As ciências sociais e humanas e a pandemia de COVID-19

Everardo Duarte Nunes Sobre o autor

Resumo

O artigo aborda os desafios enfrentados pelas ciências sociais e humanas na epidemia/pandemia de COVID-19. Esta revisão se refere somente a alguns aspectos, aproximando-se do chamado paradigma indiciário de Ginsburg ao enunciar que “a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas - sinais, indícios - que permitem decifrá-la”. De um modo geral, as pesquisas em ciências sociais e humanas voltadas para a crise sanitária são de fundamental importância - primeira afirmação: tanto no período de disseminação da doença como na pós-pandemia; segunda afirmação: a epidemia não se restringe a um evento viral.

Palavras-chave:
Ciências sociais e humanas; COVID-19; Epidemia

Tratar o tema da pandemia de COVID-19, mesmo recortando-o na perspectiva das ciências sociais e humanas, tornou-se um grande desafio.

Retome-se o alerta da ABRASCO (22/04/2020)11 Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO). Precisamos das Ciências Sociais e Humanas para compreender e enfrentar a pandemia de COVID-19 [Internet]. [acessado 2020 jul 27]. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/noticias/saude-da-populacao/nota-precisamos-das-ciencias-sociais-e-humanas-para-compreender-e-enfrentar-a-pandemia-de-covid-19/47225/
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Ao publicar a Portaria 1.122, em 19/03/2020, o Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) apresentou suas prioridades para projetos de pesquisa, de desenvolvimento de tecnologias e inovações (2020-2023), enfocando apenas as áreas tecnológicas e de inovação. No entanto, a Portaria 1.329, de 27/03/2020, alterou a portaria anterior e reconheceu a “característica essencial e transversal dos seus projetos de pesquisa [de humanidades e ciências sociais]”. Esse reconhecimento, todavia, não se traduz em ato, como verificado na chamada para “Pesquisas para enfrentamento da COVID-19, suas consequên cias e outras síndromes respiratórias agudas graves”. Nela, não há temas ou linhas de pesquisas que contemplem a investigação dos aspectos acima mencionados (grifo nosso).

Assinala que, este tipo de exclusão pode ter consequências gravíssimas para a adequada compreensão das consequências da pandemia de COVID-19. Com base em análises incompletas, imprecisas ou, até mesmo, equivocadas, o Estado brasileiro não terá condições de formular políticas públicas e implementar ações que sejam capazes de mitigar e reparar os danos provocados por esta pandemia11 Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO). Precisamos das Ciências Sociais e Humanas para compreender e enfrentar a pandemia de COVID-19 [Internet]. [acessado 2020 jul 27]. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/noticias/saude-da-populacao/nota-precisamos-das-ciencias-sociais-e-humanas-para-compreender-e-enfrentar-a-pandemia-de-covid-19/47225/
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O tema tornou-se desafiante porque, a partir dessa constatação, a movimentação em vários países, inclusive o Brasil, de cientistas sociais e de humanidades cresceu na produção científica. Particularizando a sociologia, Marzochi22 Marzochi SF. A velha sociologia pós-pandêmica. Boletim Coletividades 2020; 10 jul., em um dos primeiros ensaios brasileiros sobre o tema, afirma:

A emergência da COVID-19, tomada como um novo fenômeno ecológico global, longe de pôr em questão os fundamentos da sociologia clássica, revela o quanto estes são relevantes para a compreensão da pandemia e orientação das condutas. A rápida disseminação entre populações humanas, em ambiente urbano e cosmopolita, de uma virose provavelmente originária, como tantas, de animais, leva-nos a retomar algumas noções fundantes da sociologia, como as de fato social, totalidade social, consciência coletiva, representações coletivas e sensíveis, simbólico e imaginário, dualidade humana, fato social total, indistinção entre natureza e cultura, entre outras (grifo nosso).

Recorde-se que a questão não era desconhecida pelos sociólogos da saúde. Em 2013, Dingwall, Hoffman e Staniland33 Dingwall R, Hoffman LM, Staniland K. Why a sociology of pandemics? Sociology of Health & Illness 2013; 35(2):167-173. perguntavam: “Why a sociology of pandemics?”. Em número temático da Sociology of Health & Illness, os autores sintetizam que:

As doenças infecciosas ressurgiram como uma ameaça à saúde pública em uma era cada vez mais globalizada, agregando atores transnacionais aos atores tradicionais do governo nacional e local. [...] Os colaboradores investigaram a construção social de doenças novas e reemergentes; o desenvolvimento de sistemas de vigilância, governança de saúde pública; o impacto das modalidades científicas/técnicas sobre a incerteza e o risco, a interação das doenças infecciosas, as preocupações coma saúde pública e a segurança nacional e as respostas do público e da mídia. Os estudos de caso abrangem amplamente a América do Norte, Europa e Ásia e definem novas agendas para sociólogos médicos e formuladores de políticas de saúde pública (grifo nosso).

