317..
Demonstrou-se que para o adolescente com síndrome de Down (SD) o desenvolvimento da autonomia é dificultado pelas limitações percepto-cognitivas e pelo restrito número de experimentações que o conduziriam à independência77 Bonomo LMM, Garcia A, Rossetti, CB. The adolescente with Down syndrome and his relationships network: na exploratory study about their friendships. Revista Psicologia - Teoria e Prática 2009; 11(3):114-130..
Um dos estudos descritos na literatura, sobre programas para o desenvolvimento de autonomia em adolescentes e jovens adultos, é o da Associazione Persone Down (AIPD). Este programa, no qual habilidades específicas eram ensinadas e treinadas, mediadas por um assistente social, visava desenvolver a capacidade para a autonomia em pessoas com SD88 Contardi A. The Educational Course in the Acquisition of the Autonomy of Associazone Italiana Persone Down. Downs Syndr Res Pract 1998; 5(2):93-98.. O programa abordava temas e realizava práticas referentes a cinco áreas: comunicação, orientação espacial, comportamento social, uso de dinheiro e acesso a serviços e compras. Nesse processo acreditava-se na importância das atividades práticas e funcionais para despertar a motivação dos adolescentes, pois tais estimulações poderiam gerar mudanças no desenvolvimento da autonomia. Esse estudo concluiu que, para além das capacidades de cada um, no que diz respeito à autonomia, o entrave ao desenvolvimento residia na carência de experiências e oportunidades oferecidas aos participantes, no caso, os adolescentes com SD88 Contardi A. The Educational Course in the Acquisition of the Autonomy of Associazone Italiana Persone Down. Downs Syndr Res Pract 1998; 5(2):93-98..
No Brasil não temos conhecimento de registros de programas ou cursos específicos para o desenvolvimento da autonomia em adolescentes, contudo reconhecemos, através de relatos vivenciais e mídias sociais, que existem muitas iniciativas e projetos com esse propósito. Entretanto, embora tais iniciativas possuam impacto na socialização e inclusão dessa população, não apresentam registros sistemáticos de suas atividades. Isso impede a socialização dos resultados e uma contribuição científica que propicie o aprimoramento destes e de outros programas99 Galera do Click. Galera do Click. [acessado 2019 out 12]. Disponível em: https://galera-click.tumblr.com/
https://galera-click.tumblr.com...
10 Simbora Gente. Projeto Simbora Gente. [acessado 2019 out 12]. Disponível em: https://www.simboragente.com/
https://www.simboragente.com...
11 Projeto de Lá pra Cá. Casa do Projeto de Lá pra Cá. [internet]. [acessado 2019 out 12]. Disponível em: https://www.facebook.com/pages/Casa-do-Projeto-De-La-Pra-Ca/163836693753574.
https://www.facebook.com/pages/Casa-do-P... -1212 Oficina dos Menestreis. Projeto UP - Oficina dos Menestreis. [acessado 2019 out 12]. Disponível em: http://oficinadosmenestreis.com.br/project/up/.
http://oficinadosmenestreis.com.br/proje... .
Contudo o desenvolvimento da autonomia, mais do que um processo terapêutico e assistencial, exige um processo educativo, de conscientização e empoderamento das pessoas. Neste sentido, buscamos, na área da educação, oferecer suporte para possibilitar e facilitar a efetividade desses processos educativos.
A literatura aborda a independência para Atividades Básicas de Vida Diária (ABVDs) e compara o desempenho entre crianças com SD e crianças com outras deficiências, porém são poucos os estudos que abordam a fase da adolescência e desenvolvimento da autonomia. Em 1994, um estudo desenvolvido por Shepperdson comparou o desenvolvimento da autonomia em duas coortes de adolescentes, nascidas em diferentes décadas, porém apenas realizou coleta e avaliação do desempenho, sem executar nenhuma intervenção1313 Afonso MLM, Vieira-Silva M, Abade FL. Grupal process and adult education. Psicol Estudo 2009; 14(4):707-715.. Apenas no estudo italiano de Contardi88 Contardi A. The Educational Course in the Acquisition of the Autonomy of Associazone Italiana Persone Down. Downs Syndr Res Pract 1998; 5(2):93-98., de 1998, encontramos a referência à um de um programa específico para o desenvolvimento de autonomia em adolescentes com SD, porém sem o trabalho em conjunto com seus cuidadores. Da mesma forma, estudos abordam sobre os cuidadores, seu perfil e a dinâmica entre mães e filhos com SD, mas não há estudos relatando o trabalho em conjunto entre as partes1414 Bardin L. Análise de conteúdo 1ª ed. São Paulo: Edições 70;2011.
15 Baghdadli A, Pry R, Michelon C, Rattaz C. Impact of autism in adolescents on parental quality of life. Quality of Life Research 2014; 23(6):1859-1868.-1616 Barros ALO, Barros AO, Barros GLM, Santos MTBR. Burden of caregivers of children and adolescents with Down Syndrome. Cien Saude Colet 2017; 22(11):3625-3634..
O referencial teórico de Paulo Freire, autor da pedagogia progressista no Brasil, é adotado como norteador para a prática de grupos que visam o desenvolvimento de autonomia e a promoção da saúde, na perspectiva de que o processo saúde-doença é coproduzido e permeado, não apenas por processos curativos e assistenciais, mas também por processos educativos1717 Franco TAV, Silva JLL, Daher DV. Educação em saúde e pedagogia dialógica: uma reflexão sobre grupos educativos na atenção básica. Serv Soc Saude 2011; 7(2):19-22..
