Resumo
O objetivo é analisar a organização e oferta de atenção especializada (AE) e transporte sanitário nas Policlínicas Regionais da Bahia, via Consórcios Interfederativos de Saúde. Foi realizado estudo de caso em uma Policlínica, com abordagem qualitativa, a partir de entrevistas com atores municipais e estaduais. Buscou-se identificar elementos que caracterizam um modelo de AE integrado às Redes de Atenção à Saúde. Entre os avanços identifica-se ampliação da oferta de AE; garantia de escopo, qualidade e fixação de profissionais; provisão de transporte sanitário; monitoramento da prestação da AE; e avanços na regulação por sistema informatizado. Representam desafios: adequação do planejamento da AE à realidade locorregional; incentivo à coordenação do cuidado pela Atenção Primária à Saúde (APS) e à aproximação entre profissionais da AE e APS; institucionalização da contrarreferência, relação com instâncias de participação social; e incentivo às funções de matriciamento, Educação Permanente, integração ensino-serviço e pesquisa. Considera-se o arranjo das Policlínicas Regionais, mais afeito à integração às Redes de Atenção à Saúde, em que pese os desafios intrínsecos à AE e ao necessário fortalecimento da APS para que possa assumir a condução do sistema.
Palavras-chave:
Atenção Secundária à Saúde; Planejamento Regional da Saúde; Integração dos Serviços de Saúde; Consórcios de Saúde
Introdução
As barreiras aos cuidados especializados são generalizadas e multifatoriais, com consequências no acesso oportuno, resultados e equidade em saúde, em contextos urbano e rural11 Cyr ME, Etchin AG, Guthrie BJ, Benneyan JC. Access to specialty healthcare in urban versus rural US populations: a systematic literature review. BMC Health Serv Res 2019; 19:974.,22 She Z, Gaglioti AH, Baltrus P, Li C, Moore MA, Immergluck LC, Rao A, Ayer T. Primary Care Comprehensiveness and Care Coordination in Robust Specialist Networks Results in Lower Emergency Department Utilization: A Network Analysis of Medicaid Physician Networks. J Prim Care Community Health 2020; 11:2150132720924432.. O “valor” dos sistemas de saúde envolve, entre outros aspectos, melhoria da qualidade, redução das hospitalizações, exames e procedimentos desnecessários a partir do reposicionamento da atenção especializada (AE), na interface com os serviços de Atenção Primária à Saúde (APS)33 Cohen E, Wang CJ, Zuckerman B. Specialized Care without the Subspecialist: A Value Opportunity for Secondary Care. Children 2018; 5(6):69..
No Brasil, é bastante utilizada a definição de AE que envolve ações, práticas e serviços que requerem incorporação de equipamentos médico-hospitalares, especialistas focais e maior densidade tecnológica, com garantia de escala e qualidade, a partir de uma lógica regionalizada44 Solla J, Chioro A. Atenção ambulatorial especializada. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho JI, organizadores. Políticas e sistemas de saúde no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2012. p. 547-576.. A AE no Sistema Único de Saúde (SUS) é prestada em várias estruturas, com organização e escopo distintos como policlínicas de especialidades, ambulatórios hospitalares, centros regionais de referência ou em serviços/consultórios autônomos vinculados ao setor privado. Em outros países, parte do atendimento ambulatorial especializado, em geral, é ofertado em unidades localizadas em hospitais (Dinamarca, Canadá, Suécia, Itália) e, também, em clínicas com especialistas autônomos em instalações privadas55 Tikkanen R, Osborn R, Mossialos E, Djordjevic A, Wharton G. International Profiles of Health Care Systems 2020. Washington, D.C.: The Commonwealth Fund, London School of Economics and Political Science; 2020..
Aliar regionalização em um país de dimensões continentais e oferta acessível de AE não é tarefa trivial. Os serviços de atenção ambulatorial especializada e hospitalar, juntamente com a APS, em regiões de saúde, garantiriam um escopo mínimo de ações para provisão de assistência integral à saúde no SUS. Contudo, a oferta de AE concentra-se em poucas regiões66 Lima LD, Albuquerque MV, Scatena JHG, Melo ECP, Oliveira EXG, Carvalho MS, Pereira AMM, Oliveira RAD, Martinelli NL, Oliveira CF. Regional governance arrangements of the Brazilian Unified National Health System: provider diversity and spacial inequality in service provision. Cad Saude Publica 2019; 35(Sup. 2):e00094618.. Processos de regionalização, a exemplo da experiência canadense, com a centralização da AE em pequenos hospitais em centros urbanos para ganhos de eficiência e escala, teve como um dos resultados a redução do acesso a serviços e meios diagnósticos para as populações rurais77 Fleet R, Pelletier C, Marcoux J, Maltais-Giguère J, Archambault P, Audette LD, Plant J, Bégin F, Tounkara FK, Poitras J. Differences in Access to Services in Rural Emergency Departments of Quebec and Ontario. PLoS One 2015; 10(4):e0123746..
No Brasil, o grande interesse e ingerência do setor privado na provisão pulverizada poderia ser uma das hipóteses sobre a inexistência de um modelo organizativo para a AE no SUS88 Tesser CD, Poli Neto P. Atenção especializada ambulatorial no Sistema Único de Saúde: para superar um vazio. Cien Saude Colet 2017, 22(3):941-951.. Sua ausência, insuficiência e concentração comprometem a prestação de cuidados integrais, principalmente para residentes dos interiores e zonas rurais e se traduzem na necessidade de deslocamentos, por vezes, inaceitáveis99 Almeida PF, Santos AM, Cabral LM, Bousquat A, Fausto MC. Provision of specialized care in remote rural municipalities of the Brazilian semi-arid region. Rural Remote Health 2021; 21:6652.. Especialmente em países de baixa ou média renda, a disponibilidade de meios de locomoção é um recurso tão ou mais crítico que a própria oferta de serviços de saúde1010 Bradley EH, Byam P, Alpern R, Thompson JW, Zerihun A, Abebe Y, Curry LA. A Systems Approach to Improving Rural Care in Ethiopia. PLoS One 2012; 7(4):e35042.,1111 Zhao Q, Wang L, Tao T, Xu B. Impacts of the "transport subsidy initiative on poor TB patients" in rural China: A patient-cohort-based longitudinal study in rural China. PLoS One 2013; 8(11):e82503.. Dessa forma, os sistemas de transporte são transversais às Redes de Atenção à Saúde (RAS), imprescindíveis para viabilizar fluxos e contrafluxos, sendo um recurso logístico estratégico na mediação do acesso à AE1212 Mendes EV. As Redes de Atenção à Saúde. 2ª ed. Brasília: OPAS; 2011.,1313 Syed ST, Gerber BS, Sharp LK. Traveling towards disease: transportation barriers to health care access. J Community Health 2013; 38(5):976-993..
