A produção do comum como estratégia de cuidado para usuários complexos: uma cartografia com mulheres em situação de rua

Ariane Goim Rios Clarissa Terenzi Seixas Kathleen Tereza da Cruz Helvo Slomp Junior Emerson Elias Merhy Silvia Maria Santiago Sobre os autores

Resumo

O presente artigo problematiza a baixa potência das ofertas tradicionais para o cuidado de usuários ditos complexos no campo da saúde. A partir das narrativas de duas usuárias-guia buscou-se mostrar que profissionais, serviços e políticas que desconsideram singularidades envolvidas no cuidado, apoiados em relações assimétricas são, frequentemente, questionados na sua capacidade de produzir ofertas significativas. Duas pesquisas qualitativas de ethos cartográfico buscaram refletir com base em duas usuárias-guia em seus territórios e que no encontro com pesquisadores e profissionais de saúde, estes experimentaram o impacto da desterritorialização de si e de seus conceitos. O processo cartográfico permitiu a produção de um “comum”, ou um modo de operar o trabalho em saúde. Sai de cena a doença como guia, a vulnerabilidade como impotência, para dar lugar à “defesa de uma vida que vale a pena ser vivida” como guia. Vidas possíveis que os usuários engendram, estejam ou não em situação de rua ou qualquer vulnerabilidade.

Palavras-chave:
Cartografia; Comum; Pessoas em situação de rua; Casos complexos; Pesquisa qualitativa

Introdução

O morar na rua no Brasil tem sido associado à drogadição, à vagabundagem, ao fracasso, bem como à periculosidade dos centros urbanos, insegurança, furtos, roubos, à sujeira das ruas, desordem etc. A partir desse imaginário societário, construiu-se uma imagem desqualificante e estigmatizante desses viventes que ressoa negativamente nas práticas cotidianas das pessoas e nas políticas públicas em geral. A ausência de um conhecimento sistematizado - quantitativo e qualitativo - sobre a vida de quem vive nas ruas, agregado à cultura do assistencialismo, à invisibilidade, à intolerância, ao preconceito contra o diferente e ao desinteresse estatal, manteve o escopo das ações governamentais apenas no âmbito reativo aos problemas imediatos: albergue, comida e roupa11 Ferro MC. Desafíos de la participación social: alcances y límites de la construcción de la política nacional para la población en situación de calle en Brasil [dissertação]. Buenos Aires: FLACSO; 2011.

Nesse sentido, trabalhar na perspectiva de garantia de direitos sociais ainda é um desafio para os governos e suas redes de atenção. Se a assistência social é um direito que deve pretender a futura desvinculação do assistido, o modus operandi prevalente ainda é o do descarte social de uma população que é tratada como excedente. São programas marcados pela institucionalização de práticas que visam a retirada dessas pessoas das ruas, oferecendo, entretanto, poucas possibilidades de uma reestruturação de suas vidas22 Varanda W, Adorno RCF. Descartáveis urbanos: discutindo a complexidade da população de rua e o desafio para políticas de saúde. Saude Soc 2004; 13(1):56-69..

Morar na rua e ser mulher amplia estigmas que são socialmente compartilhados: é a transversalidade de gênero reforçando outras exclusões. Significa enfrentar formulações socialmente produzidas a partir de uma visão geral que se tem das pessoas que vivem nas ruas, e do que seria “o melhor” para elas.

O cuidado a estas mulheres que vivem o que a Saúde Pública denomina tecnicamente “situação de vulnerabilidade”, é frequentemente visto como difícil no campo da saúde por ser “complexo”, isto é, por ter como objeto, usuárias que demandam tecnologias de cuidado nem sempre habituais nas rotinas de profissionais de saúde, que não se adequam às condutas mais protocolizadas que tendem a uniformizar as ofertas de cuidado. Casos assim frequentemente são fontes de frustração para profissionais e equipes de saúde que, não raro, relatam uma sensação de fracasso ao conduzir suas ações em cenários adversos, levando por vezes ao abandono ou à tomada de medidas puramente prescritivas, reduzindo as possibilidades de estabelecimento de vínculo33 Baduy RS, Kulpa S, Tallemberg CAA, Seixas CT, Cruz KT, Slomp Junior H, Lopes CVA. "Mas ele não adere!" - o desafio de acolher o outro que é complexo para mim. In: EE Merhy, RS Baduy, CT Seixas, DES Almeida, H Slomp Júnior, organizadores. Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: Surpreendendo o instituído nas redes. 1ª ed. Rio de Janeiro: Hexis; 2016; p. 220-227., pois o encontro entre usuários de drogas em situação de rua eprofissionais de saúde é desterritorializante para ambos 4 (p. 58).

Isto posto, este artigo tem por objetivo discutir a produção de um comum ético-político entre profissionais e as mulheres que foram as usuárias-guia55 Gomes MPC, Merhy EE. "Apresentação". In: Gomes MPC, Merhy EE, organizadores. Pesquisadores In mundo: um estudo da produção do acesso e barreira em saúde mental. Porto Alegre: Rede Unida;2014. p. 7-23. das duas pesquisas de que tratamos aqui.