Paulo Freire propõe em suas obras um método de educação multicultural, ético, libertador e transformador. Para ele a educação deve ser pautada no respeito e validação do contexto e historicidade das pessoas, a partir uma prática dialógica, construída no coletivo e na relação daquele que aprende com aquele que ensina1818 Miranda K, Barroso M. Freire's contribution to the practice and critical education in nursing. Rev Latino-Americana Enfermagem 2004:12(4):631-635..
Reflexões e reformulações dos processos educativos em saúde demonstram que a teoria de Paulo Freire tem contribuído também com a área da saúde1717 Franco TAV, Silva JLL, Daher DV. Educação em saúde e pedagogia dialógica: uma reflexão sobre grupos educativos na atenção básica. Serv Soc Saude 2011; 7(2):19-22.
18 Miranda K, Barroso M. Freire's contribution to the practice and critical education in nursing. Rev Latino-Americana Enfermagem 2004:12(4):631-635.-1919 Silveira LMC, Ribeiro VMB. Compliance with treatment groups: a teaching and learning arena for healthcare professionals and patients. Interface 2004; 9(16):91-104.. Ao referir o homem como um ser social, inserido em um contexto socioeconômico e cultural, e reconhecer a relação homem-mundo como dialética, a teoria de Paulo Freire demonstra e dialoga com a prática de cuidados interdisciplinares na saúde1818 Miranda K, Barroso M. Freire's contribution to the practice and critical education in nursing. Rev Latino-Americana Enfermagem 2004:12(4):631-635..
Em seu livro pedagogia da autonomia, Paulo Freire discorre sobre os processos de ensino-aprendizagem e suas características. Questiona a assimetria de poder existente nesses processos e justifica que o saber não é algo que alguém possa dar para o outro, como algo já elaborado, mas sim produzido na interação entre as partes, dentro de um contexto particular. Neste sentido, afirma que ensinar não é transferir conhecimento, mas sim criar possibilidades para a sua própria sua construção. Compreendemos assim que a construção do conhecimento é realizada na reciprocidade, onde educador e educando estão envolvidos em um processo dialético, que transforma a ambos2020 Freire P. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra; 2002..
Para que tais transformações ocorram se faz necessária a criação de um espaço para a conscientização do inacabamento, isto é, que cada um possa assumir seu constante processo de aprendizagem. A partir desse reconhecimento é possível construir espaços para uma escuta atenta, para conhecer o outro e entender suas necessidades de aprendizagem, para então estabelecer o processo de ensino aprendizagem e, em última instância a criação de saber, com o outro2020 Freire P. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra; 2002..
Trazendo essa percepção para a relação terapêutica, nota-se que o encontro entre os saberes do terapeuta (técnico, prático da profissão e pessoal) e o saber prático da pessoa em terapia, permite a produção de espaços de trocas, de escuta e percepção do inacabamento, com consequente produção de saberes. Freire aponta que saber ouvir só é possível quando reconhecemos que o homem não está sozinho no mundo e que a mudança só pode ser impressa no mundo com os outros humanos. Saber ouvir implica em respeitar as falas que contradizem ou que questionam a fala e o saber científico e com elas dialogar1717 Franco TAV, Silva JLL, Daher DV. Educação em saúde e pedagogia dialógica: uma reflexão sobre grupos educativos na atenção básica. Serv Soc Saude 2011; 7(2):19-22.,2020 Freire P. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra; 2002.. O verdadeiro diálogo entre educando e educador possibilita que cada um deles relacione-se, não apenas com o outro, mas também com suas realidades, sua cultura e seu mundo. Assim, respeitar, acolher e integrar o conhecimento prévio, trazido pelo outro para esses processos de ensino-aprendizagem, pode agregar e somar ao momento da produção e criação do novo2020 Freire P. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra; 2002.,2121 Masson LP, Brito JC, Sousa RNP. Work and Health Status of Care-Givers of Disable Adolescents: an approach from the activity point of view. Saude Soc 2008; 17(4):68-80..
Dessa forma, a relação terapêutica também pode ser compreendida como uma relação dialógica, a qual demanda cuidados à saúde da pessoa em terapia inserida no processo de mudanças das práticas institucionais. Para tanto, faz-se necessário o reconhecimento social e humano e o respeito mútuo entre terapeuta e pessoa em terapia, cada um com visões de mundo e da saúde geralmente diferenciadas. No caso das pessoas com deficiência, com relativa autonomia ou autonomia parcial este diálogo inclui a família e seu principal cuidador.
Reconhecer a identidade cultural do outro, com quem dialogamos, pode agregar aos processos de produção de conhecimento coletivo e contribuir para a emancipação das pessoas.2121 Masson LP, Brito JC, Sousa RNP. Work and Health Status of Care-Givers of Disable Adolescents: an approach from the activity point of view. Saude Soc 2008; 17(4):68-80.
A teoria de Paulo Freire, pautada no diálogo, na construção coletiva de saberes, no respeito à cultura e conhecimento trazido pela pessoa em terapia e sua família, pode ser utilizada para transformar o olhar e a atitude das pessoas frente ao próprio processo de saúde e desenvolvimento da qualidade de vida, de modo a torná-los mais conscientes, protagonistas e autônomos.