Mendes1212 Mendes EV. As Redes de Atenção à Saúde. 2ª ed. Brasília: OPAS; 2011. sugere que APS e AE deveriam se integrar em um único microssistema clínico. A APS como lócus de busca regular de cuidados possibilitaria aos serviços especializados serem acessados a partir de uma racionalidade clínica comprometida com as pessoas, sem exposição dos usuários a procedimentos desnecessários1414 Norman AH, Tesser CD. Prevenção quaternária na atenção primária à saúde: uma necessidade do Sistema Único de Saúde. Cad Saude Publica 2009; 25(9):2012-2020.. Logo, não se trata apenas de aumentar a oferta de AE, mas de integrá-la à modelagem das RAS, tema pouco abordado por estudos e políticas públicas no país1515 Guedes BAP, Vale FLB, Souza RW, Costa MKA, Batista SR. A organização da atenção ambulatorial secundária na SESDF. Cien Saude Colet 2019; 24(6):2125-2134.,1616 Mendes EV. O desafio da Atenção Secundária Ambulatorial Especializada: um novo modelo de integração em rede com a Atenção Primária à Saúde. In: Mendes EV. Desafios do SUS. Brasília: CONASS; 2019. p. 613-672..
Este artigo analisa a organização e oferta de AE (consultas e exames) e transporte sanitário providos via Policlínicas Regionais no estado da Bahia, no âmbito dos Consórcios Interfederativos de Saúde (CIS). Pesquisas sugerem que os arranjos consorciais possibilitam organizar a demanda e a provisão de serviços especializados, sobretudo, para municípios de pequeno porte populacional1717 Silva CR, Carvalho BG, Cordoni Júnior L, Nunes EFPA. Dificuldade de acesso a serviços de média complexidade em municípios de pequeno porte: um estudo de caso. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1109-1120. e incentivam a cooperação intergovernamental1818 Botti CS, Artmann E, Spinelli MAS, Scatena JHG. Regionalização dos Serviços de Saúde em Mato Grosso: um estudo de caso da implantação do Consórcio Intermunicipal de Saúde da Região do Teles Pires, no período de 2000 a 2008. Epidemiol Serv Saude 2013; 22(3):491-500.,1919 Rocha CV. A cooperação federativa e a política de saúde: o caso dos Consórcios Intermunicipais de Saúde no estado do Paraná. Cad Metropole 2016; 18(36):377-399.. Nessa direção, destaca-se a experiência do Ceará, pioneiro na implantação de consórcios verticais, com o objetivo de expandir e interiorizar serviços de AE, apoiados por esquemas de transporte2020 Almeida PF, Giovanella L, Martins Filho MT, Lima, LD. Redes regionalizadas e garantia de atenção especializada em saúde: a experiência do Ceará, Brasil. Cien Saude Colet 2019; 24:4527-4540.. O diagnóstico de vazios assistenciais na AE impulsionou a implantação das Policlínicas no estado da Bahia2121 Bahia. Secretaria da Saúde do Estado da Bahia. Assessoria de Planejamento e Gestão. Observatório Baiano de Regionalização. Salvador: Secretaria da Saúde do Estado da Bahia; 2021.. Para além da ampliação da oferta, tal investigação busca responder à seguinte questão: a experiência das Policlínicas Regionais representa um formato mais afeito à prestação de AE em redes regionalizadas, sobretudo, em regiões com expressivo número de municípios de pequeno porte?
Metodologia
Tipo e cenário do estudo
Foi realizado estudo de caso único do tipo exploratório, com abordagem qualitativa, a partir da escolha intencional da experiência da Policlínica Regional de Vitória da Conquista/Itapetinga. Os parâmetros de implantação dos CIS seguem a mesma lógica nos diferentes territórios, permitindo que um caso seja, grosso modo, uma aproximação aos demais. Os municípios/regiões de saúde da Bahia experimentam rápida expansão de tais equipamentos via CIS. Em setembro de 2021, eram 23 CIS constituídos e 21 Policlínicas inauguradas2121 Bahia. Secretaria da Saúde do Estado da Bahia. Assessoria de Planejamento e Gestão. Observatório Baiano de Regionalização. Salvador: Secretaria da Saúde do Estado da Bahia; 2021.. O Consórcio Interfederativo de Saúde da região de Vitória da Conquista e Itapetinga (CISVITA), no momento do campo, era conformado por 31 municípios de 03 regiões de saúde - Vitória da Conquista, Itapetinga e Brumado - pertencentes à macrorregião sudoeste, com pouco mais de 800 mil habitantes. Dos 31 municípios, 21 são rurais adjacentes.
Fontes de informação e sujeitos da pesquisa
A principal fonte de informação foram 19 entrevistas semiestruturadas com gestores e gerentes das esferas estadual e municipal, gestão do CISVITA e Policlínica, selecionados intencionalmente, de forma a contemplar sujeitos envolvidos no funcionamento e gestão do CIS/Policlínica. Também foram entrevistados representantes do controle social, regulação, legislativo municipal e prefeitos, fundamentais à compreensão da dimensão política da implantação do equipamento. Foi realizada visita in loco, de maio a junho de 2021, à Policlínica, cinco municípios consorciados e capital do estado para realização presencial das entrevistas nos respectivos locais de trabalho, totalizando 761 minutos de gravação em áudio. No Quadro 1 está apresentado o perfil dos entrevistados, cujos cargos foram descritos de forma genérica para evitar a identificação dos informantes. Destaca-se que a maioria apresenta formação e experiência anterior na saúde, além de pós-graduação em áreas da saúde pública, conformando um quadro de atores com experiência acerca do tema abordado.
Alguns documentos e normativas relativas ao funcionamento dos CIS/Policlínicas foram utilizados, em análises complementares às entrevistas.
Análise dos dados
Para a produção dos resultados, procedeu-se à análise de conteúdo de todo material com suas respectivas etapas de: pré-análise a partir da leitura flutuante de todas as entrevistas e identificação de documentos relevantes com base na questão de investigação; exploração do material empírico norteado pelas dimensões temáticas; e, por fim, interpretação dos achados ancorada na percepção dos participantes, dimensões e componentes do estudo2222 Bardin L. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2015.. Buscou-se garantir a qualidade e a validade dos resultados a partir do confronto e complementariedade das diversas experiências dos atores entrevistados e documentos oficiais.
