Resumo
A “esfera de intimidade” se apresenta cada vez mais mediada por uma rede sociotécnica, revestida de novos significados e leituras nos jogos amorosos e de sedução. Nessas trocas afetivo-digitais os nudes desempenham importante papel na vinculação de interesse entre parceiros, constituindo também espaços de disputas de poder e violência. O trabalho objetiva analisar as moralidades vigentes, os modos de gestão das emoções e os enquadramentos do corpo na afirmação de autonomia e diversidade presentes nos discursos de jovens que tiveram seus conteúdos íntimos disseminados sem consentimento pela internet. Foram analisados 20 vídeos de jovens youtubers que vivenciaram tal experiência. Os vídeos foram analisados segundo a perspectiva da Análise de Discurso Crítica. Os depoimentos carregam forças discursivas de “desabafo”, “testemunho” e, sobretudo, “aconselhamento”. Nas experiências narradas, destacamos as dinâmicas da disseminação desses conteúdos íntimos e como afetam diferentemente as representações de face e de reconhecimento social de rapazes e moças. As formas de manejo do sofrimento variam entre a resignação diante de uma ordem patriarcal e de discursos de superação e autonomia. Destaca-se ainda o protagonismo desses jovens diante da gestão das imagens íntimas e um posicionamento político sobre o uso e expressão dos seus corpos.
Palavras-chave:
Violência; Gênero; Privacidade; Rede social; Internet
Introdução
A “esfera de intimidade”, reconhecida como espaços fluídos de enunciação do self11 Giddens A. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: Editora Unesp; 1993., se apresenta cada vez mais mediada por uma rede sociotécnica, revestida de novos significados e leituras nos jogos amorosos e de sedução vivenciados por meios digitais22 Albury K, Burgess J, Light B, Race K, Wilken R. Data cultures of mobile dating and hook-up apps: emerging issues for critical social science research. Big Data Soc 2017; 4(2):2053951717720950.. Nesse contexto, a “apresentação de si” será performada nas fronteiras do corpo e do digital, numa cultura da conectividade, cujas premissas de “espetacularização do Eu”33 Sibilia P. La intimidad como espectáculo. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômico; 2017. e de hiperexposição44 Lemos A. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre: Sulina; 2016. são marcas emblemáticas.
A internet é cada vez mais incorporada, corporificada e cotidiana55 Hine C. Ethnography for the internet: embedded, embodied and everyday. Huntingdon: Bloomsbury Publishing; 2015., mediando a maioria das interações e experiências, inclusive aquelas relacionadas ao exercício da sexualidade. Há incontáveis aplicativos para promover encontros sexuais/sentimentais, canais e programas tutoriais para “ensinar” como se comportar e desempenhar scripts sexuais aceitáveis segundo parâmetros de grupos de referência, bem como tantos outros para questionar e desconstruir tais modelagens. Há ainda sites e páginas para promover práticas com contornos identitários, entre tantas manifestações erótico-sensuais que têm lugar na internet66 Silva LCS, Sales SR. A cibertecnologia do nude selfie na produção de relações de sexualidade das ciborgues na contemporaneidade. In: 13º Mundos de Mulheres e Fazendo Gênero 11. Transformações, conexões, deslocamentos. Florianópolis 2017; 30 jul a 4 ago.. Afinal, como reitera Lins77 Lins BA. Caiu na rede: mulheres, tecnologias e direitos entre nudes e (possíveis) vazamentos [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2019., a internet pode ser considerada como um campo de disputas sobre modos de viver e definir a sexualidade. Constitui um espaço de afirmação da diversidade, seja de corpos e sexualidades não hegemônicos, travando, nas distintas mídias e plataformas, acirradas disputas de inclusão, reconhecimento e aceitação88 Ramos JS. A sexualidade como campo de batalha na internet: grupos religiosos e movimentos feminista e LGBT na luta em torno dos direitos sexuais. In: Anais do 37º Encontro Anual da Anpocs [Internet]. Águas de Lindóia; 2013 [acessado 2021 mar 13]. Disponível em: http://anpocs.org/index.php/encontros/papers/37- encontro-anual-da-anpocs.
http://anpocs.org/index.php/encontros/pa... .
Todavia, a ampla produção, circulação e troca de vídeos e fotos eróticos/sensuais do próprio corpo nu, ou em interação sexual com parceiro(a), será tratada por uma “dupla moral”99 Giongo MG. Madalenas modernas e um caso de pornografia de vingança: reflexões sobre gênero, sexualidade e cidadania na educação. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2015. que, de um lado condena a mulher que expressa e vivencia sua sexualidade, do outro é tolerante e permissiva às manifestações dos desejos masculinos66 Silva LCS, Sales SR. A cibertecnologia do nude selfie na produção de relações de sexualidade das ciborgues na contemporaneidade. In: 13º Mundos de Mulheres e Fazendo Gênero 11. Transformações, conexões, deslocamentos. Florianópolis 2017; 30 jul a 4 ago.,99 Giongo MG. Madalenas modernas e um caso de pornografia de vingança: reflexões sobre gênero, sexualidade e cidadania na educação. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2015.,1010 Barrat SA. Reinforcing sexism and misogyny: social media, symbolic violence and the construction of femininity-as-fail. J Int Womens Stud 2018; 19(3):16-31.. Nesse cenário, o debate sobre a disseminação não consentida de conteúdos íntimos confere destaque aos limites e acordos possíveis entre o público e o íntimo, desenhando os contornos das relações de violência entre parceiros íntimos, num campo onde as moralidades são acionadas seletivamente, de acordo com os referentes e hierarquias de gênero. Giongo99 Giongo MG. Madalenas modernas e um caso de pornografia de vingança: reflexões sobre gênero, sexualidade e cidadania na educação. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2015., ao analisar diversos casos disseminados em mídias escritas e online, confirma que o rapaz que compartilha o conteúdo íntimo não é sequer mencionado, a culpa recairá na menina/mulher por sua inadmissível “ousadia” ou “ingenuidade” em compartilhar imagens de seu corpo nu. Como indicam Paz e Silva1111 Paz AA, Silva SR. Isso não é pornografia de vingança: violência contra meninas e mulheres a partir da explanação de conteúdo íntimo na internet. Reciis 2021; 3(15):561-579., aquelas que têm seu material íntimo divulgado na internet sofrem retaliações morais, pois segundo a visada patriarcal “são elas que cedem os conteúdos”, em contramão à expectativa de recato e contenção de seus instintos sexuais. Tais elementos confirmam mecanismos de controle e vigilância da imagem, das manifestações da sexualidade e comportamentos femininos.