A partir dos achados destas pesquisas, problematizamos a possibilidade de se adotar a produção desse comum como um modo de operar o trabalho em saúde, considerando-se uma perspectiva de simetria no encontro entre diferentes, no qual se busca considerar a potência singular de cada indivíduo como matéria fundamental para a produção do cuidado. O comum visto como um reservatório de singularidades em variação contínua, uma matéria anorgânica, um corpo sem órgãos, um ilimitado apto a individuações as mais diversas66 Pelbart PP. Elementos para uma Cartografia da Grupalidade. O Indivíduo, o Comum, a Comunidade, a Multidão (2010: São Paulo, SP). In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural; 2010. [acessado 2020 maio 14]. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/evento544502/elementospara-uma-cartografia-da-grupalidade-o-individuo-o-comum-a-comunidade-amultidao-2010-sao-paulo-sp..

Construir um comum que possibilite a afetação mútua, a criação de vínculos e a formulação de estratégias para o viver e que apostem na potência de cada vida66 Pelbart PP. Elementos para uma Cartografia da Grupalidade. O Indivíduo, o Comum, a Comunidade, a Multidão (2010: São Paulo, SP). In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural; 2010. [acessado 2020 maio 14]. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/evento544502/elementospara-uma-cartografia-da-grupalidade-o-individuo-o-comum-a-comunidade-amultidao-2010-sao-paulo-sp. é o grande desafio. Esta consideração do comum pressupõe a construção conjunta de soluções para problemas com os usuários de forma a fazer sentido para todos. A própria conceituação do que é um problema partilhado e reconstruído numa relação de confiança, de vinculação.

Método

Trata-se da composição entre os resultados de duas pesquisas7,8 qualitativas de abordagem cartográfica, num processo de produção de conhecimento coletivo a partir da experiência vivida com o(s) outro(s) no mundo do cuidado99 Pelbart PP. Por uma arte de instaurar modos de existência que "não existem". In: Laboratório de sensibilidades; 2017 [Internet]. [acessado 2020 abr 29]. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/0B6Dh2r0OH3TickxyRHkwTEZuY1U/view.
https://drive.google.com/file/d/0B6Dh2r0...
. Os cenários das pesquisas foram dois municípios de grande porte das Regiões Sudeste e Sul do Brasil. Ambas as investigações foram realizadas por dois grupos de pesquisa distintos que compartilham de um campo teórico comum, e que compõem a Rede Nacional de Observatórios de Políticas e Cuidado em Saúde/CNPq. O detalhamento acerca dos critérios de escolha dos municípios pesquisados, assim como a constituição de Poliana e Rosa como usuárias-guia, estão especificados nos materiais das pesquisas respectivas, citados acima.

Compreendemos a cartografia, com base nos trabalhos de Deleuze, Guattari e Rolnik1010 Guattari F, Rolnik S. Micropolítica: cartografías del deseo. 2ª ed. Madrid: Traficantes de Sueños; 2005/2006.

11 Rolnik S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo.2ª ed. Porto Alegre: Editora Sulina UFRGS; 2006/2014.
-1212 Deleuze G, Guattari F. Mil mesetas: capitalismo y esquizofrenia. 11ª ed. Valencia: Pre-Textos;1980/2015., como processo de produção de conhecimento que não está dado a priori, mas que se realiza no encontro com outros corpos - com ou sem órgãos1313 Deleuze G, Guattari F. O Anti-Édipo. Rio de Janeiro: Imago;1976. e dos afetos, reconhecendo todos como produtores intensivos de conhecimento. Nesse sentido, a cartografia tensiona o lugar assimétrico do pesquisador na relação com o outro no mundo da pesquisa, derrubando certos mundos (instituídos) e instaurando outros.

A fim de produzir tais cartografias, utilizou-se a ferramenta do usuário-guia1414 Moebus RN, Merhy EE, Silva E. O usuário-cidadão como guia. Como pode a onda elevar-se acima da montanha? In: Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: Surpreendendo o instituído nas redes. 1ª ed. Rio de Janeiro: Hexis;2016. p.43-53., o que permitiu tomar as vidas de Rosa e Poliana, usuárias-guia dessas pesquisas, como analisadoras das dificuldades dos serviços, do processo de trabalho das equipes, das redes de atenção à saúde, do modo como as políticas públicas funcionam na prática.

Mais do que uma aposta metodológica, a construção do usuário como guia é uma aposta ético-estética que desloca o outro da posição de objeto para a de coprodutor de conhecimento.

A seleção de duas usuárias-guia de diferentes estados do país se deu a posteriori, após identificação de dois territórios existenciais “semelhantes”, que continham os elementos mulher, viver na rua e complexidade do ponto de vista da saúde, assim como de semelhanças nas características das cidades escolhidas, mas, sobretudo, por terem sido duas cartografias utilizando a mesma ferramenta para sua produção (usuário-guia).

Do ponto de vista da operacionalização das pesquisas, ambas as equipes partiram das referências descritas acima para posicionar-se no campo, mas com diferentes entradas. A pesquisadora que acompanhou Rosa fazia parte de uma rede intersetorial de serviços que já a acompanhava, o que facilitou a construção do vínculo com a usuária-guia. Já a equipe que acompanhou Poliana era composta por dois tipos de pesquisadores: um grupo cuja presença no campo era de periodicidade mensal, e outro constituído pela própria equipe de trabalhadores que dela cuidava; além da própria Poliana.