O referencial para análise da organização e oferta de AE e transporte sanitário, em um primeiro momento, apoiou-se nas dimensões do modelo denominado por Mendes1212 Mendes EV. As Redes de Atenção à Saúde. 2ª ed. Brasília: OPAS; 2011. como “pontos de atenção secundária de uma rede” (“Modelo Pasa”, em Mendes1616 Mendes EV. O desafio da Atenção Secundária Ambulatorial Especializada: um novo modelo de integração em rede com a Atenção Primária à Saúde. In: Mendes EV. Desafios do SUS. Brasília: CONASS; 2019. p. 613-672.). O desenho propõe reconfigurar a posição da AE como parte da RAS, em contraposição à lógica fragmentada que caracteriza os “centros de especialidades médicas”1212 Mendes EV. As Redes de Atenção à Saúde. 2ª ed. Brasília: OPAS; 2011., o que envolve: planejamento com base em necessidades de saúde; comunicação entre pontos de atenção e profissionais da APS e AE; centralidade da APS; protocolos e prontuários integrados; funções assistenciais, matriciais, de Educação Permanente e pesquisa na AE. Embora tais dimensões, a priori, tenham guiado os roteiros de entrevista e orientado a análise temática, novos componentes foram incorporados a partir das evidências empíricas, sobretudo para contemplar o caráter regional da experiência. No Quadro 2 é apresentada a matriz utilizada para análise e apresentação dos resultados, e, ao mesmo tempo, sem esgotar todas as possibilidades, expressa dimensões e componentes para um formato de AE mais sinérgico aos princípios da regionalização e da integração em RAS.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense, CAAE 40092220.9.0000.5243, Parecer Nº 4.574.166.
Resultados
Planejamento da oferta de AE e transporte sanitário com base em necessidades de saúde regionais: centralização vs. demandas locorregionais
O Estatuto dos CIS previa a atuação em diversos campos, como compra de medicamentos, Centros de Especialidades Odontológicas, entre outros2121 Bahia. Secretaria da Saúde do Estado da Bahia. Assessoria de Planejamento e Gestão. Observatório Baiano de Regionalização. Salvador: Secretaria da Saúde do Estado da Bahia; 2021.. No momento do estudo, consultas e exames especializados, além do transporte sanitário eletivo realizado por 17 micro-ônibus e 4 vans eram ofertados via Policlínica. Dois instrumentos contratuais regiam as relações entre municípios e CIS/Policlínica: Contrato de Programa no qual eram definidos os procedimentos ofertados; e o Contrato de Rateio que estabelecia as contrapartidas financeiras de custeio, sendo 40% estadual e 60% municipal, sem aportes federais2121 Bahia. Secretaria da Saúde do Estado da Bahia. Assessoria de Planejamento e Gestão. Observatório Baiano de Regionalização. Salvador: Secretaria da Saúde do Estado da Bahia; 2021..
A carteira de serviços das Policlínicas, disposta no Contrato de Programa, era definida centralmente pelo estado, dependente do número de consorciados e, por conseguinte, da população de abrangência. Para definição das cotas de consultas, exames especializados e necessidade de transporte era realizado cálculo com base na população total de cada município. A defasagem populacional do Censo 2010 era prejudicial a alguns municípios, que teriam populações superiores, segundo cadastros da Atenção Básica, com implicações para o planejamento e financiamento das políticas.
Houve divergência nas avaliações quanto à possibilidade de adaptação da oferta às necessidades locorregionais e à própria dinâmica de funcionamento da Policlínica. Ressaltou-se que os serviços nem sempre atendiam às necessidades, principalmente pelo fato de alguns municípios ofertarem localmente procedimentos de AE. A “Assembleia de Prefeitos” (Assembleia Geral) era o espaço deliberativo dos CIS e tinha a prerrogativa de ajustar o cardápio, o que havia sido realizado, com a inclusão de eletroneuromiografia. De toda forma, se tratava de um processo acompanhado de sucessivas discussões, acordos e busca de consenso entre os entes consorciados.
Na mesma direção, o Contrato de Programa estabelecia certas metas não compatíveis à realidade da Policlínica como, por exemplo, a exigência do cumprimento de determinado número de consultas por dia/turno, inadequados para alguns tipos de atendimento. A oferta variava também em função dos dias úteis, feriados, férias e licenças médicas. Foi mencionado pouco reconhecimento de tais adversidades pelos municípios. No ano de 2020, houve interrupção/diminuição dos atendimentos em função da COVID-19, o que gerou tensionamento entre gestores, sob o argumento de que os repasses financeiros continuaram. Havia uma compreensão do papel da Policlínica como um prestador de AE do qual o município comprava serviços.
De toda forma, para procedimentos cuja oferta era rarefeita, o arranjo consorcial foi avaliado como a única forma de prestação de AE nas regiões de saúde, uma vez que alguns procedimentos e profissionais não estavam disponíveis para contratação pelos municípios isoladamente, sendo necessária alguma escala.
Os profissionais da Policlínica eram contratados via CLT, pelo CISVITA, por tempo indeterminado e, no momento da pesquisa, foi relatada estabilidade no quadro funcional. Em um momento inicial, ocorreram desistências de médicos pela exigência de cumprimento da carga horária e ponto eletrônico.
Para atrair algumas especialidades era possível composição de carga horária entre mais de um profissional, embora cada um tivesse um número de procedimentos a cumprir em função das cotas e metas estabelecidas no Contrato de Programa. De toda forma, o fato de Vitória da Conquista ser um polo regional de formação e de saúde facilitou a contratação.
Não houve consenso entre os representantes municipais quanto ao principal provedor de AE, embora tenha sido recorrente a avaliação de que os recursos da Policlínica fossem os primeiros a serem acionados. Principalmente nos pequenos municípios, a demanda por AE continuava alta e dependente da Programação Pactuada Integrada (PPI), dos serviços próprios municipais e do credenciamento de prestadores privados com recursos próprios municipais o que, por vezes, extrapolava os orçamentos locais e comprometia outras rubricas.
Em curso, buscava-se viabilizar ações para aumentar a oferta de exames de imagem, cuja demanda era muito alta, além de propostas de mutirões para zerar filas de espera que aumentaram durante a pandemia.
Transporte sanitário eletivo: mitigando as barreiras de acesso à AE
Os veículos foram adquiridos pelo estado. O abastecimento, manutenção e contratação dos motoristas era realizado via CIS. Os micro-ônibus tinham wifi, ar-condicionado e eram adaptados. As rotas realizadas para os 21 veículos foram desenhadas pelos Núcleos Regionais de Saúde, CIS e Secretários Municipais de Saúde (SMS) uma vez que alguns veículos eram compartilhados.
Internamente, cada município organizava sua logística para garantir, por exemplo, que a população da zona rural chegasse ao local de partida das vans ou micro-ônibus. Em função do extenso intervalo de tempo entre saída e volta a alguns municípios, identificou-se necessidade de adaptações na Policlínica para melhor acolhimento dos usuários.
Foi mencionado que a oferta do transporte sanitário via CIS havia mitigado a interferência política na intermediação deste recurso crítico e estratégico para acesso à AE.
Acesso regulado e cuidado coordenado pela APS: desafios à gestão da demanda assistencial e ao protagonismo da APS nas redes
O agendamento de toda oferta da Policlínica era descentralizado aos municípios. A partir de referências da APS (grande maioria) ou outro profissional da rede local, era realizado o agendamento nas centrais de regulação por meio de um sistema informatizado próprio - Sistema Integrado de Gestão (SIGES). Além dos agendamentos de consultas e exames, o sistema abrigava a marcação do transporte e informações clínicas. O fluxo mais comum era a condução da referência pelo usuário até as centrais. O retorno sobre os agendamentos era realizado pelos profissionais da regulação ou pelas equipes de APS, por meio de visitas domiciliares realizadas pelos Agentes Comunitários de Saúde.
