Resumo
O estudo da definição de agendas e prioridades da saúde global tem sido, nos últimos anos, uma das prioridades de uma literatura crítica que visa identificar as dimensões políticas da governança global em saúde, e que enfatiza os pontos de tensão, exclusão e desigualdade. O presente ensaio se posiciona nesta leitura crítica da saúde global, focando a construção da categoria de emergência de importância internacional. Considerando em específico o caso do surto de zika e de síndromes congênitas no Brasil, em 2016, explora as condições que possibilitam a construção de uma emergência. Questionamos os fatores e condições em torno desse evento de saúde pública que eventualmente foram considerados no processo decisório, e que vão além dos dados materiais mais objetivos relativos à epidemiologia do zika, à sua morbi-mortalidade ou à sua associação com as malformações congênitas. Concluímos que o contexto securitário e a crescente importância do risco na saúde global são condições importantes para entender as declarações de emergência.
Palavras-chave:
Emergência de saúde pública de importância internacional; Zika vírus; Negligência; Brasil; Organização Mundial da Saúde
Introdução
A literatura acadêmica sobre saúde global conheceu nos últimos anos o crescimento de abordagens críticas que visam questionar entendimentos dominantes acerca da governança da saúde. Essa virada crítica tem suas raízes num propósito antropológico de colocar as pessoas, suas práticas e experiências, no centro da análise11 Adams V. What is critical global health? MAT 2016; 3(2):186-197.,22 Biehl J, Petryna A. Critical global health. In: Biehl J, Petryna A, editors. When people come first: critical studies in global health. Princeton: Princeton University Press; 2013. p. 1-20.. Em detrimento de uma visão que privilegia o estudo de arranjos institucionais e a arquitetura da governança da saúde, os estudos críticos começam pela prática e pelas realidades concretas e cotidianas - a forma como a saúde e a doença são entendidas e experienciadas por indivíduos e grupos num determinado contexto histórico, cultural e socioeconômico.
A gênese da crítica da saúde global está também nos fundamentos teóricos de alguns estudos na área das relações internacionais33 Harman S. Global health governance. London: Routledge; 2011.,44 McInnes C, Lee K. Global health and international relations. London: Polity Press; 2012., que partem do pressuposto de que os entendimentos acerca de saúde e doença devem ser vistos não como realidades evidentes, mas como resultado (negociado, contestado e, portanto, precário) de construções sociais55 Rushton S, Williams OD. Frames, paradigms and power: global health policy-making under neoliberalism. Global Society 2012; 26:2:147-167.. Essas construções sociais, ou seja, processos de representação, negociação e contestação de entendimentos coletivos, incluem como dimensão essencial a definição de problemas66 Bacchi C. Analysing policy: what's the problem represented to be? Frenchs Forest: Pearson Education; 2009.,77 Edelman M. Constructing the political spectacle. Chicago: University of Chicago Press; 1988.. Assim, as políticas de saúde não são meros instrumentos médicos, técnicos ou tecnológicos para a resolução de problemas objetivos; elas dependem de uma construção prévia do que é visto como merecedor de prioridade, atenção ou proteção. Essa definição de problemas, que tem como pano de fundo a definição da sociedade que temos ou queremos ter, permite a configuração de um âmbito de soluções vistas como necessárias, possíveis ou desejáveis, em detrimento de possíveis soluções alternativas.
Deste modo, um dos pressupostos básicos da abordagem crítica é a ideia de que a saúde global deve ser vista como um fenômeno político, e não meramente técnico. É política porque resulta de um processo social de negociação, que compreende entendimentos compartilhados e divergências. Outra dimensão política da saúde global, que decorre dessas negociações e tensões, é o fato de ela ser permeada por relações de poder55 Rushton S, Williams OD. Frames, paradigms and power: global health policy-making under neoliberalism. Global Society 2012; 26:2:147-167.. A definição de ideias e práticas dominantes ocorre num contexto social e econômico que reflete diferentes capacidades e que ajuda a reproduzir desigualdades. O enfoque nas desigualdades é uma caraterística central da abordagem crítica. Ao desmascarar pretensões universalistas ou homogeneizantes, o olhar crítico destaca a diversidade de experiências, isto é, a forma como territórios, grupos e indivíduos são distintamente afetados pela suscetibilidade à doença e suas diferentes capacidades para enfrentá-la.
A abordagem crítica também privilegia a atenção sobre a definição de prioridades na governança global da saúde. O estudo da definição das agendas da saúde global88 Shiffman J. A social explanation for the rise and fall of global health issues. Bull World Health Organ 2009; 87(8):608-613.,99 Shiffman J, Smith S. Generation of political priority for global health initiatives: a framework and case study of maternal mortality. Lancet. 2007; 370(9595):1370-1379. visa entender como a distribuição de recursos (financeiros, humanos e simbólicos) se relaciona com os interesses e a mobilização do poder por parte de diferentes atores. É nesse contexto que apontamos a importância da categoria das emergências em saúde, associadas a um paradigma de governança focado nas chamadas “doenças emergentes” e, em geral, na resposta ou reação a surtos de doenças infeciosas1010 Weir L, Mykhalovskiy E. Global public health vigilance: creating a world on alert. London: Routledge; 2010.. Esse paradigma emergencial surge interligado com o desenvolvimento, ao longo das últimas décadas, de uma agenda da governança global pautada por preocupações com segurança sanitária1111 Fidler DP. From international sanitary conventions to global health security: the new international health regulations. Chinese J International Law 2005; 4(2):325-392.,1212 Lakoff A. Two regimes of global health. Humanity 2010; 1(1):59-79..