Este estudo tem como objetivo analisar, por meio de análise documental,o desenvolvimento da autonomia de adolescentes com SD e seus principais cuidadores em um grupo de Terapia Ocupacional, utilizando como embasamento os princípios da pedagogia de Paulo Freire.
Métodos
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FMUSP (CEP-FMUSP) e autorizado pela diretoria da Rede Lucy Montoro/ Instituto de Medicina Física e Reabilitação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, onde o estudo foi realizado, a partir das atividades terapêuticas do “Grupo de Autonomia” do Programa de Reabilitação para SD”, realizados nos anos de 2012 a 2014.
Desenho e participantes do estudo
Este estudo foi retrospectivo e exploratório, com amostra de 13 díades de adolescentes com SD, entre 13 e 19 anos, e seus principais cuidadores. Os critérios de inclusão foram: idades entre 13 e 19 anos e independência para as ABVDs -alimentação, banho, higiene pessoal e vestuário. Utilizou-se a classificação das faixas etárias dos adolescentes de Gaete: adolescência inicial (10 a 13-14 anos), adolescência média (14-15 a 16-17 anos) e adolescência tardia (a partir de 17-18 anos em diante)11 Gaete V. Desarrollo psicosocial del adolescente. Rev Chil Pediatria 2015; 86(6):436-443..
As díades - adolescentes e seus principais cuidadores, foram convidados a participar do grupo pelos serviços de Terapia Ocupacional e Psicologia, através de ligação telefônica e conversa com o cuidador. Foram convocados para participar a cada anodo estudo cinco díades.
O Grupo de Autonomia apresentou como objetivos o desenvolvimento da autonomia tanto em adolescentes como em cuidadores, a compreensão de dificuldades e potencialidades e do conceito de autonomia, por meio de vivências em espaços sociais compartilhados e estímulos à maior participação e independência nas atividades instrumentais de vida diária (AIVDs). O grupo ocorria em dois encontros semanais, por duas horas, com duração de dez meses em 2012 e de nove meses em 2013 e 2014. Os atendimentos eram realizados exclusivamente com adolescentes ou cuidadores, sendo que ambos participavam do atendimento do núcleo profissional.
O cronograma sofreu pequenas alterações e adaptações ao longo do período de 2012 a 2014 de acordo com a singularidade de cada grupo. As atividades eram sequenciais, com aumento crescente de complexidade dos objetivos terapêuticos e educacionais e integravam as diferentes temáticas propostas pelo processo terapêutico (Quadro 1).
A matriz de competência é uma ferramenta de planejamento educacional, utilizada internacionalmente que faz o alinhamento dos objetivos educacionais, estratégias educacionais e avaliação. Dessa forma, para cada atividade foram definidos objetivos terapêuticos e educacionais, sua forma de avaliação e garantia de feedback constante aos participantes, conforme descrito no Quadro 2.
Coleta de dados
Foram considerados registros relativos ao processo terapêutico ocupacional das atividades dos “Grupos de Autonomia” realizados nos anos de 2012 a 2014 dos quais a autora participou como terapeuta. Os instrumentos analisados encontram-se no Quadro 3, enquanto que a Figura 1 ilustra uma das diversas atividades feitas com os adolescentes com síndrome de Down.
Registro fotográfico de adolescentes em atividades de estímulo a habilidades matemáticas e de uso de dinheiro e calculadora. A. Jogo de compras; B. Atividade de confecção de listas de compras; C. Uso de calculadora em mercado; D. Adolescentes em supermercados realizando uso de dinheiro.
Análise dos dados
A análise dos dados foi realizada pelo método de análise de conteúdo2222 Giallo R, Wood CE, Jellett R, Porter R. Fatigue, wellbeing and parental self-efficacy in mothers of children with an Autism Spectrum Disorder. Autism 2013; 17(4):465-480.. A leitura e análise dos dados foram realizadas por duas pesquisadoras, sendo uma delas o terapeuta do grupo, inserida no contexto do estudo e a segunda pesquisadora especialista em análise qualitativa. Ambas realizaram análises individuais, que posteriormente foram pareadas.
A análise dos dados teve início com uma leitura flutuante de todo o material, seguindo a seguinte sequência de análise de material: fotos, vídeos, produções artesanais, textos e evoluções escritas. Os produtos artesanais e fotos foram categorizados após a análise documentale posteriormente foi realizada a análise de conteúdo, de acordo com Bardin2222 Giallo R, Wood CE, Jellett R, Porter R. Fatigue, wellbeing and parental self-efficacy in mothers of children with an Autism Spectrum Disorder. Autism 2013; 17(4):465-480..
Após a leitura, cada pesquisadora identificou um conjunto de temas, os quais foram apresentados e discutidos, e compuseram uma matriz de consenso para estabelecer as categorias mais frequentes e conteúdos relevantes de acordo com os objetivos da pesquisa.
Para maior qualidade, rigor e confiança na análise dos dados qualitativo, este estudo seguiu o COnsolidated criteria for REporting Qualitative research (COREQ) e o Critical Appraisal Skills Programme (CASP)23,24 .
Resultados
Durante os três anos de grupos foram convidadas 13 díades das quais duas não puderam participar do grupo terapêutico. Sendo assim, 13 díades de adolescentes com SD e seus cuidadores foram os sujeitos da pesquisa do estudo.
