Resumo
O artigo analisa possibilidades metodológicas da etnomusicologia no campo da saúde coletiva, partindo de uma experiência que triangulou teorias etnomusicológicas com a análise do discurso (AD). Após uma introdução à etnomusicologia aplicada, segue-se a descrição de aspectos metodológicos da experiência em questão. Em sequência, descreveu-se a condução da etapa etnomusicológica e o processo de triangulação. Os resultados mostram que os sistemas musicais se situam em estruturas de poder, influenciando a construção das subjetividades. A etnomusicologia aplicada emerge, portanto, como possibilidade para a análise das estruturas sobre as quais a música se alicerça. A partir de uma pesquisa a respeito das relações entre o forró e a percepção de jovens sobre a violência sexual, a etnomusicologia apresentou-se como possibilidade teórica para o estudo das performances sociais violentas e dos efeitos da música nas construções identitárias, além de fornecer elementos para o enfrentamento da violência dentro do próprio sistema cultural. Sua triangulação com a AD contribui para uma pesquisa etnográfico-discursiva, como possibilidade de análise das práticas sociais.
Palavras-chave:
Música; Metodologia; Saúde coletiva
Introdução
O fenômeno da violência, em suas diferentes manifestações, não é a-histórico ou destituído de subjetividade11 Wieviorka M. La violence: voix et regards. Paris: Éditions Balland; 2004.. Analisar a violência contra a mulher implica compreender como esses processos atravessam as sociedades e seus mecanismos de naturalização e legitimação22 Minayo MCDS. Violência: um problema para a saúde dos brasileiro. In: Souza ER, Minayo MCDS. Impacto da violência na saúde dos brasileiros. Brasília: Ministério da Saúde; 2005. p. 9-41., incluindo sua relação com discursos e performances culturais33 Scott JW. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educ Real 1995; 20(2):71-99. e as diferentes tecnologias sociais44 Lauretis T. A tecnologia do gênero. In: Hollanda HB, organizadora. Tendências e impasses - o feminismo como crítica da cultura; 1994. p. 206-241., que atuam no contínuo processo de formação de identidade culturais33 Scott JW. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educ Real 1995; 20(2):71-99. e das performatividades de gênero55 Butler J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Editora Record; 2003.,66 Butler J. Bodies that matter: on the discursive limits of sex. Londres: Routledge; 2011.. Emerge assim a necessidade de analisar sua relação com a naturalização da violência contra a mulher, partindo da premissa de que a historicidade é basilar à construção dos processos identitários77 Hall S. Representation: cultural representations and signifying practices (v. 2). London/Thousand Oaks/New Delhi: Sage/Open University; 1997..
A música atua como um artefato88 Derrida J. The deconstruction of actuality: an interview with Jacques Derrida. Radic Philos 1994; 68:28-41., sendo “interpretada performativamente por uma gama de procedimentos hierárquicos e seletivos [...] subservientes a vários poderes e interesses, dos quais os ‘sujeitos’ e agentes […] nunca estão suficientemente conscientes”77 Hall S. Representation: cultural representations and signifying practices (v. 2). London/Thousand Oaks/New Delhi: Sage/Open University; 1997.. Diante de estudos que associam performances musicais a elementos mantenedores da violência de gênero99 Cohen S, Scene MM. Rock music and the production of gender. In: Whiteley S. Sexing the groove: popular music and gender. Routledge: New York; 1997. p.17-36.
10 Faria CN. Puxando a sanfona e rasgando o nordeste: relações de gênero na música popular nordestina (1950-1990). Mneme - Revista de Humanidades 2002; 3(5).
11 Maia AF, Antunes DC. Música, indústria cultural e limitação da consciência. Rev Subjetividades 2016; 8(4):1143-1176.
12 Honório MD. Cachaceiro e raparigueiro, desmantelado e largadão! - uma contribuição aos estudos sobre homens e masculinidades na região nordeste do Brasil [tese]. São Paulo: Universidade Estadual Paulista; 2012.-1313 Trotta F. Música popular, moral e sexualidade: reflexões sobre o forró contemporâneo. Rev Contracampo 2009; 20:132-146., emergiu a pergunta: como a música contribui para a perpetuação e a legitimação da violência contra a mulher?