O Regulamento Sanitário Internacional (RSI) de 2005 demonstra isso: não só reflete a prevalência de concepções securitárias na governança global1313 Andrus JK, Aguilera X, Oliva O, Aldighieri S. Global health security and the international health regulations. BMC Public Health 2010; 10(Suppl. 1):S2. como introduz um conjunto de mudanças significativas que vieram reconfigurar a relação entre a Organização Mundial de Saúde (OMS) e os estados-membros1414 Kamradt-Scott A, Rushton S. The revised international health regulations: socialization, compliance and changing norms of global health security. Global Change, Peace & Security 2021; 24(1):57-70., permitindo por exemplo a notificação de surtos epidêmicos por atores não-estatais, ou alargando radicalmente o escopo de problemas que podem ser considerados emergências. Ele passou a incluir, no leque de questões que podem deflagrar uma resposta emergencial por parte da ONU e dos estados-membros, qualquer evento que cumpra os requisitos do algoritmo da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII): ter caráter extraordinário, constituir risco de saúde pública que possa se espalhar para outros países e exigir uma resposta internacional coordenada.
Este ensaio aborda as emergências em saúde usando uma lente crítica. Escolhemos a crise sanitária relativa à síndrome congênita do vírus zika (SCVZ), que teve como epicentro o Brasil, em 2016, para estudar as condições que possibilitaram a construção de uma emergência internacional. Consideramos que se trata de um importante exemplo de como são concebidos e implementados os instrumentos da OMS e dos estados para resposta às emergências internacionais de saúde.
Até o ano de 2013, o zika vírus era pouco conhecido. Isolado na década de 1940, teve registros de infecções pontuais até meados dos anos 20001515 Musso D, Bossin H, Mallet HP, Besnard M, Broult J, Baudouin L, Levi JE, Sabino EC, Ghawche F, Lanteri MC, Baud D. Zika virus in French Polynesia 2013-14: anatomy of a completed outbreak. Lancet Infect Dis 2018; 18(5):e172-e182.. Em 2013, partindo da Polinésia Francesa, o vírus teria passado pela Oceania e pela Ilha de Páscoa antes de chegar à América Central e ao Caribe1616 Campos TL, Durães-Carvalho R, Rezende AM, de Carvalho OV, Kohl A, Wallau GL, Pena LJ. Revisiting key entry routes of human epidemic arboviruses into the mainland Americas through large-scale phylogenomics. Int J Genomics 2018; 2018:6941735.. No Brasil, inicialmente não chamou a atenção das autoridades locais, pois a doença era percebida como de efeitos leves e pouco duradouros, e não constava da lista de enfermidades de notificação obrigatória. A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) só foi notificada sobre a circulação do vírus no Nordeste do país em maio de 20151717 Pan American Health Organization (PAHO). Epidemiological alert: zika virus infection. 2015. [cited 2021 out 15]. Available from: https://iris.paho.org/handle/10665.2/34232
https://iris.paho.org/handle/10665.2/342... . O vírus parecia se adaptar aos ciclos urbanos e periurbanos, sendo transmitido pelo Aedes aegypti e por outros mosquitos, com manifestações cada vez mais graves, sobretudo neurológicas1818 Musso D, Cao-Lormeau VM, Gubler DJ. Zika virus: following the path of dengue and chikungunya? Lancet 2015;386(9990):243-244.. Não existiam meios eficazes de controle do vetor, assim como vacinas e medicamentos específicos para a doença.
Buscaremos neste ensaio, por meio do caso da emergência relacionada à SCVZ, responder às seguintes perguntas: por que determinados problemas de saúde pública se tornam prioridades na agenda da saúde global e são elevados à condição de emergência de importância internacional? O que explica a persistência de outras questões que permanecem negligenciadas?
À procura de respostas, tentaremos destacar os limites das abordagens meramente técnicas da crise sanitária. Para tanto, daremos especial atenção às dimensões políticas da construção da SCVZ como emergência internacional, questionando fatores e condições em torno desse evento de saúde pública que eventualmente foram considerados no processo decisório.