Apesar de já existir significativa produção sobre o tema, o foco tem sido a judicialização e reponsabilização penal de quem se apropria e dissemina conteúdos íntimos sem consentimento nas redes sociais1212 Neris N, Ruiz JP, Valente MG. Análise comparada de estratégias de enfrentamento a "revenge porn" pelo mundo. Rev Bras Pol Publicas 2017; 3(7):333-347. ou o processo de adoecimento das pessoas que sofrem tais abusos1313 Bates S. Revenge porn and mental health: a qualitative analysis of the mental health effects of revenge porn on female survivors. Fem Criminol 2017; 12(1):22-42.
14 Chaudhary P, Peskin M, Temple JR, Addy RC, Baumler E, Ross S. Sexting and mental health: a school-based longitudinal study among youth in Texas. J Appl Res Children 2017; 8(1):11-48.-1515 Gassó A, Mueller-Johnson K, Montiel I. Sexting, online sexual victimization, and psychopathology correlates by sex: depression, anxiety, and global psychopathology. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(3):1018-1036..
O olhar sobre o corpo, posicionando seu lugar de autonomia e expressão política, bem como o de ressignificação de violências sofridas são aspectos que podem colocar novas lentes aos debates sobre a expressão da sexualidade em espaços digitais e a desconstrução da culpabilização, sobretudo dos corpos femininos e dos chamados “corpos divergentes”.
Nesse artigo buscamos analisar a experiência de jovens de ter conteúdos íntimos disseminados sem consentimento pela internet, as dinâmicas interacionais ligadas ao vazamento, as moralidades de gênero vigentes, os modos de gestão das emoções e os enquadramentos do corpo na afirmação de autonomia e diversidade. Para isso elegemos os discursos de jovens youtubers, reconhecendo-os como influenciadores e porta-vozes de uma geração nativa digital.
Metodologia
Realizamos nossa busca na plataforma YouTube, utilizando guia anônima para evitar sugestões baseadas em históricos de pesquisa. A coleta ocorreu entre junho de 2019 a fevereiro de 2020. Os critérios de inclusão foram vídeos de youtubers que apresentassem adolescentes como protagonistas da experiência de vazamento sem consentimento ou jovens narrando tais situações ocorridas na adolescência.
O Quadro 1 descreve as palavras chaves utilizadas na busca que resultou em 41 vídeos. Foram excluídos do acervo vídeos repetidos; aqueles que tinham no título “nude” mas que não apresentavam no conteúdo o tema do título; e aqueles de “trolagem” (encenações feitas para enganar alguém). Após a seleção restaram 20 vídeos, sendo 12 protagonizados por meninas e 8 por rapazes. Foram classificados segundo a ordem decrescente do número de visualizações e transcritos na íntegra, sendo fiel ao modo de enunciação fonética e de concordância. Foram descritas as ações corporais e efeitos audiovisuais, compondo 180 páginas de transcrição.
Após sucessivas leituras de aproximação, o acervo foi inicialmente distribuído em três grandes blocos temáticos: 1 - Dinâmicas e moralidades; 2 - Gestão das emoções; 3 - Empoderamento. Os temas foram analisados segundo a perspectiva da Análise de Discurso Crítica1616 Fairclough N. Discurso e Mudança Social. Brasília. Universidade de Brasília; 2000.. Tomando sua perspectiva tridimensional, destacamos elementos do texto (aspectos gramaticais e sintáticos quando importantes para análise dos significados e intenções), da prática discursiva (especialmente a categoria de “força”) e das visadas ideológicas que contextualizam tais enunciações.
Resultados e discussão
Dinâmica de vazamento não consentido de conteúdos íntimos, moralidades generificadas e vergonha
“Aconteceu comigo: nudes”, “O dia que vazaram meus nudes!”, “Meu nude vazou!”. Os títulos dos vídeos postados por adolescentes e jovens Youtubers já deixam explícito que ali vai ser relatada uma experiência pessoal sobre a disseminação de conteúdos íntimos na rede, garantindo, desde a partida, a credibilidade de “um lugar de fala”. A vivência e a posição de aspirante a influenciador digital lhes conferem a autoridade para aconselhar outros jovens sobre como manejar esse tipo de situação, orientando sobre a gestão das ações, comportamentos e emoções. Os títulos indicam também algum domínio técnico quanto à escolha das palavras, numa economia midiática de termos para que seus vídeos sejam facilmente encontrados no Youtube.