Em cada uma das duas pesquisas foram produzidos diários de campo cartográficos das cartografias dos mundos singulares de Rosa e Poliana. O diário de campo cartográfico, mais que o registro da descrição do observável, é um registro coletivo-singular numa composição que busca dar língua (expressão) aos afetos produzidos no encontro com o outro como intercessor, problematizando a própria produção do olhar.

O estudo que se refere à usuária-guia Poliana foi realizado entre janeiro de 2014 e dezembro de 2016, e aprovado em Comitê de Ética em Pesquisa. O estudo que se refere à usuária-guia Rosa foi realizado no período de fevereiro de 2015 a janeiro de 2017, e aprovado em Comitê de Ética em Pesquisa.

Cenas produzidas a partir dos processos cartográficos com as usuárias-guia Rosa e Poliana

As cenas apresentadas são fragmentos narrativos dos diários de campo cartográficos de ambas as pesquisas e o critério de escolha daquelas que seriam aqui trazidas se baseou na potência que tinham de tensionarem certos instituídos e de atuarem como analisadoras de certos processos na produção do cuidado em saúde.

Todos os nomes são fictícios, entretanto, é importante esclarecer que essa foi uma estratégia narrativa adotada nas pesquisas originais que foi validada pelas participantes.

Poliana, cena 1: a rua, a prostituição, as drogas

Poliana é uma jovem de 27 anos que nos é descrita pela equipe da unidade básica de saúde como usuária de substâncias psicoativas, sobretudo crack e álcool, consumindo mais de um litro do destilado por dia. Tem dois filhos de seu antigo companheiro, falecido há cerca de 3 anos, segundo se sabe, em decorrência da AIDS: um menino de aproximadamente 10 anos encaminhado para adoção; e uma menina, mais nova, que mora com a avó paterna. Poliana mora em um porão sombrio e sem ventilação sob a casa de uma irmã, com a mãe que é deficiente visual, o meio-irmão Beto e um cão feroz que não permite a entrada de estranhos.

Beto, cerca de 10 anos mais velho do que Poliana, é um homem pequeno, franzino, e mora há alguns anos com a mãe e com Poliana. Empregado como cobrador de ônibus, falta com frequência ao trabalho para levar Poliana, diagnosticada com AIDS e Tuberculose, para fazer exames ou em consultas. Ele é o pronto-socorro dela, ele já tá deixando a vida dele de lado pra cuidar dela, mas às vezes ela xinga ele, que fica chateado, nos diz a irmã mais velha, a única com quem conseguimos falar naquela visita. Mas é aquela coisa: quando ela quer sair pra procurar o que não é pra procurar, ele mesmo sai, corre ali, corre lá, e acaba comprando pra ela.

Poliana raramente se abre com a equipe e o vínculo parece frágil. A conexão parece se dar entre o meio-irmão Beto, mais afável, e a enfermeira Suelen, a quem conta que, a fim de conseguir o dinheiro para comprar álcool e crack, Poliana se prostitui, o que o incomoda bastante. Tampouco com a equipe de pesquisa o vínculo é fácil: em algumas das primeiras aproximações, Poliana recusa-se a nos receber e chega a gritar, de dentro de sua casa: Não sou cobaia! Qual(is) a(s) experiência(s) anterior(es) de Poliana com profissionais de saúde que permitissem justificar essa fala e esse comportamento arredio?

Poliana, cena 2: angústias, barreiras administrativas e conflitos morais

Nessas conversas com a enfermeira, vai se evidenciando que a relação de Beto e Poliana tem vários complicadores que parecem indicar a presença de uma relação incestuosa, o que muito afetava a maioria dos trabalhadores da unidade de saúde, que se perguntava, por exemplo: Até onde chega o ser humano?!.

A equipe de pesquisa, por sua vez, se colocava outras questões: que ligação poderia existir entre aquela suposta relação e a prostituição, o uso de drogas, a preferência/escolha/inevitabilidade pela vida nas ruas? Estamos operando como pesquisadores morais no julgamento das escolhas do outro para sua vida? Como a lógica da redução de danos poderia contribuir, neste caso?

Poliana, cena 3: o sumiço que intensificou a presença

Poliana desapareceu! É o que descobrimos quando fazemos contato com a enfermeira, ainda à distância, alguns dias antes do retorno ao campo. Ela está na rua, e ele [Beto] não quer nem falar dela! Havia um sentimento geral de desistência, de fracasso.

Já na unidade de saúde, em conversa com a enfermeira e com a gerente, vai se desenhando o acontecimento: Beto contara que nas semanas anteriores Poliana já vinha passando mais tempo na rua do que em casa, consumindo muito álcool e crack, voltando quando piorava, com febre e tosse. Havia tentado interná-la para tratar uma pneumonia com derrame pleural, mas ela não aceitara e, em uma discussão acalorada, Poliana o rejeitou e criticou. Teria dito: Não quero nada de você, você não me serve pra nada...você não passa de mais um cachorro na minha vida! Beto se mostrara ofendido, não desejando mais cuidar dela.