Incerteza, risco e medo: a associação entre zika e síndromes congênitas
Apesar das preocupações, a doença por si só não era suficiente para a declaração de uma emergência no território brasileiro. Em 2015, o Brasil teve 1.688.688 casos prováveis de dengue, com 986 óbitos confirmados1919 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Monitoramento dos casos de dengue, febre de chikungunya e febre pelo vírus Zika até a Semana Epidemiológica 52, 2016. Boletim Epidemiológico 2017; 48(3): 1-11., e ainda assim não foi declarada emergência nacional. Em meados de 2015, alguns municípios do Nordeste brasileiro passaram a notificar o aumento incomum no número de bebês nascidos com microcefalia, chamando a atenção das autoridades de saúde estaduais que se preocupavam com o impacto desse fenômeno sobre os sistemas de saúde locais2020 Diniz D. Zika: do sertão nordestino à ameaça global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2016.. Até aquele momento, a correlação entre as infecções pelo zika vírus e a microcefalia ainda não havia sido comprovada.
O Ministério da Saúde declarou Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) em novembro de 20152121 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Declaração de Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional por alteração do padrão de ocorrência de microcefalias no Brasil, no âmbito do Decreto nº 7.616 de 17 de novembro de 2011. Memorando da Secretaria de Vigilância em Saúde à Coordenação-Geral do Gabinete do Ministro. Documento requisitado via Lei de Acesso à Informação em 16 de abril de 2019. [Documento recebido], com base no aumento incomum no número de bebês nascidos com microcefalia. Apesar do número reduzido de casos e da ausência de evidência etiológica, o evento representava risco significativo para a saúde pública, pois a população potencialmente atingida era vulnerável. O perfil clínico apresentado pelas microcefalias e a incidência na região Nordeste naquela estação do ano e na população afetada eram incomuns.
O fator de mobilização pública em torno do zika deu-se, acima de tudo, pelo fato de estar rodeada de muitas incógnitas no meio científico, sobretudo acerca da forma de transmissão da doença e da relação entre o vírus e as complicações neurológicas2222 Nunes J, Pimenta DN. A Epidemia de zika e os limites da saúde global. Lua Nova 2016; 98:21-46., o que tornava urgente a necessidade de dar sentido ao que acontecia. A questão da incerteza se tornou importante na saúde global na medida em que o âmbito da legislação e da governança começou a se focar não apenas em doenças concretas, mas também em riscos incertos e por calcular2323 McInnes C, Roemer-Mahler A. From security to risk: reframing global health threats. International Affairs 2017; 93(6):1313-1337.. Essa mudança de enfoque é evidente no RSI adotado em 2005, com sua referência a eventos que poderão eventualmente configurar um risco de saúde pública. A presença do risco na saúde global decorre da importância da segurança sanitária, mas acrescenta novos elementos ao prescrever uma preocupação não apenas com ameaças concretas, mas também com riscos futuros. A atenção para com o futuro demonstra uma reorientação das políticas de saúde para a tentativa de prever e calcular riscos e governar um cenário de permanente incerteza2424 Elbe S. Risking lives: AIDS, security and three concepts of risk. Security Dialogue 2008; 39(2-3):177-198.. O risco e a percepção de risco são dois fatores elementares envolvidos na conceitualização e na prática da governança da saúde global; a questão envolve como identificar o risco e a extensão pela qual seu impacto e escopo global podem ser superestimados ou subestimados, sobretudo porque a identificação de riscos se dá de forma complexa, envolvendo diferentes atores, determinantes empíricos, demandas de conhecimento concorrentes e uma espécie de desordem sistêmica por falta de informação2525 Brown GW, Harman S. Risk, perception of risk and global health governance. Political Studies 2011; 59(4):773-778..
A utilização e o enquadramento do medo e da suscetibilidade ao risco servem como instrumento de formação da política de saúde global e de mobilização política. Mecanismos de segurança consistentes podem ser formados graças a elementos como o enquadramento de ameaças comuns, a formação de consensos, a abdicação de aspectos da soberania dos Estados em favor de mecanismos de vigilância internacional, além da combinação de especialistas médicos e de saúde pública e de burocratas internacionais ou nacionais2525 Brown GW, Harman S. Risk, perception of risk and global health governance. Political Studies 2011; 59(4):773-778.. Nesse contexto, a linguagem de risco, especialmente associada à ameaça e à segurança, seria capaz de elevar a saúde na agenda global, promovendo a disponibilidade de recursos e a formação de novas iniciativas políticas globais, com novas formas multissetoriais de governança, numa variedade de atores em diversos níveis de tomada de decisão.
A incerteza gerada a respeito da associação entre zika e síndromes congênitas, e a forma como a categoria do risco tem sido utilizada para enquadrar essa incerteza, ajuda a explicar o contexto no qual as emergências (nacional e internacional) foram declaradas2424 Elbe S. Risking lives: AIDS, security and three concepts of risk. Security Dialogue 2008; 39(2-3):177-198.. A reação a esse cenário de incerteza deve também ser compreendida no contexto de um imaginário político mais abrangente que tem pautado a saúde global, relacionado a uma mentalidade baseada na ansiedade e no medo2626 Nunes J. Security, emancipation and the politics of health: a new theoretical perspective. London: Routledge; 2013.. A política do medo na saúde global não é um fenômeno recente: a história da medicina social e da saúde internacional demostram a persistente associação entre doença e ansiedades políticas relacionadas com grupos e regiões consideradas portadoras de doença ou perigos de contágio, como os imigrantes, as populações LGBTQI ou grupos étnicos não-dominantes2727 Alcabes P. Dread: how fear and fantasy have fueled epidemics from the black death to avian flu. New York: Public Affairs; 2009.
