Resumo
A conformação de nova área para abarcar formulações e práticas de saúde em escala planetária deve considerar a multiplicidade de agentes e territórios envolvidos, bem como suas diferenças e desigualdades. A inserção dos diversos segmentos sociais nos processos decisórios e de elaborações teóricas da Saúde Global, por meio da participação, apresenta-se como condição estratégica e necessária ao enfrentamento de questões transnacionais. Uma participação que garanta diversidade política e epistêmica na constituição de uma Saúde Global comprometida com a equidade sanitária no plano mundial. A tradição latino-americana que articula pesquisa e ação e a proposta de Encontro de Saberes podem contribuir com processos participativos de constituição do campo da Saúde Global em seus aspectos práticos e teóricos.
Palavras-chave:
Saúde Global; Participação; Comunidades epistêmicas
A participação na construção da Saúde Global
Este ensaio tem como pressuposto que a participação é condição estratégica e necessária ao processo de constituição de um novo campo, representado pela Saúde Global (SG), dedicado às questões transnacionais presentes, mais do que nunca, no planeta. Uma participação tanto no plano político quanto no epistemológico e com efetivo compartilhamento de poder e saberes nas definições da área da SG. Tal participação deve ser qualificada e atenta aos riscos da subversão de seus princípios, estabelecendo referencial ético para a constituição de uma SG comprometida com a equidade sanitária mundial. A inclusão de diferentes partes interessadas fortaleceria a consideração, no âmbito da SG, da determinação social em saúde11 Breilh J. Lastres 'S' de ladeterminación de la vida: 10 tesis hacia una visión crítica de la determinación social de la vida y la salud. In: Nogueira RP, organizador. Determinação social da saúde e Reforma Sanitária. Rio de Janeiro: Cebes; 2010. p. 87-125. - ou seja, das relações entre o social e o biológico e entre sociedade e natureza na produção de saúde e doença.
A participação pode ser considerada referencial ou condição necessária ao desenvolvimento do que já foi considerado quatro temas-chaves da SG22 Salm M, Ali M, Minihane M, Conrad P. Defining global health: findings from a systematic review and thematic analysis of the literature. BMJ Glob Health 2021; 6(6):e005292.: 1) a composição multidisciplinar e multisetorial da área; 2) a presença de um ethos guiado pelos princípios de justiça; 3) a governança que influencia territórios e países para além das fronteiras conhecidas; 4) a polissemia de um conceito ainda em constituição. Some-se aqui os três princípios propostos para a SG por Garay et al., em 201333 Garay J, Harris L, Walsh J. Global health: evolution of the definition, use and misuse of the term. Face à face [serial on the Internet]. 2013. [cited 2022 apr 1]. Available from: https://journals.openedition.org/faceaface/745
https://journals.openedition.org/faceafa... - saúde para todos (para pessoas do mundo inteiro buscando equidade), saúde em tudo (ressaltando as determinações sociais, promovendo coesão social) e saúde por meio de todos (com a inserção das várias partes interessadas de maneira participativa) -, entre os quais destacamos este último, na medida em que busca conferir aos dois primeiros a consideração das particularidades e especificidades existentes.
Já se afirmou que a SG seria um campo44 Dias NX. O campo científico da Saúde Global na América Latina: um estudo crítico sobre um campo polissêmico (2007-2019) [tese]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública; 2018., na acepção proposta por Bourdieu (2010). Isso equivale a conceber a existência de agentes individuais e institucionais relacionados entre si, capitais valorizados neste meio, um habitus comum e o reconhecimento das questões em disputa ou “jogo” praticado (illusio), segundo as formulações do sociólogo francês55 Bourdieu P. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras; 2010.. No entanto, isso não ocorreu ainda. A despeito de esforços, empreendidos há mais de uma década, para o estabelecimento de um conceito de SG66 Koplan JP, Bond TC, Merson MH, Reddy KS, Rodriguez MH, Sewankambo NK, Wasserheit JN. Towards a common definition of global health. Lancet 2009; 373(9679):1993-1995.,77 Beaglehole R, Bonita R. What is global health? Glob Health Action 2010; 3:5142., Salm et al. (2021) apontam a profusão de definições divergentes sobre o que constituiria o objeto, as atribuições e compromissos da SG. Neste estudo22 Salm M, Ali M, Minihane M, Conrad P. Defining global health: findings from a systematic review and thematic analysis of the literature. BMJ Glob Health 2021; 6(6):e005292., emergem ambiguidades de sentidos conferidos à SG, alimentando uma indefinição duradoura66 Koplan JP, Bond TC, Merson MH, Reddy KS, Rodriguez MH, Sewankambo NK, Wasserheit JN. Towards a common definition of global health. Lancet 2009; 373(9679):1993-1995.. Ainda que infrutíferas para estabelecer um referencial mínimo, tais proposições de definição são, em sua quase totalidade, provenientes de nações consideradas desenvolvidas, com especial protagonismo de algumas delas88 Shiffman J. Knowledge, moral claims and the exercise of power in global health. Int J Health Policy Manag 2014; 3(6):297-299..