Não havia reserva de vagas para regulação interna da Policlínica. Nos casos de detecção de alguma situação que exigisse atendimento complementar célere, era preciso comunicação e autorização municipal para um novo agendamento no SIGES, mesmo no caso de reacomodação nas agendas médicas ou criação de uma vaga extra.
A agenda de consultas/procedimentos era disponibilizada mensalmente. Alguns procedimentos ofertados na Policlínica, também faziam parte da oferta municipal e, por vezes, não eram utilizados (não eram agendados). Nestes casos, poderiam compor a “re-oferta” - mecanismo por meio do qual, após comunicação entre os SMS via WhatsApp, os procedimentos eram colocados à disposição do conjunto dos municípios. Além da re-oferta diária, mensalmente, alguns procedimentos não agendados eram disponibilizados no SIGES.
Havia possibilidade de permuta entre os municípios para casos urgentes, acordados entre os gestores e encaminhados formalmente à Policlínica. O SIGES permitia também cancelar agendamentos no caso de desistência. Mecanismos informais de comunicação em grupos de WhatsApp desempenhavam papel relevante para o aproveitamento dos procedimentos e promoção de certa solidariedade entre o grupo, embora houvesse competição por vagas ociosas da re-oferta, cujo aproveitamento dependia da agilidade do regulador local, internet e viabilidade de garantir o comparecimento do usuário. De forma geral, o absenteísmo foi considerado baixo pelos entrevistados, ao redor de 10%, com diferenças entre os municípios.
Algumas avaliações indicaram, assim como no caso do transporte, que os fluxos regulatórios instituídos para acesso à Policlínica minimizaram a ingerência política no acesso à AE, o que também ocorria pela diminuição da compra direta de procedimentos na rede privada de forma pulverizada pelos municípios. De toda forma, a população continuava buscando diretamente prefeitos, SMS, Conselheiros de Saúde e vereadores para viabilizar o acesso à AE.
Foi recorrente a avaliação de que a superação do “a pedido” como parâmetro para referência à AE era um grande desafio. A necessidade de qualificação da regulação foi consensual, com definição de protocolos e estratégias que promovessem o contato pessoal entre profissionais da AE e APS. O processo de qualificação local das referências ficava à cargo das gestões municipais. Reconhecia-se que o médico sofria pressão dos usuários para a solicitação de consultas/exames. Nestes casos, a priorização poderia ser realizada pelos profissionais da regulação, que exerciam papel estratégico.
Via SIGES era possível a impressão dos registros clínicos para retorno à APS, sob condução do usuário. Como não era rotina obrigatória do fluxo assistencial na Policlínica, ficava à cargo dos especialistas. Além da qualidade das referências, a contrarreferência também era um nó crítico, uma vez que muitos especialistas atuavam numa lógica ambulatorial tradicional.
A rotatividade médica nos municípios tornava a compreensão dos fluxos e do perfil assistencial da Policlínica sempre um recomeço. Os processos microrregulatórios e as possibilidades de exercício da coordenação do cuidado pela APS eram enfraquecidos pela rotatividade, problema que se agravou com o desmantelamento do Programa Mais Médicos.
Não estavam implementadas estratégias de comunicação junto aos profissionais da APS acerca das funções e fluxos da Policlínica, à exemplo de visitas para apresentação do serviço aos SMS e prefeitos. Também havia a percepção de que parte dos profissionais da Policlínica, sobretudo de especialidades com maior uso de tecnologias duras, não teria apropriação sobre o funcionamento das RAS, da necessidade de comunicação entre os pontos assistenciais e de trabalho interprofissional na própria Policlínica.
Necessidade de integração com outros pontos e profissionais da RAS na região de saúde
A Policlínica não realizava referência a outros pontos da RAS e nem agendamentos internos (exceto profissionais não médicos). O município de origem era responsável pelo seguimento na APS, entrega dos exames, agendamento para outros serviços ou mesmo reagendamento para a Policlínica.
Para diagnósticos de câncer e agravos de maior gravidade, o assistente social da Policlínica fazia um acompanhamento regular junto ao município com vistas a garantir e sensibilizar para a necessidade do tratamento continuado e em tempo oportuno. Tal iniciativa, denominada “Caminhos do Cuidar”2323 Bahia. Secretaria de Estado da Saúde. Caminhos do Cuidar: estratégia para a oferta oportuna ao diagnóstico de câncer [Internet]. [acessado 2021 mar 13]. Disponível em: http://telessaude.saude.ba.gov.br/wp-content/uploads/2022/03/webpalestra-10.12.2019.pdf.
http://telessaude.saude.ba.gov.br/wp-con... , era liderada pela assistente social responsável pelo acolhimento do usuário, comunicação do diagnóstico ao município de origem e à família. Nos casos de confirmação de câncer na Policlínica, o paciente era monitorado e as informações registradas no SIGES, até seu ingresso em uma Unidade de Assistência em Alta Complexidade em Oncologia e início do tratamento2323 Bahia. Secretaria de Estado da Saúde. Caminhos do Cuidar: estratégia para a oferta oportuna ao diagnóstico de câncer [Internet]. [acessado 2021 mar 13]. Disponível em: http://telessaude.saude.ba.gov.br/wp-content/uploads/2022/03/webpalestra-10.12.2019.pdf.
http://telessaude.saude.ba.gov.br/wp-con... .
Na Policlínica havia uso de telemedicina para emissão de laudos de exames de imagem por meio de um contrato com empresa privada.
Incipiência do cuidado multiprofissional na AE
A equipe assistencial era composta, além dos especialistas focais, por enfermeiros, psicólogo, nutricionista, assistente social e farmacêutico para atendimento às referências internas da Policlínica, a partir de necessidades identificadas pelos médicos. Ainda eram incipientes as ações conjuntas e interprofissionais na Policlínica.
Prontuários eletrônicos, protocolos clínicos e de acesso à AE compartilhados com os municípios e APS: lacunas à integração assistencial
No SIGES, além da regulação, era realizado o registro de informações clínicas, prescrições, necessidade de retorno à Policlínica. O sistema não era compartilhado com a APS.