28 Kraut AM. Silent travelers: germs, genes and the 'immigrant menace'. New York: The Johns Hopkins University Press; 1994.-2929 Markel H, Stern AM. The foreigness of germs: the persistent association of immigrants and disease in American society. Milbank Q 2002; 80(4):757-788.. Durante a epidemia de zika, a mobilização de gestores e pesquisas, da mídia e da sociedade em geral gerou também reações dramáticas, que assumiram contornos de grande alarmismo e de espécie de “zikafobia”3030 Gonzalez S. Zika y zikafobia: una página en construcción. Arch Pediatr Urug 2016; 87(1):53-56.. Em decorrência da declaração da ESPIN no Brasil, agências de fomento e Estado destinaram recursos para a pesquisa científica relacionada à doença e, principalmente, a seus efeitos inesperados. Para os cientistas brasileiros, o surto de zika foi uma oportunidade de receber financiamento para cooperação internacional e de impulsionar publicações internacionais, o que foi decisivo diante dos escassos meios nacionais, sobretudo diante da crise política e econômica em que o país se encontrava3131 Oliveira JF, Pescarini JM, Rodrigues MS, Almeida BA, Henriques C, Gouveia FC, Rabello ET, Matta GC, Barreto ML, Sampaio RB. The global scientific research response to the public health emergency of Zika virus infection. PloS One 2020; 15(3):e0229790..
A enxurrada de relatos sobre o zika produzidos num só ano, comparada ao que havia acumulado nas décadas anteriores, transformou o vírus “num agente tão perfeito como patógeno que seria impossível não ter medo dele”3030 Gonzalez S. Zika y zikafobia: una página en construcción. Arch Pediatr Urug 2016; 87(1):53-56.. A difusão do pânico em algumas zonas do Brasil levou à corrida por ultrassonografias que o sistema não podia satisfazer e à realização de testes cujos resultados demoram semanas. As imagens amplamente difundidas de crianças com microcefalia ajudaram a criar um ambiente de ansiedade em relação à epidemia, além de contribuírem para a estigmatização das populações afetadas, momentaneamente alvo de uma piedade que não se traduziu em políticas públicas robustas e sustentadas que pudessem responder às decorrências imediatas e de longo prazo dos problemas congênitos.
Quando uma crise local se transforma em emergência internacional
Supõe-se que uma declaração de emergência internacional pela OMS pretende converter determinados problemas de saúde pública em prioridades na agenda de saúde global. Tentaremos compreender as razões pelas quais a SCVZ alcançou esse estatuto. Antes de mais nada, é preciso enfatizar que o objeto da emergência declarada corresponde aos efeitos provocados pela doença (as síndromes congênitas), e não à epidemia em si.
Considerando a vertiginosa mobilidade internacional contemporânea, o zika rapidamente alcançou outros países3232 Bogoch II, Brady OJ, Kraemer MUG, German M, Creatore MI, Kulkarni MA, Brownstein JS, Mekaru SR, Hay SI, Groot E, Watts A, Khan K. Anticipating the international spread of Zika virus from Brazil. Lancet 2016; 387(10016):335-336.. Colômbia e EUA notificaram casos autóctones de transmissão do zika vírus, além do registro de bebês com microcefalia, e tomaram providências para seu controle.
Em virtude da realização dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos no Brasil, previstos para meados de 2016, as possibilidades de propagação internacional da doença pareciam amplificadas. Em janeiro de 2016, a então diretora-geral (DG) da OMS convocou um comitê de emergência (CE) que a aconselhou a declarar uma ESPII, justificada pelo acúmulo de evidências disponíveis sobre a relação entre as infecções por zika vírus e a malformação de bebês3333 Wenham C, Farias DB. Security Dialogue 2019; 50(5):398-415., em particular a incerteza sobre os clusters de microcefalia, de SGB e de outros defeitos neurológicos relatados por autoridades do Brasil e, retrospectivamente, da Polinésia Francesa, que se associavam em tempo e espaço com surtos de infecção pelo zika3434 Whitty CJ, Mundel T, Farrar J, Heymann DL, Davies SC, Walport MJ. Providing incentives to share data early in health emergencies: the role of journal editors. Lancet 2015; 386(10006):1797-1798.. Recomendou-se a adoção de diversas medidas, em especial de controle do vetor e de distribuição de informações para mulheres grávidas.
A terceira reunião do CE, realizada em 14 de junho de 2016, foi quase integralmente dedicada aos Jogos Olímpicos. Considerando que no inverno a transmissão de arboviroses diminui naturalmente e que o Brasil estaria adotando medidas de controle do vetor nas cidades que sediariam os jogos e em seus arredores, o CE considerou suficiente recomendar que o país continuasse seu trabalho de controle do vetor e garantisse a disponibilidade de repelentes e preservativos em quantidade suficientes para atletas e visitantes3535 World Health Organization (WHO). WHO statement on the third meeting of the International Health Regulations. Emergency Committee on Zika virus and observed increase in neurological disorders and neonatal malformations. 2016. [cited 2021 out 15]. Available from: https://www.who.int/news/item/14-06-2016-who-statement-on-the-third-meeting-of-the-international-health-regulations-(2005)-(ihr(2005))-emergency-committee-on-zika-virus-and-observed-increase-in-neurological-disorders-and-neonatal-malformations
https://www.who.int/news/item/14-06-2016... .