Eis que a ausência finalmente coloca à equipe de pesquisa outras questões: por que estamos falando que ela “fugiu”? Estaria ela “presa”? Por que Poliana, apesar de estar sendo “cuidada” pelo irmão, parece não suportar viver naquela casa? Que outra vida ou casa ela procurava para si? Que vida estava rejeitando? Tratava-se de uma típica situação de violência de gênero, ou não tão “típica”? Que “intervenções” ainda podiam ser feitas pela rede de cuidados?

Poliana, cena 4: outra Poliana aparece

Algumas semanas depois, Poliana retorna com boa aparência ao serviço de saúde, mais forte, física e emocionalmente e, pela primeira vez, conseguimos acesso direto a ela, sem a presença de Beto que agora some e precisa ser “tirado da rua” por Poliana, por se exceder na ingesta de álcool. Poliana mostra o desejo, não manifesto até aquele momento, de fazer o tratamento do HIV: Quero ficar boa! Saímos com a usuária para apoiá-la na obtenção da segunda via de sua documentação e, neste périplo, descobrimos que seus documentos originais haviam sido confiscados pelo irmão sob a justificativa - internalizada pela própria Poliana - de que ela seria incapaz de guardá-los em segurança, assim como de sair de casa sozinha, inclusive para fazer exames ou procurar emprego; que sem ele, se perderia.

E é neste momento que a violência se torna mais palpável para nós, o sentimento de insegurança e a dependência emocional que Beto há tempos produzia em Poliana. Naquele momento compartilhamos, entre muitas dúvidas em nós, o sentimento de que a rua, as drogas e a prostituição talvez fossem, para Poliana, uma forma de operar uma certa “redução de danos” em si.

Rosa, cena 1: redução de danos viva em ato (encontro com o Consultório na Rua)

Encontramos Rosa por intermédio do Consultório na Rua (CnaRua), em um território de concentração de usuários de drogas, em um bairro periférico de um município próximo à uma grande capital do Sudeste. A caminho de lá, um breve resumo do caso: Mulher, 40 anos, usuária de crack, álcool e outras drogas desde os 18 anos, com intensa vivência de rua. Mãe de nove filhos, estando grávida do décimo. Nenhum dos filhos estava com ela. Rompida com a família. Sem companheiro atual e sem acompanhamento pré-natal.

Quando chegamos, Rosa, à distância, já nos alertava que tinha ficado esperando pela equipe do CnaRua no dia anterior sem usar drogas, mas hoje não dá, hoje eu já usei. Nos aproximamos e começamos a conversar.

Seguimos conversando e Rosa foi nos contando um pouco de sua história de vida, como mãe de seus filhos, como mulher, como usuária de drogas e vivente da rua. Emocionou-se ao falar dos filhos, falou mais deles do que das drogas. Disse que desejava ficar com a criança que agora carregava no ventre.

Recusou-se a ir até a maternidade para a realização dos exames de pré-natal, ou ao Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e Outras Drogas (CAPS-ad). Pediu desculpas e disse que não conseguiria, justificando: Quando eu uso eu fico na fissura depois. Ao que o profissional do CnaRua respondeu: Usa e depois vamos. Sabíamos que sem o acompanhamento pré-natal e uma organização prévia da vida seria praticamente impossível que Rosa ficasse com seu filho, por uma inevitável intervenção do judiciário na maternidade, já constatada em casos anteriores. Diante disso, nos perguntávamos: quais desejos estavam em jogo/disputa? Como promover acesso à saúde e garantir o exercício da maternidade frente ao desejo verbalizado? Mas, acima de tudo, como motivar o cuidado de si, para que este pudesse desdobrar no eventual cuidado do filho?

Rosa, cena 2: operando cuidado entre a rua e o hospital

Em atendimento médico realizado na maternidade de referência, avaliou-se que Rosa apresentava grave risco obstétrico, e a indicação foi de internação até o momento do parto. Se o mesmo ocorresse na data prevista, seriam sete semanas pela frente. Sete semanas de internação para uma mulher cujo território/casa nos últimos anos fora a rua! Rosa mostrava-se irritada com a situação: afirmava sentir-se como uma “cobaia”, reclamava da exposição de seu corpo. Mostrava-se incomodada com a própria internação e com o recente diagnóstico de diabetes gestacional que impactou em restrição de alguns alimentos. Ela contou sobre o desejo de ter seu bebê, mas que não sabia como seria dali para frente e disse, com pesar: enquanto o meu bebê está na minha barriga, eu carrego ele. Depois, eu já não sei o que vai acontecer.

Posteriormente, houve uma reunião intersetorial entre Saúde Mental, Assistência Social e Hospital-Maternidade para discussão deste caso, e os temas que este encontro trouxe à tona são emblemáticos. Predominou a frequente dificuldade dos hospitais em acolher casos como o de Rosa (justificado pelo que nominaram como “falta de conhecimento para casos psiquiátricos”), a inadequação da estrutura hospitalar (mas as janelas aqui são de vidro!) e o risco de manter uma paciente psiquiátrica numa maternidade, referindo-se ao risco de auto e heteroagressão de funcionários e pacientes do Hospital. Por fim, um pedido da direção: precisamos de uma certeza de que ela não apresenta perigo para a equipe. Vocês podem afirmar isso por escrito? Como manejar estigmas? Como romper com práticas tão fragmentadas?