As diversas histórias narradas confirmam algumas dinâmicas conhecidas do fenômeno. A troca de fotos, textos e vídeos de cunho erótico ou sensual se dará na vigência dos relacionamentos afetivo-sexuais, eventuais ou estáveis. Em algum momento dessa interação virtual, um dos parceiros vai pedir “manda nude”, seja como “prova de confiança”, seja como pré-requisito para que se mantenha o interesse no outro. A troca de nudes parece constituir um novo script sexual contemporâneo1717 Parker R. Reinventing Sexual Scripts: Sexuality and Social Change in the Twenty-First Century (The 2008 John H. Gagnon Distinguished Lecture on Sexuality, Modernity and Change). Sex Res Soc Policy 2010; 7:58-66.. Todavia, diante de suspeita de traição, ciúmes ou rompimento da relação, aquele material poderá ser disseminado nas redes sociais como forma de vingança e de ataque à imagem pública do(a) parceiro(a)11 Giddens A. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: Editora Unesp; 1993.,1818 Sydow ST, Spínola LMC. A viabilidade de aplicação da justiça restaurativa nos crimes de sextorsão e pornografia de vingança. Rev Direito Cult 2020; 36(15):329-355.,1919 Gomes CCA, Ortega LS, Ramos IJ. Identificação do fenômeno sexting por estudantes de ensino profissional tecnológico de Minas Gerais. Holos 2020; 1(36):1-12..
Outra dinâmica citada é quando algum desafeto, fora do circuito amoroso, constrói um perfil falso com o nome da pessoa e lá publica materiais eróticos recolhidos na internet, atribuindo-lhe a autoria. A troca dos materiais íntimos também pode se dar entre os membros anônimos (ou não) de um grupo fechado de Whatsapp ou em aplicativos (app) próprios para essas trocas. Nesse caso, o vazamento se dá quando um dos integrantes do grupo rompe com o pacto de anonimato e revela a identidade dos materiais trocados. Por fim, esse conteúdo pode ser hackeado do celular, através de aplicativos de clonagem ou por acesso indevido ao aparelho. A disseminação sem consentimento desses conteúdos pode ser precedida por chantagens e ameaças (sextorsão).
Se a dinâmica da produção dos conteúdos íntimos envolve potencialmente a anuência dos envolvidos, a disseminação não consentida terá efeitos absolutamente diferentes segundo a posição de gênero de quem teve o conteúdo explanado1919 Gomes CCA, Ortega LS, Ramos IJ. Identificação do fenômeno sexting por estudantes de ensino profissional tecnológico de Minas Gerais. Holos 2020; 1(36):1-12.. O vazamento não consentido da imagem de um corpo masculino, embora possa causar situações vexatórias no meio familiar e entre amigos, são mais toleradas e até eventualmente oferecem o importante capital da “fama” na economia de trocas digitais. A menos que esse rapaz pertença a alguma agremiação religiosa conservadora, o episódio será comentado como um fato engraçado ou um ato viril. As sanções e críticas serão deslocadas para outros polos de discriminação, como ter um corpo gordo ou um pênis pequeno. Numa hierarquia das relações de gênero, os meninos héteros relataram acionar argumentos para justificar a exposição pública de seus corpos que mostraram ser aceitos socialmente. Os meninos assumidamente gays, ainda que também reconheçam existir preconceitos, sustentaram uma narrativa mais autônoma de trocas de imagens íntimas, indicando que a rede sociotécnica da internet tem importante papel nas mediações eróticas e de sexualidade da comunidade LGBTQIA+ há bastante tempo2020 Ferrari W. Nas tramas da sexualidade: um estudo sobre trajetórias afetivo-sexuais de homens jovens gays [tese]. Rio de Janeiro: Instituto Fernandes Figueira; 2021.,2121 Miskolci R. Desejos digitais: uma análise sociológica da busca por parceiros on-line. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica; 2017.. Como se vê, trata-se de um ordenamento moral, claramente generificado:
Falei “mano, pode vazar. [balança cabeça em sinal negativo parecendo não se importar] a vontade. Só vai me dar ibope”. Porque pô, se eu tivesse a peça pequena, tá ligado? Ai seria uma merda, tá ligado? [corte] Só que eu tenho a autoestima grande, não é só a autoestima (Vídeo 15-Rapaz).
E eu não sabia onde enfiar a cara porque, mano, como que um nude vai parar no grupo da família? Aí eu meti o louco, tinha falado que tinha sido hackeado, que entraram nos meus álbuns lá do snap, [...] e eles falaram [tom de incredulidade] “ah, tá bom, a gente acredita” (Vídeo 8-Rapaz).
[...] eu não tive tanta crítica assim das pessoas [...] E também por eu ser homem né, porque a sociedade cai em cima da mulher…! Tipo, a mulher postou uma foto sensual e disseram que é puta, vagabunda, tá querendo dar pra todo mundo [...] eu faço parte da comunidade LGBT… E enfim...E isso acontece também no meio LGBT, que as pessoas falam “nooossa”, “que bicho escroto”... (Vídeo 3-Rapaz[2]).
Em contrapartida, as meninas passam por itinerários que começam pela descoberta do vazamento através da intensa movimentação de sua rede de contatos que as avisam do acontecido. A súbita “fama” é seguida rapidamente pelo “linchamento moral” nas redes digitais e nas relações presenciais. Rótulos morais negativos serão colados à sua identidade. Será vista como a “menina que não se valoriza”, encarnando a negligência imperdoável com seu “nome” e “honra”. Também será denominada de “vagabunda”, “piranha”, “puta ou putinha”, entrando no circuito de desvalorização social que o estigma encarna2222 Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara; 1988.. Morar numa cidade pequena ou interiorana acrescenta incomparável dano à imagem dessa menina e a sua rede de relações. Assim, essa jovem se deslocará da “fama” inicial que movimenta as redes à “má fama”, que tem o efeito de permanência na memória local. Essas jovens serão julgadas moralmente por exercer sua sexualidade, acrescentada pela infâmia da exibição diante de uma câmera, fechando um circuito de culpabilização e suspeição moral. Relatos e trajetórias semelhantes foram relatadas nos estudos de Sydow e Spínola1818 Sydow ST, Spínola LMC. A viabilidade de aplicação da justiça restaurativa nos crimes de sextorsão e pornografia de vingança. Rev Direito Cult 2020; 36(15):329-355., Barratt1010 Barrat SA. Reinforcing sexism and misogyny: social media, symbolic violence and the construction of femininity-as-fail. J Int Womens Stud 2018; 19(3):16-31. e de Chisala-Tempelhoff e Kirya2323 Chisala-Tempelhoff S, Kirya MT. Gender, law and revenge porn in Sub-Saharan Africa: a review of Malawi and Uganda. Palgrave Commun 2016; 2:16069..