Esse questionamento orientou a pesquisa “Gênero, sexualidade e forró: um estudo histórico social no contexto nordestino”1414 AVM. Gênero, sexualidade e forró: um estudo histórico social no contexto nordestino [tese]. Fortazela: Universidade de Fortaleza; 2015., que analisou os discursos de músicas desse gênero musical desde 1940 até a contemporaneidade. A imersão na temática e na teoria musical conduziu a uma ampliação do escopo metodológico nas pesquisas subsequentes, aproximando-as da etnomusicologia.
Entendendo o comportamento violento e as performances miméticas da violência como parte de um sistema coerente carregado de significado cultural, uma corrente da chamada etnomusicologia aplicada busca a compreensão das capacidades performativas da violência e os significados que as performances violentas carregam para as vítimas, perpetradores e testemunhas1515 Rice T. Ethnomusicology in times of trouble. Yearb Tradit Music 2014; 46:191-209.. Emergiu daí uma pesquisa ancorada nos pressupostos epistemológicos da etnomusicologia aplicada que objetivou compreender as relações entre as performances ritualísticas do forró e a percepção de jovens sobre a violência sexual1616 Brilhante AVM, Nations MK, Catrib AMF. "Taca cachaça que ela libera": violência de gênero nas letras e festas de forró no Nordeste do Brasil. Cad Saude Publica 2018; 34(3):e00009317..
Entendendo que a etnomusicologia apresenta potencialidades importantes para o campo da saúde coletiva, apresentamos um relato de experiencia sobre sua utilização no 7º Congresso Ibero-Americano em Investigação Qualitativa1717 Brilhante AVM, Catrib AMF, Feitosa ES, Feitosa EC. A etnomusicologia aplicada à pesquisas em saúde coletiva. CIAIQ 2018; 2:849-858.. Nesse contexto, o presente artigo analisa as possibilidades metodológicas do uso da etnomusicologia no campo da saúde coletiva, partindo de uma experiência de pesquisa sobre violência contra a mulher realizada em Fortaleza, Ceará, Brasil, que triangulou teorias etnomusicológicas com a análise do discurso.
Metodologia
Este artigo se baseia no relato de experiência de uma pesquisa que utilizou a etnomusicologia como matriz teórica, triangulando-a com a análise do discurso. Os dados da pesquisa em questão não serão replicados, posto que já estão disponíveis em outra publicação. Eles serão, contudo, referenciados, a fim de situar a discussão sobre as possibilidades da etnomusicologia no campo da saúde coletiva.
Para embasar a discussão, segue a apresentação da matriz teórica, no caso, a etnomusicologia.