Assim, a OMS jamais recomendou a suspensão dos Jogos no Brasil ou a interrupção do fluxo de pessoas ou do comércio entre Estados. Na quinta reunião, realizada em 18 de novembro de 2016, o CE concluiu que o evento não mais configuraria uma ESPII no sentido do RSI, embora ainda fosse um importante desafio para a saúde pública e exigisse maior atenção e ação por parte das autoridades de saúde e da comunidade científica3636 World Health Organization (WHO). Fifth meeting of the emergency committee under the international health regulations (2005) regarding microcephaly, other neurological disorders and Zika virus. 2016. [cited 2021 out 15]. Available from: https://www.who.int/news/item/18-11-2016-fifth-meeting-of-the-emergency-committee-under-the-international-health-regulations-(2005)-regarding-microcephaly-other-neurological-disorders-and-zika-virus
https://www.who.int/news/item/18-11-2016... .
Segundo a diretora-geral da OMS à época, Margaret Chan, o evento teria atendido às condições necessárias para declarar uma ESPII3737 Margaret Chan. Zika: We must be ready for the long haul. Media Centre. 2017. [cited 2021 out 15]. Available from: https://www.who.int/news-room/commentaries/detail/zika-we-must-be-ready-for-the-long-haul
https://www.who.int/news-room/commentari... : seria extraordinário pela novidade da relação suspeita entre a infecção pelo zika vírus e a microcefalia e outras malformações; o risco de dispersão internacional do vírus era alto; e o Aedes aegypti estava presente numa área que envolvia cerca de metade da população mundial, o que, na falta de tratamentos e vacinas, requeria uma resposta internacional coordenada. Teria deixado de ser uma ESPII porque as questões que tornaram a SCVZ extraordinária já haviam sido respondidas pela ciência.
A manifestação de Chan evidencia a motivação técnica e operacional da OMS para transformar uma doença de pouca atenção pública em evento de importância internacional. Mas ela não é a única.
A ESPII e sua dimensão política
De acordo com o RSI, uma ESPII pode ser declarada em vista de um evento extraordinário que constitua risco à saúde pública em virtude da propagação internacional de doença ou agravo, independentemente de sua origem ou fonte, e que represente ou possa representar dano significativo para seres humanos, exigindo uma resposta internacional coordenada. Portanto, contempla também problemas de origem química, radio-nuclear ou decorrentes de desastres ambientais, que surjam natural ou deliberadamente. O que define uma ESPII não é sua gravidade ou letalidade, mas sim seu potencial alcance internacional3838 Ventura DLF. Do Ebola ao Zika: as emerge^ncias internacionais e a securitização da saúde global. Cad Saude Publica 2016; 32(4):e00033316..
Antes do surto de zika em 2015, a OMS havia declarado apenas três ESPIIs. Na primeira, em 2009, por causa da epidemia da gripe AH1N1, a organização foi fortemente criticada por supostamente ter superestimado a patogenicidade do vírus para beneficiar a indústria farmacêutica3838 Ventura DLF. Do Ebola ao Zika: as emerge^ncias internacionais e a securitização da saúde global. Cad Saude Publica 2016; 32(4):e00033316.. A segunda ESPII, declarada em 2014 e vigente até o momento da submissão deste artigo, teve como objeto a poliomielite, apesar do pequeno número de casos, ocorridos particularmente em regiões de conflito armado.
A terceira foi o surto de ebola na África Ocidental, em 2014. À época, a OMS foi criticada por ter tomado decisões altamente politizadas e pela falta de transparência no processo decisório, e sua capacidade na condução e na liderança de situações de emergência foi considerada insatisfatória3939 Gostin LO, Katz R. The international health regulations: the governing framework for global health security. Milbank Q 2016; 94(2):264-313.. A Secretaria Geral da ONU, com apoio da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança, criou “a primeira missão sanitária de urgência das Nações Unidas”4040 Global Ebola Response. New York: UN Mission for Ebola Emergency Response. [cited 2021 out 15]. Available from: https://ebolaresponse.un.org/ebola-response
https://ebolaresponse.un.org/ebola-respo... : a Missão das Nações Unidas para a Resposta à Emergência do Ebola (MINUAUCE), tomando o lugar da OMS na coordenação da resposta internacional.
A OMS tem atuado de forma diferenciada para eventos que potencialmente poderiam configurar uma ESPII. Casos como o surto de cólera no Haiti, o desastre nuclear de Fukushima no Japão e o uso de armas químicas na Síria, embora passíveis de notificação pelo Anexo 2 do RSI, não foram sequer objeto de convocação de um CE pela OMS, assim como tantos outros assuntos. Por outro lado, outras arboviroses de maior impacto na saúde pública do que a doença do vírus zika não são concebidas como potenciais emergências internacionais.