A divergência, e mesmo a disputa, no estabelecimento do que seria a SG, espelhada nessa polissemia conceitual, indicam ser a área, na atualidade, um espaço de relações sociais em formação e não um campo propriamente instituído. A SG pode vir a se tornar um campo no sentido rigoroso do termo, mas por enquanto seus contornos são oriundos das ligações e dos trânsitos estabelecidos entre agentes provenientes de campos já consolidados, como a saúde pública99 Fried LP, Bentley ME, Buekens P, Burke DS, Frenk JJ, Klag MJ, Spencer HC. Global health is public health. Lancet 2010; 375(9714):535-537., a saúde coletiva1010 Sampaio JRC, Ventura M. A emergência do conceito saúde global: perspectivas para o campo da saúde coletiva. Cad Ibero-Am Direito Sanit 2016; 5(4):145-155. e a saúde internacional1111 Jain SC. Global health: emerging frontier of international health. Asia Pac J Public Health 1991; 5(2):112-114..
Independentemente da condição de espaço social ou campo em formação, a pretensão da SG de padronizar iniciativas em saúde nos mais variados níveis e escalas territoriais requer especial atenção. Afinal, como se trata de uma área em construção e dirigida a estabelecer mensurações, parâmetros e normas de alcance mundial, seu formato final poderá ser reproduzido planetariamente. Por isso, o processo de formação da SG deve se tornar suficientemente poroso às diferenças existentes entre os territórios sobre os quais poderá agir - e que correm o risco de ficar amalgamadas sob um mesmo manto da saúde globalizada. Parece necessário ampliar o debate, inserindo instituições, demais campos e movimentos sociais dos países, entre outros, no estabelecimento dos propósitos, referenciais normativos, discursos, pesquisas e práticas em SG - confrontando assim a já identificada hegemonia dos países centrais88 Shiffman J. Knowledge, moral claims and the exercise of power in global health. Int J Health Policy Manag 2014; 3(6):297-299. e o risco de homogeneização1212 Engebretsen E, Heggen K. Powerful concepts in global health comment on "Knowledge, moral claims and the exercise of power in global health". Int J Health Policy Manag 2015; 4(2):115-117. - justamente pela retomada de tradições e propostas que possibilitem uma participação especialmente qualificada.
Participação no plano político
Há permanente e crescente risco de que uma concepção de SG seja imposta pelo status quo . A participação pode constituir via privilegiada à inclusão de conceitos, visões e experiências ligadas aos processos saúde-doença-cuidado, evitando o pensamento único direcionado à mercantilização e ao “empresariamento” da vida. Afinal, são muitos os exemplos de acirramento do neoliberalismo que assumiram o formato eufemístico de internacionalização1313 Carvalho JJ. Encontro de saberes, descolonização e transdisciplinaridade. In: Tugny RP, Gonçalves G, organizadores. Universidade popular e encontro de saberes. Salvador: EDUFBA; 2020.. Ao lidarmos com os determinantes e determinações em saúde na América Latina (AL), particularmente no Brasil, reproduzimos práticas em meio a profundas contradições sociais, como a desigualdade estrutural constitutiva de nosso continente, o impacto das políticas de austeridade fiscal e a consolidação do projeto neoliberal.