Entre os adolescentes, oito são do sexo masculino e cinco do sexo feminino e suas idades variaram de 13 a 19 anos. Observamos predominância de adolescentes na faixa etária da adolescência média (61%), seguida pela faixa etária da adolescência tardia (31%) e adolescência inicial (8%).
A amostra de cuidadores foi composta por 13 sujeitos, todos do sexo feminino, com idades entre 35 e 57 anos, com maior predominância, sete (54%), para a faixa etária de 51 a 55 anos. Quanto à idade materna ao nascimento do filho com SD a distribuição variou entre 19 e 40 anos, com maior predominância, sete (54%), na faixa etária de 35 a 40 anos. Em relação à escolarização, seis (46%) apresentavam ensino fundamental incompleto, duas (15%) tinham ensino fundamental completo, quatro (31%) apresentavam ensino médio completo e uma (8%) apresentava ensino superior completo. Quanto à profissão dez (77%) eram do lar, uma (7%) diarista, uma (8%) pedagoga e uma (8%) atendente de suporte técnico. Quanto à religião, 12 (92%) eram cristãs e uma (8%) não informou a religião.
Em relação aos dados qualitativos, a análise do conteúdo permitiu buscar as evidências de efetividade do processo terapêutico, e compreender como ocorreu a mudança de postura e valores, que possibilitaram alcançar competência e independência tanto das pessoas com SD, foco do processo, quanto de seus cuidadores. A investigação acerca do desenvolvimento da autonomia durante o processo terapêutico resultou nas seguintes categorias de análise: autopercepção, percepção do outro, vivência compartilhada e mudança de atitude
Autopercepção: os resultados envolveram aspectos da relação simbiótica entre adolescente e cuidador, do processo de individuação, da identificação e aceitação de potenciais e limitações. No início do processo terapêutico observamos simbiose entre os componentes do binômio, delimitando os papéis de cuidador e cuidado. Para os cuidadores o papel de cuidador era estruturante e dificultava perceber e assumir outros papéis sociais. Da mesma forma, os adolescentes ao assumirem o papel daquele que é cuidado se colocava em uma posição de dependência e pouca iniciativa, o que não contribuía com a sua exposição à novas experiências e consequente desenvolvimento da autonomia. Observamos que essa simbiose é vivida e expressada intensamente e, de acordo com o relato de uma cuidadora, em projeções futuras se possível não seria quebrada nem mesmo no momento da sua finitude.
Quando eu for (morrer), quero que minha filha vá junto comigo (Registro de evolução 2012).
Solicito que L. abra a caixa e monte o jogo na mesa, para realizar com seus amigos. L. fica parado olhando para caixa e para mim. Preciso guiar passo a passo que ele tem que fazer, e mesmo assim, demonstra-se inseguro (Registro de evolução 2013).
As atividades propostas no processo terapêutico possibilitaram a identificação de potências e a aceitação de limitações próprias, o que permitiu o processo de individuação - luta do adolescente por autonomia e diferenciação, ou identidade pessoal.22 Papalia DE, Feldman RD. Desenvolvimento Humano. Porto Alegre: Artmed;2013. Foi possível, assim, olhar para o outro e estabelecer novas relações com o grupo e de si mesmo diante de novas possiblidades.
Percepção do outro: foi observada a dificuldade dos cuidadores em identificar as potencialidades e aceitar as limitações de seus filhos e filhas. Ao longo do processo terapêutico, os cuidadores se tornaram mais sensíveis em relação ao desempenho funcional dos adolescentes com SD, percebendo com maior empatia o processo de desenvolvimento e as dificuldades desses. Também nessa categoria incluímos a mudança do olhar dos adolescentes, saindo de si e voltando-se para os demais participantes, o que possibilitou o trabalho em grupo e criação de vínculo entre eles, como exemplificado pela atividade da cabra-cega, na qual os adolescentes experimentaram a mudança de papéis e tornaram-se aquele que também cuida. Perceber o outro e seu contexto permitiu o desenvolvimento de vínculos afetivos, vivenciados dentro e fora do processo terapêutico, conforme relatos dos participantes.
Fiz a receita com ele em casa para o vídeo. Acho que ele está entendendo como fazer, sabe? Mas teve coisas que eu tive que ajudar, ele ainda não sabe muito bem regular as medidas, mas está indo (Registro de evolução 2014).
Ao ensinar a trama das tranças W. percebe que AP. e C. apresentam dificuldades. Ela repete a atividade diversas vezes, com muita paciência, muda os tipos de tramas para mais simples, até que as outras cuidadoras aprendam (Registro de evolução 2013).
Vivência compartilhada: foram incluídas as reflexões emergentes das atividades de ensino e aprendizagem, experimentadas no processo terapêutico do grupo de cuidadores. Durante tais atividades os cuidadores puderam vivenciar aspectos relacionados ao ensinar que demonstraram o quanto a sua comunicação nem sempre era efetiva, que era necessário repetir orientações, permitir inúmeras tentativas, aceitar os erros e adequar a exigência do produto e permitir a liberdade de criação. Por outro lado, na posição daquele que aprende, foi possível vivenciar as dificuldades inerentes ao processo, que colocaram os cuidadores frente às suas próprias limitações. Estas vivências foram relacionadas aquelas vividas com seus filhos e filhas. As vivências relativas ao processo de ensino aprendizado foram ações mediadas com a intencionalidade de provocar reflexões e desenvolver consciência crítica diante de suas ações.