Etnomusicologia
Procedente da escola de Berlim, puramente musical1818 Rhodes W. Toward a definition of ethnomusicology. Am Anthropol 1956; 58(3):457-463., a etnomusicologia evoluiu para variantes diversas1919 Krader B. Ethnomusicology. In: New Grove dictionairy of music and musicians. London, Washington, DC: Macmillan Publishers Limited; 1980. p.275-282.. Sua vertente de orientação antropológica2020 Merriam AP. The anthropology of music. Evanston, Illinois: Northwestern University Press; 1964.,2121 Blacking J. How musical is man? Seattle: University of Washington Press; 2000. entende a música como expressão do comportamento sociocultural humano. Essa corrente considera que a música não tem um significado em si e que os sujeitos acrescentam ao seu sentido significações conceitualizadas e referenciadas que não existem na linguagem verbal2222 Imberty M. Perspectives nouvelles de la sémantique musicale expérimentale. Musique en jeu 1975; 17:90-91.. O entendimento da música como expressão reveladora do ser humano deu um novo ímpeto à investigação etnomusicológica2323 Koskoff E. Ethnomusicology: writings on music and gender. Chicago: University of Illinois Press; 2014.. Nesse contexto, alguns etnomusicólogos foram buscar em Clifford Geertz a teorização necessária para transpor a análise da experiencia musical2424 Downey G. Listening to capoeira: phenomenology, embodiment, and the materiality of music. Ethnomusicology 2002; 46(3):487-509.. Do mesmo modo que para Geertz, os etnógrafos não estudam a experiência em si, mas as estruturas pelas quais as experiências ocorrem2525 Geertz C. Art as a cultural system. MLN 1976; 91(6):1473-1499.,2626 Geertz C. Local knowledge: further essays in interpretive anthropology. Basic books; 2008., de forma que os etnomusicólogos deveriam se aprofundar nas estruturas sobre as quais a música se alicerça e em seu papel na construção contínua e sustentação dessa estrutura. As performances musicais estão situadas e inseridas dentro de estruturas de poder e influência, sendo em si atos políticos. Onde são realizadas, por quem e para quem, bem como os rituais que as atravessam e sustentam revelam muito sobre o status cultural e social em que se inserem2727 Trehub SE, Becker J, Morley I. Cross-cultural perspectives on music and musicality. Philos Trans R Soc B 2015; 370:20140096..
Os estudos de pesquisadores como Timoti e Rice forneceram importantes elementos para a construção da relação teórica entre música e identidade2828 Rice T. Disciplining ethnomusicology: a call for a new approach. Ethnomusicology 2010; 54(2):318-325.
29 Timoti R. Reflections on music and identity in ethnomusicology. Musicology 2007; 7:17-38.
30 Rice T. President's soundbyte: what are we thinking? SEM Newsl 2005; 39(4):1-3.-3131 Sugarman JC. The nightingale and the partridge: singing and gender among Prespa Albanians. Ethnomusicology 1989; 33(2):191-215.. Rice organiza a teorização dessa vertente da etnomusicologia em dois eixos perpendiculares. Um centra-se na comunidade: (1) estudos geograficamente focados em nações, regiões, cidades, vilas ou aldeias; (2) grupos étnicos, raciais e minoritários; (3) a vida musical de instituições, como escolas, prisões e clubes; e (4) a vida social dos gêneros musicais. O segundo eixo inclui os temas próprios da teoria musical: música e política; o ensino e a aprendizagem de música; conceitos sobre música; gênero e música; entre outros2828 Rice T. Disciplining ethnomusicology: a call for a new approach. Ethnomusicology 2010; 54(2):318-325.. A compreensão do papel da música na construção das identidades aproximou ainda mais a etnomusicologia de outros ramos das ciências sociais, como os estudos culturais e a teoria marxista3232 Wong D. Ethnomusicology and difference. Ethnomusicology 2006; 50(2):259-279.. Nesse contexto, Rice descreve seis temas que o autor agrupou sob a alcunha de etnomusicologia em tempos de dificuldade: (1) música, guerra e conflito; (2) música, migração forçada e estudos minoritários; (3) música, doença e cura; (4) música em tragédias particulares; (5) música, violência e pobreza; e (6) música, mudanças climáticas e meio ambiente1515 Rice T. Ethnomusicology in times of trouble. Yearb Tradit Music 2014; 46:191-209..
