O movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira iniciado na década de 1970 ganhou força ao longo da década de 1980 em meio ao processo de redemocratização do país e da Reforma Sanitária que originou o Sistema Único de Saúde (SUS). A participação social de trabalhadores da saúde, usuários, familiares, pesquisadores, imprensa e outros atores sociais do campo da Saúde Mental/Políticas Públicas foi estratégica ao denunciar a violência dos hospitais psiquiátricos e a mercantilização do sofrimento psíquico pela “indústria da loucura”. A Lei nº 10.216/200111 Brasil. Ministério da Saúde(MS). Lei nº 10.216, Lei da Reforma Psiquiátrica de 06 de abril de 2001. Diário Oficial da União; 6 abr., conquista destes movimentos, é considerada o marco legal da reforma psiquiátrica brasileira por assegurar os direitos civis e humanos das pessoas em sofrimento mental, bem como garantir o cuidado comunitário. As normativas produzidas na década seguinte à publicação da Lei expressam os princípios da desinstitucionalização, objetivando transformações sociais a partir da prática clínica ampliada e da vida em liberdade22 Amarante P, coordenador. Loucos pela Vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2001..
A diversidade das experiências e práticas inovadoras da atenção psicossocial inspiraram a formulação das políticas de saúde mental brasileira em um movimento ascendente entre as três esferas do poder. No âmbito do resgate e garantia dos direitos dos sujeitos em sofrimento psíquico, os dispositivos de moradia, o direito à cidade e o arcabouço de políticas para inclusão social são necessários para consolidação da cidadania, permanecem como o desafio civilizatório para a transformação do lugar social da loucura33 Venturini E. A Linha Curva. O espaço e o tempo da desinstitucionalização. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016..
Esta edição da Ciência e Saúde Coletiva traz para o debate científico a reflexão sobre o direito à cidade-casa e a apropriação de condições de cidadania das pessoas que vivem com sofrimento psíquico. O “morar em liberdade” traz consigo a complexidade do habitar a cidade, para além da casa, a produção e a troca com valor de uso social, a consolidação dos processos identitários e do pertencimento a um ‘lugar’. Neste sentido, as políticas afirmativas, serviços e dispositivos intersetoriais que garantem a sustentabilidade das práticas cotidianas desenvolvidas nas moradias e serviços residenciais terapêuticos e suas estratégias inclusivas de vizinhança, pertença, geração de renda e trabalho, resgates de afetos e ‘culturas’ estão no bojo social do que designamos como direito à cidade.
O morar e o habitar são compostos por uma gama de ações de macro e micro políticas fundamentais à transmutação do sujeito-sujeitado em sujeito-cidadão. O direito à casa é, também, espaço de abrigo e continente para o movimento de ocupação das redes existenciais do urbano. Apesar do ponto de partida (hospício) e do ponto de chegada (cidade-casa) serem aparentemente claros, o trajeto a ser percorrido é transversalizado pelas armadilhas concretas e subjetivas do mundo globalizado.
Reencontrar os espaços da rua se configura como vivências positivas, mas também de retorno a uma cidade que enfrenta as consequências de uma pandemia, permeada pelo racismo estrutural, discriminação de classe e de gênero entre vários outros estigmas historicamente construídos.
Esta edição temática enfoca os desafios da desinstitucionalização refletidos nas práticas cotidianas do direito à cidade para além da lógica manicomial.
Convidamos os leitores para refletir sobre a multiplicidade das experiências locais e sobre os paradigmas científicos interdisciplinares e intersetoriais presentes no cuidado em liberdade a partir da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e seus dispositivos como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Serviços de Residências Terapêuticos (SRT), Centros de Convivência e Programa de Volta para Casa(PVC), como parte do arcabouço das políticas públicas brasileiras reconhecidas internacionalmente que estão sofrendo ameaças e desestruturações sem precedentes.
A travessia entre o hospício e a cidade, no século XXI, segue sendo uma disputa política que convoca para o processo civilizatório democrático. Ocupar as arenas da ciência, da política e da cultura em prol de uma “sociedade sem manicômios” e da continuidade da Reforma Psiquiátrica é a convocação do tempo presente.
Boa leitura!
Referências
- 1Brasil. Ministério da Saúde(MS). Lei nº 10.216, Lei da Reforma Psiquiátrica de 06 de abril de 2001. Diário Oficial da União; 6 abr.
- 2Amarante P, coordenador. Loucos pela Vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2001.
- 3Venturini E. A Linha Curva. O espaço e o tempo da desinstitucionalização. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
17 Jan 2022 - Data do Fascículo
Jan 2022