A decisão final de declarar ou não uma ESPII cabe à direção-geral da OMS, mas a falta de transparência no processo decisório dos CEs vem sendo objeto de controvérsias desde a declaração da primeira ESPII, a da gripe AH1N1, em 2009, quando foram apontados conflitos de interesses entre os membros do CE e laboratórios farmacêuticos.
Esse processo decisório tem passado por intenso escrutínio. No caso da gripe AH1N1 e da crise do Ebola de 2014, diversos governos e comissões internacionais independentes criticaram fortemente a OMS por possíveis conflitos de interesses e pela demora na declaração da emergência. As declarações emitidas pelos CEs não são detalhadas, em particular quanto aos critérios utilizados para a determinação do que é ou não uma ESPII4141 Mullen L, Potter C, Gostin LO, Cicero A, Nuzzo JB. An analysis of international health regulations emergency committees and public health emergency of international concern designations. BMJ Global Health 2020; 5(6):e002502.. Nem sempre as três condições previstas no RSI parecem ser consideradas. Mesmo quando os critérios são mencionados, há diferentes interpretações das evidências de potencial disseminação internacional da ameaça. As únicas fontes de informação sobre o processo deliberativo, além dos comunicados, são as entrevistas coletivas realizadas após as reuniões dos CE4141 Mullen L, Potter C, Gostin LO, Cicero A, Nuzzo JB. An analysis of international health regulations emergency committees and public health emergency of international concern designations. BMJ Global Health 2020; 5(6):e002502., que consubstanciam uma exigência do RSI4242 Fidler DP. To declare or not to declare: the IHR and Ebola in the Democratic Republic of Congo. ASCUH 2019; 14(2):287-330.. O aumento da transparência sobre o funcionamento do CE poderia trazer a toda comunidade internacional mais clareza a respeito dos desdobramentos de uma emergência.
A crise do ebola da República Democrática do Congo (RDC) em 2018 e 2019 suscitou novos questionamentos sobre esse processo decisório. Em seu primeiro comunicado, o CE reconheceu que se tratava de um evento extraordinário e com risco de propagação internacional, mas entendeu que naquele momento não seria positivo declarar uma ESPII4343 World Health Organization (WHO). Statement on the meeting of the International Health Regulations (2005) Emergency Committee for Ebola virus disease in the Democratic Republic of the Congo. 2019. [cited 2021 out 15]. Available from: https://www.who.int/news/item/14-04-2020-emergency-committee-for-ebola-virus-disease-in-the-democratic-republic-of-the-congo-on-14-april-2020
https://www.who.int/news/item/14-04-2020... . As informações disponíveis para o público não permitem identificar os critérios utilizados pelo CE para fazer tal afirmação4242 Fidler DP. To declare or not to declare: the IHR and Ebola in the Democratic Republic of Congo. ASCUH 2019; 14(2):287-330.. Com a repercussão negativa desse comunicado, uma nova reunião finalmente reconheceu que se tratava de uma ESPII. O mesmo padrão foi observado com relação às cinco reuniões sobre a ESPII relativa à SCZ, cujas declarações públicas não explicitam as ponderações realizadas internamente.
A falta de transparência compromete a legitimidade das decisões que foram tomadas e, por conseguinte, o desempenho do RSI e da própria OMS4444 Eccleston-Turner M, Kamradt-Scott A. Transparency in the IHR Emergency Committee Decision-Making: the case for reform. BMJ 2019; 4(2):1.. Os registros das reuniões dos CEs estão sujeitos a uma regra de confidencialidade de 20 anos. Essa opacidade suscita questões sobre a pertinência de informações, a possibilidade de conflitos de interesse e de interferência política no processo decisório.
A ESPII relacionada ao zika vírus
Apesar da falta de transparência no processo decisório, é possível identificar fatores que conduziram a OMS a declarar uma ESPII em 2016, relacionados a aspectos já mencionados neste ensaio, como a tendência securitária e o enfoque no cálculo de risco e na contenção de crises. Existem, ainda, dois acontecimentos políticos cruciais que configuraram o discurso e as ações dos atores envolvidos: de um lado, a instabilidade política, pois a emergência se desenrola em pleno processo de impeachment da presidenta da República, Dilma Roussef; de outro, os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, cujo início estava previsto para julho de 2016, acolheria delegações de 208 países4545 Matta GC, Nogueira CO, Nascimento LS. A literary history of Zika following Brazilian state responses through documents of emergency. In: Bardosh K, editor. Locating Zika - Social change and governance in an age of mosquito pandemics. London: Routledge; 2019. p. 55-77.. Por se tratar de evento sério, repentino, incomum ou inesperado, com implicações para além do país afetado, uma ESPII exige ação internacional imediata. Por essas razões, parece improvável que a OMS tivesse declarado uma ESPII relativa à SCZ não fosse a elevação do nível de atenção global que a emergência do vírus tomou com a proximidade dos Jogos no Brasil, as dúvidas sobre a capacidade do Estado de geri-la em meio à profunda crise política, bem como a grande incerteza que então envolvia a doença e sua associação com malformações congênitas.