Ao final da atividade, F. refere que tem muita dificuldade, mesmo após ter tentado diversas vezes e reflete sobre episódios em que chamou sua filha de burra e incapaz (Registro de evolução 2013).
Iniciamos atividade do mosaico. Todas as mães estão bastante empenhadas. S. relata que é muito exigente com o seu resultado, e reflete que talvez coloque a mesma exigência em seu filho (Registro de evolução 2014).
Mudança de atitude: identificamos o desenvolvimento da empatia dos cuidadores, no que se refere aos limites do outro, a construção de relações de confiança e corresponsabilização, bem como o desenvolvimento de planos futuros e mudanças no papel social. Observamos uma mudança na atitude dos cuidadores para os potenciais dos adolescentes, valorizando suas habilidades e incentivando sua independência. Quanto aos adolescentes, notamos também mudanças de atitude, com maior responsabilização e iniciativa para as ações, percebendo-se capazes de realizar as atividades de modo independente.
Após a atividade de jardinagem os adolescentes organizam os materiais, limpam os utensílios e guardam, sem que a terapeuta precise solicitar ou mesmo guiar as etapas (Registro de evolução 2014).
Agora a F. me ajuda em todas as atividades em casa. Não sobra mais tudo para eu fazer, deu uma aliviada na sobrecarga (Registro de evolução 2014).
Ainda nessa categoria, incluímos a retomada de planos dos cuidadores e perspectivas de planos futuros para os adolescentes. Novas perspectivas só foram possíveis devido às mudanças geradas a partir das reflexões, o que permitiu que os componentes do binômio assumissem e compartilhassem novos papéis, tanto em relação ao cuidado quanto em relação à inserção social. Tais mudanças demonstram o aprendizado consolidado e o impacto do processo terapêutico em suas vidas. Tanto o cuidador quanto aquele que é cuidado admitiram para si novas possibilidades de estar no mundo e vir a ser.
Voltei a estudar porque agora posso deixar o M. responsável por cuidar do seu irmão menor em casa (Registro de evolução 2013).
Quero continuar esse trabalho, com as outras mães. Acho que isso que é importante. Para que possamos dar mais oportunidades para nossos filhos (Registro de evolução 2012).
Discussão
Ao analisar a amostra dos adolescentes com SD, observamos que a faixa etária predominante foi na adolescência média, entre 14 e 17 anos, com porcentagem de 61%. É possível inferir que essa seja a faixa etária favorável ao desenvolvimento de autonomia em adolescente em termos de habilidades motoras e cognitivas e maturidade emocional.
Em relação aos cuidadores, observamos que a totalidade era do gênero feminino, 13 (100%), achado concordante com a literatura, que enfatiza a tradição histórica e cultural da mulher em assumir a responsabilidade principal do ato de cuidar, indicando que independe do tipo de condição da pessoa que recebe cuidados e do grau de parentesco do cuidador1616 Barros ALO, Barros AO, Barros GLM, Santos MTBR. Burden of caregivers of children and adolescents with Down Syndrome. Cien Saude Colet 2017; 22(11):3625-3634.,2525 Trigueiro LCL, Lucena NMG, Aragão POR, Lemos MTM. Socio-demographic profile and quality of life index for caregivers of people with physical disabilities. Fisiot Pesq 2011; 18(3):223-227.,2626 Eisenhower AS, Baker BL, Blacher J. Children's delayed development and behavior problems: Impact on mothers' perceived physical health across early childhood. Soc Sci Med 2009; 68(1);89-99.. Esse predomínio de mulheres cuidadoras parece amparado na vivência da maternidade, determinando assim que as mulheres estariam designadas para lidar com as atividades de cui dado, ensinada às mulheres dentro da própria família, através das gerações2727 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo 2010. [acessado 2018 jan. 25]. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/resultados.html.
https://censo2010.ibge.gov.br/resultados... .
Refletindo sobre as atividades laborais exercidas, dez (77%) não tinham trabalhos formais, o que é confirmado por estudos que relatam o cuidado de pessoas com doenças crônicas atrelado às jornadas mais intensas e, consequentemente, necessidade de abdicação das atividades profissionais2727 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo 2010. [acessado 2018 jan. 25]. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/resultados.html.
https://censo2010.ibge.gov.br/resultados... ,2828 Masuchi MH, Rocha EF. Care of people with disabilities: a study with caregivers assisted of the family health program. Rev Ter Ocup Univ São Paulo 2012; 23(1):89-97..
Quanto ao grau de escolaridade dos cuidadores, observamos que seis (46%) dos cuidadores apresentavam Ensino Fundamental incompleto. Estudos demonstram que cuidadores de pessoas com deficiência apresentam baixo grau de escolaridade2929 Shepperdson B. A comparison of the development of independence in two cohorts of young people with Down's syndrome. Downs Syndr Res Pract 1994; 2(21):11-18., enquanto outros comparam o grau de escolaridade entre mãe de crianças com e sem deficiência, apontando menores níveis de escolaridade em mães de crianças com deficiência2929 Shepperdson B. A comparison of the development of independence in two cohorts of young people with Down's syndrome. Downs Syndr Res Pract 1994; 2(21):11-18.,3030 Pazin AC, Martins MRI. Functional performance of children with Down syndrome and the quality of life of their caregivers. Rev Neurocien 2007; 15(4):297-303.. Vale ressaltar que o presente estudo foi realizado em instituição pública que oferece atendimento gratuito.