A aproximação com abordagens críticas da diferença (teoria feminista, discurso minoritário, etc.) bem estabelecidas em estudos étnicos, feministas, de cultura popular e literários3232 Wong D. Ethnomusicology and difference. Ethnomusicology 2006; 50(2):259-279. culminaram em novas possibilidades epistemológicas para a etnomusicologia. O pesquisador brasileiro Samuel Araújo e seus colegas do Laboratório de Etnomusicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro aproximaram suas pesquisas das ideias de Paulo Freire para realizar um estudo sobre a violência no Rio de Janeiro. Eles partiram do entendimento do funk como um território, tanto na perspectiva funcional como simbólica, e de sua relação com os modos de existência (e resistência) dos moradores da comunidade da Maré, um bairro pobre do Rio de Janeiro. Para além da análise dos discursos musicais e de sua contextualização, o estudo de Araújo questionou a importância das etnografias dialógicas das práticas sonoras para refrear a violência do ponto de vista sócio-científico3333 Araújo S. Conflict and violence as theoretical tools in present-day ethnomusicology: notes on a dialogic ethnography of sound practices in Rio de Janeiro. Ethnomusicology 2006; 50(2):287-313.. Sua pesquisa incorpora a perspectiva de pesquisadores que entendem a música como campo de ação para um sujeito3434 Sugarman JC. Building and teaching theory in ethnomusicology: A response to Rice. Ethnomusicology 2010; 54(2):341-344., organizado em linguagem ritual e simbolizada pela historicidade e as relações sociais de poder2727 Trehub SE, Becker J, Morley I. Cross-cultural perspectives on music and musicality. Philos Trans R Soc B 2015; 370:20140096..
O encontro da etnomusicologia com os estudos sobre performance social3535 Cusick SG. Feminist theory, music theory, and the mind/body problem. Perspect New Music 1994; 32(1):8-28. descortina o cenário para uma etnomusicologia feminista2323 Koskoff E. Ethnomusicology: writings on music and gender. Chicago: University of Illinois Press; 2014., para a qual a música tem um papel importante na construção das subjetividades e na introjeção dos papéis de gênero3636 Järviluoma H, Moisala P, Vilkko A. Gender and qualitative methods. London: Sage; 2003.
37 Daukeyeva S. Gender in Kazakh dombyra performance. Ethnomusicology Forum 2016; 25(3):283-305.
38 Murchison G. Mary Lou Williams's girl stars and the politics of negotiation: jazz, gender, and Jim Crow. In: Sullivan JM, editor. Women's bands in America - performing music and Gender. London: Rowman & Littlefield; 2016. p. 169-228.-3939 Mello MIC. Os cantos femininos Wauja no Alto Xingu. In: Matos CN, Travassos E, Medeiros FT. Palavra cantada - ensaios sobre poesia, música e voz. Rio Janeiro: 7 Letras; 2008. p. 238-248.. Para além do som, a performance musical atua no processo de socialização, tanto expressando como moldando a ordem social e as relações de gênero2323 Koskoff E. Ethnomusicology: writings on music and gender. Chicago: University of Illinois Press; 2014.. Desse modo, estudos dos comportamentos musicais atuam como indicadores de relações de poder baseadas no gênero, subsidiando estratégias sustentáveis de enfrentamento. Eles transpõem o espaço geográfico de sua execução, na medida em que analisam práticas universais de legitimação da violência atreladas em seus princípios de administração dos corpos e gestão calculista da vida.
Resultados
Os resultados estão organizados em três subtópicos: o primeiro aborda os aspectos metodológicos da experiência em questão, que serão descritos de forma densa, incluindo referência a estudos prévios, os motivos que levaram à utilização da etnomusicologia e à sua triangulação com a análise do discurso. Na segunda e terceira etapas dos resultados serão descritas, respectivamente, a condução de uma pesquisa de cunho etnomusicológico e o processo de triangulação.
Aspectos metodológicos da experiência
O forró, mais do que um estilo musical, constitui um fenômeno importante na criação da imagem idiossincrática de um Nordeste único e atemporal que, embora nunca tenha existido4040 Fernandes A. Forró: música e dança de raiz. In: V Congresso Latino-Americano da Associação Internacional para o Estudo da Música Popular. Rio de Janeiro: Anais; 2004.
41 Silva EL. Forró no asfalto: mercado e identidade sociocultural. São Paulo: Annablume/Fapesp; 2003.-4242 Santos JF. Luiz Gonzaga, a música como expressão do Nordeste. São Paulo: Ibrasa; 2004., foi introjetada, inclusive pelos nordestinos4343 Albuquerque Júnior DM. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez Editora; 2009., dando a esse gênero musical status de símbolo cultural nordestino. Nesse contexto, o forró e sua relação com os papéis sociais de gênero se tornaram nosso objeto de estudo.