Na sucessão narrativa, o enredo se desloca para as discriminações perpetradas pelos pares, o isolamento (auto)imposto e o sofrimento emocional. Numa espiral de ataques, os insultos desferidos por quem publicou o material serão endossados pelos comentários dos integrantes da rede e prosseguirão nos espaços presenciais onde essas mesmas pessoas circulam.
Nos vídeos analisados, exceto às menções feitas à instituição policial, para onde algumas das denúncias foram levadas e à família, nota-se uma ausência de mediações das instituições que fazem parte do cotidiano de adolescentes (escola, cursos, grupos esportivos etc.) para a atenuação ou reparação das ofensas sofridas pelas jovens. Não é de se estranhar que para algumas meninas, a ruptura, o isolamento, a mudança de vizinhança ou de escola foram citados como formas de “fugir” da vergonha sofrida. A “vergonha”, com diferentes intensidades, constituiu o núcleo dos sentidos atribuídos por quase todos à experiência.
[Moça, aparentes 18-19 anos. Conta que quando tinha cerca de treze anos conheceu um menino numa balada para adolescentes em sua cidade. Logo depois passaram, por insistência do menino, a trocar nudes. Depois do final do relacionamento, o rapaz vazou o material]:
Trecho 1: [...]: [olhos ainda marejados] é… essa foto chegou na minha mãe e tipo… quando chegou na minha mãe, minha mãe tava na escola e ela me ligou. Nisso que ela me ligou [olhando para o horizonte] brigou comigo, né, falou que… acabou para ela também [olha para baixo].
Trecho 2: [...] a minha mãe é o tipo de pessoa que preserva muito a imagem, tipo, ela se importa muito com o que os outros pensam sobre ela, sobre a filha dela, sobre a família... [limpa uma lágrima] [corte].
Trecho 3: [...] ela desligou o telefone [...] eu fiquei duas aulas chorando no banheiro [limpa uma lágrima] com a minha amiga lá dentro. [olhos cerrados e sobrancelhas franzidas] e chorando e chorando e chorando e chorando [...].
Barbosa2424 Barbosa RB. Vergonha Cotidiana, ofensa moral e ressentimento: as dimensões emocionais e morais dos rituais cotidianos de interação. Rev Estud Investig Antropol 2016; 3(1):195-212., produz minucioso estudo sobre as categorias de vergonha, ofensa moral e ressentimento. O autor retoma a obra goffmaniana para definir como se dão as relações entre os padrões interacionais do Eu, na busca de se estabilizar enquanto uma fachada, ou seja, uma imagem e reputações públicas de caráter positivo, capazes de garantir reconhecimento e aceitação social dentro de sua linha, definida como o conjunto de suas interações. O Eu socialmente integrado, portanto, teria tido êxito em corresponder às expectativas a um conjunto de exigências quanto a reputações, a acatar certas etiquetas vinculadas ao sistema social de posições, ao desempenho dos papéis esperados, a um conjunto de obrigações e de performances identitárias. Vale lembrar que para Goffman2222 Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara; 1988. há uma estreita ligação emocional entre o Eu e sua fachada, seja familiar ou individual. Assim, as graves ofensas e acusações morais, capazes de ataque frontal a essa fachada, redundam em desfiguração, humilhação do outro, podendo levar no seu esgarçamento, na própria ruptura dos vínculos sociais. A vergonha constitui essa dor social, que é também emocional, de ter sua fachada inteiramente destituída de atributos socialmente valorizados.
Numa leitura da psicologia, Lameiras2525 Lameiras HNM. Influência da vergonha e das suas memórias traumáticas na Psicopatologia alimentar em mulheres com e sem excesso de peso [dissertação]. Coimbra: Instituto Superior Miguel Torga; 2013. define a noção de vergonha como “uma vivência interna do eu como indesejável, não atrativo, defeituoso, sem valor, impotente”. Seu estudo indica que a experiência da vergonha na infância e adolescência podem gerar registros traumáticos, elementos de autoidentidade, podendo afetar a autorregulação emocional e estar associada a maior vulnerabilidade para psicopatologias diversas tais como baixa autoestima, depressão, ansiedade, perturbação da imagem corporal e do comportamento alimentar. Os depoimentos analisados em nosso estudo também relatam insônia, tristeza profunda, ideação suicida, assim como mencionado em literatura internacional por Bates1313 Bates S. Revenge porn and mental health: a qualitative analysis of the mental health effects of revenge porn on female survivors. Fem Criminol 2017; 12(1):22-42., Chaudhary et al.1414 Chaudhary P, Peskin M, Temple JR, Addy RC, Baumler E, Ross S. Sexting and mental health: a school-based longitudinal study among youth in Texas. J Appl Res Children 2017; 8(1):11-48. e Gassó et al.1515 Gassó A, Mueller-Johnson K, Montiel I. Sexting, online sexual victimization, and psychopathology correlates by sex: depression, anxiety, and global psychopathology. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(3):1018-1036.. Gassó et al.1515 Gassó A, Mueller-Johnson K, Montiel I. Sexting, online sexual victimization, and psychopathology correlates by sex: depression, anxiety, and global psychopathology. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(3):1018-1036. em estudo envolvendo 1.370 estudantes universitários espanhóis sobre seu envolvimento em sexting e sintomatologia psicopatológica, medidos por uma escala de sexting e pelo Listado de Síntomas Breve (LSB-50), indicam que não foram encontradas diferenças entre homens e mulheres na prevalência de sua vitimização por divulgação não consensual de conteúdo sexual, entretanto, as mulheres foram mais pressionadas, ameaçadas e mais vulneráveis a ter depressão. Ser do sexo feminino e participante de sexting, sexting passivo e vitimização sexual online foram variáveis associadas a uma pior saúde mental. Drouin et al.2626 Drouin M, Ross J, Tobin E. Sexting: A new, digital vehicle for intimate partner aggression? Comput Hum Behav 2015; 50:197-204. em estudo com 480 jovens universitários indicam que a coerção para o envio de sexting pode ser um marcador para outros tipos de agressão do parceiro íntimo. Aqueles que foram coagidos a fazer sexting apresentaram mais sintomas de ansiedade, depressão e trauma generalizado. A coerção por sexting foi tabém relacionada tanto à coerção sexual física quanto à violência do parceiro íntimo. Estudos qualitativos77 Lins BA. Caiu na rede: mulheres, tecnologias e direitos entre nudes e (possíveis) vazamentos [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2019.,1010 Barrat SA. Reinforcing sexism and misogyny: social media, symbolic violence and the construction of femininity-as-fail. J Int Womens Stud 2018; 19(3):16-31.,2727 Faria FCM, Araújo JS, Jorge MF. Caiu na rede é porn: pornografia de vingança, violência de gênero e exposição da "intimidade" na internet. Comun Cult 2015; 3(13):659-677. também reforçam o sofrimento moral e a humilhação sofridas por mulheres que têm seus conteúdos íntimos disseminados sem consentimento.
Como ressalta a jovem do vídeo 8, usando o recurso do alongamento fonético (“diveeersas qualidades”), o conjunto de ofensas e insultos que são associados ao vazamento dos nudes, especialmente de meninas, desfigura os elementos de fachada apresentáveis no mercado das relações da aceitação social, desacreditando quaisquer outros atributos favoráveis:
[...] sabe uma coisa que eu acho o fim da picada neste tipo de situação? [corte] é que independentemente [símbolo de medalha “número 1” em vídeo] da vítima ser uma ótima filha, ótima aluna… diveeersas qualidades, muitas vezes ela vai ser lembrada sabe pelo que ? [corte] Pelo nude dela… (Vídeo 8-Moça).
“Mas esse corpo não é meu”
[Adolescente, sexo feminino, aparentando cerca de 15 anos, muita maquiagem, casa de classe popular].
Trecho 1: Oii gente, tudo bem? Esse vídeo é pra falar de um assunto um pouco complicado... já aconteceu comigo e, que pode ter acontecido com vocês que é sobre nudes [nessa abertura a adolescente arruma o cabelo várias vezes, checando sua própria imagem] Sim gente… Já aconteceu comigo...
Trecho 2: Uma vez tava lá, normal no Whatsapp [...] numa boa e um cara me mandou mensagem e começou a me mandar nudes e pediu pra mim (sic [CV3]) mandar.
Trecho 3: Só que como ele era muito bonito eu desconfiei que era fake. Ai o que eu fiz... como eu tava em vários grupos de putaria eu fui láaaa no grupo de putaria, peguei váaarias fotos e mandei.
Trecho 4: E nisso ele pensou que era eu na verdade, e tipo nem… eu peguei uma buceta peluda e coloquei lá. Aí o cara foi lá, tirou print colocou no Facebook me chamando de piranha de um monte de coisa. Mas assim [expressão de conformidade] [franze testa].
Trecho 5: [...] o povo ficava me chamava de “pepeca peluda” por bastante tempo-por um tempo… tem muita gente que ainda fala disso… [olha pra baixo triste] e realmente não sabe a verdade.
Trecho 6: AD: Daí depois de um tempo né, é…uma mina chamada F. ela começou a espalhar pra todo mundo que eu tinha dado pra oito moleques dentro de um Fusca - de um Fusca ainda…! Por uma trufa… [revira os olhos].
Trecho 7: [...] foi esse boato… um monte de gente fica me chamando de trufa, me chama ainda…E mano, eu não gosto de trufa… (Vídeo 1-Moça).
Nessa história, a menina anuncia o estilo discursivo de confissão e captura o interesse da audiência convocando-lhes empatia (“pode ter acontecido com vocês”). Desde o primeiro contato, a menina desconfia das intenções daquele “rapaz tão bonito” e disponível. Fala sem preconceito e assume participar dos “grupos de putaria”, grupos em que as trocas de imagens íntimas e sexting é livre e consentida. Com alguma experiência ela acredita saber controlar o jogo proposto e manda fotos de outra pessoa, de um corpo anônimo, coletado na indigência digital. Entretanto, mesmo com tal artifício será rotulada como “piranha”, discriminada e designada pela alcunha de “pepeca peluda”. A imagem usada como substituto do seu corpo passa a receber mais credibilidade que sua palavra. A humilhação segue por uma temporalidade difusa e não concluída (o léxico tempo é repetido diversas vezes, alternando indistintamente entre passado e presente). Seu relato reitera o fato de que a permanência das postagens, a escala das reproduções e a velocidade de circulação não são previsíveis ou controláveis77 Lins BA. Caiu na rede: mulheres, tecnologias e direitos entre nudes e (possíveis) vazamentos [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2019.,2828 Sibilia P. A nudez autoexposta na rede: deslocamentos da obscenidade e da beleza? Cad Pagu 2015; 44:171-198.. Como no trabalho de Paganotti2929 Paganotti I. A censura privada de controle: Xuxa contra Google e o direito ao esquecimento. In: Costa MCC, organizadora. Privacidade, sigilo e compartilhamento. São Paulo: ECA-USP; 2017. p. 124-134., que analisou o caso da apresentadora Xuxa que impetrou uma ação contra a plataforma Google para retirar conteúdos relacionados às chaves de busca sobre sua participação em filme pornô ocorrido na década de 1980, as plataformas digitais em suas lógicas comerciais-algorítmicas sequestraram o direito ao esquecimento.