Observamos que 12 (92%) da amostra assumiu uma religião, igualmente distribuída entre católicos e evangélicos. De acordo com dados do censo demográfico de 2010, publicados pelo IBGE, há prevalência de católicos e evangélicos no Brasil, com a população evangélica aumentando em número nos últimos anos3131 Ribeiro M, Santos I, Campos A, Gomes M, Formiga C, Prudente C. Mothers of children, adolescents and adults with Down syndrome: stress and coping. Atas CIAIQ 2016; (2):1396-1405.. Apenas um (8%) cuidador da amostra declarou-se sem religião. Segundo demonstrado por Masuchi e Rocha, a crença religiosa pode ter papel importante, uma vez que modifica a visão de mundo do sujeito e serve como força propulsora para melhor enfrentamento e superação diante de dificuldades, minimizando assim o estresse que possa ser causado pelo cuidado3232 Wegner W, Pedro ENR. The multiple social roles of female lay caretakers of hospitalized children. Rev Gaucha Enferm 2008; 31(2):335-342..
O desenvolvimento da autonomia em pessoas com desenvolvimento típico e com SD inicia-se na primeira infância e continua na adolescência. Em pessoas com SD, alterações cognitivas e de autocuidado podem trazer atrasos no desenvolvimento funcional, de modo a interferir na execução das atividades diárias, na formação da identidade pessoal e independência do adolescente3333 Amaral MF, Drummond AF, Coster WJ, Mancini MC. Household task participation of children and adolescents with cerebral palsy, Down syndrome and typical development. Res Develop Disabilities 2014; 35(2):414-422.
34 Dolva AS, Coster W, Lilja M. Functional Performance in Children With Down Syndrome. Am J Occup Ther 2004; 58(6):621-629.
35 Mancini MC, Silva PCE, Gonçalves SC, Martins SM. Comparison of functional performance among children with Down syndrome and children with age-appropriate development at 2 and 5 years of age. Arquivos de Neuro-Psiquiatria 2013; 61(2B):409-415.-3636 Nunes MDR, Dupas G. Independence of children with Down syndrome: the experiences of families. Revista Latino-Americana de Enfermagem 2011; 19(4):985-993..
Para além de fatores pessoais do desempenho do adolescente, estudos discorrem sobre o modo como a assistência oferecida pelos cuidadores interfere no desenvolvimento da autonomia em pessoas com SD. Ao comparar o desempenho funcional em crianças e adolescentes com SD, e em crianças e adolescentes com paralisia cerebral, estudos relatam que os primeiros desenvolvem um número menor de tarefas de autocuidado, recebem maior assistência de seus cuidadores e apresentam menores índices de independência3333 Amaral MF, Drummond AF, Coster WJ, Mancini MC. Household task participation of children and adolescents with cerebral palsy, Down syndrome and typical development. Res Develop Disabilities 2014; 35(2):414-422..
Para Bronfembrenner, o desenvolvimento humano é resultado da interação entre organismo e ambiente e as relações estabelecidas são espaços de desenvolvimento44 Bronfrenbrenner U. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas;1996.. Nesse sentido, se um dos membros de uma relação passa por um processo de desenvolvimento, estará contribuindo para a ocorrência do mesmo processo no outro, pois a pessoa não apenas está inserida no contexto, como também o influencia e o modifica44 Bronfrenbrenner U. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas;1996.,3737 Martins E, Szymanski H. The ecological approach of Urie Bronfenbrenner in studies with families. Est Pesq Psicol 2004; 4(1):63-77..
Compreendemos a necessidade de atuação da família, por sua importância, no desenvolvimento dos adolescentes, principalmente os parentescos que exerciam maior influência no cotidiano dos adolescentes. Como parte do trabalho terapêutico, estabelecemos o processo educacional dos cuidadores, com objetivo de mudanças nas atitudes e nas relações estabelecidas entre eles.
Em nosso estudo, observamos que o desenvolvimento da autonomia tinha influência da relação com o cuidador principal, nesse caso, em sua maioria (92%), suas mães. Há evidências de que existem diferenças nas relações entre crianças com deficiências e suas mães quando comparadas com a relação entre mães e crianças com desenvolvimento típico, pois mães de crianças com deficiência são mais diretivas e controladoras devido às dificuldades no desenvolvimento de seus filhos e filhas55 Gilmore L, Cuskelly M, Jobling A, Hayes A. Maternal support for autonomy: Relationships with persistence for children with Down syndrome and typically developing children. Research in Developmental Disabilities 2009; 30(5):1023-1033.,66 Sterling A, Warren SF. Maternal responsivity in mothers of young children with Down syndrome. Develop Neurorehabilitation 2014, 17(5):306-317.. Observamos também, no presente estudo, comportamentos controladores e diretivos, especialmente quando analisamos a dificuldade em compartilhar do papel de cuidador e atuar em novos papéis. Esse comportamento controlador e diretivo, diante de características de pessoas com SD, mais passivas e menos motivadas para se manterem persistentes do que os seus pares de desenvolvimento típico, pode acarretar em dificuldade para agir de forma independente em suas atividades, especialmente as de maior demanda, levando assim a um prejuízo em sua motivação para a autonomia55 Gilmore L, Cuskelly M, Jobling A, Hayes A. Maternal support for autonomy: Relationships with persistence for children with Down syndrome and typically developing children. Research in Developmental Disabilities 2009; 30(5):1023-1033.,66 Sterling A, Warren SF. Maternal responsivity in mothers of young children with Down syndrome. Develop Neurorehabilitation 2014, 17(5):306-317..