A análise do discurso das músicas de forró, realizada preliminarmente, havia fornecido informações importantes sobre as formações discursivas e ideológicas que permeiam as letras. Emergiu dessa pesquisa, contudo, a necessidade de analisar a relação entre o forró, os corpos e as subjetividades em seu contexto real de interação. Desse modo, durante oito meses, entre março e novembro de 2014, pesquisadoras e equipe técnica experienciaram uma imersão profunda no cotidiano do bairro de Fortaleza com piores índices de violência contra a mulher4444 Observem. Filtro de pesquisa sobre a violência contra a mulher em Fortaleza [Internet]. 2016 [acessado 2016 out 20]. Disponível em: https://woese.com/profile/observem
https://woese.com/profile/observem... . O bairro em questão agrega uma série de vulnerabilidades: com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,4034444 Observem. Filtro de pesquisa sobre a violência contra a mulher em Fortaleza [Internet]. 2016 [acessado 2016 out 20]. Disponível em: https://woese.com/profile/observem
https://woese.com/profile/observem... , está localizado na regional mais populosa de Fortaleza (com 585.347 habitantes), que também é a mais pobre, com rendimento familiar médio de 3,07 salários mínimos, e a segunda em índice de analfabetismo (17,83%). Não é à toa que o bairro pertence à Área Integrada de Segurança (AIS) 2, território com o maior registro de homicídios em Fortaleza4545 Ceará. Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social. Indicadores criminais 2017 [documento na Internet]. 2017. [acessado 2019 ago 15]. Disponível em: https://www.sspds.ce.gov.br/estatisticas-2-2/
https://www.sspds.ce.gov.br/estatisticas... . Considerando que a cidade está localizada no Nordeste, região brasileira com os maiores números de feminicídio4646 Moura R. Mapa da criminalidade e da violência em Fortaleza - Perfil da SERV; 2011. [acessado 2021 jun 21]. Disponível em: https://www.yumpu.com/pt/document/read/27455959/mapa-da-criminalidade-e-da-violencia-em-fortaleza-uece
https://www.yumpu.com/pt/document/read/2... , o bairro em questão se apresentou como um cenário apropriado para a pesquisa proposta.
A partir daí, foram realizadas observações etnomusicológicas no cotidiano do bairro, com foco na relação entre as pessoas e as músicas que ressoam pelo bairro. Além disso, realizou-se observações etnográficas nos bailes de forró, observando estrutura física, som, performances sociais, dinâmica das festas e as relações entre homens e mulheres em situações reais. As descrições densas e detalhadas no diário de campo forneceram um panorama amplo da relação entre a música e os papéis sociais de gênero. Esse conhecimento foi crucial para o planejado na etapa subsequente.
No segundo momento da pesquisa, foram realizados, em 2015, dois grupos focais com 14 rapazes entre 14 e 18 anos matriculados nas duas escolas estaduais de ensino fundamental e médio do bairro. Após explicações preliminares, foram reproduzidas três músicas de forró escolhidas previamente. Após cada música, iniciava-se o debate acerca do significado de seus conteúdos. As discussões foram gravadas e transcritas na íntegra e analisadas segundo os princípios da análise do discurso4747 Orlandi EP. Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes; 2009.. Os achados dessa pesquisa encontram-se publicados1616 Brilhante AVM, Nations MK, Catrib AMF. "Taca cachaça que ela libera": violência de gênero nas letras e festas de forró no Nordeste do Brasil. Cad Saude Publica 2018; 34(3):e00009317. e não pretendemos aqui repeti-los. O artigo que ora se apresenta se concentra nos aspectos metodológicos que guiaram o estudo, buscando discorrer sobre as possibilidades da etnomusicologia em uma pesquisa no campo da saúde coletiva.