Em sequência, a menina já vulnerável e sua imagem pública destituída de valor social, circulando nas esferas do estigma2222 Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara; 1988., se torna alvo de um boato sobre ter participado de sexo grupal em troca de um doce. O penúltimo trecho mostra a relação fronteiriça entre a perseguição moral on-line e off-line que lhe dá continuidade. Será tratada como alguém que troca sexo por qualquer coisa, personificando a devassidão moral. No último trecho a menina revela a continuidade dos agravos, a diminuição de autoestima e lhe sobra em sua própria defesa, o ingênuo argumento de sequer gostar daquele tipo de doce.
Outros jovens nos vídeos analisados também mencionam usar imagens de corpos coletados no Google a fim de se protegerem de um possível vazamento. Tal recurso foi especialmente citado quando há pouca confiança no parceiro, ou quando a relação de troca de conteúdos íntimos é feita grupalmente, em sites ou grupos com essa finalidade. Todavia, tal artifício só é efetivo quando há provas do estratagema, como prints da tela. De nada adiantará negar que o corpo mostrado não é sequer semelhante ao seu. A palavra vale menos que a imagem e, por sua vez, a meta-imagem (a imagem da imagem capturada) tem mais credibilidade.
Por outro lado, a foto é disseminada sem a cabeça (“faceless”), recurso já conhecido como medida de autoproteção da imagem nas trocas sexuais digitais e um elemento das culturas visuais contemporâneas3030 Cavalcante JVS. A imagem informe: reflexões sobre a alteridade dos corpos sem rosto. Galáxia 2020; 44:129-143.. Mesmo desfigurada, será analisada indiciariamente pelos integrantes das comunidades que a recebem. Serão procuradas as “pistas” apenas para dar legitimidade à acusação inquisitorial, “comprovando” que aquele corpo é de fato da pessoa “denunciada”. A cor do cabelo e até mesmo uma bijuteria serão consideradas “provas” suficientes:
[...] Porque eu não tava reconhecendo meu corpo! Primeiro que eu não tinha aquele peito. Eu olhei para... “gente! nem peito eu tenho! essa menina tem um peitão! Eu não tenho peito!” [...] aí ela olhou para minha cara assim “mas é você! não sei o que…” eu disse [gestual de impaciência] “gente, não sou eu! eu [junta as mãos em gesto de jurar] juro que não sou eu!” (Vídeo 17-Moça).
A despeito da banalização da aparição dos corpos nus ou nos jogos sensuais de exposição que circulam à exaustão nas redes e mídias digitais, nas trocas onde a intimidade e privacidade são ressignificados constantemente na busca de “existir” a ter reconhecimento no “mercado da visibilidade digital”33 Sibilia P. La intimidad como espectáculo. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômico; 2017.,2727 Faria FCM, Araújo JS, Jorge MF. Caiu na rede é porn: pornografia de vingança, violência de gênero e exposição da "intimidade" na internet. Comun Cult 2015; 3(13):659-677., a exposição da sexualidade feminina continua sendo avaliada pelos crivos da moralidade patriarcal, sendo francamente desiguais as regras de uso e sanções sociais aplicadas neste jogo de moralidades. Mesmo quando essa exposição não foi consentida ou desejada, configurando claramente uma ação de violência contra essa mulher/menina, os dispositivos de marcação disciplinar do corpo feminino aparecem com toda sua agressividade.
A gestão das emoções
O estilo “tutorial” faz parte do gênero linguístico e midiático youtuber e mesmo crianças e adolescentes assumem a condição de “ensinante” em seus canais3131 Sampaio IV, Pereira GC, Cavalcante AP. Crianças youtubers e o exercício do direito à comunicação. Cadernos CEDES 2021; 113(41):14-22.. Os vídeos dessa plataforma também costumam “ensinar” e prescrever como lidar com os sentimentos diante de situações capazes de gerar sofrimento. Nessa ciberpedagogia das emoções, nessa sociotécnica emocional, o vazamento de nudes também será tema tratado. Em nosso acervo, todos os jovens compartilharam sua experiência prévia e como manejaram seus próprios sentimentos, criando um “guia” para “ajudar” os que vivem o problema. Esse conjunto discursivo vai consolidando o que Le Breton3232 Le Breton D. Antropologia das Emoções. Petrópolis: Vozes; 2009., em seu texto Antropologia das Emoções, reconhece como as negociações e modelagens culturais dos sentimentos. Os jovens youtubers vão mostrando um certo “jeito” esperado de sentir (quais emoções são previsíveis e quais são aceitáveis ou não para cada contexto interacional) e as formas de lidar com essas emoções.
Os vídeos das meninas reafirmam um itinerário emocional em comum. O nude vazado vai gerar sofrimento, humilhação e nada há o que se fazer além de se conformar e “deixar passar”. A resiliência da espera vai ser fortalecida com a presença de amigos “verdadeiros” capazes de apoiá-la e acreditar em sua palavra, agora tão desvalorizada. Avisos são feitos de que esse tempo de sofrimento pode ser prolongado, até durar anos, com a sequência de assédios após o ocorrido. Após essa etapa vem a superação. A última fase é o momento do “foda-se”, termo reiteradamente citado, como a expressão dessa ressignificação. Momento em que os comentários alheios não mais influenciam no estado emocional da menina e ela consegue retomar sua vida e definir outras performances identitárias.