A partir das atividades artesanais realizadas nos grupos terapêuticos com os cuidadores, buscamos refletir sobre o processo de aprender e ensinar, a partir da vivência dos seus percursos, para assim desenvolver um olhar crítico sobre o cuidar e educar de seus filhos e filhas. Baseados nos saberes da educação de Paulo Freire, buscou-se elementos que pudessem contribuir para um aprendizado significativo, criativo e transformador.
As atividades de ensino-aprendizagem proporcionaram a criação de espaços para conhecer e reconhecer o outro, entrando em contato com diferentes saberes a cada nova atividade. Conhecer os limites e potenciais próprios e do outro permitiu aos cuidadores a autopercepção do inacabamento, da necessidade de conhecer mais a si e ao outro. Dessa forma, foi possibilitada uma escuta atenta...uma escuta, que segundo Freire, não julga e respeita a vivência de cada um2020 Freire P. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra; 2002..
Estar aberto para as possibilidades dessas atividades permitiu aos cuidadores o estabelecimento de um diálogo, nos quais foram realizadas trocas e reflexões sobre suas relações com seus filhos e filhas. Tais reflexões permitiram a transformação de uma consciência ingênua, a qual caracterizava-se pela rigidez da ação nos papéis de cuidadores, pela rigidez do olhar para o adolescente como um ser dependente, para uma consciência crítica, que revê ideias, que repensa preconceitos e modifica seu olhar, oferecendo assim oportunidades para o adolescente vir a ser2020 Freire P. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra; 2002.,3838 Freire P. Educação e Mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1979..
Reconhecer a si como inacabado permite olhar o outro com todas as suas potências e limitações, e reconhecer que, assim, seus filhos e filhas também são seres inacabados e que, conforme nos diz Paulo Freire2020 Freire P. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra; 2002.:
A autonomia vai se constituindo na experiência de várias, inúmeras decisões que vão sendo tomadas [...]. Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém. Por outro lado, ninguém amadurece de repente, aos vinte e cinco anos. A gente vai amadurecendo todo dia, ou não. A autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser2020 Freire P. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra; 2002..
Este estudo apresentou como maior fortaleza a originalidade em abordar o desenvolvimento da autonomia em adolescentes com SD em um processo terapêutico envolvendo o binômio filhos e filhas e seus cuidadores. Além disso, a característica longitudinal do estudo, ao longo dos três anos, favoreceu a análises consecutivas e melhora do processo terapêutico. Os tipos de documentos analisados também podem ser apontados como originais, no que tange aos estudos atuais na área de desenvolvimento de autonomia em adolescentes com SD. Em contrapartida, a principal fraqueza do estudo está atrelada à sua característica retrospectiva, sem planejamento prévio para sistematização da coleta de dados. Sugere-se para futuros estudos o desenho prospectivo, transversal e longitudinal.
Nosso estudo revelou que, mais do que estimular habilidades e competências dos adolescentes para o desenvolvimento da autonomia, é importante desenvolver uma consciência crítica entre os cuidadores, potente para mudanças e construção de novos papéis. Pois observamos nos adolescentes que o desejo pela voz própria, pela independência, é inerente à fase do desenvolvimento, mas que a desconstrução do filho e da filha deficiente, no sentido oposto de eficiente, não é. Para esses cuidadores, pode ocorrer por vezes o ganho secundário de sempre ser útil a alguém, enquanto ser cuidador, esquecendo-se ou mesmo não observando a possibilidade de tantos outros papéis.
Agradecimentos
Os autores agradecem aos pais e crianças com síndrome de Down por sua disposição em participar do estudo.
Referências
- 1Gaete V. Desarrollo psicosocial del adolescente. Rev Chil Pediatria 2015; 86(6):436-443.
- 2Papalia DE, Feldman RD. Desenvolvimento Humano. Porto Alegre: Artmed;2013.
- 3Caroni MM, Bastos OM. Adolescence and autonomy: concepts, definitions and challenges, Revista de Pediatria SOPERJ 2015; 15(1):29-34.
- 4Bronfrenbrenner U. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas;1996.
- 5Gilmore L, Cuskelly M, Jobling A, Hayes A. Maternal support for autonomy: Relationships with persistence for children with Down syndrome and typically developing children. Research in Developmental Disabilities 2009; 30(5):1023-1033.
- 6Sterling A, Warren SF. Maternal responsivity in mothers of young children with Down syndrome. Develop Neurorehabilitation 2014, 17(5):306-317.
- 7Bonomo LMM, Garcia A, Rossetti, CB. The adolescente with Down syndrome and his relationships network: na exploratory study about their friendships. Revista Psicologia - Teoria e Prática 2009; 11(3):114-130.
- 8Contardi A. The Educational Course in the Acquisition of the Autonomy of Associazone Italiana Persone Down. Downs Syndr Res Pract 1998; 5(2):93-98.