A imersão no mundo musical cenário - a violência vivida nos acordes e batidas
A aproximação com a realidade musical do bairro apresentou inúmeros desafios. O primeiro decorre da própria concepção de pesquisa etnomusicológica. Esta é geralmente entendida como o estudo de uma cultura musical alheia à experiência do pesquisador, a fim de identificar os códigos internos às culturas observadas. Apesar da participação de uma antropóloga experiente na pesquisa, a imersão na cultura musical exigiu das pesquisadoras a observação e registro dos aspectos musicais, além do adensamento teórico nos campos da musicologia. Outro desafio foi o acesso ao campo, que demandou a autorização por parte dos grupos de facções que comandam a região.
Dessa forma, as autoras vivenciaram uma imersão no cenário. A observação etnomusicológica de cunho etnográfico demanda uma aproximação humilde diante dos códigos culturais que orquestravam sons, performances e movimentos locais. Esse processo requer múltiplos instrumentos de coleta de dados, incluindo observação não participante e participante, descrições minuciosas no diário de campo e registros audiovisuais do cotidiano do bairro. Para além da estrutura e dos hábitos e interações socioculturais que nela se organizam, as pesquisadoras estiveram atentas à cultura musical do bairro e à sua relação com as performances individuais e de grupos. Desse modo, buscou-se uma densa imersão sônica. Foram observados e registrados os diversos estilos musicais que vibravam no cotidiano diário do bairro, além das performances individuais e sociais construídas em torno dessas músicas. Sons de rádios domiciliares que transpunham as paredes das casas, carros de som, a música nos estabelecimentos comerciais, os toques de celulares - toda música era observada e registrada. Em meio ao funk e à música sertaneja, o forró se destacou. As conversas com os moradores envolviam perguntas sobre o cotidiano do bairro, mas também acerca da influência da música na identidade cultural dos moradores. Sendo a violência contra a mulher o objeto da pesquisa, as relações entre os gêneros - incluindo as performances sociais e a influência da música sobre elas - foram centrais às observações.
À observação da vida cotidiana, somou-se a imersão na noite do bairro e sua relação com o forró. Para tanto, foram realizadas imersões nas seis casas de forró que animam sua paisagem. As observações foram realizadas por seis meses em noites diversas durante os fins de semana. A observação começou pela estrutura física, comum a todas as casas. Os muros que cercam os terrenos, os buracos na parede que funcionam como bilheterias, as entradas e saídas estreitas, organização do palco, enfim, toda a estrutura foi rigorosamente descrita. Nesse cenário, organizavam-se performances reproduzidas de forma ritualística, com sequências temporais, hierarquias, regras, interditos e obrigações4848 Goffman E. A ritualização da feminilidade. Os momentos e os seus homens. Lisboa: Relógio D'água; 1999. p. 154-189., tanto no palco como no salão de dança. A observação de vestuário, música, dança, movimentos corporais, modos de abordagem e mudanças desses aspectos com a sequência temporal permitiu entender a organização ritualística do forró para aquelas pessoas e sua relação com a introjeção de papéis sociais de gênero estruturados hierarquicamente.
Triangulando a etnomusicologia e a análise do discurso
Após a imersão etnomusicológica, realizaram-se os grupos focais com os adolescentes. O conhecimento adquirido pela primeira etapa da pesquisa e pelo estudo histórico-social das músicas de forró foi crucial para a organização e condução da etapa subsequente. Doze músicas haviam sido eleitas em estudo prévio1414 AVM. Gênero, sexualidade e forró: um estudo histórico social no contexto nordestino [tese]. Fortazela: Universidade de Fortaleza; 2015., baseando-se na presença de elementos associados à violência sexual. Durante a imersão no cotidiano do bairro, a partir da observação dos sons cotidianos e das festas, bem como da reprodução midiática nos meios de comunicação mais presentes no bairro, esse grupo foi reduzido para três músicas1616 Brilhante AVM, Nations MK, Catrib AMF. "Taca cachaça que ela libera": violência de gênero nas letras e festas de forró no Nordeste do Brasil. Cad Saude Publica 2018; 34(3):e00009317..