Rosa, cena 3: sobre os tempos e as profecias que se autorrealizam

No processo que se seguiu ao nascimento do filho de Rosa e que culminou no abrigamento de seu bebê, a rede seguiu suas reuniões intersetoriais para acompanhamento do caso e Rosa foi colocada em hospitalidade integral no CAPS-ad, que havia praticamente se tornado sua moradia nos últimos tempos, pois sua permanência lá, também, facilitava as visitas diárias ao filho, pela proximidade geográfica dos serviços. Em uma reunião com o serviço de acolhimento, problematizamos as condições que se colocavam para o “desacolhimento” do bebê (moradia, trabalho, abstinência etc.) e ponderamos que essa reconstrução poderia ser gradual; sobretudo, que o exercício da maternidade poderia, também, gerar potência devida para se operar tais mudanças. Porém, o processo demorado e sem perspectivas levou Rosa à descrença em um desfecho favorável e, após acolhimento integral num CAPS e posterior passagem num abrigo para pessoas em situação de rua, ela retornou a seu território de uso/rua.

Uma questão central que emergiu de sua cartografia foi a dificuldade da produção de um comum entre Rosa e toda a rede envolvida no caso. Havia muitas vozes falando por Rosa, decidindo sobre sua vida, ou até mesmo muitas vozes em Rosa. Com algumas poucas exceções, havia quase uma aposta na incapacidade dela e nenhuma em buscar suas potências no sentido de ampliá-las. E a pergunta que nos perseguia era: por que era tão difícil trabalhar na ótica do cuidado compartilhado mãe e bebê? Por que, em nome da proteção, promovemos separação?

Discussão

Casos complexos e interrogações profissionais

Os chamados “casos complexos” povoam os diferentes serviços de saúde, e são assim nomeados por mobilizarem, de vários modos os diferentes trabalhadores e serviços envolvidos da rede em torno de seu cuidado 3 (p.220). Nas pesquisas aqui apresentadas, as equipes dos serviços públicos de saúde nomearam esta complexidade ao se sentirem impotentes diante do que julgavam uma inadequação entre problemas percebidos dos usuários e as ofertas existentes. Narravam seu sentimento de incapacidade de relacionarem-se com usuários cujas propostas de vida lhes eram estranhas e cujas perspectivas de mundo eram tão distintas das suas, que dificultavam o manejo. Entendiam serem vidas marcadas pela violência de várias ordens e pela exclusão e que por isso precisavam de ações intersetoriais, o que justificava o envolvimento de várias instituições da rede de saúde, assistência social, segurança, educação, comunidade, ONGs, justiça etc. Julgavam ter realizado um grande investimento e, mesmo assim, tinham alcançado pouca resolutividade33 Baduy RS, Kulpa S, Tallemberg CAA, Seixas CT, Cruz KT, Slomp Junior H, Lopes CVA. "Mas ele não adere!" - o desafio de acolher o outro que é complexo para mim. In: EE Merhy, RS Baduy, CT Seixas, DES Almeida, H Slomp Júnior, organizadores. Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: Surpreendendo o instituído nas redes. 1ª ed. Rio de Janeiro: Hexis; 2016; p. 220-227. (p. 220). É a partir desta referência que analisamos as usuárias Poliana e Rosa como “casos complexos”. As cenas confirmam os desafios do trabalho assistencial e apresentam a multiplicidade das existências destas duas usuárias: mulheres que vão desenhando seus caminhares pela vida, construindo potências em territórios que denominamos “rua” e elas, “casa”.

Tantas semelhanças entre as histórias de Polianas e Rosas. Como os olhares dos profissionais de saúde enxergam as vidas vividas por tais mulheres? Como lidar com a lente da precariedade e da falta: o morar na rua (falta de teto), a pobreza (falta de dinheiro), a negritude (valor negativo da raça), a baixa escolaridade (falta de estudo), o feminino coagido? São vidas que tendem a serem classificadas a partir de parâmetros arbitrários que a sociedade elege e que costumam rotular essas usuárias como desprovidas da capacidade de governarem a si próprias, agravando sua grande desvantagem social. Assim, o viver na rua, o uso de drogas e a gestação em tais situações são escolhas julgadas como impróprias, irresponsáveis, insanas, e frequentemente reverberam para a sociedade como uma impotência, incapaz de enxergá-las por um outro vértice: o da potência outra e desconhecida. Rosas e Polianas “fogem” dessas capturas.

Para mais além, muito do que consumimos e do que nos compõe são subjetividades expressas nas maneiras de compreender e de viver a vida1515 Pelbart PP. Vida Capital: Ensaios de Biopolítica. São Paulo: Editora Iluminuras; 2003. e estas composições estão inscritas também nos trabalhadores da saúde e da assistência social em geral, que tendem a rejeitar modos-outros de organizar a vida, muitas vezes insuportáveis ou apenas toleráveis para profissionais que produzem suas práticas de forma prescritiva (o modo correto de viver a vida) e classificatória (vida que merece ser vivida ou não)1616 Seixas CT, Merhy EE, Baduy RS, Slomp Junior H. La integralidad desde la perspectiva del cuidado en salud: una experiencia del Sistema Único de Saluden Brasil. Salud Colect 2016; 12(1):113-123. A diferença operada como assimetria, impossibilitando a compreensão dos distintos modos de viver como potência1717 Seixas CT, Baduy RS, Cruz KT, Bortoletto SS, Slomp Junior H, Merhy EE. O vínculo como potência para a produção do cuidado em Saúde: o que usuários-guia nos ensinam. Interface (Botucatu) 2019; 23:e170627..