A maioria das instituições e práticas democráticas - às quais a noção de participação é incontornavelmente tributária - surgiram na Inglaterra do século XVII e se consolidaram na Europa e EUA até serem apresentadas ao resto do mundo como forma desejável de instituição política: separação de poderes, parlamentos, representação, eleições, partidos políticos, constituindo a base sobre as quais, nas últimas décadas, as experiências participativas se multiplicaram em todo o mundo. Tais experiências vêm se disseminando, incentivadas por agentes tão diversos quanto partidos de esquerda, políticas públicas urbanas, instituições multilaterais de financiamento, ONGs e membros de conselhos associativos e comunitários. A reivindicação por mais democracia, repartição de poder e reconhecimento do poder local diante de um Estado todo-poderoso foi uma das bandeiras dos movimentos sociais urbanos da década de 1960. Como resultado dessas lutas, diversas experiências participativas surgiram, como as oficinas de urbanismo público na França e na Itália e outras experiências de desenvolvimento comunitário em países de língua inglesa e no terceiro mundo1414 Bacqué M-H, Rey H, Sintomer Y. Gestion de proximité et démocratie participative: une perspective comparative. Paris: La Découverte; 2005.,1515 Blondiaux L. Le nouvele sprit de la démocratie: actualité de la démocratie participative. Paris: Seuil; 2008., inclusive os chamados movimentos de saúde nas décadas de 1970 e 1980 no Brasil1616 Sader E. Quando novos personagens entraram em cena: experiências e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-80). Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1988..
Do ponto de vista da teoria democrática, a participação se insere melhor no chamado conceito amplo de democracia - com intercâmbio de pontos de vista, defesa conjunta de interesses e determinação de prioridades sob a forma de direito - do que no conceito restrito de democracia. Assim, ao contrário da democracia restritiva, de caráter predominantemente instrumental, a perspectiva forte da democracia privilegia uma teoria relacional, na qual a participação cumpre papel fundamental1717 Lavalle AG, Vera EI. Representación y participación em la crítica democrática. Desacatos 2015; 49:10-27.,1818 Chauí M. Considerações sobre a democracia e seus obstáculos. In: Teixeira ACC, organizador. Os sentidos da democracia e da participação. São Paulo: Instituto Pólis; 2005.. Essa perspectiva implica constituir o campo da SG considerando multiplicidades de saberes e concepções a respeito dos determinantes e processos de doença-saúde-cuidado, inclusive de comunidades locais detentoras de práticas e visões não hegemônicas sobre tais determinantes e processos.
É justamente no deslizamento da noção de vulnerabilidade ou carência para a ideia de interesse comum e, depois, para direitos ou - de modo mais geral, de regime democrático para sociedade democrática - que podem ser encontradas aberturas para instaurar formas criativas e diversificadas de participação1818 Chauí M. Considerações sobre a democracia e seus obstáculos. In: Teixeira ACC, organizador. Os sentidos da democracia e da participação. São Paulo: Instituto Pólis; 2005.. Para Dagnino1919 Dagnino E. Construção democrática, neoliberalismo e participação: os dilemas da confluência perversa. Política Soc 2004; 3(5):139-164., no Brasil, a participação representou tentativa de superar o antagonismo entre Estado e sociedade civil existente durante a ditadura. Para a autora, o projeto participativo tem como objetivo a partilha de poder e de responsabilidades entre sociedade civil e Estado. No entanto, o uso simultâneo das expressões e noções de participação (como também de outras como sociedade civil, cidadania e democracia) por agentes e projetos políticos muito distintos cria o que a autora chama de confluência perversa, levando a uma crise discursiva.
Dagnino1919 Dagnino E. Construção democrática, neoliberalismo e participação: os dilemas da confluência perversa. Política Soc 2004; 3(5):139-164. ressalta a necessidade de evitar o uso da participação para legitimar propostas que favoreçam interesses relacionados à expansão e à reprodução do capital nacional e internacional - particularmente evidente em financiamentos concedidos pelo Banco Mundial nos quais a participação é condição para financiar intervenções que afetam comunidades vulneráveis. No entanto, tais formas de participação estão longe de garantir efetivo protagonismo aos envolvidos, servindo mais ao uso instrumental e pervertido (no sentido dado por Dagnino1919 Dagnino E. Construção democrática, neoliberalismo e participação: os dilemas da confluência perversa. Política Soc 2004; 3(5):139-164.). A recente iniciativa do Ministério da Saúde, que protelou a vacinação de crianças de 5 a 11 anos contra a COVID-19 mesmo após aprovação pela autoridade competente - a Agência Nacional de Vigilância Sanitária -, justificando a necessidade de realizar consulta e audiência pública antes de iniciar a imunização infantil, é outro exemplo de perversão dos sentidos de participação.