Já no tutorial da gestão das emoções feito pelos meninos, a fase da vergonha é vivida muito rapidamente, sendo imediatamente conduzida ao reforço de autoestima masculina (“o que é bonito é para se mostrar”, “vou ser capa de alguma revista de nudes”). Os meninos ensinam uns aos outros como ter o distanciamento nesse jogo melodramático, e mesmo buscar dele tirar algum proveito:
[...] que eu não tava entendendo, não imaginava, não esperava de maneira alguma que isso ia acontecer e tipo assim, eu sou muito de boa, né, eu não ligo assim para essas coisas, que tipo assim mano, rola é rola, pau é pau, todo cara tem, né?! [...] e assim… [ri levemente] aquele ditado né?! “o que é bonito é para se mostrar” [...] depois que a ficha caiu, eu falei assim, “mano, foda-se, agora já era. - [Começa a tocar um trecho da música Já Era, dos cantores sertanejos Jorge & Mateus] - [...] Tô nem aí, vou ser a capa da Playboy, sei lá, de alguma revista de nudes, né?!” (Vídeo 16-Rapaz).
No compêndio das emoções, alguns dos vídeos das meninas também convocam à empatia, alertam para que não se sintam culpadas e para que possam dar apoio àquelas que estejam vivendo esse tipo de situação. A sororidade convocada oferece um contraponto aos muitos relatos de acesso perpetrado por outras meninas, implacáveis em defender as lógicas de dominação masculina e em rotular aquelas que tiveram seus nudes espalhados:
[Adolescente do sexo feminino, tímida, aparentando ser de classe média cerca de 15 a 17 anos-trilha sonora música Hey, Fais feat Afrojack. O vídeo é filmado em seu quarto.]
Trecho 1: [tom de conformidade] Não, não tem mais o que fazer [balança cabeça em sinal negativo], entendeu? Então, vamos lá, fique calma. Vai ser fácil? Nãao, não vai ser fácil. Vai ser bem difícil, eu chorei um monte. [...] Não sabia o que fazeeer... [corte].
Trecho 2: Toma aquele teu chazinho de camomila, vai pros seus amigooos… Os amigos de verdade ainda mais [aponta para a câmera] que nessas horas você vai descobrir muito bem quem é realmente teu amigo e quem não é… [corte].
Trecho 3: Vamos começar pela parte de vai ter gente babaca, inventando mais coisa de você...e o que que você vai fazer é negar. Se tem gente que não vai acreditar, vai pensar “aaaa tem coisa aí” tu fala: “foda-se”. O teu amigo de verdade, vai saber… que você tá sendo honesto [...] (Vídeo 7-Moça).
Algumas das jovens apostam no esquecimento por saturação. Essas perseguições podem ser atenuadas quando outros nudes vazados ocuparem a atenção nas mesmas mídias sociais, substituindo o alvo do acosso. Nesse caso, a violência e suas lógicas de (re)produção se mantém, só substituindo as protagonistas da vez:
[...] depois de um tempo gente, passa. Vamos supor que você tenha mandado e tenham espalhado, depois de um tempo vai ter várias nudes de outras garotas, ou de outros garotos, e que a turma vai acabar esquecendo de você… (Vídeo 1-Moça).
O discurso de empoderamento
As opiniões desses jovens “experts” na experiência de ter um nude disseminado sem consentimento variou, mostrando distintas agências diante das moralidades sobre o tema. Há aqueles que consideram um equívoco e um grande risco trocar tais materiais íntimos pela internet; os que aconselham fazê-lo apenas se desejarem, mas com um certo “comedimento”, com julgamento subjetivo de enviar apenas “para quem se confia”; e, finalmente, aquelas(es) jovens que afirmam gostar de tirar e trocar nudes, consideram uma forma de livre expressão, uma afirmação da sua liberdade sexual e da existência (política e digital) de seus corpos. Para esse último grupo, a troca de imagens íntimas e a decisão de publicar o seu nude nas redes sociais faz parte de um conjunto de escolhas a serem exercidas, uma expressão de sua visibilidade e cidadania digital e do uso de seu corpo como linguagem e identidade:
Primeiramente eu tirei um nude bem bonito, e eu queria divulgar ele porque eu achei muito lindo e eu falei “esse nude não pode ficar aqui no meu celular”. Eu entrei em contato com uma página famosa que posta nude das pessoas e falei “pode postar a minha meu anjo, porque eu acho linda, não vou ficar me escondendo” (Vídeo 3-Rapaz).
[...] então, tipo tá vazou nude meu sim! Na verdade, é seminude. Só que agora, se vazar ou não vazar eu caguei! Sabe por quê? Porque eu posto no meu Instagram, tá tudo maravilhoso lá! E eu gosto! E eu posto! E acho maravilhoso! [corte] O primeiro dia que eu fui afronta, foi quando eu falei assim “olha, eu vou postar isso no Facebook! tá?!” Para ver o que que vai acontecer! Postei essa foto aqui ó! [aparece uma foto da menina de calcinha e blusa segurando uma caneca, seu rosto aparece] [...] Uma garota polêmica! Uma garota afronta! [corte] (Vídeo 18-Moça).