A visita de Margaret Chan ao país logo após a declaração da ESPII, em fevereiro de 2016, foi um indicativo da preocupação da OMS. Porém, mesmo confrontada com uma manifestação pública de especialistas que exigiam que as Olimpíadas no Rio de Janeiro fossem adiadas, a OMS se manteve firme em sua decisão4646 G1. Brasil 'tem sido transparente', diz diretora da OMS sobre dados do zika. 2016. [acessado 2021 out 15]. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/noticia/2016/02/brasil-tem-sido-transparente-diz-diretora-da-oms-sobre-dados-do-zika.html
https://g1.globo.com/bemestar/noticia/20... . Especialistas alertaram para o risco desnecessário que os Jogos representavam para milhares de pessoas, sugerindo ainda possível conflito de interesses entre a OMS e o Comitê Olímpico Internacional (COI). A OMS respondeu que o Brasil era apenas mais um dos 60 países onde o zika vírus estaria circulando, para os quais as pessoas não deixaram de viajar por diversas razões, e que a declaração de ESPII buscava justamente evitar a adoção de medidas restritivas contra o país4747 Chade J. Não existe justificativa para adiar os Jogos Olímpicos, diz OMS. Estado de S. Paulo 2018. [acessado 2021 out 15]. Disponível em: https://esportes.estadao.com.br/noticias/jogos-olimpicos, nao-existe-justificativa-para-adiar-rio2016--diz-oms,100000 53856?utm_source=estadao:twitter&utm_medium= link
https://esportes.estadao.com.br/noticias... .
A avaliação da OMS estava estreitamente relacionada ao desempenho do governo brasileiro. Mesmo na iminência do impeachment, uma “guerra contra o mosquito” foi deflagrada pelo Palácio do Planalto, apostando no controle do vetor como estratégia de resposta e envolvendo um grande contingente das Forças Armadas.
Logo, a declaração de emergência internacional pela OMS funcionou como uma espécie de caução para os participantes dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos sediados pelo Brasil, no sentido de demonstrar que a comunidade internacional estava vigilante em relação ao que estava ocorrendo no país. O fato de que os eventos esportivos não foram suspensos corrobora a ideia de que se tratava de apoiar um governo fragilizado, garantindo um consenso nacional entre as diferentes forças políticas em torno da necessidade de adoção de medidas de controle, que seriam alvo de cobrança e vigilância internacional. Portanto, não se tratava de um simples cálculo das probabilidades de propagação internacional da doença, baseado em informações técnicas e capaz de justificar a suspensão dos jogos. Assim, o mecanismo de declaração de emergências assumia claramente a forma de ação política pontual, em detrimento de um enfrentamento efetivo e permanente dos problemas de saúde pública que estão na raiz de uma crise sanitária. Corroborando essa ideia, embora não constitua o objeto do presente artigo, é importante registrar que uma importante literatura vem abordando a resposta brasileira ao zika sob o prisma de gênero, indicando seu impacto negativo sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres4848 Diniz D. Vírus Zika e as mulheres. Espaço temático: zika e gravidez. Cad Saude Publica 2016; 32(5): e00046316.
49 Carvalho LDP. Da esterilização ao zika: interseccionalidade e transnacionalismo nas políticas de saúde para as mulheres [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2017.
50 Löwy I. Zika no Brasil: história recente de uma epidemia. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2019.
51 Wenham C. Feminist global health security. New York: Oxford University Press; 2021.-5252 Ventura DFL, Rached D, Martins J, Pereira C, Trivellato P, Guerra L. A rights-based approach to public health emergencies: the case of the 'More Rights, Less Zika' campaign in Brazil. Glob Public Health 2021; 16(10):1576-1589..
A transmissão de doenças infecciosas em eventos de grande porte são um dos fatores a se considerar na avaliação de risco, além da possibilidade da disseminação criminosa de agentes biológicos5353 Gallego V, Berberian G, Lloveras S, Verbanaz S, Chaves TS, Orduna T, Rodriguez-Morales AJ. The 2014 FIFA World Cup: communicable disease risks and advice for visitors to Brazil - a review from the Latin American Society for Travel Medicine (SLAMVI). Travel Med Infect Dis 2014; 12(3):208-218.. Sabia-se que o risco de introdução de arboviroses inexistentes no Brasil, tais como novas sorotipagens da dengue, do chikungunya e do zika, demandava reforço dos serviços de vigilância5454 Wilson ME, Chen LH. Health risks among travelers to Brazil: implications for the 2014 FIFA World Cup and 2016 Olympic Games. Travel Med Infect Dis 2014; 12(3):205-207.. No entanto, a resposta brasileira aos eventos de massa deu prioridade às doenças transmitidas de pessoa para pessoa5555 Gautret P, Simon F. Dengue, chikungunya and Zika and mass gatherings: what happened in Brazil, 2014. Travel Med Infect Dis 2016; 14(1):7-8..