Não havia protocolos clínicos compartilhados entre Policlínica e APS. Contudo, a SESAB elaborou o “Manual de acesso aos serviços de Apoio Diagnóstico e Tratamento das Policlínicas Regionais”2424 Bahia. Secretaria de Saúde do Estado da Saúde. Manual de acesso aos serviços de Apoio Diagnóstico e Tratamento das Policlínicas Regionais de Saúde do Estado da Bahia. Salvador: SESAB; 2017. voltado aos profissionais da APS e outros solicitantes nos municípios. O documento, bastante completo - 156 páginas -, apresentava instruções sobre os fluxos e contrafluxos para acesso à Policlínica, indicações clínicas para todos os procedimentos ofertados, profissionais solicitantes e orientações acerca do preparo de exame2424 Bahia. Secretaria de Saúde do Estado da Saúde. Manual de acesso aos serviços de Apoio Diagnóstico e Tratamento das Policlínicas Regionais de Saúde do Estado da Bahia. Salvador: SESAB; 2017.. Foi relatada necessidade de alguns ajustes locais no Manual.
Premente necessidade de integração e comunicação entre AE e controle social/população
O fortalecimento da participação social via espaços como os Conselhos de Saúde foi mencionado como recurso fundamental para a manutenção da política. Ainda assim, não foram reconhecidas iniciativas para ampliar a relação entre Policlínica e instâncias de participação social, o que ratificou percepções sobre a ausência de diálogo com a população que promovesse maior compreensão sobre a oferta e o papel do equipamento na RAS.
Função de matriciamento, Educação Permanente, integração ensino-serviço e de pesquisa na AE: para além da demanda assistencial
Não foram identificadas estratégias de matriciamento desenvolvidas pelos profissionais da Policlínica.
Na contratação da força de trabalho não havia previsão de carga horária dedicada à Educação Permanente (EP), embora houvesse atendimento aos pleitos individuais para participação em eventos científicos e outras formações como cursos de curta duração. As diferentes cargas horárias/dias e grande diversidade de especialidades do corpo clínico foi um dos fatores apontados como dificultadores para a oferta de EP de interesse comum. De toda forma, havia ações de capacitação em serviço, com temas de interesse geral como regulação e fluxos. Como apoio à gestão da Policlínica, estavam instituídas Comissões (investigação de óbito, de gestão e planejamento, de revisão de prontuário e de biópsia) que funcionavam, de certa forma, como estratégias de capacitação.
No momento de realização da pesquisa, estava em curso tratativas com a Universidade Federal da Bahia para que a Policlínica se estabelecesse como campo de formação da Residência Médica, proposta aprovada na Assembleia de Prefeitos e adiada pela pandemia.
Embora fosse reconhecido o potencial, a Policlínica não tinha um núcleo para o desenvolvimento de pesquisas. De toda forma, foram desenvolvidas pesquisas de satisfação dos usuários. A qualidade, humanização, acolhimento, excelência das instalações e assistência foram citados por todos os entrevistados como determinantes da satisfação, com registros em ouvidorias municipais. Foram frequentes os relatos de gestores sobre a percepção dos usuários, inclusive de opositores políticos: “parece um serviço particular”, “pensei que tinha que pagar”, “isso aqui é do governo?”.
No Quadro 3 é apresentada síntese dos resultados empíricos a partir de falas expressivas dos participantes da pesquisa, que imprimem densidade aos achados deste estudo.
Discussão
Inspirada na experiência do Ceará2020 Almeida PF, Giovanella L, Martins Filho MT, Lima, LD. Redes regionalizadas e garantia de atenção especializada em saúde: a experiência do Ceará, Brasil. Cien Saude Colet 2019; 24:4527-4540.,2525 Julião KS. Olivieri C. Cooperação intergovernamental na política de saúde: a experiência dos consórcios públicos verticais no Ceará, Brasil. Cad Saude Publica 2020; 36(3):e00037519., a implantação dos consórcios verticais na Bahia é motivada pelo reconhecimento da impossibilidade dos municípios, em cooperação horizontal, responderem à demanda por AE em regiões de saúde marcadas por históricos vazios assistenciais, sendo este o primeiro aspecto positivo da experiência analisada. De toda forma, retomando a pergunta inicial do estudo, para além da ampliação da oferta de AE, buscou-se analisar e produzir, a partir de um caso concreto, reflexões acerca do que se considera um formato mais afeito à prestação de AE em uma perspectiva de redes regionalizadas.
Em relação ao planejamento da AE, os mecanismos e instrumentos de compromisso e pactuação carecem de um ajuste mais fino e permeável às realidades locais, parâmetros assistenciais regionais e que incorporem a complexa dinâmica de funcionamento da Policlínica. Ainda assim, é necessário reconhecer que o planejamento da AE que responda às necessidades de municípios de porte populacional e ofertas distintas, não é trivial. De toda forma, a Assembleia de Prefeitos, em maior sinergia às instâncias regionais do SUS como as Comissões Intergestores Regionais e Bipartite poderiam alavancar o planejamento regional integrado, em que pese a pouca clareza em relação à convergência entre tais espaços2626 Lui L, Schabbach LM, Nora CRD. Regionalização da saúde e cooperação federativa no Brasil: o papel dos consórcios intermunicipais. Cien Saude Colet 2020; 25(12):5065-5074..
Aos espaços decisórios formais, somam-se instrumentos informais como os grupos de WhatsApp para manejo cotidiano e ágil das demandas assistenciais. No caso estudado, há uma complementariedade profícua entre tais mecanismos, nos quais a informalidade dos acordos para realocação de ofertas se formaliza no sistema de regulação e, também, produz certa solidariedade e cooperação regional, o que, por vezes, não se observa em instâncias formais2727 Padilha A, Oliveira DC, Alves TA, Campos GWS. Crise no Brasil e impactos na frágil governança regional e federativa da política de saúde. Cien Saude Colet 2019; 24(12):4509-4518..
Outro aspecto positivo é o monitoramento da oferta de AE, que, também, deve ser poroso às intercorrências da própria Policlínica e dos territórios. Ainda assim, acompanhar metas na AE supera lacunas, por exemplo, da PPI, cujo cumprimento é pouco permeável ao controle dos gestores do SUS, com frágeis instrumentos jurídicos para garantia das pactuações2828 Mello GA, Pereira APCM, Uchimura LYT, Iozzi FL, Demarzo MMP, Vianna ALA. O processo de regionalização do SUS: revisão sistemática. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1291-1310..
Um avanço expressivo do arranjo das Policlínicas Regionais é a maior capacidade de garantia de escopo, qualidade e atração/fixação de profissionais na AE, por meio de contratos laborais desprecarizados e cumprimento da carga horária. É estratégico que a Policlínica esteja localizada em uma cidade de referência para a macrorregião e centro formador de recursos humanos, viável neste caso. Este parece ser um arranjo possível para garantir acesso à AE nas regiões de saúde desde que o transporte sanitário, de qualidade e seguro, seja parte indissociável do arranjo assistencial2020 Almeida PF, Giovanella L, Martins Filho MT, Lima, LD. Redes regionalizadas e garantia de atenção especializada em saúde: a experiência do Ceará, Brasil. Cien Saude Colet 2019; 24:4527-4540..