O que consideramos neste tópico indica que a junção de aspectos práticos, institucionais e teóricos molda o caráter multifacetado da participação, tornando escorregadias as tentativas de atribuir uma definição precisa, o que por sua vez dificulta tentativas de sistematizar seus possíveis efeitos e sentidos1717 Lavalle AG, Vera EI. Representación y participación em la crítica democrática. Desacatos 2015; 49:10-27.. Ainda assim, nos parece imperiosa a necessidade de encontrar meios adequados para a efetiva inserção de diferentes perspectivas, concepções e práticas de saúde, estabelecendo vias inclusivas e participativas na configuração de um potencial campo da SG.
Participação no plano epistêmico
A efetiva circulação de saberes e processos participativos em geral, e na SG em particular, não será garantida considerando apenas a inclusão de partes interessadas/potencialmente afetadas, mesmo que as distâncias e verticalizações entre os grupos fossem diminuídas. É importante que, nas interações estabelecidas, sejam contempladas não só diferentes agentes, movimentos e instituições, mas igualmente os distintos modos de conhecer de variados segmentos, numa perspectiva pluriepistêmica. Nos países latino-americanos, os processos de democratização iniciados nas décadas de 1970 e 1980 foram tributários de uma florescente vida associativa local. Nessa direção, o referencial para implementar processos participativos ligados à produção de conhecimentos em SG em nosso subcontinente pode se beneficiar dessas produções regionais. Tal é o caso do que Bringel e Versiani2020 Bringel B, Varella RVS. A pesquisa militante na América Latina hoje: reflexões sobre as desigualdades e as possibilidades de produção de conhecimentos. ver Digit Direito Adm 2016; 3(3):474-489. chamaram de pesquisa militante - um conjunto de teorizações e ações distintas, mas vinculadas aos desafios da realidade latino-americana de produção de conhecimentos que alia reflexões críticas e teóricas com a prática das lutas populares -, proposta por autores como Orlando Fals-Borda, Paulo Freire, Carlos Rodrigues Brandão e Michel Thiollent, entre outros2020 Bringel B, Varella RVS. A pesquisa militante na América Latina hoje: reflexões sobre as desigualdades e as possibilidades de produção de conhecimentos. ver Digit Direito Adm 2016; 3(3):474-489..
A noção de pesquisa militante articula o binômio pesquisa e ação, resultando na produção de conhecimento orientada para a ação transformadora e a práxis, imbricando a produção de saber com intervenções no mundo real. Essa característica faz da pesquisa militante um processo necessariamente coletivo e participativo na definição do que deve ser pesquisado e na sua análise, envolvendo pessoas inseridas nas lutas sociais. As raízes latino-americanas da chamada pesquisa militante e sua adaptação crítica de referenciais dos países centrais com enfrentamento do colonialismo intelectual e o compromisso com a emancipação, entre outras características, podem oferecer subsídios epistemológicos, metodológicos e políticos à constituição e avanço da SG na América Latina, conforme experiências já ocorridas no Brasil em décadas anteriores1616 Sader E. Quando novos personagens entraram em cena: experiências e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-80). Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1988..
Mais recentemente, a proposta do Encontro de Saberes (ES) estabelece uma via concreta de diálogo entre conhecimentos por meio da inserção de saberes tradicionais nos currículos, bem como dos mestres e mestras tradicionais na docência em universidades2121 Carvalho JJ, Vianna LCR O encontro de saberes nas universidades. Uma síntese dos dez primeiros anos.vRev Mundaú 2020; 9:23-49.. Na síntese dos primeiros dez anos do ES2121 Carvalho JJ, Vianna LCR O encontro de saberes nas universidades. Uma síntese dos dez primeiros anos.vRev Mundaú 2020; 9:23-49., apontamos a implementação da proposta em dezenas de universidades brasileiras e em alguns outros países e ressaltamos a sua característica de intervenção em dimensões importantes do mundo acadêmico: inclusão étnico-racial, política, pedagógica e epistêmica2222 Carvalho, JJ. Transculturality and the Meeting of Knowledges. In: Hemetek U, Hindler D, Huber H, Kaufmann T, Malmberg I, Saglam H, editors. Transkulturelle erkundungen: wissenschaftlich-künstlerische perspektiven. Wien: BöhlauVerlag; 2019. p. 79-94..