Enquanto profissionais, também podemos nos questionar sobre o que seria o “bom desfecho” desses trechos narrativos. Como enxergar potência nas vidas vividas por tais mulheres? No entanto, o que as cenas nos mostram é que a concepção de “vida adequada” parece passar necessariamente por abstinência / casa / trabalho / consumo de bens. Temos um longo caminho a navegar em direção a este continente da diversidade, do outro, desses mundos-outros.

Os movimentos dos usuários complexos: “encontros e desencontros com os profissionais”

Nas cenas é possível captar a movimentação das duas usuárias-guia que inquietam os profissionais, por serem elas mesmas redes vivas de si próprias e que estão o tempo inteiro inventando saídas para suas existências, ao seu modo. Ao viverem nas ruas, lugares marcados por códigos específicos e plurais - a solidariedade, os compartilhamentos, as disputas e as desavenças - com frequência estranhos aos trabalhadores, colocam em xeque os saberes institucionais e as práticas realizadas nos serviços para lidar com suas existências “incomuns” e para construir uma proposta de cuidado comum, isto é, de forma compartilhada entre trabalhadores e usuárias.

Como entender, por exemplo, a situação de Poliana, que sempre que melhorava “fugia” de casa? A visibilidade de um movimento ativo de Poliana para escapar de algo (uma vida que lhe era insuportável?), deu lugar a outras vistas do ponto1818 Merhy EE. Le "viste dei puntidi vista": Tensioni All'interno dei programmidi "Salute Della Famiglia" e possibili strategie d'intervento. Em Merhy EE, Stefanini A, Martino A, editores. Problematizzando Epistemologie in salute collettiva: saperi dalla cooperazione Brasile e Italia; 2015. pp. 127-138. Porto Alegre: Rede UNIDA; Bologna: CSI-Unibo.. O que pensava / sentia Poliana sobre tudo isso? O que acontecia naquela casa que lhe era insuportável? Que tipo de relações se estabeleciam entre eles? O que este movimento de Poliana nos ensinava sobre ela? Talvez, como se vislumbrou em conversas posteriores, nem sempre a melhor vida ou o melhor cuidado estão o tempo todo no espaço da casa, da família, das instituições.

Todavia, foi evidente a nossa surpresa, certo dia, ao reencontrar Poliana muito bem, segura de si, fazendo planos, em nada lembrando aquela Poliana no limite da existência que se conhecia até então. Uma boa desorganização coloca então a equipe em outro modo de escuta, naquele momento, uma escuta agora apta a ressoar potências para existir, múltiplas possibilidades de reconexão existencial. Poliana nos ensinou que sempre há potência no existir e nos faz pensar que tal potência nunca pode ser decretada como extinta, enquanto houver vida.

No caso de Rosa, sua referência de casa ou lar não era o CAPS-ad ou o abrigo da Assistência Social, mas o território da rua, local inóspito para alguns, mas promotor de segurança e acolhida para ela naqueles momentos de vida e de espera angustiante.

Foram vários os parceiros e as parcerias que se estabeleceram, vários tempos de aproximação foram encontrados, porém nem toda a cadeia de cuidados trabalhou para que a dupla mãe-filho pudesse se compor e ser protegida, até que se firmasse em sua autonomia. Mesmo assim, as boas experiências vividas por Rosa permitiram uma certa persistência na reivindicação da guarda de seu filho, ainda que com poucas chances.

Ainda prevalece a exigência dos que representam o que é direito e que decidem da abstinência / casa / trabalho / consumo de bens.

Ficou evidente, nos vários encontros narrados com Rosa, as diferentes relações que se formaram: no encontro com a equipe do Consultório na Rua; na reunião com o hospital maternidade; no encontro com a equipe do acolhimento institucional.

Buscamos a intervenção da cartografia como uma ferramenta para a produção do comum, mas, por vezes, observou-se os desencontros entre a rede de atendimento e o mundo de Rosa. Estes movimentos acabaram se desdobrando no afastamento de Rosa da rede e, consequentemente, de seu filho.

Doença como guia x potência e produção do comum

Identificou-se nas cenas que, com frequência, nas práticas de saúde, utilizam-se da doença como guia. Tal posicionamento cria um filtro no qual as afecções / interferências produzidas em nosso corpo ou no do outro são tomadas como algo secundário e até indesejável, vieses frente ao leque de informações objetivas que somos impelidos a buscar e/ou quantificar e de intervenções que somos impelidos a fazer. Não é à toa que tanto Poliana quanto Rosa, em um determinado momento de suas histórias na relação com os serviços de saúde, gritam: Não somos cobaias!

Expressam, dessa forma, o incômodo com práticas que tomam seus corpos como objetos e suas vidas e vozes como pouco importantes; que não as reconhecem como interlocutoras válidas1919 Slomp JH, Feuerwerker LCM, Land MGP. Educação em saúde ou projeto terapêutico compartilhado? O cuidado extravasa a dimensão pedagógica. Cien Saude Colet 2015; 20(2):537-546., com quem é preciso construir um plano comum.