- 9Galera do Click. Galera do Click. [acessado 2019 out 12]. Disponível em: https://galera-click.tumblr.com/
» https://galera-click.tumblr.com - 10Simbora Gente. Projeto Simbora Gente. [acessado 2019 out 12]. Disponível em: https://www.simboragente.com/
» https://www.simboragente.com - 11Projeto de Lá pra Cá. Casa do Projeto de Lá pra Cá. [internet]. [acessado 2019 out 12]. Disponível em: https://www.facebook.com/pages/Casa-do-Projeto-De-La-Pra-Ca/163836693753574
» https://www.facebook.com/pages/Casa-do-Projeto-De-La-Pra-Ca/163836693753574 - 12Oficina dos Menestreis. Projeto UP - Oficina dos Menestreis. [acessado 2019 out 12]. Disponível em: http://oficinadosmenestreis.com.br/project/up/.
» http://oficinadosmenestreis.com.br/project/up - 13Afonso MLM, Vieira-Silva M, Abade FL. Grupal process and adult education. Psicol Estudo 2009; 14(4):707-715.
- 14Bardin L. Análise de conteúdo 1ª ed. São Paulo: Edições 70;2011.
- 15Baghdadli A, Pry R, Michelon C, Rattaz C. Impact of autism in adolescents on parental quality of life. Quality of Life Research 2014; 23(6):1859-1868.
- 16Barros ALO, Barros AO, Barros GLM, Santos MTBR. Burden of caregivers of children and adolescents with Down Syndrome. Cien Saude Colet 2017; 22(11):3625-3634.
- 17Franco TAV, Silva JLL, Daher DV. Educação em saúde e pedagogia dialógica: uma reflexão sobre grupos educativos na atenção básica. Serv Soc Saude 2011; 7(2):19-22.
- 18Miranda K, Barroso M. Freire's contribution to the practice and critical education in nursing. Rev Latino-Americana Enfermagem 2004:12(4):631-635.
- 19Silveira LMC, Ribeiro VMB. Compliance with treatment groups: a teaching and learning arena for healthcare professionals and patients. Interface 2004; 9(16):91-104.
- 20Freire P. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra; 2002.
- 21Masson LP, Brito JC, Sousa RNP. Work and Health Status of Care-Givers of Disable Adolescents: an approach from the activity point of view. Saude Soc 2008; 17(4):68-80.
- 22Giallo R, Wood CE, Jellett R, Porter R. Fatigue, wellbeing and parental self-efficacy in mothers of children with an Autism Spectrum Disorder. Autism 2013; 17(4):465-480.
- 23Critical Appraisal Skills Programme (CASP). CASP Qualitative Checklists [Internet]. 2014. [acessado 2019 out 12]. Disponível em:http://www.casp-uk.net/casp-tools-checklists
» http://www.casp-uk.net/casp-tools-checklists - 24Tong A, Sainsbury P, Craig J. Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ): a 32-item checklist for interviews and focus groups. Int J Qual Heal Care 2007; 19(6):349-357.
- 25Trigueiro LCL, Lucena NMG, Aragão POR, Lemos MTM. Socio-demographic profile and quality of life index for caregivers of people with physical disabilities. Fisiot Pesq 2011; 18(3):223-227.
- 26Eisenhower AS, Baker BL, Blacher J. Children's delayed development and behavior problems: Impact on mothers' perceived physical health across early childhood. Soc Sci Med 2009; 68(1);89-99.
- 27Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo 2010. [acessado 2018 jan. 25]. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/resultados.html
» https://censo2010.ibge.gov.br/resultados.html - 28Masuchi MH, Rocha EF. Care of people with disabilities: a study with caregivers assisted of the family health program. Rev Ter Ocup Univ São Paulo 2012; 23(1):89-97.
- 29Shepperdson B. A comparison of the development of independence in two cohorts of young people with Down's syndrome. Downs Syndr Res Pract 1994; 2(21):11-18.
- 30Pazin AC, Martins MRI. Functional performance of children with Down syndrome and the quality of life of their caregivers. Rev Neurocien 2007; 15(4):297-303.
- 31Ribeiro M, Santos I, Campos A, Gomes M, Formiga C, Prudente C. Mothers of children, adolescents and adults with Down syndrome: stress and coping. Atas CIAIQ 2016; (2):1396-1405.
- 32Wegner W, Pedro ENR. The multiple social roles of female lay caretakers of hospitalized children. Rev Gaucha Enferm 2008; 31(2):335-342.
- 33Amaral MF, Drummond AF, Coster WJ, Mancini MC. Household task participation of children and adolescents with cerebral palsy, Down syndrome and typical development. Res Develop Disabilities 2014; 35(2):414-422.
- 34Dolva AS, Coster W, Lilja M. Functional Performance in Children With Down Syndrome. Am J Occup Ther 2004; 58(6):621-629.
- 35Mancini MC, Silva PCE, Gonçalves SC, Martins SM. Comparison of functional performance among children with Down syndrome and children with age-appropriate development at 2 and 5 years of age. Arquivos de Neuro-Psiquiatria 2013; 61(2B):409-415.
- 36Nunes MDR, Dupas G. Independence of children with Down syndrome: the experiences of families. Revista Latino-Americana de Enfermagem 2011; 19(4):985-993.
- 37Martins E, Szymanski H. The ecological approach of Urie Bronfenbrenner in studies with families. Est Pesq Psicol 2004; 4(1):63-77.
- 38Freire P. Educação e Mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1979.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
09 Ago 2021 - Data do Fascículo
Ago 2021
Histórico
- Recebido
06 Dez 2019 - Aceito
07 Jun 2020 - Publicado
09 Jun 2020