A despeito do reconhecimento da importância da Policlínica, ainda predomina a compreensão de que representa um equipamento prestador de serviços. Tais achados reforçam o argumento defendido neste estudo de que a organização e oferta de AE devem ser operadas em uma perspectiva de redes regionalizadas. O uso instrumental do equipamento, sem corresponsabilização para enfrentamento dos problemas e busca de soluções compartilhadas, reforça a posição dos consórcios apenas como estratégia para ampliação da oferta de procedimentos especializados e, ao mesmo tempo, a concepção dominante de um modelo de atenção assentado na cura, pouco afeito aos princípios da integralidade e da garantia de cuidados contínuos1818 Botti CS, Artmann E, Spinelli MAS, Scatena JHG. Regionalização dos Serviços de Saúde em Mato Grosso: um estudo de caso da implantação do Consórcio Intermunicipal de Saúde da Região do Teles Pires, no período de 2000 a 2008. Epidemiol Serv Saude 2013; 22(3):491-500.,2626 Lui L, Schabbach LM, Nora CRD. Regionalização da saúde e cooperação federativa no Brasil: o papel dos consórcios intermunicipais. Cien Saude Colet 2020; 25(12):5065-5074..
As condições, disponibilidade e estratégias para garantia de meios de locomoção aos serviços de saúde são distintas entre os países, assim como a implementação de políticas públicas para mitigar tais barreiras de acesso. Nos EUA, por exemplo, estima-se que, em 2017, 5,8 milhões de pessoas tiveram o atendimento médico postergado pela indisponibilidade de transporte, com impactos desproporcionais para os indivíduos mais pobres e com condições crônicas2929 Wolfe MK, McDonald NC, Holmes GM. Transportation Barriers to Health Care in the United States: Findings from the National Health Interview Survey, 1997-2017. Am J Public Health 2020; 110(6):815-822.. Em países latino-americanos são incipientes estudos sobre as relações entre transporte e saúde3030 Becerra JM, Reis RS, Frank LD, Ramirez-Marrero FA, Welle B, Cordero EA, Mendez Paz F, Crespo C, Dujon V, Jacoby E, Dill J, Weigand L, Padin CM. Transport and health: a look at three Latin American cities. Cad Saude Publica 2013; 29(4):654-666.. A ausência de políticas para a provisão de transporte, sobretudo em municípios do interior, torna seu provimento dependente dos insuficientes recursos municipais e dos gastos out-of-pocket. Em estudo realizado em um estado da região nordeste do Brasil, o transporte representou o mais alto custo indireto (não coberto pelo SUS) envolvido no tratamento do câncer - 19,75% do salário mínimo, com associação negativa se comparados usuários da capital e do interior3131 Araújo JKL, Silva LM, Santos CA, Oliveira IS, Fialho GM, Del Giglio A. Assessment of costs related to cancer treatment. Rev Assoc Med Bras 2020; 66(10):1423-1430.. Nesse sentido, presença de veículos adaptados e com manutenção regular, com vistas a minimizar os riscos do transporte inseguro99 Almeida PF, Santos AM, Cabral LM, Bousquat A, Fausto MC. Provision of specialized care in remote rural municipalities of the Brazilian semi-arid region. Rural Remote Health 2021; 21:6652., é um importante arranjo para garantia de acesso à AE, como encontrado neste estudo.
Um dos pilares de um modelo de AE integrado em redes é o acesso regulado e coordenado pela APS que, embora complementares, envolvem princípios e ações distintas1616 Mendes EV. O desafio da Atenção Secundária Ambulatorial Especializada: um novo modelo de integração em rede com a Atenção Primária à Saúde. In: Mendes EV. Desafios do SUS. Brasília: CONASS; 2019. p. 613-672.. A experiência analisada avança no processo de regulação por meio de sistema informatizado, disponibilização oportuna das agendas, possibilidade de remarcação e remanejamento de vagas. Um achado relevante do estudo indica que a formalização dos fluxos assistenciais e marcação do transporte sanitário via SIGES contribui para a mitigação do atravessamento de atores da política local na mediação do acesso à AE, situação encontrada em diversos contextos2828 Mello GA, Pereira APCM, Uchimura LYT, Iozzi FL, Demarzo MMP, Vianna ALA. O processo de regionalização do SUS: revisão sistemática. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1291-1310..
A coordenação do cuidado pela APS, no entanto, representa um nó crítico. Ainda que as equipes de APS estejam em outros municípios, tal atributo não pode ser relegado a segundo plano. Diante de um sistema fragmentado, a população acaba por se “acomodar” ao atendimento de especialistas focais1515 Guedes BAP, Vale FLB, Souza RW, Costa MKA, Batista SR. A organização da atenção ambulatorial secundária na SESDF. Cien Saude Colet 2019; 24(6):2125-2134.. Estudos ratificam que provedores de APS que atuam em redes nas quais exercem baixo grau de centralidade, mesmo com disponibilidade de especialistas, não diminuem a utilização de serviços de emergência de seus pacientes com agravos crônicos, ao contrário daqueles que exercem alto grau de coordenação e cuidados abrangentes22 She Z, Gaglioti AH, Baltrus P, Li C, Moore MA, Immergluck LC, Rao A, Ayer T. Primary Care Comprehensiveness and Care Coordination in Robust Specialist Networks Results in Lower Emergency Department Utilization: A Network Analysis of Medicaid Physician Networks. J Prim Care Community Health 2020; 11:2150132720924432..
A despeito das dificuldades no espaço regional, argumenta-se que o arranjo das Policlínicas é mais afeito ao desenvolvimento de estratégias de coordenação. Os especialistas focais têm vínculos desprecarizados, fazem parte de uma única estrutura de saúde e, até o momento, não havia expressiva rotatividade. Por outro lado, a coordenação do cuidado em regiões de saúde exige estratégias diferenciadas, mediadas por tecnologias digitais e, sobretudo, prioridade política e de gestão que poderiam se expressar na definição de metas e remuneração por desempenho para ações de coordenação.
As referências da APS para a AE são influenciadas pela experiência anterior no manejo de determinadas doenças, e podem se beneficiar da obtenção de uma segunda avaliação3232 Mori NLR, Olbrich Neto J, Spagnuolo RS, Juliani CMCM. Resolution, access, and waiting time for specialties in different models of care. Rev Saude Publica 2020; 31(54):18.. O cenário regional pode se beneficiar do uso do Telessaúde, de estratégias de EP voltadas ao trabalho em rede, além da urgente institucionalização da contrarreferência, objetivo factível e possível na Policlínica. Justamente por se tratar de equipamento regional, com alguns municípios muito distantes, mais necessário é tornar o cuidado resolutivo mais próximo dos usuários.