A “garota afronta” define com clareza o protagonismo na gestão do nível de disseminação que deseja de seus nudes, administrados por ela e não à mercê das chantagens ou vinganças de (ex)parceiros. Reitera com sua fala, a ampliação das fronteiras entre a ousadia e as nomeações moralizantes, assumindo os riscos e o prazer da publicização das imagens de seu corpo. Nesse movimento, reconhece e se insurge contra a “regulação moral” da sexualidade feminina em “tempos de internet”66 Silva LCS, Sales SR. A cibertecnologia do nude selfie na produção de relações de sexualidade das ciborgues na contemporaneidade. In: 13º Mundos de Mulheres e Fazendo Gênero 11. Transformações, conexões, deslocamentos. Florianópolis 2017; 30 jul a 4 ago.,3333 Lins BA. Não existe privacidade 100% na internet: sobre leis, mulheres, intimidade e internet. Rev Estud Emp Direito 2018; 3(5):199-211.. Os depoimentos dos dois rapazes também reiteram a atribuição de valores positivos, como o de beleza, visibilidade e autonomia. Meninos cujos corpos estariam longe dos estereótipos consagrados. Ali o nude se torna uma arena de luta discursiva pela diversidade, pela afirmação do espaço que seus corpos desejam e podem ocupar na (hiper)visibilidade digital66 Silva LCS, Sales SR. A cibertecnologia do nude selfie na produção de relações de sexualidade das ciborgues na contemporaneidade. In: 13º Mundos de Mulheres e Fazendo Gênero 11. Transformações, conexões, deslocamentos. Florianópolis 2017; 30 jul a 4 ago.,2828 Sibilia P. A nudez autoexposta na rede: deslocamentos da obscenidade e da beleza? Cad Pagu 2015; 44:171-198..
À guisa de concluir
Os vídeos analisados sugerem uma interseção entre a experiência pessoal de sofrimento, envolvendo distintas formas de violência vividas como humilhação, ameaças e perseguição, e por outro lado, o manejo midiático de um tema que “rende audiência”. O “vazamento de nudes” por um certo tempo ocupou os “trend topics” da rede, além de ter destaque entre as denúncias feitas à Safernet3434 Safernet Brasil. Institucional/SaferNet [Internet]. 2019 [acessado 2020 nov 4]. Disponível em: https://bit.ly/3fNHrvP.
https://bit.ly/3fNHrvP... por anos consecutivos, levando a muitos youtubers profissionais e aspirantes a incluir o assunto em seus canais.
A forma com a qual as desigualdades sociais contribuem para impactos distintos na vida de quem sofre esse tipo de violência é um aspecto que merece reflexão. Embora os valores e determinados padrões de moralidade em parte aqui discutidos estejam inseridas em todas as camadas sociais, como vimos em nosso estudo, os jovens, sobretudo as mulheres advindas das camadas pobres e em localidades/comunidades de perfil religioso, interioranas ou mesmo de periferias podem ser mais vulneráveis e terem menos acolhimento da família, da comunidade e sofrerem além do linchamento virtual, o alijamento social. Estudos adotando perspectiva interseccional, articulando posição social/classe, raça/etnia, gênero e orientação sexual, e seus diferentes impactos na forma como jovens (rapazes e moças) vivenciam e ressignificam a exposição de nudes são necessários para melhor compreensão do fenômeno e das formas mais adequadas de abordá-lo, seja para sua problematização/prevenção, seja para o atendimento dos que sofrem com tal experiência.
Todavia, os nudes também potencializaram um “olhar para si”. O fato de fotografar a si, soa como uma reversão dos padrões patriarcais e da dinâmica de poder que envolve ser capturada docilmente pela lente do outro. O autorretrato erótico também representa um exercício de autoestima, pois aqueles que se veem fora dos padrões corporais midiáticos encorajam outras pessoas a mostrarem mais seus corpos, como um exercício de autoadmiração, autoaceitação e reafirmação da diversidade de corpos77 Lins BA. Caiu na rede: mulheres, tecnologias e direitos entre nudes e (possíveis) vazamentos [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2019..
Se a contemplação da própria imagem, até o século XIX, era considerada um estímulo erótico indesejado às mulheres3535 Corbain A. Bastidores. In: Perrot M, organizadora. História da vida privada: da Revolução Francesa à primeira Guerra. São Paulo: Companhia das Letras; 1992. p. 387-573., a “politização da nudez” confere nas últimas décadas um caráter ativista ao colocar em evidência o poder do nu feminino, confrontando os limites do que é socialmente aceitável mostrar66 Silva LCS, Sales SR. A cibertecnologia do nude selfie na produção de relações de sexualidade das ciborgues na contemporaneidade. In: 13º Mundos de Mulheres e Fazendo Gênero 11. Transformações, conexões, deslocamentos. Florianópolis 2017; 30 jul a 4 ago.,2828 Sibilia P. A nudez autoexposta na rede: deslocamentos da obscenidade e da beleza? Cad Pagu 2015; 44:171-198.. Da mesma forma, o crescente movimento das vozes dos corpos “divergentes” nos espaços digitais tem trazido o debate sobre a democratização nas lutas pelo reconhecimento das diversidades e sobre a constante ameaça de violências que esses embates incluem.
Finalmente, no que diz respeito à abordagem desse tema, há uma tônica discursiva nas produções oriundas da saúde, associando “sexting” a comportamentos de risco com Infeções Sexualmente Transmissíveis, iniciação sexual precoce e a demanda por medidas de intervenção. Essa produção tem como pano de fundo, a culpabilização, responsabilização dos jovens e ditames sobre o exercício da sexualidade com um forte viés de gênero3636 Patrocino LB, Bevilacqua PD. Sobre risco, violência e gênero: revisão da produção da saúde sobre o sexting entre jovens. Cien Saude Colet 2021; 7(26):2709-2718.. Esse olhar ainda impregna as formas de lidar com esse tema no que concerne o cuidado à saúde, onde a violência digital e as formas de seu enfrentamento pelos sujeitos é em geral é pouco discutida.
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Financiamento
Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (409048/2018-6).
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
16 Set 2022 - Data do Fascículo
Out 2022
Histórico
- Recebido
05 Maio 2022 - Aceito
06 Maio 2022 - Publicado
08 Maio 2022