Para além do planejamento da coleta, a triangulação com a etnomusicologia potencializou o alcance da análise dos dados. O ritual do forró - como a maioria dos sistemas musicais - envolve música, dança e comportamento. A análise do discurso requer contextualização. Nesse contexto, em uma pesquisa que se propõe a analisar os discursos de jovens sobre músicas de forró que remetem à violência sexual, a observação etnomusicológica os situa de forma ímpar, permitindo a compreensão do funcionamento das práticas sociais relacionadas à música e ao seu papel na construção das identidades.
Discussão
Diante da diversidade epistemológica que compõe a etnomusicologia, sua vertente aplicada busca uma forma de teorizar sobre o campo e atuar sobre ele4949 Harrison K. Epistemologies of applied ethnomusicology. Ethnomusicology 2012; 56(3):505-529.. Os comportamentos miméticos da violência são parte de um sistema carregado de significado cultural. Não à toa os resultados da pesquisa aqui referenciada evidenciaram concordância entre o forró e outros artefatos culturais. A compreensão teórica dos efeitos da performance musical em identidades e subjetividades fornecem, portanto, elementos para que o enfrentamento à violência e a outros problemas de saúde pública ocorram dentro e por meio desse mesmo sistema cultural1515 Rice T. Ethnomusicology in times of trouble. Yearb Tradit Music 2014; 46:191-209.,5050 Van Buren KJ. Applied ethnomusicology and HIV and AIDS: responsibility, ability, and action. Ethnomusicology 2010; 54(2):202-223.. Vale ressaltar, contudo, que a etnomusicologia aplicada transpõe a teorização da música como fato sonoro evocativo de outros elementos do contexto, demandando a análise dos processos pelos quais o som é apreendido2424 Downey G. Listening to capoeira: phenomenology, embodiment, and the materiality of music. Ethnomusicology 2002; 46(3):487-509..
Os diversos sistemas musicais costumam ter em comum uma complexidade semântica. O termo Forró, por exemplo, não se restringe à música, sendo utilizado para denominar também a dança, as festas e os espaços onde estas ocorrem. Esses elementos, em conjunto, culminam em performances ritualísticas que atuam como intensificadores das práticas sociais internalizadas em uma interação transgeracional contínua2727 Trehub SE, Becker J, Morley I. Cross-cultural perspectives on music and musicality. Philos Trans R Soc B 2015; 370:20140096.. Assim como são social e culturalmente situados, os sistemas musicais se tornam também eticamente saturados. Nossos valores mais profundos estão implícitos na estruturação ritual dos sistemas musicais mais complexos2727 Trehub SE, Becker J, Morley I. Cross-cultural perspectives on music and musicality. Philos Trans R Soc B 2015; 370:20140096.. Os sistemas musicais, contudo, não funcionam apenas como repositórios de valores culturais. Atuam na construção das subjetividades e na introjeção dos papéis de gênero3131 Sugarman JC. The nightingale and the partridge: singing and gender among Prespa Albanians. Ethnomusicology 1989; 33(2):191-215.,3636 Järviluoma H, Moisala P, Vilkko A. Gender and qualitative methods. London: Sage; 2003.
37 Daukeyeva S. Gender in Kazakh dombyra performance. Ethnomusicology Forum 2016; 25(3):283-305.
38 Murchison G. Mary Lou Williams's girl stars and the politics of negotiation: jazz, gender, and Jim Crow. In: Sullivan JM, editor. Women's bands in America - performing music and Gender. London: Rowman & Littlefield; 2016. p. 169-228.-3939 Mello MIC. Os cantos femininos Wauja no Alto Xingu. In: Matos CN, Travassos E, Medeiros FT. Palavra cantada - ensaios sobre poesia, música e voz. Rio Janeiro: 7 Letras; 2008. p. 238-248.. Estudos etnomusicológicos podem, portanto, apontar indicadores de relações de poder baseadas no gênero, subsidiando estratégias sustentáveis de enfrentamento dentro da própria cultura.