A necessidade e benefícios da adoção de prontuários eletrônicos compartilhados entre os pontos de atenção são ratificados por muitos estudos na medida em que apoiam a comunicação eficaz entre pacientes e prestadores, a integração horizontal e vertical entre serviços de saúde3333 Janett RS, Yeracaris PP. Electronic Medical Records in the American Health System: challenges and lessons learned. Cien Saude Colet 2020; 25(4):1293-1304.. Embora no país estejamos distantes de políticas públicas que garantam a padronização e interoperabilidade dos prontuários eletrônicos, uma solução intermediária, ainda que não suficiente, seria o aproveitamento máximo das funcionalidades do SIGES que permite a contrarreferência.
O Manual de Acesso2424 Bahia. Secretaria de Saúde do Estado da Saúde. Manual de acesso aos serviços de Apoio Diagnóstico e Tratamento das Policlínicas Regionais de Saúde do Estado da Bahia. Salvador: SESAB; 2017. constitui importante instrumento para estabelecimento dos fluxos assistenciais à AE. Contudo, a adesão a protocolos para gerenciamento das transições entre níveis envolve, entre outros aspectos, a padronização de processos, capacitação e explícita definição das responsabilidades entre os prestadores3333 Janett RS, Yeracaris PP. Electronic Medical Records in the American Health System: challenges and lessons learned. Cien Saude Colet 2020; 25(4):1293-1304.. Muitas são as barreiras reconhecidas para a adesão de médicos às diretrizes de práticas clínicas como: familiaridade, concordância com as evidências e capacidade de superar a inércia de práticas anteriores3434 Cabana MD, Rand CS, Powe NR, Wu AW, Wilson MH, Abboud PA, Rubin HR. Why don't physicians follow clinical practice guidelines? A framework for improvement. JAMA 1999; 282(15):1458-1465.. Tais indicativos podem guiar processos de EP e matriciamento realizado pelos especialistas, ações ainda não desenvolvidas.
A integração e comunicação entre Policlínica e controle social/população também é considerado aspecto relevante para a proposição de um modelo de AE em perspectiva de RAS. Embora a implantação do SUS tenha produzido espaços de pactuação regional e federativa, a cooperação parece não ter sido alcançada como desejado, em parte, pela baixa permeabilidade desses arranjos à rede, usuários, trabalhadores e atores externos2727 Padilha A, Oliveira DC, Alves TA, Campos GWS. Crise no Brasil e impactos na frágil governança regional e federativa da política de saúde. Cien Saude Colet 2019; 24(12):4509-4518.. Ainda que os consórcios, a exemplo da experiência do Ceará, tenham fortalecido a regionalização2020 Almeida PF, Giovanella L, Martins Filho MT, Lima, LD. Redes regionalizadas e garantia de atenção especializada em saúde: a experiência do Ceará, Brasil. Cien Saude Colet 2019; 24:4527-4540.,2525 Julião KS. Olivieri C. Cooperação intergovernamental na política de saúde: a experiência dos consórcios públicos verticais no Ceará, Brasil. Cad Saude Publica 2020; 36(3):e00037519., permanece o desafio do aprofundamento da relação com as instâncias de participação social para planejamento e monitoramento das ações2626 Lui L, Schabbach LM, Nora CRD. Regionalização da saúde e cooperação federativa no Brasil: o papel dos consórcios intermunicipais. Cien Saude Colet 2020; 25(12):5065-5074.. Ademais, advoga-se o permanente diálogo com usuários e familiares para que possam compreender que o reposicionamento da AE nas redes não representa restrição do acesso aos especialistas33 Cohen E, Wang CJ, Zuckerman B. Specialized Care without the Subspecialist: A Value Opportunity for Secondary Care. Children 2018; 5(6):69..
Funções de matriciamento, EP, integração ensino-serviço e de pesquisa são estratégicos. Ser um polo de formação e produção de conhecimento para aprimoramento dos processos internos e para o SUS, além de viável, pode contribuir para o deslocamento da Policlínica do papel exclusivo de provedor de AE. A avaliação dos usuários deve ser valorizada na adoção de medidas de aperfeiçoamento do serviço em aspectos considerados relevantes3535 Doubova SV, Infante-Castañeda C, Roder-DeWan S, Pérez-Cuevas R. User experience and satisfaction with specialty consultations and surgical care in secondary and tertiary level hospitals in Mexico. BMC Health Serv Res 2019; 19:872., assim como para garantir a sustentabilidade da política2020 Almeida PF, Giovanella L, Martins Filho MT, Lima, LD. Redes regionalizadas e garantia de atenção especializada em saúde: a experiência do Ceará, Brasil. Cien Saude Colet 2019; 24:4527-4540..
Embora aspectos políticos do processo de implementação e da dinâmica regional não tenham sido tratados neste artigo, representam condicionantes para a compreensão dos limites e possibilidades do arranjo CIS/Policlínicas para a organização e provisão da atenção de AE no SUS.
Por fim, ressalta-se que, além do enfrentamento dos vazios assistenciais e dos desafios intrínsecos à AE, destacados neste trabalho, há movimentos a serem realizados nas redes e ofertas locais de saúde, aliados ao necessário fortalecimento da APS, abrangente, resolutiva e que possa assumir a condução do sistema. De forma complementar, argumenta-se que o arranjo das Policlínicas Regionais, com a incorporação do transporte sanitário eletivo seguro e de qualidade, apresenta possibilidades mais concretas de avanços em uma modelagem para oferta de AE na perspectiva de Redes de Atenção à Saúde.
Referências
- 1Cyr ME, Etchin AG, Guthrie BJ, Benneyan JC. Access to specialty healthcare in urban versus rural US populations: a systematic literature review. BMC Health Serv Res 2019; 19:974.
- 2She Z, Gaglioti AH, Baltrus P, Li C, Moore MA, Immergluck LC, Rao A, Ayer T. Primary Care Comprehensiveness and Care Coordination in Robust Specialist Networks Results in Lower Emergency Department Utilization: A Network Analysis of Medicaid Physician Networks. J Prim Care Community Health 2020; 11:2150132720924432.
- 3Cohen E, Wang CJ, Zuckerman B. Specialized Care without the Subspecialist: A Value Opportunity for Secondary Care. Children 2018; 5(6):69.
- 4Solla J, Chioro A. Atenção ambulatorial especializada. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho JI, organizadores. Políticas e sistemas de saúde no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2012. p. 547-576.
- 5Tikkanen R, Osborn R, Mossialos E, Djordjevic A, Wharton G. International Profiles of Health Care Systems 2020. Washington, D.C.: The Commonwealth Fund, London School of Economics and Political Science; 2020.
- 6Lima LD, Albuquerque MV, Scatena JHG, Melo ECP, Oliveira EXG, Carvalho MS, Pereira AMM, Oliveira RAD, Martinelli NL, Oliveira CF. Regional governance arrangements of the Brazilian Unified National Health System: provider diversity and spacial inequality in service provision. Cad Saude Publica 2019; 35(Sup. 2):e00094618.