Identificam-se, então, barreiras e limites de várias ordens na produção do cuidado. São dificuldades em ultrapassar o modelo da doença como guia, que nos “ensigna”1818 Merhy EE. Le "viste dei puntidi vista": Tensioni All'interno dei programmidi "Salute Della Famiglia" e possibili strategie d'intervento. Em Merhy EE, Stefanini A, Martino A, editores. Problematizzando Epistemologie in salute collettiva: saperi dalla cooperazione Brasile e Italia; 2015. pp. 127-138. Porto Alegre: Rede UNIDA; Bologna: CSI-Unibo. no sentido de silenciarmos nossas afecções e as dos outros que cuidamos. Ainda, tratar as relações com os usuários exclusivamente no plano da doença implica no estabelecimento de uma relação de baixa potência, assimétrica, na qual um é o detentor do saber/poder e cujo conhecimento e concepções sobre os modos de cuidar servem para desqualificar e invalidar os do outro. É a relação entre o saudável, que abriga as informações privilegiadas e sabe do viver adequado, e o fraco, doente, desvitalizado e que nada sabe. Trata-se de um reservatório desigual de potências, no qual todas as possibilidades não estão colocadas. Esta relação, no entanto, afasta o profissional do encontro / troca com o outro e da possibilidade de construir, nesse encontro, um comum com o usuário que traga as potências de cada um para a cena.

Aqui, nublando as fronteiras entre pesquisadores e profissionais de saúde, podemos refletir sobre os momentos em que não sabemos diante do que estamos, o que nos desafia a cada momento, o que nos traz enorme desconforto, o que nos faz perder os alicerces seguros dos discursos técnicos e da vida que introjetamos como a mais adequada. Outro aspecto que cabe destacar é o emudecimento da voz dessas usuárias na relação com os agentes que operam as políticas, haja vista o que elas pensam, sentem e planejam para suas vidas não tem espaço, pois são desqualificadas a priori como interlocutoras válidas.

No entanto, há uma potência de vida disseminada por toda parte, até nas formas de viver consideradas fora de padrão como as de Rosa e Poliana. Essa potência de vida presente em todo canto nos faz interrogar: Que novas redes de vida são possíveis? Qual a possibilidade de emergir um comum que agregue essas potências dispersas em diferentes cenários, como os que as pesquisas aqui trazidas percorreram?

Afinal, o que é esse comum, senão um ponto de encontro das singularidades dos usuários, equipes de saúde, pesquisadores, em variação contínua? Não um comum que se sobreponha ao singular, mas que, em relação, permita à multiplicidade e à variação florescerem, fortalecendo-as ao invés de anulá-las em prol de uma pseudo-homogeneidade. Como se vê, nessa acepção o comum nada tem a ver com unidade, com medida, com soberania no sentido clássico da palavra, mas com uma compreensão de que a composição entre diferentes enriquece a prática1616 Seixas CT, Merhy EE, Baduy RS, Slomp Junior H. La integralidad desde la perspectiva del cuidado en salud: una experiencia del Sistema Único de Saluden Brasil. Salud Colect 2016; 12(1):113-123. É a constituição de outras acepções de espaço-tempo, para novas formas de associação e cooperação, nas quais os desejos em composição possam aflorar e dar lugar a novos mundos.

Mas como criar rotas de fuga de práticas autoritárias e produzir um comum ético-político como forma de cuidado para essas mulheres? Peter Pál Pelbart, em diálogo com vários autores, nos fala de um conceito de comum que busca considerar a potência singular de cada indivíduo, com seu quantum de potência e, por conseguinte, um poder de afetar e de ser afetado. Um comum não somente como “conjugação de individualidades”, mas como espaço produtivo por excelência, como um fundo virtual, como vitalidade social pré-individual, como pura heterogeneidade não totalizável, ele nada tem a ver com unidade66 Pelbart PP. Elementos para uma Cartografia da Grupalidade. O Indivíduo, o Comum, a Comunidade, a Multidão (2010: São Paulo, SP). In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural; 2010. [acessado 2020 maio 14]. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/evento544502/elementospara-uma-cartografia-da-grupalidade-o-individuo-o-comum-a-comunidade-amultidao-2010-sao-paulo-sp. (p. 4).

A questão que se apresenta é saber se esse encontro das equipes de saúde e usuárias podem se compor em afetabilidade para esse espaço produtivo. Trata-se de como um ser pode receber um outro no seu mundo, mas respeitando as relações e os mundos de cada qual, e este “receber o outro” significando estrangeiramento, partilha de novos modos de vida e existência.

A potência da cartografia

Uma questão que sempre volta é a da pouca oferta de alternativas construídas de forma coparticipativa com os usuários, pelos serviços de saúde ou de assistência social, uma fragilidade que reverbera na falta de potência das equipes e na fragilidade dos vínculos que se estabelecem. A escuta cartográfica dá visibilidade tanto à dissonância dessas ofertas com a realidade, demandas e desejos dos usuários, como à falta de ferramentas que auxiliem a mudar o curso de casos em que um desfecho negativo já é esperado.

Mas, o que é esperado de sucesso ou fracasso nas equipes não dá conta da multiplicidade da vida que acontece no exterior dos serviços de saúde e outros. Incorporar o desenho da multiplicidade de vidas aos projetos de abordagem e cuidado dos diferentes sujeitos é tecnologia / saber / prática a ser incorporada pelos profissionais das políticas sociais.