Entre nós, o elaborado comentário de Grissotti44 Grisotti M. Pandemia de COVID-19: agenda de pesquisas em contextos de incertezas e contribuições das ciências sociais. Physis 2020; 30(2):e300202. conclui que, O diagnóstico, as informações sobre a exposição ao risco e o tratamento dependem, cada vez mais, de fatores socioantropológicos. Por isso, sociólogos e antropólogos, através de suas peculiares ferramentas teóricas e metodológicas, detêm, muitas vezes, a chave para a explicação de padrões epidemiológicos particulares e para o auxílio na construção de uma consciência de interdependência, requerida para a governança global em saúde.

Trata-se, portanto, de traçar interfaces para um conhecer que não se limite a uma história natural da pandemia, da maior importância, sem dúvida (neste momento, a nova cepa Delta, considerada a mais infecciosa, irá exigir novas investigações básicas), mas incompleta, especialmente na fase anterior à produção de vacinas, quando as medidas de proteção eram de caráter social e higienista.

Esta revisão se refere apenas a alguns aspectos, aproximando-se do chamado paradigma indiciário de Ginsburg55 Ginzburg C. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras; 1989. ao enunciar que “a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas - sinais, indícios - que permitem decifrá-la”.

Em 2020, historiadores, economistas, geógrafos e sociólogos se juntaram para produzir um conjunto de artigos sobre os mais diversos aspectos da pandemia, salientando que O termo “pandemia” entrou, definitivamente, para nosso vocabulário corrente. Ainda que em grego (“pan” = todo + “demos” = povo) a palavra não designasse, especificamente, uma doença, indicava aqueles eventos significativos para todo o povo66 Almico RCS, Goodwin Jr JW, Saraiva LF, organizadores. Na saúde e na doença: reflexões da história econômica na época da COVID-19. São Paulo: Hucitec; 2020..

Entre os temas, foram abordados: as doenças do espaço urbano, a epidemia de meningite ocorrida no período da ditadura militar e temas sociais, como as desigualdades, sempre associadas ou fazendo parte do contexto das enfermidades, assim como a solidariedade que também acompanha os gestos populares de organizações da sociedade civil.

Primeira afirmação: de um modo geral, as pesquisas em ciências sociais e humanas voltadas para a crise sanitária são de fundamental importância tanto no período de disseminação da doença como na pós-pandemia. Segunda afirmação: a epidemia não se restringe a um evento viral. Cronologicamente, os primeiros registros na imprensa brasileira datam de janeiro de 2020 (notícia no jornal Folha de S. Paulo em 13 de janeiro).

Levantamento no banco de dados PubMed77 PubMed. [acessado 2021 jul 14]. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov...
em 14 de julho de 2021 registra os seguintes resultados: COVID-19 and Social Sciences - 19.648; Anthropology - 992; Political Sciences - 1.237; Sociology - 9.580. Foram detectadas 93 revisões sistemáticas com diversas temáticas: impacto do isolamento, saúde mental, suicídio, ansiedade, solidão, vulnerabilidade (gênero, raça, classe social), fobia e medo, estigmatização.

Como já relatado não era intenção um estudo exaustivo. Sem dúvida, esse tipo de estudo deverá ser realizado visando uma perspectiva abrangente e sistematizada.

Em 2007, Barry, Hessel e Gualde88 Barry S, Hessel L, Gualde N. La gripe, une menace éternelle. CBMH 2007; 24(2):445-466., no artigo “La gripe, une menace éternelle”, escreveram: O conhecimento da história da gripe, uma doença milenar relativamente bem conhecida, é fundamental para tentar antecipar o início de uma próxima pandemia. Se não conseguimos evitar a COVID-19, precisamos estar preparados para o futuro.

Agradecimentos

À professora Maria Cecília de Souza Minayo, pela sugestão, e ao CNPq (Proc. 303924/2019-5).

Referências

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    Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO). Precisamos das Ciências Sociais e Humanas para compreender e enfrentar a pandemia de COVID-19 [Internet]. [acessado 2020 jul 27]. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/noticias/saude-da-populacao/nota-precisamos-das-ciencias-sociais-e-humanas-para-compreender-e-enfrentar-a-pandemia-de-covid-19/47225/
    » https://www.abrasco.org.br/site/noticias/saude-da-populacao/nota-precisamos-das-ciencias-sociais-e-humanas-para-compreender-e-enfrentar-a-pandemia-de-covid-19/47225
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    Marzochi SF. A velha sociologia pós-pandêmica. Boletim Coletividades 2020; 10 jul.
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    Dingwall R, Hoffman LM, Staniland K. Why a sociology of pandemics? Sociology of Health & Illness 2013; 35(2):167-173.
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    Grisotti M. Pandemia de COVID-19: agenda de pesquisas em contextos de incertezas e contribuições das ciências sociais. Physis 2020; 30(2):e300202.
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    Ginzburg C. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras; 1989.
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    Almico RCS, Goodwin Jr JW, Saraiva LF, organizadores. Na saúde e na doença: reflexões da história econômica na época da COVID-19. São Paulo: Hucitec; 2020.
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    PubMed. [acessado 2021 jul 14]. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/
    » https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov
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    Barry S, Hessel L, Gualde N. La gripe, une menace éternelle. CBMH 2007; 24(2):445-466.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    05 Set 2021
  • Aceito
    05 Out 2021
  • Publicado
    07 Out 2021
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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