- 7Fleet R, Pelletier C, Marcoux J, Maltais-Giguère J, Archambault P, Audette LD, Plant J, Bégin F, Tounkara FK, Poitras J. Differences in Access to Services in Rural Emergency Departments of Quebec and Ontario. PLoS One 2015; 10(4):e0123746.
- 8Tesser CD, Poli Neto P. Atenção especializada ambulatorial no Sistema Único de Saúde: para superar um vazio. Cien Saude Colet 2017, 22(3):941-951.
- 9Almeida PF, Santos AM, Cabral LM, Bousquat A, Fausto MC. Provision of specialized care in remote rural municipalities of the Brazilian semi-arid region. Rural Remote Health 2021; 21:6652.
- 10Bradley EH, Byam P, Alpern R, Thompson JW, Zerihun A, Abebe Y, Curry LA. A Systems Approach to Improving Rural Care in Ethiopia. PLoS One 2012; 7(4):e35042.
- 11Zhao Q, Wang L, Tao T, Xu B. Impacts of the "transport subsidy initiative on poor TB patients" in rural China: A patient-cohort-based longitudinal study in rural China. PLoS One 2013; 8(11):e82503.
- 12Mendes EV. As Redes de Atenção à Saúde. 2ª ed. Brasília: OPAS; 2011.
- 13Syed ST, Gerber BS, Sharp LK. Traveling towards disease: transportation barriers to health care access. J Community Health 2013; 38(5):976-993.
- 14Norman AH, Tesser CD. Prevenção quaternária na atenção primária à saúde: uma necessidade do Sistema Único de Saúde. Cad Saude Publica 2009; 25(9):2012-2020.
- 15Guedes BAP, Vale FLB, Souza RW, Costa MKA, Batista SR. A organização da atenção ambulatorial secundária na SESDF. Cien Saude Colet 2019; 24(6):2125-2134.
- 16Mendes EV. O desafio da Atenção Secundária Ambulatorial Especializada: um novo modelo de integração em rede com a Atenção Primária à Saúde. In: Mendes EV. Desafios do SUS. Brasília: CONASS; 2019. p. 613-672.
- 17Silva CR, Carvalho BG, Cordoni Júnior L, Nunes EFPA. Dificuldade de acesso a serviços de média complexidade em municípios de pequeno porte: um estudo de caso. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1109-1120.
- 18Botti CS, Artmann E, Spinelli MAS, Scatena JHG. Regionalização dos Serviços de Saúde em Mato Grosso: um estudo de caso da implantação do Consórcio Intermunicipal de Saúde da Região do Teles Pires, no período de 2000 a 2008. Epidemiol Serv Saude 2013; 22(3):491-500.
- 19Rocha CV. A cooperação federativa e a política de saúde: o caso dos Consórcios Intermunicipais de Saúde no estado do Paraná. Cad Metropole 2016; 18(36):377-399.
- 20Almeida PF, Giovanella L, Martins Filho MT, Lima, LD. Redes regionalizadas e garantia de atenção especializada em saúde: a experiência do Ceará, Brasil. Cien Saude Colet 2019; 24:4527-4540.
- 21Bahia. Secretaria da Saúde do Estado da Bahia. Assessoria de Planejamento e Gestão. Observatório Baiano de Regionalização. Salvador: Secretaria da Saúde do Estado da Bahia; 2021.
- 22Bardin L. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2015.
- 23Bahia. Secretaria de Estado da Saúde. Caminhos do Cuidar: estratégia para a oferta oportuna ao diagnóstico de câncer [Internet]. [acessado 2021 mar 13]. Disponível em: http://telessaude.saude.ba.gov.br/wp-content/uploads/2022/03/webpalestra-10.12.2019.pdf
» http://telessaude.saude.ba.gov.br/wp-content/uploads/2022/03/webpalestra-10.12.2019.pdf - 24Bahia. Secretaria de Saúde do Estado da Saúde. Manual de acesso aos serviços de Apoio Diagnóstico e Tratamento das Policlínicas Regionais de Saúde do Estado da Bahia. Salvador: SESAB; 2017.
- 25Julião KS. Olivieri C. Cooperação intergovernamental na política de saúde: a experiência dos consórcios públicos verticais no Ceará, Brasil. Cad Saude Publica 2020; 36(3):e00037519.
- 26Lui L, Schabbach LM, Nora CRD. Regionalização da saúde e cooperação federativa no Brasil: o papel dos consórcios intermunicipais. Cien Saude Colet 2020; 25(12):5065-5074.
- 27Padilha A, Oliveira DC, Alves TA, Campos GWS. Crise no Brasil e impactos na frágil governança regional e federativa da política de saúde. Cien Saude Colet 2019; 24(12):4509-4518.
- 28Mello GA, Pereira APCM, Uchimura LYT, Iozzi FL, Demarzo MMP, Vianna ALA. O processo de regionalização do SUS: revisão sistemática. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1291-1310.
- 29Wolfe MK, McDonald NC, Holmes GM. Transportation Barriers to Health Care in the United States: Findings from the National Health Interview Survey, 1997-2017. Am J Public Health 2020; 110(6):815-822.
- 30Becerra JM, Reis RS, Frank LD, Ramirez-Marrero FA, Welle B, Cordero EA, Mendez Paz F, Crespo C, Dujon V, Jacoby E, Dill J, Weigand L, Padin CM. Transport and health: a look at three Latin American cities. Cad Saude Publica 2013; 29(4):654-666.
- 31Araújo JKL, Silva LM, Santos CA, Oliveira IS, Fialho GM, Del Giglio A. Assessment of costs related to cancer treatment. Rev Assoc Med Bras 2020; 66(10):1423-1430.
- 32Mori NLR, Olbrich Neto J, Spagnuolo RS, Juliani CMCM. Resolution, access, and waiting time for specialties in different models of care. Rev Saude Publica 2020; 31(54):18.
- 33Janett RS, Yeracaris PP. Electronic Medical Records in the American Health System: challenges and lessons learned. Cien Saude Colet 2020; 25(4):1293-1304.
- 34Cabana MD, Rand CS, Powe NR, Wu AW, Wilson MH, Abboud PA, Rubin HR. Why don't physicians follow clinical practice guidelines? A framework for improvement. JAMA 1999; 282(15):1458-1465.
- 35Doubova SV, Infante-Castañeda C, Roder-DeWan S, Pérez-Cuevas R. User experience and satisfaction with specialty consultations and surgical care in secondary and tertiary level hospitals in Mexico. BMC Health Serv Res 2019; 19:872.
Financiamento
Este trabalho foi desenvolvido no âmbito do Programa de Pós-Doutorado realizado pela primeira autora na Faculdade de Saúde Pública da USP, contemplada com bolsa PDS do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), sob supervisão da Dra Aylene Bousquat. PF Almeida e A Bousquat são bolsistas de produtividade do CNPq.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
16 Set 2022 - Data do Fascículo
Out 2022
Histórico
- Recebido
19 Fev 2022 - Aceito
09 Jun 2022 - Publicado
11 Jun 2022