Em áreas de conflito é frequente que os grupos rivais utilizem sistemas culturais para calar, antagonizar, exacerbar diferenças, aterrorizar e até mesmo torturar os inimigos1515 Rice T. Ethnomusicology in times of trouble. Yearb Tradit Music 2014; 46:191-209.. Por outro lado, práticas musicais também são utilizadas como estratégia de transformação e resistência. Um estudo realizado em 2013 no Sri Lanka, por exemplo, aborda o surgimento de músicas contra ou fora das línguas comunais promovidas pelos dois exércitos que travavam uma guerra civil no país. Essa pesquisa explorou tais músicas como possibilidades de resistência e de construção de novas culturas nacionais que favoreçam a liberdade psicológica e cultural da população5151 Sykes J. Culture as freedom: musical "liberation" in Batticaloa, Sri Lanka. Ethnomusicology 2013; 57(3): 485-517.. Estudo realizado em uma comunidade pobre e marcada pela violência no Rio de Janeiro, Brasil, aproximou a etnomusicologia das ideias de Paulo Freire, a fim de construir conexões sociais horizontais entre os pesquisadores e a população3333 Araújo S. Conflict and violence as theoretical tools in present-day ethnomusicology: notes on a dialogic ethnography of sound practices in Rio de Janeiro. Ethnomusicology 2006; 50(2):287-313.. Inspirados no estudo de Araújo, os jovens participantes da pesquisa foram convidados a compor um projeto de extensão que visava não apenas debater as músicas, mas desconstruí-las e reconstruí-las, com o objetivo de enfrentar a violência cultural.
Essas recentes possibilidades epistemológicas da etnomusicologia constroem um cenário favorável à sua triangulação com outras teorias de base crítica, como é o caso da maioria das abordagens que se denominam de análise do discurso. Segundo Orlandi, os sentidos não são produzidos pelo sujeito, mas sim em outro lugar, anterior e externo a ele, posto que “a linguagem está materializada na ideologia e a ideologia se manifesta na língua”5252 Orlandi EP. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas: Editora Unicamp; 1997.. A compreensão do funcionamento das práticas sociais e de suas relações com o discurso demanda, portanto, uma contextualização, sendo beneficiada por uma experiência imersiva no campo. Nesse sentido, Magalhães, Martins e Resende propõem uma pesquisa etnográfico-discursiva, segundo a qual a análise de discurso se aproxima de estudos de cunho etnográfico, em uma relação de complementaridade, a fim de analisar as práticas sociais5353 Magalhães I, Martins AR, Resende VM. Análise de discurso crítica: um método de pesquisa qualitativa. Brasília: Editora UnB; 2017.. Neste caso, uma pesquisa que analisa os discursos de sistemas musicais e sua relação com problemas de saúde pública (no caso em questão, a violência sexual) encontra na triangulação com a etnomusicologia uma prática profícua.
Conclusão
A etnomusicologia, em suas vertentes aplicadas e com viés crítico, apresenta-se como possibilidade epistemológica dentro do campo da saúde coletiva. A pesquisa aqui relatada possibilitou a teorização do papel do forró, como sistema musical complexo, na internalização de relações violentas entre os gêneros. Para além disso, construiu o cenário para o desenvolvimento de práticas transformadoras de enfrentamento da violência, situadas dentro do próprio sistema cultural do forró. A etnomusicologia surge, neste contexto, como uma possibilidade de compreensão e transformação do mundo social no qual as relações assimétricas de gênero são performadas.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
30 Ago 2021 - Data do Fascículo
2021
Histórico
- Recebido
02 Jun 2019 - Aceito
18 Nov 2019 - Publicado
20 Nov 2019