Conclusão: risco, segurança e negligência
A saúde tem crescido em relevância na agenda da governança global, entre outras razões por seus impactos econômicos. Com a emergência do HIV/Aids nos anos 1990, as doenças infecciosas passaram a ser descritas como ameaças à paz e à segurança. Os ataques por anthrax nos EUA logo após o 11 de setembro de 2001 reforçaram ainda mais o discurso em torno da securitização da saúde e situaram a segurança no centro dos trabalhos acadêmicos sobre saúde global5656 Nunes J. Critical security studies and global health. In: McInnes C, Lee K, Youde J, editors. The Oxford handbook of global health politics. Oxford: Oxford University Press; 2018.. Problemas emergem como questões de segurança por processos de representação, explícitos ou não, intencionais ou não, que condicionam os meios de legitimação das políticas, justificam agendas, alteram prioridades e mobilizam recursos. Uma visão crítica da segurança sanitária pode nos ajudar a não cair nas armadilhas do uso de um vocabulário de segurança quando se trata problemas de saúde por meio de medidas emergenciais questionáveis, como restrições a viagens, quarentenas ou campanhas de vacinação obrigatórias.
O contexto securitário e a crescente importância do risco na saúde global são condições importantes para entender as declarações de emergência. A predominância da lógica de risco explica as mudanças recentes nas normas de saúde global e em mecanismos de governança, como a própria figura da ESPII, que representa uma grande transformação na governança da saúde global, passando da vigilância de algumas doenças para a vigilância do risco em saúde pública, na forma de eventos incertos e inesperados, o que resulta mais na reorientação de recursos em nome do princípio da precaução do que em resposta a problemas de saúde reais e objetivos, podendo servir a outras agendas (como a mídia ou interesses corporativos)1010 Weir L, Mykhalovskiy E. Global public health vigilance: creating a world on alert. London: Routledge; 2010..
Parece que essa foi a mesma mentalidade que levou à declaração de uma ESPII durante o surto de zika vírus no Brasil, uma vez que o objeto da emergência não se tratou propriamente do vírus, mas das incertezas referentes à associação entre o vírus e a desordens neurológicas, particularmente a microcefalia em recém-nascidos. A lógica do risco no caso do zika manteve o assunto na ordem do dia por alguns meses e contribuiu para desviar a atenção de outras questões de saúde materialmente mais impactantes, como os milhões de casos de dengue que assolavam o país no mesmo período. No que Brown e Harman chamam de “percepção inflada”2525 Brown GW, Harman S. Risk, perception of risk and global health governance. Political Studies 2011; 59(4):773-778., as enfermidades que se tornam centrais como temas de segurança da saúde global tiram o foco de doenças negligenciadas e das condições socioeconômicas que perpetuam o risco de doenças.
A categoria ESPII demonstra uma agenda global que pode ser considerada simultaneamente mais ampla e mais restritiva. A emergência da SCVZ é exemplo disso, na medida em que o RSI, por não estar restrito a uma lista pré-definida de doenças, como foi no passado, é capaz de abarcar objetos imprevisíveis, como uma síndrome desconhecida que alcançou um número pequeno de casos, a maior parte deles ocorridos em uma região bem delimitada. Porém, essa é também uma abordagem mais limitada, à medida em que ela contribui para a reprodução da negligência em saúde global5757 Nunes J. Neglect in global health. In: Parker R, García J, editors. Routledge handbook on the politics of global health. London: Routledge; 2018.. Por negligência entendemos não apenas a invisibilização de outras doenças que são secundarizadas por não resultarem na declaração de uma ESPII por parte da OMS, mas também na forma como o foco nas emergências tem contribuído para a reprodução de um paradigma de governança reativo, baseado na gestão de crises e na contenção de surtos epidêmicos - e não numa atuação proativa e estruturada junto aos determinantes de saúde e doença. Mais uma vez, a SCVZ exemplifica perfeitamente essa restrição, pois a doença do vírus zika continua afligindo as populações vulneráveis no Brasil. Mesmo os portadores da SCVZ e seus familiares que foram supostamente beneficiados pela declaração da emergência em 2016 raras vezes tiveram suas necessidades atendidas a contento. E com o final da situação emergencial, passaram a se ver cada vez mais negligenciados.
Nesse contexto, torna-se relevante a adoção de uma abordagem crítica que permita investigar o que é silenciado. As questões que ficam são: as agendas políticas e midiáticas, o sofrimento tornado invisível, assim como as visões alternativas e as formas de resistência a políticas e ideias dominantes. Dessa forma, torna-se urgente uma visão crítica das emergências em saúde global e das múltiplas formas de negligência que elas podem produzir.
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Financiamento
Deisy de Freitas Lima Ventura é bolsista de produtividade em pesquisa nível A2 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. O presente trabalho contou com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) - código de financiamento 001.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
17 Out 2022 - Data do Fascículo
Nov 2022
Histórico
- Recebido
25 Out 2021 - Aceito
09 Maio 2022 - Publicado
11 Maio 2022