Tomando-se a cartografia como estratégia para experienciar os operadores da aproximação, intercessores da relação, a doença cede a sua “função-guia” à vida vivida nos seus diferentes modos de produção e inventividade das diferentes formas de existência. Não a uma certa vida idealizada por um setor que se coloca como exclusivamente técnico, seja ele da saúde, social ou mesmo jurídico, mas o faz para uma vida possível e até mesmo desejada pelos sujeitos que a engendram, estejam eles em situação de rua ou não, em situação de grande vulnerabilidade social ou não. Que outros convites então poderiam ser feitos pelas políticas públicas? Que novas conexões existenciais germinais seriam possíveis para a produção de mais vida?

Outra questão significativa para a cartografia é o tempo: trabalha-se em dimensões de tempo negociadas entre o tempo técnico, o da pesquisa e o das vidas dos usuários-guia, entre outros. Mas, busca-se lapsos de “tempo comum” nos quais as ações mais significativas possam ocorrer: o tempo dos acontecimentos. A partir da discussão tempo-espaço, trazemos o que é o tempo comum e o espaço comum, compondo um território para o encontro desses interlocutores: Com Poliana e Rosa, o esforço permanente na investigação foi o de construção desses planos ou espaços-tempo comuns, talvez uma empreitada ainda mais difícil em uma abordagem metodológica diferente da que foi utilizada.

Além disso, a cartografia como construtora de planos comuns, compartilhados, encontra ressonância, por exemplo, na proposta da redução de danos, que não é a ausência de desejo de intervenção da equipe técnica, mas a construção com o usuário do que é possível para seguir vivendo a vida em cada espaço-tempo, mediante outra configuração de responsabilização2020 Silva RA. Reforma Psiquiátrica e Redução de Danos: um encontro intempestivo e decidido na construção política da clínica para sujeitos que se drogam [dissertação]. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2015.. Enfim, nos apresenta um modo de pesquisar e de ver o outro de forma simétrica, construindo um saber compartilhado que pode germinar em ações mais significativas do que as que temos produzido, especialmente para os usuários de substâncias em situação de rua.

Considerações finais

Nesta travessia, que aqui relatamos, nos deparamos com os desafios para se estabelecer um conceito de comum que efetivamente aposte na multiplicação de potências em um compartilhamento de singularidades que só é possível pela permissão das afecções que esses encontros promovem, superando um pseudo-comum que se satisfaz com o “conviver com as diferenças”, ainda que, mesmo este último não seja assim tão frequente nas redes nas quais temos pesquisado.

As interrogações e implicações profissionais existentes em campo quando trabalhamos com casos complexos impõe às equipes uma desterritorialização. A questão que se apresenta é investir para que esse encontro das equipes e usuárias possa se compor de alto grau de afetabilidade para esse espaço produtivo, formando uma nova relação, agora mais estendida, ampliada, uma potência que é de todos, mas é de cada um e que está colocada para as equipes de saúde a todo momento. Já não é o se reterritorializar no mesmo, mas num outro espaço-tempo amplificado e produtor demais vida, para si e para o outro. Um acontecer biopotente.

No aspecto metodológico do trabalho com casos complexos, observamos que é importante ampliar uma visão prescritiva de abstinência / casa / trabalho / consumo de bens.

Nesse sentido, entendemos que a cartografia oferece uma intervenção mais potente que busca a construção de “espaços-tempos comuns” e que faz parte desse compromisso ético a afirmação de uma intervenção que promova o cuidado de si como prática de liberdade e que, ao produzir sempre mais vida, torne sem sentido práticas que governem a vida do outro como um exercício de soberania que esteja acima de qualquer interrogação.

Concluindo, a produção do comum enquanto produção de espaços-tempo de coexistência intensiva nos pareceu possível mediante uma abordagem cartográfica, pois possibilitou acesso a planos da realidade nada óbvios, e por vezes incompreensíveis a priori, além de abrir caminho para interferências e intervenções repercutindo em todos os sujeitos envolvidos, e no processo mesmo de produção do conhecimento.

O esforço, ao se alinhar a dois recortes de pesquisas independentes em duas cidades, foi o de produzir um deslocamento de uma certa visão sobrecodificada, pré-concebida, uniformizante e estática sobre estas mulheres, partindo-se da hipótese de que o fracasso na abordagem frequentemente deriva da inadequação das ofertas das políticas públicas voltadas a essas mulheres que vivem na rua, considerando-se as várias dimensões tecnológicas do cuidar e, na prática, tais mulheres têm sido reduzidas a um problema complexo, de difícil solução. Mas, também, do que está inscrito, subjetivado em nós, profissionais das áreas sociais, sobre as formas adequadas de viver.

Ficamos com a aposta de um comum que pressupõe uma ampliação do território existencial e interior de cada qual, que possa acolher outras compreensões de modos de mundo, produzindo mais vida nos encontros, que dê passagem, ouvido e fala para novos possíveis.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    Ago 2021

Histórico

  • Recebido
    10 Dez 2019
  • Aceito
    15 Jun 2020
  • Publicado
    17 Jun 2020
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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