A proposta de ES, ainda que focada na superação das limitações da instituição universitária tradicional, converge para alguns aspectos das pesquisas militantes citadas e representa avanços nas iniciativas de participação no âmbito epistemológico1313 Carvalho JJ. Encontro de saberes, descolonização e transdisciplinaridade. In: Tugny RP, Gonçalves G, organizadores. Universidade popular e encontro de saberes. Salvador: EDUFBA; 2020.. Afinal, a inclusão de grupos, conhecimentos e discursos sistematicamente silenciados desde a criação das universidades brasileiras torna-se potencialmente inspiradora de modos verdadeiramente dialógicos de interação para constituir a SG. O ES busca não só dados e informações daqueles chamados para participar de processos de pesquisa, procura sobretudo interagir e aprender com as comunidades - na figura de seus mestres -, garantindo espaços para que outras formas de conhecer e gerar saberes sejam efetivamente consideradas. No caso de uma saúde que se pretenda de fato global, a existência e o uso de referenciais que permitam apreender como diferentes comunidades concebem, elaboram e agem em torno das questões de saúde-doença-cuidado nos parece essencial para conformar o campo da SG. Principalmente as comunidades cujas visões e práticas têm a ver com as noções de “saúde para todos”, “saúde em tudo” e “saúde por meio de todos”, mencionadas anteriormente com base em Garay et al.33 Garay J, Harris L, Walsh J. Global health: evolution of the definition, use and misuse of the term. Face à face [serial on the Internet]. 2013. [cited 2022 apr 1]. Available from: https://journals.openedition.org/faceaface/745
https://journals.openedition.org/faceafa...
Considerações finais
Ao abarcar um amplo espectro e enfrentar contingências de saúde em âmbito planetário, a SG deve contemplar extensamente as diferenças via participação, tornando-se um novo fórum global de práticas democráticas, debatendo as dificuldades de produção da saúde para todos, em tudo e por meio de todos. Os interesses envolvidos no debate sobre SG são amplos e muitas vezes contraditórios, mas isso não constitui obstáculo intransponível. O estado de bem-estar social emergiu, no século passado, da improvável união entre o movimento operário, que tinha como objetivo uma revolução social, correntes conservadoras, que queriam impedir esse desdobramento, governantes, que tentavam se garantir no poder, e movimentos humanitários, que apoiavam uma melhoria nas condições de vida da população. Dessa confluência inesperada de atores e pontos de vista resultou, pelo menos nos países ocidentais, um terreno fértil e comum no qual variantes muito diferentes do estado de bem-estar social puderam ser construídas, do modelo social-democrata ao liberal e ao conservador2323 Esping-Andersen G. The three worlds of welfare capitalism. Princeton: Princeton University Press; 1990..
As discussões sobre a SG perderão muito do seu sentido se não englobarem o ponto de vista de cidadãos, comunidades e territórios, que são os verdadeiros destinatários das políticas públicas de saúde e de outras iniciativas que necessitam de uma abordagem multidisciplinar, e mesmo transdisciplinar, ultrapassando as fronteiras geográficas e políticas, as dimensões local-regional-global e os conflitos entre os interesses público e privado. Nesse sentido, parece necessário ampliar o entendimento e as práticas em torno da chamada comunidade epistêmica2424 Haas PM. Introduction: epistemic communities and international policy coordination. Int Organ 1992; 46(1):1-35., agregando aos profissionais - que a partir de uma variedade de disciplinas diferentes produzem conhecimentos relevantes sobre questões técnicas complexas em políticas públicas - os modos de conhecer de comunidades organizadas e/ou tradicionais, em direção a uma comunidade pluriepistêmica. Neste sentido, em vez de um campo da SG, talvez tenhamos a constituição de uma verdadeira rede de agentes e saberes interconectados pela prática dialógica.
Referências
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- 2Salm M, Ali M, Minihane M, Conrad P. Defining global health: findings from a systematic review and thematic analysis of the literature. BMJ Glob Health 2021; 6(6):e005292.
- 3Garay J, Harris L, Walsh J. Global health: evolution of the definition, use and misuse of the term. Face à face [serial on the Internet]. 2013. [cited 2022 apr 1]. Available from: https://journals.openedition.org/faceaface/745
» https://journals.openedition.org/faceaface/745 - 4Dias NX. O campo científico da Saúde Global na América Latina: um estudo crítico sobre um campo polissêmico (2007-2019) [tese]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública; 2018.
- 5Bourdieu P. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras; 2010.
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- 24Haas PM. Introduction: epistemic communities and international policy coordination. Int Organ 1992; 46(1):1-35.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
17 Out 2022 - Data do Fascículo
Nov 2022
Histórico
- Recebido
27 Abr 2022 - Aceito
29 Abr 2022 - Publicado
02 Maio 2022